A Constituição da República[1] previu a instituição do tribunal do júri como garantia fundamental, assegurando-lhe a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, “d”). A competência do júri para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, portanto, é considerada cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, da CRFB), não podendo ser suprimida ou reduzida pelo poder constituinte derivado (emenda constitucional), embora não seja absoluta, pois pode ser afastada, excepcionalmente, por previsão do próprio poder constituinte originário, como na hipótese, por exemplo, de crimes dolosos contra a vida cometidos por autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função instituído no texto constitucional. Em se tratando, no entanto, de competência obrigatória mínima assegurada pela lex maxima, é possível que seja ampliada pelo legislador infraconstitucional para outras espécies delitivas ou até mesmo para matérias cíveis.
O Código de Processo Penal regulamentou a referida competência ratione materiae, dispondo no § 1º de seu art. 74 competir ao tribunal do júri o julgamento dos crimes dolosos previstos no primeiro capítulo do título I da parte especial do Código Penal (“dos crimes contra a vida”), quais sejam, as modalidades de homicídio doloso (art. 121, caput e §§ 1º e 2º, do CP), induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122 do CP), infanticídio (art. 123 do CP) e os vários crimes de aborto (arts. 124 a 127 do CP). Previu, ainda, competir ao tribunal do júri o julgamento de crimes conexos a infrações penais dolosas contra a vida (art. 78, I, do CPP).
O art. 157, § 3º, II, do Código Penal prevê a figura do roubo qualificado pelo resultado morte, conhecida como latrocínio, embora o dispositivo não traga rubrica com este nomen juris. Segundo posição amplamente majoritária, considerando a gravidade da sanção penal cominada – 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa – o resultado mais grave (morte) pode advir de preterdolo (culpa) ou dolo (direto ou eventual),([i]) desde que previsível. Sendo um crime complexo, fruto da junção dos delitos de roubo e homicídio (doloso ou culposo), é considerado delito pluriofensivo, na medida em que há dois bens jurídicos tutelados: o patrimônio e a vida humana. Diante de tal constatação, questiona-se a competência para julgar o latrocínio quando a morte resultar de dolo.
O posicionamento amplamente dominante considera que o crime de latrocínio, ainda que a morte seja dolosa, não é de competência do tribunal do júri, mas do juiz monocrático, conforme a Súmula 603 do STF. O fundamento é que o latrocínio não seria crime doloso contra a vida, pois está localizado topograficamente no título referente aos “crimes contra o patrimônio”, uma vez que a conduta do agente é dirigida precipuamente a atacar os bens da vítima, sendo a morte apenas um meio para alcançar este desiderato, como defendia Nelson Hungria ao comentar, em nota de rodapé, o art. 141, § 28, da Constituição de 1946 (que, assim como a Constituição de 1988, conferiu ao tribunal do júri competência para processar e julgar os “crimes dolosos contra a vida”):
Com o desastrado § 28 do art. 141 da [...] Constituição federal [de 46], que resistiu à sua descontrolada soberania o Tribunal do Júri, foi obrigatoriamente atribuído a este o julgamento dos “crimes dolosos contra a vida”, e pretendeu-se que o latrocínio incidia sob tal competência. Refutando o entendimento, argumentamos que o latrocínio é classificado pelo Cód. Penal, a que implicitamente faz remissão o preceito constitucional, entre os “crimes contra o patrimônio”, atendendo ao critério científico segundo o qual, para a classificação do crime complexo, deve ter-se em conta o bem ou interesse cuja lesão representa o escopo final do agente (os crimes-membros perdem sua autonomia, para, aglutinados, formarem uma entidade criminal unitária; mas a consideração do bem ou interesse lesado pelo crime-fim é que prevalece para classificação da unidade complexa, ainda que tal bem ou interesse seja inferior aos lesados pelos crimes-meios ou famulativos). Por outro lado, o evento “morte”, no latrocínio, tanto pode ser corpus delicti de homicídio doloso, quanto de homicídio culposo ou preterdoloso, e seria um desconchavo que o julgamento, conforme a hipótese, ora coubesse ao júri, ora ao juiz singular. O nosso ponto de vista é o adotado pelo Supremo Tribunal Federal [...]: a competência para o processo e julgamento dos réus de latrocínio é do juiz singular. ([ii])
Com a devida vênia, não parece ser o melhor entendimento. Primeiramente, conforme Angelito A. Aiquel, “o legislador [constituinte] não disse que são da competência do júri os crimes de dolo específico contra a vida, mas os crimes dolosos contra a vida” ([iii]). Não cabe ao intérprete restringir o que o texto constitucional não restringiu. Tanto é assim que no chamado “homicídio mercenário” (art. 121, § 2º, I, do CP), por exemplo, a finalidade última do matador de aluguel é a obtenção do pagamento ou recompensa, e não a morte da vítima, que é apenas o meio para consecução do objetivo final, e ninguém discorda que se trata de um crime doloso contra a vida, de competência do júri.([iv]) Ademais, acrescenta Marcelo Fortes Barbosa:
E é também certo que o Júri, órgão especial da Justiça Comum, face a regra do art. 78, n. I do Código de Processo Penal, tem competência prevalente, vis atractiva, com relação a delitos que acompanham os delitos contra a vida, quer em conexão, concurso de crimes em suas formas, ou ainda em unidade complexa, já que a lei não faz distinções. ([v])
O argumento topográfico também não merece prosperar. Segundo José Salgado Martins, “o preceito constitucional quis dar ao júri o julgamento de todos os crimes em que a vida constitui, isoladamente ou em concurso com outro bem jurídico, a ‘ratio’ incriminadora, desde que a lesão à vida esteja na esfera do dolo propulsor do delito” ([vi]). Para determinar a competência do júri, portanto, a interpretação do que constitua “crime doloso contra a vida” não está vinculada à classificação dos crimes pelo Código Penal ou ao rol do art. 74, § 1º, do Código de Processo Penal, pois não pode o legislador ordinário retirar da competência do tribunal do júri crimes que, na essência, representam uma agressão dolosa à vida humana, considerando que nem mesmo emenda à Constituição poderia fazê-lo. Ora, seria possível que uma lei, por exemplo, que alterasse a legislação penal para retirar o crime de aborto sem o consentimento da gestante do rol dos crimes contra a vida, transferindo-o para um capítulo denominado “dos crimes contra a liberdade gestacional” (ou algo do gênero), o afastasse da competência do júri? A resposta só pode ser negativa, sob pena de se permitir ao legislador infraconstitucional estabelecer quais crimes dolosos contra a vida serão de competência do júri e quais serão julgados por juiz singular, burlando a previsão do art. 5º, XXXVIII, “d”, da CRFB. Da mesma forma, a competência do júri para o julgamento dos latrocínios não está subordinada a eventual alteração legislativa transformando o crime em modalidade qualificada de homicídio doloso (ou delito autônomo do capítulo “dos crimes contra a vida”). Não se pode interpretar a Constituição a partir do Código Penal ou do Código de Processo Penal. Sempre que o agente ceifar dolosamente uma vida humana, ou tentar fazê-lo, deverá ser julgado pelo tribunal do júri, independentemente do enquadramento típico da conduta.
Note que o plenário do Supremo Tribunal Federal, com base no art. 109, VI, da CRFB, já considerou ser de competência federal o crime de redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do CP), muito embora não conste no rol dos crimes contra a organização do trabalho (arts. 197 a 207 do CP), sob o fundamento de que, na essência, tal delito violaria a organização do trabalho (STF, RExt 398.041-6/PA e RExt 459.510/MT). No julgamento do RExt 398.041-6/PA, consignou em seu voto o relator ministro Joaquim Barbosa:
A Constituição, no art. 109, VI, determina que são da competência da justiça federal “os crimes contra a organização do trabalho”, sem explicitar que delitos se incluem nessa categoria. Embora no Código Penal brasileiro haja um capítulo destinado a tais crimes, o entendimento doutrinário e jurisprudencial dominante é no sentido de que não há correspondência taxativa entre os delitos capitulados no referido Código e aqueles indicados na Constituição, cabendo ao intérprete verificar em quais casos se está diante de “crime contra a organização do trabalho”. ([vii])
O mesmo raciocínio, mutatis mutandis, é aplicável à espécie: O art. 5º, XXXVIII, “d”, da CRFB determina serem da competência do júri os “crimes dolosos contra a vida”, sem, no entanto, explicitar quais figuras delitivas se incluem nessa categoria. Não obstante o Código Penal possua um capítulo destinado aos “crimes contra a vida”, não há correspondência exaustiva entre tais delitos e aqueles indicados no texto magno como de competência do júri, cabendo ao intérprete a função de analisar em quais hipóteses se está diante efetivamente de um crime doloso contra a vida.
Por tais motivos, conclui Salgado Martins,([viii]) “a competência do júri deverá orientar-se, principalmente, pelo aspecto exterior do delito, desde que dele se possa inferir razoavelmente a existência do dolo contra a vida”. Assim, em que pese o entendimento majoritário consolidado na Súmula 603 do STF, o latrocínio, quando a morte for ocasionada dolosamente, deverá ser considerado, para fins de determinação da competência, crime doloso contra a vida, sendo julgado pelo tribunal do júri. Diversamente, quando se tratar de crime preterdoloso, tendo o resultado morte se dado de forma culposa, será de competência do juiz singular. O mesmo se aplica a outros crimes do Código Penal, como extorsão com resultado morte (art. 158, § 2º, do CP) e extorsão mediante sequestro com resultado morte (art. 159, § 3º, do CP), e até mesmo a delitos previstos na legislação extravagante, como o genocídio, considerado isoladamente, quando praticado mediante homicídios ou abortos (art. 1º, letras “a”, “c” e “d”, da Lei 2.889/56).([ix])
[1] Publicado originalmente em: MELLO, Marco Aurélio Vogel Gomes de. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 26, n. 315, p. 6-8, fev. 2019.
([i]) Nesse sentido, por exemplo, STJ, AgRg no HC 367.173/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 16/03/2017, DJe 27/03/2017.
([ii]) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. v. 7. Rio de Janeiro: Forense, 1955. p. 57-58, com adaptações ortográficas.
([iii]) AIQUEL, Angelito A. Algumas das restrições inconstitucionais à competência do júri. Revista da Faculdade de Direito de Pôrto Alegre, Porto Alegre, v. 2, n. 3, p. 629-651, 1951. p. 632.
([iv]) Este argumento parece ser compartilhado por Eugênio Pacelli e Douglas Fischer, ao afirmarem: “Nota-se que o crime de latrocínio (art. 157, § 3º, CP) não vem incluído como crime doloso contra a vida. A razão parece estar ligada ao sistema finalista da ação, dando-se primazia à finalidade dolosa dirigida diretamente contra a vida. No latrocínio, como se sabe, a conduta se dirigiria precipuamente ao patrimônio, surgindo o resultado morte como inconveniente de percurso. Vá que seja, mas o homicídio praticado como meio de obtenção de pagamento ou recompensa (art. 121, § 2º, I, CP) também não teria natureza semelhante? ” (PACELLI, Eugênio; FISCHER, Douglas. Comentários ao código de processo penal e sua jurisprudência. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 181).
([v]) BARBOSA, Marcelo Fortes. O latrocínio face ao novo código penal. Justitia, São Paulo, v. 36, n. 87, p. 199-203, out.-dez., 1974. p. 201.
([vi]) MARTINS, José Salgado. O júri e a sua competência fixada pela Constituição. Revista da Faculdade de Direito de Porto Alegre, Porto Alegre, a. 1, n. 1, p. 121-134, 1949. p. 134.
([vii]) STF, RExt 398.041/PA, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 30/11/2006, DJe-241 DIVULG 18/12/2008 PUBLIC 19/12/2008 EMENT VOL-02346-09 PP-02007 RTJ VOL-00209-02 PP-00869.
([ix]) Nesse sentido, sustenta Guilherme de Souza Nucci: “Note-se que aquele que ‘matar membros do grupo, com a intenção de ‘destruir, no todo ou em parte’ um agrupamento ‘racial’, está, em verdade, atentando contra a vida humana, porém, com finalidade específica. Parece-nos inviável sustentar que, nessa hipótese, surge um bem acima da vida humana, somente porque a motivação é especial. Por tal razão, voltando-se o agente contra a vida de membros de um grupo, com as finalidades previstas no art. 1.º, caput, desta Lei [2.889/56], pensamos seja competência do Tribunal do Júri” (NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 656-657). Em sentido contrário, entendendo que o genocídio só será julgado pelo tribunal do júri quando houver conexão com crime doloso contra a vida, STF, RExt 351.487/RR, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2006, DJ 10/11/2006 PP-00050 EMENT VOL-02255-03 PP-00571 RTJ VOL-00200-03 PP-01360 RT v. 96, n. 857, 2007, p. 543-557 LEXSTF v. 29, n. 338, 2007, p. 494-523.
Bacharel em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista com treinamento em serviço na modalidade residência jurídica, em nível de pós-graduação lato sensu, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Técnico superior jurídico da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MELLO, Marco Aurélio Vogel Gomes de. A competência do tribunal do júri para o julgamento do latrocínio (art. 157, § 3º, II, do CP): o equívoco da Súmula 603 do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 set 2019, 04:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53428/a-competncia-do-tribunal-do-jri-para-o-julgamento-do-latrocnio-art-157-3-ii-do-cp-o-equvoco-da-smula-603-do-stf. Acesso em: 23 dez 2024.
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