RESUMO: Este artigo possui como escopo analisar como o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana vem influenciado as possibilidades jurídicas de alteração do nome civil e flexibilizando o Princípio da Inalterabilidade do Nome Civil. Far-se-á uma análise dos principais julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, inclusive sobre a possibilidade de alteração do prenome do transgênero, bem como da retirada do sobrenome do genitor em razão de abandono afetivo. Demonstrar-se-á que o nome, como direito da personalidade, possui papel de formação e consolidação da personalidade, de modo que, em determinadas situações, é possível sua alteração, em atendimento ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Palavras-Chave: Dignidade da Pessoa Humana. Nome Civil. Imutabilidade do Nome. Constituição Federal. STJ. STF.
ABSTRACT: This article was written with the intention of analysing how the Principle of the Dignity of Human Person is having influence over the legal possibilities in which is possibly for people to change their civil names and over the loosening of the Principle of Stability (Immutability) of Name. It´s done an analysis of the main cases ruled by the Supreme Justice Court and by the Supreme Court about the subject, including about the possibility of transgender people changing their first name, as well as the possibility of removing the surname of a parent regarding cases of affective abandonment. It´ll be demonstrated that Name, as a personality law, has a fundamental role in formation and consolidation of someone’s personality, in a matter that in such occasions it´s possibly it´s transformation as a way of meeting the needs brought by the Principle of the Dignity of Human Person.
Keywords: Dignity of Human Person, Civil Name, Supreme Justice Court, Supreme Court, Stability of Name.
Sumário: 1. Introdução; 2. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; 3. Direito ao Nome; 4. Reflexos do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana sobre a Imutabilidade do nome civil; 5. Conclusões; 6. Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
Trata-se de um estudo acerca do direito personalíssimo ao nome, elemento de identificação social da pessoa, o qual, em regra, é regido pelo princípio da inalterabilidade. Contudo, além das situações expressamente previstas na Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem admitindo a flexibilização do referido princípio com base na Dignidade da Pessoa Humana.
Inicialmente, há de ser demonstrado o conceito do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, fundamento da República Federativa do Brasil. Posteriormente, analisaremos as particularidades do direito ao nome e do princípio da inalterabilidade relativa do nome civil. Por fim, faremos uma análise de algumas das principais decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça acerca da flexibilização da imutabilidade do nome civil, com base na Dignidade da Pessoa Humana.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição Federal, em seu art. 1º, inciso III, estabelece que a dignidade da pessoa humana é um fundamento da República Federativa do Brasil. Trata-se, portanto, de um valor constitucional Supremo, núcleo axiológico do ordenamento jurídico pátrio.
Sobre as razões para a elevação do princípio da dignidade humana à categoria de fundamento da República, José Afonso da Silva (1998, p. 1) explica que há nítida relação com uma situação anterior de grave violação dos direitos humanos. O autor afirma que a Alemanha foi a primeira a erigir o princípio como direito fundamental expressamente previsto no art. 1º de sua constituição, declarando que "A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todos os Poderes estatais".
Tal declaração ocorreu após o fim da 2ª Guerra Mundial, e da intensa violação de direitos ocorrida durante o regime nazista. As mesmas razões teriam justificado também a positivação do princípio da dignidade humana nas constituições portuguesa e espanhola, findo os respectivos regimes ditatoriais. No Brasil, não foi diferente. O fim do regime militar, e seu contexto de restrição das liberdades públicas, de torturas e violação de direitos humanos levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 (SILVA, 1998, p. 1-2), como um princípio fundamental.
Para Uadi Lâmmego Bulos (2015, p. 508), princípios fundamentais são diretrizes imprescindíveis à configuração e formação do Estado, refletindo valores do ordenamento jurídico, postulados básicos e os fins da sociedade. Segundo o autor, os princípios elevados pela Constituição Federal à condição de fundamentos da República são o alicerce do “edifício constitucional”, e devem servir de orientação ao intérprete, na tomada de suas decisões, sobretudo pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo.
Para o autor (BULOS, 2015, p. 513), ao consagrar a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, o constituinte consagrou um imperativo de justiça social, um “valor constitucional supremo”. Ainda acerca da elevação do princípio da dignidade humana ao patamar de princípio fundamental, André Ramos Tavares (2018, p. 305), destaca que:
A Constituição de 1988 optou por não incluir a dignidade da pessoa humana entre os direitos fundamentais, inseridos no extenso rol do art. 5º. Como se sabe, a opção constitucional brasileira, quanto à dignidade da pessoa humana, foi por considerá-la, expressamente, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, consignando-a no inciso III do art. 1º. Parece que o objetivo principal da inserção do princípio em tela na Constituição foi fazer com que a pessoa seja, como bem anota JORGE MIRANDA, “fundamento e fim da sociedade, porque não pode sê-lo o Estado, que nas palavras de ATALIBA NOGUEIRA é “um meio e não um fim”, e um meio que deve ter como finalidade, dentre outras, a preservação da dignidade do Homem.
Tavares (2018, p. 306-307) salienta que o princípio da dignidade da pessoa humana não surgiu com Kant, visto que já no pensamento estoico, a dignidade era tida como uma qualidade que distinguia o ser humano das demais criaturas. No entanto, frisa que o filósofo Immanuel Kant foi quem provavelmente mais contribuiu para a delimitação do conceito da dignidade da pessoa humana, ao definir o homem como fim em si mesmo.
A contribuição de Kant para o desenvolvimento teórico da dignidade humana também é comentada pelo Ministro Luís Roberto Barroso (2010, p. 17), o qual destaca que o referido filósofo fez conceituações imprescindíveis sobre autonomia e dignidade. Quanto à dignidade, esta teria fundamento na autonomia, que nada mais é do que a vontade livre, a capacidade do indivíduo de se autodeterminar.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal traz as diferenciações fundamentais realizadas por Kant acerca das coisas e das pessoas. Para Kant, tudo tem um preço ou dignidade. As coisas que têm preço são plenamente substituíveis por outras ou pelo preço. No entanto, quando algo esta acima do preço, e não pode ser substituída por outra equivalente, estar-se-ia diante de uma pessoa. A pessoa, então, não possui preço, mas dignidade.
Assim, segundo a filosofia kantiana, as coisas seriam verdadeiros “meios”, valores relativos e condicionados. Já as pessoas, enquanto seres racionais, existiriam como fins em si mesmas, e não como meios. O ser humano, portanto, seria um valor absoluto, pois existe como fim em si mesmo (SILVA, 1998, p. 2).
Acerca do conteúdo da dignidade da pessoa humana, Tavares (2018, p. 306) adverte que há uma dificuldade de conceituação e de delimitação do conteúdo. Para ele, a dignidade do homem não abarcaria tão somente a questão do homem não poder ser um instrumento, como afirmava Kant, mas também, em razão disso, ser o homem capaz de escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, sem que haja interferência direta de terceiros em seu pensar, seu agir e decidir.
Já Bulos (2015, p. 513) expõe de forma ampla o conteúdo da dignidade humana, o qual englobaria diversos valores:
O conteúdo do vetor é amplo e pujante, envolvendo valores espirituais (liberdade de ser, pensar e criar etc.) e materiais (renda mínima, saúde, alimentação, lazer, moradia, educação etc.). Seu acatamento representa a vitória contra a intolerância, o preconceito, a exclusão social, a ignorância e a opressão. A dignidade humana reflete, portanto, um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem. Seu conteúdo jurídico interliga-se às liberdades públicas, em sentido amplo, abarcando aspectos individuais, coletivos, políticos e sociais do direito à vida, dos direitos pessoais tradicionais, dos direitos metaindividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos), dos direitos econômicos, dos direitos educacionais, dos direitos culturais etc. Abarca uma variedade de bens sem os quais o homem não subsistiria.
Luís Roberto Barroso (2010, p. 4), ao discorrer sobre a evolução da dignidade da pessoa humana, também destaca que há uma dificuldade na conceituação do conteúdo mínimo deste princípio:
A dignidade da pessoa humana, na sua acepção contemporânea, tem origem religiosa, bíblica: o homem feito à imagem e semelhança de Deus. Com o Iluminismo e a centralidade do homem, ela migra para a filosofia, tendo por fundamento a razão, a capacidade de valoração moral e autodeterminação do indivíduo. Ao longo do século XX, ela se torna um objetivo político, um fim a ser buscado pelo Estado e pela sociedade. Após a 2ª. Guerra Mundial, a idéia de dignidade da pessoa humana migra paulatinamente para o mundo jurídico, em razão de dois movimentos. O primeiro foi o surgimento de uma cultura póspositivista, que reaproximou o Direito da filosofia moral e da filosofia política, atenuando a separação radical imposta pelo positivismo normativista. O segundo consistiu na inclusão da dignidade da pessoa humana em diferentes documentos internacionais e Constituições de Estados democráticos. Convertida em um conceito jurídico, a dificuldade presente está em dar a ela um conteúdo mínimo, que a torne uma categoria operacional e útil, tanto na prática doméstica de cada país quanto no discurso transnacional. (Grifos ausentes no original).
Apesar da dificuldade de conceituação e de delimitação do seu conteúdo mínimo, é possível identificar um determinado consenso na doutrina, no sentido de que a dignidade da pessoa humana é reconhecida como valor supremo pela Constituição Federal de 1988, bem como que o referido princípio atrai e determina a realização, implementação e efetivação dos direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico. Segundo Tavares (2018, p. 312), “ao menos em princípio, em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa”. Assim, os direitos fundamentais – sejam políticos, liberais, sociais etc – buscam justamente garantir a dignificação do homem.
Neste contexto de elevação da dignidade da pessoa humana à princípio fundamental da República – inclusive como uma orientação ao legislador ordinário – os novos diplomas normativos que vieram a ser editados sob o prisma da Constituição de 1988, passaram a refletir e implementar os direitos fundamentais constitucionais, com fundamento na dignidade humana. A Constituição Federal passa a irradiar seus princípios para todo o ordenamento jurídico, seja de forma expressa, seja de forma interpretativa. É a chamada constitucionalização do Direito Civil
Desta forma, os institutos do Código Civil brasileiro também passaram por uma releitura, tanto com a edição do Código Civil de 2002, como com uma interpretação à luz dos direitos e garantias consagrados na Constituição de 1988. Ou seja, a Carta de 1988 impôs uma releitura dos institutos do Direito Civil, reformulando-os em seu conteúdo (FARIAS, 2017, p. 65).
Não foi diferente com o instituto do nome civil, direito da personalidade expressamente previsto no Código Civil Brasileiro de 2002, e que passa a ser lido pelos Tribunais Superiores à luz dos direitos fundamentais previstos na Constituição, de modo a garantir o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
3 DIREITO AO NOME
A doutrina civilista, dentro de uma abordagem classificatória didática, tende a encaixar os vários direitos da personalidade em três categorias: direito à integridade física, direito à integridade psíquica (moral) e integridade intelectual, conforme nos ensinam os civilistas Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (2018, p. 200).
O direito ao nome integra o direito à integridade psíquica, segundo doutrina majoritária. Para os fins deste artigo, portanto, nos ateremos a esta categoria, que, conforme explicam Chaves, Rosenvald e Braga Netto (2018, p. 206, grifo nosso):
É praticamente impossível tratar de qualquer aspecto do direito civil atual sem pensar na integridade psicofísica do ser humano. Aliás, a grande parte das discussões e das demandas civis não diz respeito a aspectos estritamente físicos do ser humano, mas a danos morais (compreendidos em sua acepção mais ampla, abrangendo honra, imagem, liberdade, privacidade nome etc.) Trata-se de conjunto de valores tão amplo e tão valioso, que qualquer tentativa de descrevê-los de modo exaustivo seria indevida.”
Segundo o consagrado doutrinador Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 148), “o nome é a designação ou sinal exterior pelo qual a pessoa identifica-se no seio da família e da sociedade”, afirmando inclusive que este “é um dos principais elementos individualizares da pessoa natural”.
Afirma também que “Washington de Barros Monteiro, o considera a expressão mais característica da personalidade, o elemento inalienável e imprescritível da individualidade da pessoa, não se conhecendo, na vida social, ser humano que não traga um nome.” (GONÇALVES, 2010, p. 148), bem como que, segundo Limongi França, “o nome é a designação pela qual se identificam e distinguem as pessoas naturais, nas relações concernentes ao aspecto civil da sua vida jurídica” (GONÇALVES, 2010, p. 148).
Neste mesmo rumo, a clássica doutrinadora Maria Helena Diniz (2012, p. 227)
conceitua o nome como um direito da personalidade “por ser o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade; daí ser inalienável, imprescritível e protegido juridicamente (CC, arts. 16, 17, 18 e 19)”.
Tanto Maria Helena Diniz, quanto Carlos Roberto Gonçalves deixam registrado que o nome possui um aspecto público e um aspecto individual. Vejamos o que cada um deles fala acerca do tema. Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 149):
O aspecto público decorre do fato de o Estado ter interesse em que as pessoas sejam perfeita e corretamente identificadas na sociedade pelo nome e, por essa razão, disciplina o seu uso na Lei dos Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), proibindo a alteração do prenome, salvo exceções expressamente admitidas (art. 58) e o registro de prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores (art. 55, parágrafo único).
O aspecto individual consiste no direito ao nome, no poder reconhecido ao seu possuidor de por ele designar-se e de reprimir abusos cometidos por terceiros. [...]
Corroborando essa ideia do aspecto público e individual do nome, Maria Helena Diniz declara (2012, p. 227-228):
O aspecto público do direito ao nome decorre do fato de estar ligado ao registro da pessoa natural (Lei n. 6.015/73, arts 54, n. 4, e 55) pelo qual o Estado traça princípios disciplinares do seu exercício determinando a imutabilidade do prenome (Lei n. 6.015/73, art. 58), salvo exceções expressamente admitidas e desde que as suas modificações sejam precedidas de justificação e autorização de juiz togado (Lei n. 6015/73, arts. 56, 57 (com alteração da Lei n. 12.100/2009) e 58). E o aspecto individual manifesta-se na autorização que tem o indivíduo de usá-lo, fazendo-se chamar por ele, e de defendê-lo de quem o usurpar, reprimindo abusos cometidos por terceiros, que em publucação ou representação, o exponham ao desprezo público ou ao ridículo mesmo que não tenham intenção difamatória (CC, art. 17) […]
Já Farias, Rosenvald e Braga Netto (2018, p. 216) destacam as funções do nome: “o nome da pessoa humana não desempenha, apenas, na sociedade, uma função unidimencional. Há vários aspectos ou várias dimensões que poderiam ser mencionados, como relevantes na espécie.”. Pontuam, ainda, a natureza jurídica do nome, que antes era concebida como de cunho patrimonial, e atualmente é considerada de direito extrapatrimonial. Trata-se, portanto, de um direito da personalidade: “Basta lembrar, para evidenciar eu desacerto dessa concepção [nome como direito patrimonial], que o nome é inalienável” (FARIAS; RESENVALD; NETTO, 2018, p. 216).
O nome está protegido internacionalmente pelo art. 18 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual assegura que toda pessoa tem direito a um prenome e aos nomes de seus pais, ou ao de um destes; bem como pelo art. 7º da Convenção dos Direitos da Criança, o que estabelece que a criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome.
No ordenamento jurídico brasileiro, o direito ao nome está protegido pelo art. 16 do Código Civil. Segundo o referido dispositivo legal, toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. O nome completo compõe-se, pois, de dois elementos: prenome (antigamente denominado de nome de batismo) e sobrenome ou apelido familiar -também denominado de nome de família ou simplesmente sobrenome, conforme ensina Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 152).
O axinômio, que, segundo Carlos Roberto Gonçalves (2010, p. 152), é a designação que se dá à forma cortês de tratamento ou à expressão de reverência, que passa a fazer parte do nome da pessoa (como o “Sir” na Inglaterra, e.g., Sir Isaac Newton), não é admitido no ordenamento jurídico brasileiro, conforme afirmam Farias, Rosenvald e Braga Netto (2018, p. 218).
Quanto às suas características, pode-se afirmar que o direito ao nome civil, conforme elenca Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2017, p. 295), é:
i) absoluto (produzindo efeitos erga omnes, sendo oponível a toda e qualquer pessoa, sem que isso impeça que duas pessoas naturais, eventualmente, tenham o mesmo nome – a chamada homonímia); ii) obrigatório (e, nesse sentido, vale o comentário de que o art. 50 da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos – proclama a necessidade de registro civil de todas as pessoas nascidas, inclusive os natimortos iii) indisponível (uma vez que não pode o titular ceder, alienar, renunciar, dentre outras formas de disposição); iv) exclusivo (característica inerente, apenas, à pessoa jurídica, uma vez que impossível de ser aplicada à pessoa natural, a quem se permite a homonímia); v) imprescritível (não sendo possível perder o nome pelo não uso); vi) inalienável (reconhecida a impossibilidade de a pessoa humana vender ou dar o seu nome como decorrência lógica da própria impossibilidade de dispor da própria identificação pessoal. No entanto, não se olvide que a pessoa jurídica poderá dispor de seu nome de fantasia, que se trata de elemento componente de seu patrimônio); vii) incessível (caráter privativo, também da pessoa natural, inaplicável à pessoa jurídica); viii) inexpropriável (não sendo suscetível de desapropriação pelo Poder Público, salvo em se tratando de nome de pessoa jurídica, em face (sic) do seu conteúdo patrimonial); ix) irrenunciável (salvo em casos especiais, em que se admite o despojamento de parte do nome); x) intransmissível (consequência natural da indisponibilidade).
Importante mencionar o princípio da inalterabilidade relativa do nome, segundo o qual, em regra, o nome civil da pessoa não pode ser alterado, tendo em vista a segurança jurídica. Essa imutabilidade, contudo, não é absoluta, mas relativa. Isto porque, em hipóteses excepcionais, tanto a lei como a jurisprudência admitem a alteração do nome, exigindo-se, para tanto, em regra, justo motivo e ausência de prejuízo a terceiros.
Dentre outras hipóteses, podem ser citadas as seguintes exceções à imutabilidade do nome: erro gráfico evidente ou prenomes vexatórios (art. 110 e 55 da Lei de Registros Públicos, respectivamente); adoção, conforme art. 1.627 do Código Civil c/c art. 47, §§5º e 6º do ECA; apelidos públicos notórios (art. 58 da LRP); em caso de inclusão no programa de proteção a testemunhas (art. 58, parágrafo único da LRP); alteração imotivada do nome aos 18 anos, conforme dita o art. 56 da LRP; e no caso de casamento, separação judicial, dissolução do casamento ou da convivência (arts. 1571, §2º, art. 1578 do CC).
No entanto, para além das hipóteses legais que autorizam a alteração do nome ou do sobrenome, a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem relativizando a imutabilidade do nome civil, em atenção ao princípio da dignidade da pessoa humana, e considerando a natureza de direito da personalidade que o nome possui. Assim, diante de determinadas situações, o princípio da dignidade da pessoa humana deverá prevalecer sobre a segurança jurídica e o princípio da inalterabilidade do nome civil, permitindo assim a alteração do registro civil.
4 REFLEXOS DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOBRE A IMUTABILIDADE DO NOME CIVIL
Conforme destacado acima, a constitucionalização do Direito Civil, ou seja, a leitura dos institutos do Direito Civil à luz da Constituição Federal de 1988, dos direitos fundamentais por ela assegurados e da dignidade da pessoa humana, também influenciou a modificação do tratamento e do entendimento jurisprudencial, doutrinário e legislativo acerca do instituto do nome civil.
Malgrado a regra no ordenamento jurídico seja a imutabilidade do nome civil, o qual só pode ser alterado nas hipóteses expressamente previstas no ordenamento jurídico, a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem flexibilizando o referido princípio, e admitindo a alteração do nome em hipóteses não previstas legalmente, com fulcro na dignidade da pessoa humana. Neste cenário, algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça – STJ e do Supremo Tribunal Federal – STF ganham relevância e merecem destaque.
Em 18 de dezembro de 2014, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial – REsp 1.304.718-SP, de relatoria do Ministro Paulo de Tarson Sanseverino, entendeu ser possível a exclusão do sobrenome paterno pelo filho que havia sido abandonado por seu genitor, tendo em vista que a manutenção do patronímico lhe causava angústia e sofrimento. O referido julgado foi assim ementado:
EMENTA RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. REGISTRO CIVIL. NOME. ALTERAÇÃO. SUPRESSÃO DO PATRONÍMICO PATERNO. ABANDONO PELO PAI NA INFÂNCIA.. JUSTO MOTIVO. RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS 56 E 57 DA LEI N.º 6.015/73. PRECEDENTES. 1. O princípio da imutabilidade do nome não é absoluto no sistema jurídico brasileiro. 2. O nome civil, conforme as regras dos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, pode ser alterado no primeiro ano após atingida a maioridade, desde que não prejudique os apelidos de família, ou, ultrapassado esse prazo, por justo motivo, mediante apreciação judicial e após ouvido o Ministério Público. 3. Caso concreto no qual se identifica justo motivo no pleito do recorrente de supressão do patronímico paterno do seu nome, pois, abandonado pelo pai desde tenra idade, foi criado exclusivamente pela mãe e pela avó materna. 4. Precedentes específicos do STJ, inclusive da Corte Especial. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (STJ, REsp 1.304.718-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 18/12/2014, Info 555).
No caso analisado, o requerente, apesar de devidamente registrado por seu pai natural, havia sido criado exclusivamente por sua mãe e por sua avó materna, não tendo criado laços de afetividade com seu genitor, o qual o abandonou em tenra idade. Considerando a angústia e o sofrimento causado ao requerente em virtude da utilização de um sobrenome que lhe remetia ao abandono paterno, a referida Turma do STJ permitiu não só a supressão do patronímico do genitor, como também o acréscimo do sobrenome da sua avó materna, a qual havia contribuído econômica, moral e afetivamente para seu desenvolvimento.
No julgamento, o relator Min. Paulo Tarso Sanseverino destacou que não era a primeira vez que o STJ reconhecia essa possibilidade. O relator citou como precedentes o Recurso Especial n.º 66.643/SP, da relatoria do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 21/10/1997; o REsp n.º 401138/MG, Rel. Ministro Castro Filho, Terceira Turma, DJ 26/06/2003; e também o pedido de homologação de sentença estrangeira SEC 5.726/EX, da relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe 05/02/2013, no qual a relatora “fez questão de salientar a tendência dessa Corte à superação da rigidez do registro de nascimento, com a adoção de interpretação mais condizente com o respeito à dignidade da pessoa humana, fundamento basilar de um estado democrático”.
Portanto, o STJ utilizou-se da dignidade humana como fundamento para flexibilização da inalterabilidade do nome civil, tendo em vista o sofrimento psicológico causado pelo patronímico do genitor, o qual trazia ao requerente memórias do abandono afetivo. Frise-se que, no entendimento de Maria Berenice Dias, o abandono afetivo, ou seja, a omissão dos pais no exercício do poder familiar e a ausência de cuidado causam um “dano à dignidade do filho” (2016, p. 906).
Necessário salientar que, conforme expressamente constou do julgado do REsp 1.304.718-SP, a retirada do sobrenome do genitor não implicou em alteração da filiação, e nem tampouco em afastamento de eventuais deveres alimentares ou mesmo em direitos sucessórios. Houve tão somente a possibilidade de alteração do nome, o qual, como elemento de expressão da personalidade, não poderia causar sofrimento ao requerente, violando assim a sua dignidade.
Tais decisões do Superior Tribunal de Justiça possuem nítida correlação com a fundamentação da Lei 11.924/2009, que ficou conhecida como Lei Clodovil Hernandes, a qual alterou a Lei de Registros Públicos para autorizar que o(a) enteado(a) possa acrescentar o nome de família da madrasta ou do padrasto, desde que haja aquiescência destes, acrescentando assim o parágrafo 8º ao art. 57 da Lei 6.015/73. Isto porque, esta lei tamém se baseou na existência de relações de afeto entre o(a) enteado(a) e seu padrasto ou madrasta, de modo a justificar a inserção do sobrenome destes, em atenção à própria dignidade da pessoa, tendo em vista que o nome é elemento da personalidade.
Também merece destaque a decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp. 724718-MG, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, julgado em 22/05/2018, e divulgado no Informativo 627 do STJ. Neste julgado, o STJ reconheceu a possibilidade da viúva voltar a adotar o nome de solteira após a morte de seu cônjuge.
Ora, o art. 1.571, parágrafo segundo, do Código Civil, prevê expressamente, nos casos de divórcio, a possibilidade de retirada do sobrenome do cônjuge que havia sido adotado com o casamento. No entanto, não há previsão legal para supressão deste sobrenome caso haja dissolução do casamento em razão da morte, e não do divórcio.
Entretanto, a Terceira Turma do STJ entendeu que a manutenção do nome poderia acarretar ao cônjuge sobrevivente abalo de natureza emocional, psicológica ou profissional, afetando assim a sua dignidade. Mais uma vez, a corte baseou-se na dignidade da pessoa humana para flexibilizar as hipóteses de alteração do nome. Conforme extrai-se do Informativo 627 do STJ, a referida Turma entendeu que:
[…] o direito ao nome, assim compreendido como o prenome e o patronímico, é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, uma vez que diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si mesmo, mas também no ambiente familiar e perante a sociedade em que vive. […] Em síntese, sendo a viuvez e o divórcio umbilicalmente associados a um núcleo essencial comum - existência de dissolução do vínculo conjugal - não há justificativa plausível para que se trate de modo diferenciado as referidas situações, motivo pelo qual o dispositivo que apenas autoriza a retomada do nome de solteiro na hipótese de divórcio deverá, interpretado à luz do texto constitucional e do direito de personalidade próprio da viúva, que é pessoa distinta do falecido, ser estendido também às hipóteses de dissolução do casamento pela morte de um dos cônjuges.
Em decisão que possui o mesmo fundamento – a dignidade da pessoa humana e o nome como direito intrínseco à personalidade – também da Terceira Turma, e de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, o STJ entendeu não ser possível a retirada do sobrenome do marido sem expresso consentimento da mulher, mesmo havendo revelia desta na ação judicial por ele proposta.Tal entendimento foi proferido no REsp 1732807-RJ, julgado em 14/08/2018 (Informativo 631).
Segundo a referida Turma, malgrado fosse possível a decretação do divórcio, tendo em vista a revelia da parte demandada, que não contestou a ação de divórcio proposta pelo então cônjuge; não seria possível a supressão do sobrenome adotado pela esposa no momento do casamento sem que houvesse expresso consentimento desta. Tais decisões se coadunam com o entendimento majoritário da doutrina, no sentido de que a supressão do sobrenome adotado com o casamento exige a anuência expressa do titular, tendo em vista que o sobrenome estará inexoravelmente incorporado à personalidade de seu titular (FARIAS e ROSENVALD, 2017, p. 306).
Sobre o tema, Farias e Rosenvald destacam ainda que a jurisprudência do STJ (vide REsp. 1.041.751/DF) também permite a alteração do sobrenome da genitora ou do genitor que voltou a ter o nome de solteiro, no registro civil de nascimento do filho, após a dissolução do casamento. Sobre o tema, destacam os autores (2017, p. 307):
Cuida-se de hipótese de grande ocorrência cotidiana. A pessoa muda o nome por ocasião do casamento, acrescendo o sobrenome do cônjuge, tem filhos durante a convivência afetiva, mas o casamento se dissolve, voltando, então, a ter o nome civil anterior às núpcias. Nesse caso, porém, o filho tem em seu registro o nome que a mãe teve durante o casamento. Seria um caso de retificação do registro civil do nascimento filho, para fazer constar o sobrenome que a genitora voltou a ter após a dissolução nupcial? Pois bem, a resposta somente pode ser afirmativa. É que o direito à individualidade e à identificação integra a personalidade humana, plasmando a sua dignidade. Assim, a documentação pessoal deve refletir a identidade do seu titular, contendo as informações precisas e atuais de seus genitores.
Por fim, faz-se mister destacar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de alteração do prenome do transgênero – assim como do gênero – em seu registro civil. Da jurisprudência do STJ[1], extrai-se que esta corte vem, ao longo dos anos, reconhecendo aos transsexuais o direito de, mediante decisão judicial, alterar o seu prenome, por ser imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Em um momento inicial, a jurisprudência do STJ admitia a mudança do prenome apenas nas hipóteses em que houvesse uma cirurgia de transgenitalização, ou seja, uma cirurgia de redesignação sexual. No entanto, a jurisprudência da referida corte foi evoluindo, passando a assegurar o referido direito independentemente de cirurgia de transgenitalização[2]. Segundo os julgados proferidos pelo STJ, a mudança do nome, independentemente da cirurgia, era medida necessária à concretização da dignidade humana, princípio fundamental da República. A manutenção de nome incompatível com o gênero da pessoa lhe causaria sofrimento psicológico incompatível com uma vida digna, sendo assim imperiosa a alteração.
Neste sentido, imperioso destacar os fundamentos trazidos pelo Ministro Luís Felipe Salomão no REsp 1.626.739-RS, o qual ressalta a necessidade de compatibilização da segurança jurídica exigida pela Lei de Registros Públicos com o princípio da dignidade da pessoa humana (grifo nosso):
[…] 3. Contudo, em se tratando de pessoas transexuais, a mera alteração do prenome não alcança o escopo protetivo encartado na norma jurídica infralegal, além de descurar da imperiosa exigência de concretização do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que traduz a máxima antiutilitarista segundo a qual cada ser humano deve ser compreendido como um fim em si mesmo e não como um meio para a realização de finalidades alheias ou de metas coletivas. 4. Isso porque, se a mudança do prenome configura alteração de gênero (masculino para feminino ou vice-versa), a manutenção do sexo constante no registro civil preservará a incongruência entre os dados assentados e a identidade de gênero da pessoa, a qual continuará suscetível a toda sorte de constrangimentos na vida civil, configurando-se flagrante atentado a direito existencial inerente à personalidade. 5. Assim, a segurança jurídica pretendida com a individualização da pessoa perante a família e a sociedade - ratio essendi do registro público, norteado pelos princípios da publicidade e da veracidade registral - deve ser compatibilizada com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que constitui vetor interpretativo de toda a ordem jurídico-constitucional. [...]7. A citada jurisprudência deve evoluir para alcançar também os transexuais não operados, conferindo-se, assim, a máxima efetividade ao princípio constitucional da promoção da dignidade da pessoa humana, cláusula geral de tutela dos direitos existenciais inerentes à personalidade, a qual, hodiernamente, é concebida como valor fundamental do ordenamento jurídico, o que implica o dever inarredável de respeito às diferenças. 8. Tal valor (e princípio normativo) supremo envolve um complexo de direitos e deveres fundamentais de todas as dimensões que protegem o indivíduo de qualquer tratamento degradante ou desumano, garantindo-lhe condições existenciais mínimas para uma vida digna e preservando-lhe a individualidade e a autonomia contra qualquer tipo de interferência estatal ou de terceiros (eficácias vertical e horizontal dos direitos fundamentais). 9. Sob essa ótica, devem ser resguardados os direitos fundamentais das pessoas transexuais não operadas à identidade (tratamento social de acordo com sua identidade de gênero), à liberdade de desenvolvimento e de expressão da personalidade humana (sem indevida intromissão estatal), ao reconhecimento perante a lei (independentemente da realização de procedimentos médicos), à intimidade e à privacidade (proteção das escolhas de vida), à igualdade e à não discriminação (eliminação de desigualdades fáticas que venham a colocá-los em situação de inferioridade), à saúde (garantia do bem-estar biopsicofísico) e à felicidade (bem-estar geral). 10. Consequentemente, à luz dos direitos fundamentais corolários do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, infere-se que o direito dos transexuais à retificação do sexo no registro civil não pode ficar condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização, para muitos inatingível do ponto de vista financeiro (como parece ser o caso em exame) ou mesmo inviável do ponto de vista médico. 11. Ademais, o chamado sexo jurídico (aquele constante no registro civil de nascimento, atribuído, na primeira infância, com base no aspecto morfológico, gonádico ou cromossômico) não pode olvidar o aspecto psicossocial defluente da identidade de gênero autodefinido por cada indivíduo, o qual, tendo em vista a ratio essendi dos registros públicos, é critério que deve, na hipótese, reger as relações do indivíduo perante a sociedade. […]
Com o julgamento da ADI 4275/DF, em 01/03/2018 e o julgamento do 670422/RS, em regime de repercussão geral, em 15/08/2018, o Supremo Tribunal Federal eliminou qualquer controvérsia sobre o tema, assegurando aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais, bem como independentemente de decisão judicial, o direito de alteração do seu prenome – assim como do gênero constante no registro civil – como medida imprescindível à garantia da sua dignidade.
O STF, considerando o direito à saúde, o princípio da personalidade, da isonomia, o direito constitucional à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, o direito à busca da felicidade, e sobretudo o princípio da dignidade da pessoa humana, fez uma interpretação conforme a Constituição e ao Pacto de São José da Costa Rica do art. 58 da Lei de Registros Públicos, para permitir a alteração do prenome, evitando-se assim constrangimentos cotidianos aos quais são submetidos os transgêneros, os quais ferem a sua dignidade.
Para a corte, a exigência da cirurgia viola a dignidade humana dos transgêneros, sobretudo porque muitos indivíduos não querem se submeter a cirurgias de redesignação sexual, por razões pessoais, de saúde, sexuais ou reprodutórias. Ademais, em muitas situações, a cirurgia demora anos para ser realizada, ou mesmo não pode ser realizada (menores de dezoito anos, por exemplo), de modo que impedir a alteração do prenome implicaria em grave sofrimento psicológico ao indivíduo.
No julgamento da ADI 4275/DF, o relator Min. Marco Aurélio destacou (grifo nosso):
A solução para a presente questão jurídica deve passar, invariavelmente, pela filtragem da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB) e da cláusula material de abertura prevista no § 2º do art. 5º. Nesse sentido, o presente caso transcende a análise da normatização infraconstitucional de regência dos registros públicos, sendo melhor compreendido e solucionado à luz dos direitos fundamentais, de sua eficácia horizontal e dos direitos da personalidade. […] Sendo, pois, constitutivos da dignidade humana, “o reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado é de vital importância para garantir o gozo pleno dos direitos humanos das pessoas trans, incluindo a proteção contra a violência, a tortura e maus tratos, o direito à saúde, à educação, ao emprego, à vivência, ao acesso a seguridade social, assim como o direito à liberdade de expressão e de associação”, como também registrou a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por isso, “o Estado deve assegurar que os indivíduos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e o mesmo respeito que têm todas as pessoas. Tal reconhecimento traz implicações diretas para o caso dos autos. Se o Estado deve assegurar que os indivíduos possam viver com a mesma dignidade, deve também assegurar-lhes o direito ao nome, ao reconhecimento de sua personalidade jurídica, à liberdade e à vida privada. […] Dito isto, figura-me inviável e completamente atentatório aos princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade física e da autonomia da vontade, condicionar o exercício do legítimo direito à identidade à realização de um procedimento cirúrgico ou de qualquer outro meio de se atestar a identidade de uma pessoa”.
Destarte, hodiernamente, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos fundamentais essenciais para o exercício de uma vida digna – incluindo direito à saúde, à honra, à felicidade e também à autonomia e liberdade de escolha - a jurisprudência dos tribunais superiores flexibiliza o princípio da segurança jurídica e da imutabilidade do nome, para, concretizando o referido princípio fundamental, permitir a alteração dos prenomes pelos transgêneros, independentemente de decisão judicial e de cirurgia de transgenitalização.
5 CONSDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, é possível concluir que a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental da República Federativa do Brasil e valor supremo da Constituição Federal de 1988, deve servir de vetor interpretativo para os operadores do direito, adentrando em todo ordenamento jurídico. Assim, a constitucionalização do Direito Civil exige uma leitura de todos os institutos do Direito Civil conforme à Constituição, inclusive o nome civil.
Tendo em vista que a dignidade humana possibilita ao homem escolher seu próprio caminho, efetuar suas próprias decisões, conforme sua autonomia, bem como lhe garante direitos fundamentais essenciais à sua vida digna, conclui-se ser possível também, com base nesse princípio, flexibilizar a imutabilidade do nome civil e a segurança jurídica, de modo a permitir a alteração do nome civil mesmo em situações não previstas expressamente no ordenamento jurídico.
Assim, considerando que o nome é expressão da personalidade e elemento individualizador da pessoa, os Tribunais Superiores vêm flexibilizando o princípio da inalterabilidade relativa do nome, e permitindo a alteração do prenome ou do sobrenome em situações nas quais a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana impõe a referida mudança.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O simples fato de a mulher ter sido revel na ação de divórcio não significa que o pedido de retirada do patronímico do ex-marido de seu nome tenha que ser deferido. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/567b8f5f423af15818a068235807edc0>. Acesso em: 14/09/2019.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Possibilidade de voltar o nome de solteira após a morte do marido. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/f9322b146574d9da9ad32ad879ad373b>. Acesso em: 14/09/2019
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Transgênero pode alterar seu prenome e gênero no registro civil mesmo sem fazer cirurgia de transgenitalização e mesmo sem autorização judicial. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/8ae1da0fe37c98412768453f82490da2>. Acesso em: 14/09/2019.
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. – 16. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
[1] Vide REsp 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15.10.2009, DJe 18.11.2009; e REsp 737.993/MG, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10.11.2009, DJe 18.12.2009.
[2]Vide STJ, 4ª Turma, REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017 (Info 608).
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduanda em Tutela Coletiva e Direitos Difusos pela Universidade Anhanguera – LFG. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, YASMIN SOUZA DA. Reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o princípio da inalterabilidade relativa do nome civil à luz da jurisprudência dos tribunais superiores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2019, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53473/reflexos-do-princpio-da-dignidade-da-pessoa-humana-sobre-o-princpio-da-inalterabilidade-relativa-do-nome-civil-luz-da-jurisprudncia-dos-tribunais-superiores. Acesso em: 23 dez 2024.
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