TATIANE CAMPELO DA SILVA PALHARES
(Orientadora)
RESUMO1: A saúde suplementar é um setor específico, em que a saúde, de caráter privado, é prestada por operadoras de saúde, por meio da comercialização de planos privados de assistência à saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde - ANS, 527 (quinhentos e vinte e sete) mil pessoas utilizam desse serviço no estado do Amazonas (Dados de Jun/2018). O presente trabalho tem por escopo discutir o crescente processo de Judicialização deste setor a partir da criação da ANS nos anos 2000. Para isso, foi elaborada uma pesquisa de cunho bibliográfico e jurisprudencial, quanto a posição da doutrina e viabilidade de sua utilização no contexto processual, a partir de uma abordagem Dedutiva e coleta de dados indireta no acervo de dados pertinente, de forma a produzir resultados qualitativos acerca da temática apresentada.
Palavras chaves: Judicialização; Saúde Suplementar; ANS.
ABSTRACT: Supplementary health is a specific sector in which private health is provided by health operators through the commercialization of private health care plans. According to the National Health Agency - ANS, 527 (five hundred and twenty seven) thousand people use this service in the state of Amazonas (Data from Jun / 2018). This paper aims to discuss the growing process of judicialization of this sector since the creation of the ANS in the 2000s. For this, a bibliographic and jurisprudential research was prepared, regarding the position of the doctrine and feasibility of its use in the procedural context. , from a Deductive approach and indirect data collection in the relevant data collection, in order to produce qualitative results about the presented theme.
Keywords: Judicialization; Health Supplemental; ANS.
INTRODUÇÃO
Dentre os direitos fundamentais previstos na Constituição Brasileira de 1988, o direito à saúde se estabelece como o de maior força quanto à sua aplicação, haja vista a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender tal finalidade. Houve um reconhecimento e apropriação desse direito por parte da população ao longo das duas últimas décadas, o que culminou no fenômeno da Judicialização.
Esta problemática no que tange o acesso à saúde, vem expressando a indignação do cidadão frente à efetiva ausência do estado. Este fenômeno constitui tanto uma alternativa extrema dos cidadãos para clamar por soluções, quanto revela a extrapolação de condutas por parte do judiciário, que ultrapassa os componentes legais e operacionais do SUS, respondendo de forma satisfatória ao demandante, destituindo portanto os princípios coletivos.
O presente trabalho foi pensado com o objetivo de discorrer sobre o crescente processo de Judicialização da saúde suplementar a partir da criação da ANS, em sua abrangência geral, mas também explicar os aspectos históricos e conceituais do Direito à saúde; demonstrar o crescente processo de Judicialização da saúde Suplementar e discutir os reflexos das decisões contrárias a regulamentação da ANS.
Para o alcance de seus objetivos o arcabouço teórico do trabalho foi dividido em 03 seções. No Capítulo 01 foi feita uma investigação a respeito do Direito à Saúde em seus aspectos históricos e conceituais, assim como a criação da Agência Nacional de Saúde - ANS. No Capítulo 02 é demonstrado o processo de Judicialização da saúde Suplementar no Brasil e por fim, no Capitulo 03 são discutidos os reflexos das decisões contrárias a regulamentação da ANS.
Em termos de metodologia foi elaborada uma pesquisa bibliográfica de natureza exploratória e método dedutivo acerca do tema, com coleta indireta de dados em Livros, artigos, Sites, dentre outros documentos da literatura pertinente, de forma a produzir resultados qualitativos sobre a temática proposta.
O que se busca na saúde, através do SUS, é o cumprimento do regramento legal que estabelece e assegura o dever de prestar integralmente os serviços de saúde e seus produtos vinculados, como efetivação do direito e do dever do estado. Considera-se o estudo proposto neste trabalho de relativa importância acadêmica, mas também social, uma vez que traz a discussão de um tema vigente, contribuindo para a literatura pertinente a área de estudo.
1. DO DIREITO À SAÚDE: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS
A saúde da população sempre incomodou aos governantes. A construção e o desenvolvimento do que se entende por saúde, de sua definição, vem acontecendo entre avanços e retrocessos ao longo da história, sendo considerada muitas vezes como dispêndio de recursos para conter avanços de surtos epidêmicos de doenças que poderiam ameaçar as residências mais ricas e reduzir a força de trabalho dos mais pobres.
A medicina também caminhou, mas num modelo “medicalocêntrico”, em que seu produto principal era a doença e não a saúde. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos definiu saúde como um direito que todo ser humano tem, para ele e para sua família, de bem estar, segurança, e vida.
Partindo do entendimento de saúde sob a ótica da saúde coletiva, verifica-se que o direito das pessoas à saúde vem sendo visto de forma reducionista de fazer consulta, tomar remédio, exame, cirurgia, como se essas tecnologias fossem suficientes para esgotar tudo aquilo que a saúde representa.
De alguma forma, este entendimento mínimo, unilateral e fragmentado está positivado na história do direito à saúde brasileiro que, desde a Constituição de 1934, preocupa-se em garantir medidas legislativas e administrativas para restrição da mortalidade e morbidade infantis, e de higiene social para conter a propagação de doenças transmissíveis (DALLARI, 2008).
Contudo, a Constituição de 1988 é diferente. Ela é fruto de um intenso movimento social nunca visto no Brasil, uma expressiva participação popular e da organização dos profissionais de saúde que conseguiram inserir na Assembleia Constituinte uma emenda popular; Esta se originou na VIII Conferência Nacional de Saúde e que fez nascerem os artigos que se constituem hoje em cláusulas pétreas, ou seja, não podem ser alterados. Conforme destaca Paim (2008):
A Reforma Sanitária Brasileira e o SUS nasceram dos movimentos sociais, na sociedade civil (Faleiros et al., 2006). Não foram criados pelo Estado brasileiro, por governos nem por partidos. Portanto, o SUS é uma conquista histórica do povo, podendo ser considerado a maior política pública gerada da sociedade e que chegou ao Estado por meio dos poderes Legislativo, Executivo e, progressivamente, Judiciário (PAIM, 2008, p. 96).
Após a entrada em vigor da Constituição de 1988, trazendo para a realidade
brasileira a saúde como um direito de todos e dever do Estado, verifica-se mais fortemente o desencadeamento do processo de construção desse direito.
A inserção da saúde como direito fundamental não foi suficiente para que houvesse sua efetivação no mundo físico, necessitando da ação positiva do Estado para existir. Estando positivada na lei máxima de nosso país, nasceu uma discussão doutrinária sobre a possibilidade de este direito ser oponível imediatamente e junto com outras garantias constitucionais.
Teve início o movimento através do qual qualquer cidadão poderia recorrer ao judiciário para exigir do Estado o que estava no texto Constitucional. A Constituição cidadã criou o Sistema Único de Saúde – SUS, que foi regulamentado através da Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, a chamada Lei Orgânica da Saúde, por abordar as condições para promover, proteger e recuperar a saúde, dispondo ainda sobre a organização e o funcionamento dos serviços também relacionados à saúde.
É possível afirmar que, hoje, há um entendimento generalizado de que, para se conseguir usufruir de tratamentos de saúde, é necessário recorrer aos tribunais para obrigar o Estado Brasileiro a fazer o que prometia através da letra da Constituição.
A formulação e implementação de políticas públicas de saúde, estão além do acesso a serviços e produtos médicos e são um reconhecimento de que a saúde e seus múltiplos e complexos determinantes estão relacionados ao modo de viver das pessoas, dos seus locais de trabalho e de convivência e que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e fatores de risco à população (FERRAZ; VIEIRA, 2009).
Importante observar que, em paralelo às mudanças positivas sobre saúde, um fenômeno do mundo jurídico começa a permear o cotidiano das instituições e das pessoas: a judicialização da saúde. Embora não seja algo novo, a judicialização ou o ato de recorrer ao judiciário para buscar, por exemplo, uma cirurgia ou um medicamento trouxe a saúde para os tribunais. O termo judicialização foi apropriado pelo direito e é usado para significar que um conflito foi levado ao judiciário objetivando sua resolução, “envolve, essencialmente, tomar algo, no caso, as políticas públicas, sob a forma do processo jurídico” (MACHADO; DAIN, 2012, p. 1018).
Assim, quando se fala em judicialização da saúde, se faz referência à submissão ao judiciário dos litígios envolvendo demandas ajuizadas para obter o fornecimento de alguma prestação dos mais diversos tipos. Após a edição da Portaria/GM nº 2.510, de 19 de dezembro de 2005, que instituiu a Comissão para Elaboração da Política de Gestão Tecnológica no âmbito do Sistema Único de Saúde – CPGT, passou-se a usar o termo tecnologia em saúde para designar medicamentos, equipamentos e procedimentos técnicos, sistemas organizacionais, informacionais, educacionais e de suporte, programas e protocolos assistenciais por meio dos quais a atenção e os cuidados com a saúde são prestados à população (Ministério da Saúde, 2005).
Temos que levar em conta, ainda, as importantes alterações na jurisprudência brasileira sobre o direito à saúde, justamente na década de 1990 e que são consequência também da abertura democrática. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Para os juristas, a judicialização da saúde é definida como a possibilidade de buscar a concretização e o respeito de um direito por meio do poder judiciário (SALAZAR ET AL., 2009), ou seja, a possibilidade de utilização de mecanismos jurídicos para conferir-lhe efetividade. Também pode significar a análise e a decisão, em sede judicial, das questões envolvendo uma variada gama de prestações de saúde ou, ainda, a busca da efetivação de prerrogativas presentes na constituição de cada Estado de Direito (LOPES et al., 2017).
Neste entendimento a judicialização se refere à procura do Judiciário numa tentativa de forçar o poder executivo a realizar ações em saúde julgadas deficitárias pelo autor da demanda. A judicialização da saúde tem aspectos positivos e negativos. Temos grandes conquistas coletivas trazidas através da judicialização, como é o caso dos medicamentos para HIV, mas também temos pontos negativos tais como as decisões individuais com impacto orçamentário imediato (MACHADO, 2010).
Além disso, deve-se reconhecer que a “judicialização da saúde não é um problema em si, e sim um efeito de diversos problemas construídos ao longo das últimas décadas, especialmente em função da omissão do poder público em atuar nessa área tão fundamental para a vida das pessoas.
1.1 A Judicialização e o princípio da Integralidade
Analisar a judicialização no contexto da integralidade é uma tarefa complexa, é necessário entender seus múltiplos significados e dimensões. Ao falar da integralidade como princípio do SUS e, mais que isso, como bandeira de luta do Movimento Sanitário, expressa que a integralidade tem funcionado “como uma forma de indicar (ainda que de modo sintético), características desejáveis do sistema de saúde e das práticas que nele são exercidas, contrastando-as com características vigentes ou predominantes” (MATTOS, 2004, p. 1411).
A integralidade tem vários sentidos, e o autor aponta três deles: o primeiro, relacionado às políticas de saúde ou às respostas governamentais a problemas de saúde; o segundo, referente a aspectos da organização dos serviços de saúde; e o terceiro, relativo aos atributos das práticas de saúde. Mattos (2014) comenta, ainda, que o princípio da integralidade talvez seja o menos visível na trajetória do sistema e de suas práticas, pois as mudanças rumo a um atendimento com integralidade não são evidentes.
Talvez este seja o entendimento do judiciário. No que se refere à articulação entre assistência e prevenção, o SUS ainda não consegue articulá-las, prevalecendo a lógica assistencial que oferece uma ideologia de alento ao sofrimento no serviço de saúde. Assim, uma primeira dimensão da integralidade seria justamente a capacidade dos profissionais do SUS em responder ao sofrimento manifesto, ou melhor, “há que se adotar uma postura que identifica a partir de conhecimentos técnicos as necessidades de prevenção e as assistenciais, e que seleciona as intervenções a serem ofertadas no contexto de cada encontro” (MATTOS, 2004).
Para o SUS, a integralidade está relacionada ao emprego de meios necessários para a efetivação do cuidado, dispondo de tipos diferentes de tratamento de acordo com o grau de complexidade da atenção à saúde (VIEIRA, 2008).
É razoável pensar que, além de não produzir integralidade, os tribunais têm reforçado uma lógica medicalizante que reduz a ideia de saúde ao consumo de tecnologias de saúde. O judiciário proporciona, dessa forma, acesso a grupos que não encontraram acolhimento na saúde. Este acesso, entretanto, é através da imposição do atendimento, que não leva em conta os estudos e saberes sobre saúde e nem os planejamentos realizados para a organização do atendimento.
1.2 A Agência Nacional de Saúde
O marco regulatório da saúde suplementar no Brasil foi na década de 1990, por meio da Lei de Planos de Saúde. As regras foram criadas antes de ter uma agência reguladora. Com isso as operadoras sabiam suas obrigações, porém não tinham sanções imediatas, pois sem uma agência reguladora era difícil controlar todas as operadoras.
Foi nesse momento que o Estado percebeu que precisava de uma agência reguladora e criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com a Lei Federal n° 9.961 de 28 de janeiro de 2000.
A ANS é uma autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde. As atribuições definidas na lei correspondem exatamente àquelas previstas no art. 1972 da CF/88.
A agência é dotada de personalidade jurídica de direito público, mas com ampla autonomia, “inclusive no tocante à gestão administrativa e financeira, patrimônio e receita própria, destinada a controlar (regulamentar e fiscalizar) um setor de atividades de interesse público em nome do Estado brasileiro” (FERREIRA FILHO, 2002).
De acordo com Moraes (2002), a ANS possui um poder normativo frente as
Operadoras de planos privados de assistência à saúde e seus consumidores.
Nesse sentido aduz Mello (2012, p. 75):
É importante notar que a legislação da ANS representa uma forte intervenção estatal sobre a atividade econômica privada (não se trata de serviço público) dos planos de saúde, o que, mais uma vez, demonstra que a criação de agências reguladoras no Brasil não se deu somente na senda de uma descentralização/desregulação. No caso ora analisado, a instituição da Agência propiciou exatamente um grande aumento da intervenção e regulação estatal sobre a atividade da iniciativa privada.
Os serviços públicos passaram a ser efetivados pela iniciativa privada, antes os serviços eram efetivados pelo próprio Estado. A privatização de serviços estatais teve início na década de 1990. Segundo Barroso (2002), as reformas que modificaram o cenário econômico correspondem (a) à extinção de determinadas restrições ao capital estrangeiro; (b) à flexibilização de monopólios estatais; e (c) às privatizações. Para Barroso (2002, p.117):
drástica transformação no papel do Estado, em lugar de protagonista na execução dos serviços, suas funções passaram a ser as de planejamento, regulamentação e fiscalização [...]. É nesse contexto histórico que surgem como personagens fundamentais, as agências reguladoras.
Castro (2011), também fala sobre a privatização que ocorreu no final da década de 1990, aduz que o modelo regulatório brasileiro corresponde à adoção da “instituição de agências reguladoras setoriais, com a incumbência de controlar, fiscalizar e, ainda, normatizar a prestação de serviços públicos concedidos na privatização.
As agências reguladoras podem atuar e editar normas, de acordo com as necessidades técnicas. Nessa linha, Moraes (2002, p.20) defende que:
As Agências Reguladoras poderão receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma delegação para exercer seu poder normativo de regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades.
O Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, estabelece metas e indicadores para a ANS, refletidos em um Contrato de Gestão, assinado entre as partes anualmente e avaliado por uma Comissão composta por representantes do ministério supervisor e pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Contudo, embora as agências reguladoras gozem de autonomia política, estrutural e financeira, em especial a ANS, também estão sujeitas ao crivo do Poder Judiciário, pois todo ente público ou privado que se sentir lesionado em seu direito, ou tê-lo ameaçado, poderá recorrer ao Judiciário, para que suas alegações e direitos sejam juridicamente apreciados.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS tem competência para elaborar o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. Este rol exemplificativo possui uma cobertura básica assistencial mínima obrigatória que deverá ser cumprida pelos planos privados de assistência à saúde.
O rol é atualizado periodicamente. O artigo 283 da RN 387/2015 que instituiu o rol atualmente em vigor, prevê que sua revisão será a cada 2 (dois) anos. De acordo com Bottesini e Machado (2005, p.92), o rol de procedimentos e eventos da ANS é “ideal, visado pelo Ministério da Saúde como necessário ao atendimento das necessidades básicas da população, no que diz respeito ás metas programáticas postas pela Constituição Federal”, no que tange a saúde suplementar.
De acordo com o que refere o Conass (2011, p.41):
Os contratos passam a ter sua cobertura determinada pelo poder público: o que garante ao consumidor que sua assistência manterá o padrão ao longo do tempo, encerrando o período em que uma operadora fazia um contrato vinculado a uma determinada lista de procedimentos, criada, na maioria das vezes pelas associações médicas. Como tais listas sofriam mudanças, os contratos tendiam a ficar com suas cláusulas de cobertura ultrapassadas, permitindo que uma operadora cobrisse, ou não, um determinado exame ou tratamento. Ou selecionasse, por consumidor e/ou procedimento, o que seria coberto.
O rol de procedimentos prevê uma gama de tratamentos e procedimentos a serem garantidos pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde, evitando que seja feita a vontade das operadoras, de cumprir ou não o que o beneficiário necessita.
Contudo, o rol é exemplificativo, a operadora terá que cumprir as normas da ANS, mas não tem obrigação de pleitear os pedidos que não constam no rol. Mesmo
com todos os respaldos não é possível afastar a possibilidade de pleitos judiciais que visam outras coberturas.
Quando um beneficiário vai no judiciário pedir liberação de algum procedimento, na maioria das vezes não se observa que o procedimento não é coberto pelo plano contratado, não consta no rol da ANS e poderá prejudicar a cadeia de mutualismo. Mathias (2012, p.110) assim aduz acerca do tema:
é fundamental que o julgador, ao examinar as questões atinentes aos contratos celebrados entre usuários e plano de saúde, leve em consideração o mutualismo e a estrutura técnico-econômica, tendo sempre presente a ideia de que a concessão de benefícios não cobertos e a criação de novos direitos sem amparo contratual desfalcarão o fundo mútuo, formado pelas contribuições da coletividade de segurados, que será diretamente atingida por aquela decisão.
Desta forma, sempre que o plano é obrigada a arcar com custos que não se comprometeu, haverá um desiquilíbrio econômico-financeiro na operadora de planos privados de assistência à saúde.
2. JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE SUPLEMENTAR
As investigações prévias sobre o tema Judicialização, realizadas através da análise de artigos científicos, demonstraram que a Judicialização da saúde tem sido objeto de estudo em dois grandes eixos, ambos decorrentes da pretensão almejada pelos cidadãos requerentes: discussão sobre acesso a medicamentos e o acesso a insumos, consultas e procedimentos médicos especializados, além de órteses, próteses e materiais especiais.
Há pouquíssima produção científica sobre o tema quando buscamos o estado do Amazonas ou o município de Manaus. As poucas produções encontradas se referem a medicamentos, ou melhor, ao percurso terapêutico para a aquisição de medicamentos via judicial, através de um estudo qualitativo, prospectivo, com utilização de entrevistas semiestruturadas, e concluíram mostrando a Judicialização como fator agregador de reconhecimento dos direitos de cidadania.
2.1 Divergências entre o Estado Juiz e o Estado Regulador
É fato que existe divergência entre o Estado regulador e o Estado-juiz. O Estado-regulador (ANS) criou o rol de procedimentos que é atualizado a cada 2 (dois) anos. O rol é exemplificativo, as operadoras devem cumprir no mínimo o estipulado lá. Porém, tem procedimentos de alto custo que prevê exclusão expressamente no contrato firmado, mas o beneficiário vai buscar seus “direitos” pelas vias judiciais. No momento que isso ocorre, o Estado-juiz aplica o CDC e julga ao contrário daquilo que está previsto na lei dos planos de saúde e no rol de procedimentos da ANS. Mathias (2012, p. 96) possui o seguinte posicionamento:
O crescimento significativo do volume de ações judiciais, individuais e coletivas, contadas hoje, aos milhares, avulta a influência do Poder Judiciário no Sistema de Saúde Suplementar. Não é ocioso lembrar que algumas decisões judiciais, criadoras de direitos novos, nem sempre amparados no ordenamento jurídico, são capazes de alterar significativamente o mercado específico, gerando graves prejuízos para algumas operadoras individualmente consideradas e para o mercado como um todo, o que acaba por afetar o próprio usuário.
Quando o Estado-juiz julga de maneira favorável ao beneficiário do plano de saúde, não está sendo observado o art. 4°, III, da Lei 9.661/00 e o art. 10, § 4°, da Lei 9.656/98.
Em muitos casos o motivo de negativa feita pela operadora de planos privados de assistência à saúde, se dá pelo fato de não estar previsto no rol de procedimentos da ANS. Não obstante, o colegiado entende que o direito a saúde é considerado direito fundamental. Em reforço a esse fundamento, referiu-se também a dignidade da pessoa humana. O fundamento é de que cabe exclusivamente ao médico assistente determinar o tratamento adequado ao beneficiário, sem intervenção da operadora de planos privados de assistência à saúde.
Aliny Felisbino (2014), afirma que alguns magistrados, utilizando-se dos artigos da Lei Consumerista, muitas vezes decidem em favor dos consumidores ilimitadamente, sem analisar a irretroatividade da Lei dos Planos de Saúde quanto aos contratos antigos, ou se, tendo sido oferecida proposta de migração aos beneficiários para aderirem a contratos novos, esses optaram por se manter no antigo (pelo princípio da autonomia privada, o beneficiário tem a opção de contratar o plano de saúde e, aceitando-o, estará concordando com as disposições contratuais). Isso acabaria por gerar uma onerosidade para as operadoras, uma vez que o valor da mensalidade é cobrado do beneficiário com base na cobertura contratual.
Ao decidir pelo fornecimento ao beneficiário de procedimento, material ou medicamento não cobertos pelo contrato, o magistrado passa um custo, além do previsto, à operadora, a qual terá que suportá-lo até poder aumentar a mensalidade do próprio beneficiário e de outros. Conforme se verifica, o fundamento do direito à saúde como direito fundamental do homem, está acompanhado da aplicabilidade das normas protetivas do CDC, para proteger a parte mais vulnerável.
O entendimento do STJ quanto às negativas de coberturas previstas no rol de
procedimentos da ANS, é que a limitação de cobertura deve se atrelar à doença, e não ao seu tratamento.
Pode-se afirmar que a Corte Superior possui entendimento consolidado dos limites impostos aos beneficiários dos planos privados de assistência à saúde, no sentido de que, mesmo que não conste no rol de procedimentos da ANS, o tratamento deve ser assegurado sempre que a doença de sua prescrição esteja coberta em contrato, lei ou na regulamentação da ANS.
Diante de toda a análise jurisprudencial, pode-se afirmar que o Poder Judiciário decide favoravelmente aos consumidores, mesmo diante das normas regulamentares da ANS, em razão da vulnerabilidade e pelo direito à saúde ser um direito fundamental. Ademais, o rol de procedimentos e eventos é considerado meramente exemplificativo e a prescrição médica é considerado algo intangível, no qual as operadoras de planos de saúde devem respeitar. No entanto, com essa percepção, as decisões contrariam a regulamentação da ANS causam muitos impactos no setor da saúde suplementar, tema que será explanado no próximo subcapítulo.
3. REFLEXOS DAS DECISÕES CONTRÁRIAS A REGULAMENTAÇÃO DA ANS
No subcapítulo anterior, pôde-se verificar os fundamentos usados nas decisões dos Tribunais de Justiça brasileiros e do Superior Tribunal de Justiça. Dos diversos fundamentos, percebe-se a tendência de se privilegiar os direitos do consumidor em detrimento das decisões administrativas das operadoras.
Neste sentindo aduzem Gonçalves e Machado (2011):
Percebeu-se que o Poder Judiciário tem interferido de diversas maneiras nas relações entre consumidor e plano de saúde, este órgão, na maioria das vezes, entende que a saúde deve ser protegida em qualquer situação, independentemente da existência de um contrato que estabeleça limite de prestação de serviços e fornecimento de medicamentos.
De acordo com os dados da revista Visão Saúde, os números da judicialização impressionam. ”De acordo com o último levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o total de processos envolvendo assistência à saúde, tanto pública quanto privada, já ultrapassava 400 mil em todo o país”. (2016, p. 20).
Não espanta, portanto, que esse fenômeno represente forte impacto no caixa das operadoras. Segundo um levantamento da Associação Brasileira de Planos de Saúde - ABRAMGE, o gasto do setor para atender a demandas judiciais praticamente dobrou em apenas dois anos, saltando de R$ 558 milhões em 2013 para R$ 1,2 bilhão em 2015. Nas contas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), cerca de um quarto desse montante foi consumido com procedimentos não previstos em contrato, ou seja, aos quais os consumidores, pelo menos em tese, não teriam direito.
Diante desse problema, Souza e Pires (2008, p. 72) questionam: Qual o limite de vinculação do plano de saúde com o cuidado da saúde de seu beneficiário? O Poder Judiciário reconhece o necessário equilíbrio atuarial das entidades privadas, limitadas à receita proveniente de seus segurados?.
O questionamento feito por Souza e Pires mostra o problema vivido pelas operadoras de planos privados de assistência à saúde, diante dos efeitos das decisões tomadas pelo Poder Judiciário. Nas decisões que extrapolam os limites preestabelecidos na relação entre operadora e consumidores, o melhor argumento a ser utilizado é a quebra do respectivo equilíbrio econômico-financeiro (OLIVEIRA, 2008).
De acordo com Carneiro (2012, p.70), os planos privados de assistência à saúde têm os mesmos princípios dos contratos de seguro. Ao tratar de seguros, aduz que “no contrato são previamente estabelecidos os riscos cobertos pelo seguro, os limites de cada cobertura, o prazo de vigência da contratação e o prêmio a ser pago pelo segurado à seguradora por esta assumir os referidos riscos cobertos”
É possível afirmar que, sem se estabelecer um limite de cobertura aos beneficiários, as operadoras de planos privados de assistência à saúde, não conseguirão determinar um valor a ser cobrado a título de contraprestação pecuniária e a operadora poderá ficar insolvente, pois ficará incapacitada de prever o quantum de gatos terá com os beneficiários.
Nesse sentido aduz Carneiro (2012, p. 90):
Não há dúvida de que, para se viabilizar a existência de um mercado de planos de saúde que garanta a proteção dos segurados contra os riscos cobertos, é essencial preservar as condições de solvência das operadoras. Dessa forma, para que o mercado possa manter sua solidez e garantir os interesses dos segurados, é necessário que os prêmios cobrados dos segurados guardem relação com os respectivos riscos gerados ao grupo segurado.
Pelo que se pode notar, no Brasil os valores pagos pelos planos de saúde não podem aumentar ou diminuir de acordo com os hábitos de saúde, problemas já existentes e etc. Por conta disso, para que as operadoras de planos privados de assistência à saúde se mantenham solventes, deve ser feita uma relação entre os valores cobrados e os limites assistências do rol de procedimentos da ANS.
Contudo, resta possível afirmar que o limite assistencial que serve para determinação do quantum, não é levado em consideração. O fator levado em consideração não é o rol de procedimentos da ANS, mas sim o consumidor, considerado a parte mais frágil da relação contratual.
A tendência de obrigar as operadoras a cobertura de procedimentos não previstos no rol de procedimentos, acaba ocorrendo a transferência de responsabilidade, que por obvio é dever do Estado em prover a saúde, as operadoras atuam de maneira suplementar. As operadoras quando prestam os serviços voltados à saúde como direito fundamental, estão assumindo os mesmos deveres que o Estado tem com os cidadãos, mas esse papel é tão e somente do Estado.
Levando em consideração que o Estado deve garantir a saúde de forma integral, aduz Souza (2012, p. 148):
Independente das posições adotadas pela ANS ou pelo Poder Judiciário e, se corretas ou não, o fato é que esse posicionamento de concessão do mais (do novo ou do não previsto no contrato) sem revisão do preço, embora claramente mais favorável ao consumidor individual, tem o poder de aumentar o risco da OPS, causando-lhes desequilíbrio e, dependendo do porte e da situação econômico-financeira da OPS, essas decisões teriam, mesmo, um efeito extremamente negativo para a coletividade de consumidores e para a sociedade em geral.
Percebe-se que as decisões contrárias ao contrato e ao rol de procedimentos da ANS promovem um desiquilíbrio econômico-financeiro nas operadoras, tendo em vista que para a operadora de plano de saúde manter higidez o equilíbrio é essencial.
Ademais, as alterações feitas no rol de procedimentos deverão ser acompanhadas e terá que ser feito uma adequação imediata do preço, para que o equilíbrio se mantenha.
Diante do exposto, é possível afirmar que um dos elementos mais importantes na atuação das operadoras de planos privados de assistência à saúde é o equilíbrio
econômico-financeiro. Sendo esse, importante fator prejudicado pelas decisões do Estado-juiz, não pensando que os prejuízos serão sentidos tanto pela operadora
quanto por toda a carteira de beneficiários.
Por fim conclui-se que é necessário o rol de procedimentos e eventos da ANS para que as operadoras de planos de saúde possam honrar com as coberturas pelas quais se comprometem, mantendo o equilíbrio econômico-financeiro, bem como a separação das obrigações relacionadas a saúde suplementar e a saúde pública prevista na Constituição Federal de 1988.
CONCLUSÕES
Na Constituição Federal de 1988, a saúde é reconhecida no seu artigo 6º como um direito social, portanto, um direito humano fundamental diretamente relacionado com a proteção da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
O direito à saúde consolidado, exige uma estrutura política complexa e abrangente para o sistema de saúde brasileiro, com a organização do Sistema Único de Saúde (SUS). As políticas de saúde do SUS devem ser garantidas integralmente a todos, com responsabilização entre os entes federados para execução e financiamento dessas políticas.
Podemos afirmar que uma decisão judicial pode comprometer a isonomia pelo fato de não ser estendida à coletividade. Nos últimos anos, várias questões têm contribuído para o aumento da Judicialização da saúde, tais como o fortalecimento das instituições judiciárias, a ampliação dos direitos sociais, ambos garantidos através da Constituição de 1988, e a falha do sistema público de saúde em fornecer o tratamento, insumos e medicamentos que o paciente necessita.
O Gráfico 1, apresenta a distribuição das 1744 ações judiciais impetradas contra a SUSAM e a SEMSA entre 1991 e 2018. Não é possível apontar os motivos de tal tendência, mas é provável que o decréscimo no número de processos tenha ocorrido em função da estratégia de atuação do TJAM e do CNJ.
Gráfico 1 – Processos judiciais impetrados contra a SEMSA e SUSAM entre 1991 e 2018
Fonte: Pesquisa do autor, 2019.
Interessante, ressaltar o caráter reducionista da Judicialização no que diz respeito a saúde, uma vez que se preocupa, apenas, com questões relacionadas ao ato curativo, encontrando-se ações relacionadas a pedidos de componentes materiais, exames, cirurgias, enfim, as mais diversas tecnologias em saúde, não havendo nenhuma ação relacionada à prevenção de doenças ou de causas
Por essa razão, os próprios órgãos do judiciário e do executivo vêm buscando uma maior aproximação entre os poderes, na lógica dos programas e políticas, para, assim, estabelecer maior agilidade, transparência e efetividade nas ações em saúde pelo executivo, a fim de que ocorra uma redução da Judicialização, sem comprometer o direito constitucional e fundamental à Saúde previsto na Carta Magna.
. Conclui-se que isso demonstra que o princípio da integralidade ainda não é uma bandeira de luta, estando subsumido nas necessidades prementes de cura. Aspecto este que vem sendo bem recepcionado pelos tribunais brasileiros. O direito à saúde não pode se restringir àquilo que pode ser recebido no posto médico, precisa ser muito mais, pois tem relação com o modo de andar a vida dos sujeitos, e a outros direitos básicos também garantidos pela CF.
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Discente do Curso de Direito do Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas - CIESA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Phatricia Jesus da. Direito à saúde suplementar no Brasil: um estudo da crescente judicialização a partir da criação da Agência Nacional de Saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 out 2019, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53513/direito-sade-suplementar-no-brasil-um-estudo-da-crescente-judicializao-a-partir-da-criao-da-agncia-nacional-de-sade. Acesso em: 23 dez 2024.
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