RESUMO: Originária na Grécia Antiga e predominante atualmente nos Estados ocidentais, a democracia é o regime político célebre por designar o governo no qual o poder é exercido pelo povo. Entretanto, ao longo do século XIX e XX surgiram teorias que buscaram limitar seu alcance, restringindo a democracia à mera “luta competitiva por votos” com intuito de gerar uma minoria governante legítima. É perceptível, hodiernamente, que o modelo representativo de democracia encontra-se em crise, especialmente por disponibilizar governantes cujos interesses não correspondem aos interesses populares. Diante disso, surgiu, nos últimos anos do século XX, uma corrente alternativa denominada democracia deliberativa cuja proposta é expandir a compreensão da democracia para além de um processo de mera eleição de representantes, devendo abarcar, também, o direito de cada indivíduo deliberar publicamente acerca das questões públicas a serem decididas. Embora parecesse inviável a existência de uma esfera pública em que os indivíduos pudessem travar os debates em prol dos interesses comuns, com o advento das novas tecnologias esse espaço passou a ser uma realidade. Mediante o uso desse instrumento de colaboração coletiva, viabilizada pela democracia deliberativa, o real titular do poder, o povo, pode, pela primeira vez, exercer diretamente a soberania que lhe diz respeito.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia. Crise de Representatividade. Democracia Deliberativa. Esfera pública.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A DEMOCRACIA LIBERAL E A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE. 1.1. A DEMOCRACIA. 1.2. A DEMOCRACIA NO MUNDO MODERNO. 1.2.1. Liberalismo. 1.3. A DEMOCRACIA LIBERAL. 1.3.1. A representatividade e a “democracia concorrencial” de Schumpeter. 1.4. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE. 1.4.1. A Crise de Representatividade no Brasil. 2. A ALTERNATIVA: A DEMOCRACIA DELIBERATIVA. 2.1. CONTEXTO DE ORIGEM. 2.1.1. Conceito. 2.2. CONDIÇÕES PARA A COOPERAÇÃO NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA. 2.3. A ESFERA PÚBLICA DE HABERMAS. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Diante da atual conjuntura mundial, não há mais como negar a existência de uma crise do modelo representativo de democracia e uma crescente urgência em encontrar meios de superá-la. Evidentemente, o modelo de democracia forjado ao longo dos tempos e ao qual nos submetemos atualmente, marcado pelo viés concorrencial e eleitoreiro, não mais atende aos anseios populares. O distanciamento entre o povo e as decisões tomadas em seu nome repercute na crescente desconfiança e no descrédito do instituto.
A democracia direta, conforme exercida na Grécia Antiga, era caracterizada pela participação de todo aquele que pudesse ser considerado cidadão, para a discussão e decisão acerca dos interesses da pólis, os interesses comuns. Diferentemente do que ocorre atualmente.
Hoje, crê-se inexequível que todo cidadão apto a decidir, encontre-se em praça pública para fazê-lo. Além da inviabilidade decorrente da quantidade de pessoas potencialmente atuantes, alega-se que os múltiplos interesses envolvidos em uma sociedade marcada pela pluralidade, como a de hoje, tornem o debate público impraticável.
Mas a ideia da representação política como único meio de concretizar do ideal de democracia na sociedade contemporânea não encontra mais guarida na realidade prática. Talvez, ao longo do século XIX e XX, fosse a única forma visível de permitir a participação popular. Contudo, atualmente, com o advento das novas tecnologias, passou a ser possível a participação ativa do cidadão na vida política, deliberando acerca dos temas públicos e interesses coletivos, como outrora.
Considerando, ainda, o crescente debate acerca da saúde da democracia no mundo, faz-se necessário estudar meios que indiquem novos parâmetros para a representação política da sociedade, como se propõe a democracia delliberativa.
O método científico predominantemente utilizado na elaboração deste trabalho foi o dedutivo. A partir da análise genérica de determinados preceitos jurídicos (soberania, poder constituinte) e sociológicos (democracia – dos antigos, dos modernos, pluralista, concorrencial, deliberativa e esfera pública), bem como com o suporte de vasta bibliografia, chegou-se a conclusão de que, hodiernamente, como auxílio das novas tecnologias, a democracia pode voltar a significar o poder exercido diretamente pelo povo.
Embora tenham sido utilizados diversos autores como referencial teórico, destacam-se no presente trabalho os seguintes: A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos, de Benjamin Constant; Capitalismo, socialismo e democracia, de Joseph Schumpeter; Dicionário de Política, de Norberto Bobbio Nicola Matteuci e Giofranco Pasquino; Direito e Democracia: entre facticidade e validade e Mudança Estrutural da Esfera Pública, ambos de Jürgen Habermas; entre outros.
1 – A DEMOCRACIA LIBERAL E A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
1.1. A DEMOCRACIA
Apesar da aparente trivialidade, a indicação da origem etimológica de uma palavra se mostra útil para sua compreensão, especialmente quando se trata de um estudo acerca do momento histórico em que o termo foi cunhado, como é o caso do presente tópico. Assim, vale relembrar que a palavra “democracia” origina-se do grego antigo demokrátia, que significa “governo do povo”, construída pela junção dos termos “demos” (povo) e kratos (poder)[1].
A sociedade ocidental herdou da Grécia Antiga não apenas a palavra “democracia”, mas todo o imaginário relacionado a ela. A definição de David Beetham de que “democracia é uma forma de tomada de decisões públicas que concede ao povo o controle social”[2] ao mesmo tempo em que sintetiza o conceito de democracia grega na Antiguidade aponta a aspiração política contemporânea, o sonho de uma “democracia real”.
Norberto Bobbio destaca a existência de três formas de participação no poder sem representação[3], isto é, de democracia exercida diretamente pelo povo, são elas:
(i) o governo do povo através de delegados investidos de mandato imperativo e, portanto, revogável; (ii) o governo de assembleia, isto é, o governo não só sem representes irrevogáveis ou fiduciários, mas também sem delegados; (iii) referendum.
Para Bobbio – e também para Benjamin Constant[4], qualquer dessas três formas de democracia direta seria impraticável nos dias atuais, tendo em vista a vastidão do território dos Estados modernos e a diversidade de interesses que caracteriza as sociedades modernas.
Contudo, a democracia direta foi experimentada com certo êxito na Grécia Antiga. Se considerado o argumento de Bobbio, tal sucesso talvez se devesse à estrutura diminuta das cidades-Estado gregas – as pólis, bem como pela massa de cidadãos politicamente ativa ser constituída de homens iguais.
A arquitetura das cidades gregas antigas, com suas singulares edificações públicas, já prenuncia a efervescência da vida pública na região. Entre os órgãos necessários nas cidades democráticas, encontravam-se o (i) “lar comum”, espaço onde são oferecidos sacríficos aos deuses, em que se realizam rituais e onde são recebidos os estrangeiros; (ii) o conselho (bulé), onde se encontram os nobres que representam a assembleia dos cidadãos; e a (iii) assembleia de cidadão (ágora), local em que se reúnem todos os cidadãos para as deliberações ordinárias[5].
Entre todos esses elementos componentes do espaço urbano, a ágora, especialmente, manifestava-se como expressão máxima da esfera púbica na paisagem grega, configurando-se como o espaço público por excelência, bem como da cultura e da vida social grega.
Tecendo elucubrações acerca da população de Atenas no fim da época clássica, em termos numéricos, aduz José Antônio Dabdab Trabulsi:
Portanto, podemos considerar que seis mil é um número normal e suficiente, frequente e não excepcional (o que é a razão de ser de qualquer quórum: se for muito elevado, perde o sentido). Este dado é confirmado pelo local de reunião, a pnix, cuja capacidade oscilou, de acordo com as reformas do recinto, entre 8.500 e seis mil lugares. Se adotamos estes números, chegamos à conclusão de que seis mil, entre trinta mil cidadãos (20%, portanto), encontravam-se para deliberar. Certamente não eram sempre os mesmos, mas devia haver uma certa estabilidade num núcleo de participantes habituais[6].
Assim, Trabulsi conclui que 20% (vinte por cento) da população existente em Atenas, no final do período Clássico – por volta de seis mil pessoas, eram cidadãos aptos à liberdade política, podendo encontrar-se nas praças públicas, as ágoras, para debater e deliberar.
A democracia grega era concebida por meio da reunião em assembleia popular, do sorteio para o preenchimento dos cargos públicos e da remuneração pelo exercício das funções, da isonomia.
Posteriormente à Antiguidade Clássica, já na Idade Média, a democracia direta fora experimentada novamente somente na Suíça, no século XII, quando eram realizados “concílios” em que o povo reunia-se para resolver questões coletivas, bem como no século XIII, por meio da chamada Landsgemeinde, que, anualmente oportunizava aos cidadãos votar leis ordinárias, tratados internacionais, emendas à Constituição, a eleição de novos juízes, etc[7].
A fantasia de ser um cidadão igual, influente e capaz de debater em praça pública, argumentando em favor de seus pontos de vista, como um grego antigo, é uma constante ainda hoje no imaginário ocidental acerca do que se acredita ser uma verdadeira democracia.
1.2. A DEMOCRACIA NO MUNDO MODERNO
A denominada Idade Moderna situa-se historicamente entre a queda do Império Bizantino, com a tomada da Cidade de Constantinopla, no ano de 1453, e a deflagração da Revolução Francesa, no ano de 1789 – após o que teve início atual Idade Contemporânea[8].
A Era Moderna foi caracterizada, sobretudo, pela contraposição à Idade Média, momento histórico fortemente marcado pela prevalência da religiosidade e do “obscurantismo cristão-católico”[9]. Nesse período, o insurgente movimento Iluminista propôs-se a lançar “luzes” sobre as supostas trevas medievais e resgatar a perspectiva sociocultural da Antiguidade Greco-Romana.
Conquanto o momento histórico atual seja enquadrado na titulada Idade Contemporânea, muitas das concepções culturais, sociais e econômicas hoje existentes foram insculpidas ao longo da Idade Moderna. A liberdade individual, a autonomia privada e os direitos fundamentais foram forjados ao longo desse período histórico e constituem seus grandes legados à humanidade.
1.2.1. O Liberalismo
No decorrer da Era Moderna, floresceram concepções políticas, sociais e econômicas que buscaram prestigiar o direito inato de todo homem à liberdade. Com o fim precípuo de legitimar o poder econômico da burguesia em face do poder político da realeza e da nobreza, formulou-se a ideia de que todo homem nasce igual, livre, e possuindo direito à vida e à propriedade privada (Locke, 1632-1704)[10].
John Locke desenvolveu, no século XVII, um pensamento político-moral no qual o valor supremo do homem é a liberdade, estabelecendo a distinção entre duas espécies: a “liberdade natural”, consistente em “ser livre de qualquer poder superior na terra”, e a “liberdade do homem sob o governo”, relativa à “liberdade de seguir minha própria vontade em tudo quanto é regra [...] e não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, incógnita e arbitrária de outro homem”. Em síntese, para Locke ser livre é ser “senhor de si próprio”[11].
Locke engendrou um raciocínio segundo o qual Deus, como engenheiro e arquiteto do universo, construiu o mundo, que lhe pertence. Ao criar o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe negou o domínio do mundo, mas o submeteu ao trabalho e ao suor de seu rosto. Assim, segundo Locke, Deus teria instituído “o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho”[12]. Por sua origem divina, a propriedade seria um direito natural.
Marilena Chauí destaca que por meio da efetivação da liberdade econômica, da liberdade na organização da sociedade civil, nas relações sociais entre indivíduos livres e iguais e da liberdade de consciência, o liberalismo delimita o poder do Estado[13].
1.3. A DEMOCRACIA LIBERAL
Este tópico almeja oferecer subsídios para a compreensão da atual crise de representatividade que assola a democracia ocidental a partir do estudo do tipo predominante de democracia representativa da atualidade: a democracia liberal-pluralista.
2.1.1. A representatividade e a “democracia concorrencial” de Schumpeter
Ao lançar sua obra “Capitalismo, socialismo e democracia” nos idos dos anos de 1940, o economista austríaco Joseph Schumpeter mudou os rumos da reflexão acerca da política, tornando-se referência para a atual concepção liberal de democracia. A repercussão ocasionada pelas poucas páginas dedicadas à questão da democracia – capítulos XXI ao XXIII, de certo modo, redefiniram a acepção da palavra.
Schumpeter, primeiramente, esforçou-se em desconstruir mitos sustentados pela “teoria clássica da democracia”, para a qual a democracia consiste na realização do bem comum mediante a manifestação da vontade geral do povo, expressa por seus representantes. Schumpeter contrapôs-se à ideia clássica da suposta existência de cidadãos interessado e bem-informados, conscientes de suas preferências no mundo político e imbuídos em alcançar o bem comum – pessoas que, segundo Schumpeter, inexistiriam no mundo concreto[14].
Ademais, aduz Schumpeter que “para diferentes indivíduos e grupos, o bem comum provavelmente significará coisas muito diversas”[15], o que impossibilitaria um consenso geral quanto a temas públicos relacionados ao bem comum. Para o autor, seria inexistente a premissa utilitarista de uma voionté générale (vontade geral) que guiasse todo o povo para uma mesma direção.
Amparado pelas ideias, atualmente superadas, de Gustave Le Bon acerca da “psicologia das multidões”, conclui que, mesmo os mais abastados e influentes grupos (como um Parlamento ou um Comitê de generais sexagenários), quando reunidos em pequenas multidões, apresentam um “menor senso de responsabilidade, grau mais baixo de energia mental e maior sensibilidade a influências não-lógicas”[16] em que “qualquer tentativa de se apresentar um argumento racional desperta apenas instintos animais”[17].
Para o economista austríaco, as pessoas não têm condições de determinar o que seja melhor para elas próprias, quando estão em pauta questões públicas. Assim, “não haveria uma vontade do cidadão, só impulsos vagos, equivocados, desinformados”[18], o indivíduo médio desceria para um patamar mais baixo de racionalidade quando entra no campo da política, “cedendo a impulsos irracionais ou extrarracionais”[19].
Segundo o mencionado teórico, a solução para os problemas práticos trazidos pela teoria clássica da democracia seria inverter a lógica de suas premissas, tornando a eleição de representantes, que tomarão as decisões políticas em nome do povo, o principal objetivo do sistema democrático.
Acerca de sua teoria, Schumpeter concluiu:
Nossa definição passa então a ter o seguinte fraseado: o método democrático é um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor[20].
Ao redefinir o sentido de democracia como sendo “simplesmente uma maneira de gerar uma minoria governante legítima” e do governo como sendo uma “luta competitiva pelos votos do povo”[21], Schumpeter e sua teoria concorrencial promovem uma expressiva redução do alcance da democracia.
Destaca Luís Felipe Miguel que tal se dá porque o resultado do processo eleitoral passou a não indicar necessariamente a composição de um tipo de vontade coletiva, mas, ao contrário, a expressar a mera agregação de “preferências manipuladas, preconceitos e decisões impensadas”[22]. Após atenta análise, Miguel extrai a seguinte conclusão:
As conclusões a que Schumpeter chega são baseadas em uma visão de natureza humana. As pessoas são egoístas, incapazes de se preocuparem com os interesses coletivos (mesmo quando estes as afetam). Ou seja, não adianta mudar as instituições, já que a causa da apatia e de desinformação não está nelas, mas nos próprios indivíduos. Mas se o indivíduo é ruim, a massa – aqui Schumpeter se baseia nos trabalhos, hoje desacreditados, de Gustave Le Bon – é pior, cega, age irracionalmente, levada por seus preconceitos. E não é por estar disperso pelos vários locais de votação que o eleitorado deixa de ser uma massa[23].
Schumpeter, em verdade, não cria na possibilidade de que a democracia pudesse cumprir quaisquer de suas promessas fundamentais: a de ser um governo do povo; a existência de uma igualdade política; e a efetiva participação dos cidadãos na tomada de decisões. Nesse sentido, esclarece Bobbio que, para Schumpeter, “existe Democracia onde há vários grupos em concorrência pela conquista do poder através de uma luta que tem por objeto o voto popular”[24].
Nesse passo, a premissa para que o sistema eleitoral funcione a contento é que os cidadãos comuns se satisfaçam com o papel que lhes é concedido: escolher seus representantes mediante voto a cada quatro ou cinco anos e, durante os intervalos, obedecer irrestritamente às leis e ordens que, imaginam, de alguma forma, também emanarem de sua vontade.
O fato é que Joseph Schumpeter promove uma adequação da democracia à teoria das elites, corrente de pensamento que, conforme Luís Felipe Miguel, nasceu para negá-la[25]. Os pensadores elitistas – entre os quais os mais célebres Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, no início do século XX, buscavam demonstrar que a democracia, assim como o socialismo, não passava de uma quimera, cuja concretização era impossível.
Embora com argumentos e linhas de raciocínio diversos, os citados teóricos apontavam igualmente para a impossibilidade de existir organização social sem a existência de uma minoria dominante. Portanto, embora a democracia fosse célebre por ser considerado o governo do povo e para o povo, assim como outras formas de governo, invariavelmente desembocaria no governo de poucos: da elite governante.
Acerca da teoria das elites também nominada por Norberto Bobbio como “teoria da minoria organizada”[26]:
a teoria das Elites nasceu e se desenvolveu por uma especial relação com o estudo das Elites políticas, ela pode ser redefinida como a teoria segundo a qual, em cada sociedade, o poder político pertence sempre a um restrito círculo de pessoas: o poder de tomar e de impor decisões válidas para todos os membros do grupo, mesmo que tenha de recorrer à força, em última instância[27].
Relativamente à democracia, os pensadores elitistas pregavam:
Segundo estes escritores, a soberania popular é um ideal-limite e jamais correspondeu ou poderá corresponder a uma realidade de fato, porque em qualquer regime político, qualquer que seja a "fórmula política" sob a qual os governantes e seus ideólogos o representem, é sempre uma minoria de pessoas, que Mosca chama de "classe política", aquela que detém o poder efetivo[28].
Dessarte, para a teoria das elites, todas as alterações políticas, resultariam, ao fim e ao cabo, em mera substituição de uma elite por outra[29]. Para tal corrente de pensamento, a maioria desorganizada seria incapaz de intervir efetivamente no processo histórico, sendo, por vezes manipulada pela minoria governante. Estas são afirmações elitistas as quais Schumpeter aderiu para poder desenvolver sua teoria da democracia concorrencial.
Acerca das teorias liberais de democracia destacadas no presente capítulo, calha expor a problemática da legitimidade trazida por Jürgen Habermas em sua célebre obra A inclusão do outro:
Essa concepção [concepção liberal da democracia] tem consequências para a compreensão de legitimidade e soberania popular. Segundo a concepção liberal, a formação democrática da vontade tem exclusivamente e função de legitimar o exercício do poder político. Resultados de eleições equivalem a uma licença para a tomada do poder governamental, ao passo que o governo tem de justificar o uso desse poder perante a opinião pública e o parlamento[30].
Destaca Habermas que através da democracia liberal, mais especificamente da democracia concorrencial, o poder e o exercício da soberania foram transferidos do povo para um grupo por meio de eleições. Assim, a democracia como governo do povo restringiu-se à possibilidade de eleger representantes, esvaziando o aspecto comunicativo da atividade política.
Apesar de diversos inconvincentes, nas últimas décadas, o pluralismo liberal tornou-se a ideologia oficial dos regimes democráticos ocidentais, mediante a ênfase em eleições competitivas e na multiplicidade de grupos de pressão.
1.4. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
Nos idos dos anos de 1990, o filósofo francês Alain Touraine denunciou uma já existente crise de representação política nas democracias ocidentais[31]. Em síntese, declarou que a complexidade e a pluralidade da sociedade atual não encontram correspondência nos atores políticos, representantes eleitos para atuar em nome dessa sociedade plural.
A representatividade pressupõe que as demandas sociais sejam consideradas e representadas politicamente. Quando os eleitos para tal exercício não atuam nesse sentido, a representação inexiste.
Nesse contexto, Touraine aponta um descolamento cada vez maior entre os interesses dos partidos políticos e os interesses públicos, o que denominou de “partitocrazia”[32]. Alerta, ainda, que a partitocrazia “destrói a democracia ao retirar-lhe a representatividade e conduz ao caos ou à dominação de grupos econômicos dirigentes”. Para o autor francês, em tal conjuntura, a corrupção política também se apresenta como sintoma da partitocrazia e da crise de representatividade.
As razões da incompatibilidade existente entre representantes políticos e o povo representado foram tratadas por Adélia Ribeiro e George Coutinho, que destacaram:
A contradição entre supremacia parlamentar e poder popular, característica das democracias liberais, expressa uma esfera pública domesticada que, ao invés de construir as bases da agenda pública e controlar a ação parlamentar, metamorfoseia-se numa circulação de indivíduos os quais, orientados exclusivamente por seus interesses privados, desfazem o potencial de acordos e consensos, restringindo ou fazendo desaparecer o espaço público. No mercado auto-regulado está a origem, para Wood, do psicologismo individualista, sobrevivendo apenas a noção de soberania individual daqueles que compram a força do trabalho alheia. Não há troca entre iguais, mas violência entre desiguais[33].
Jacques Rancière, na obra “Ódio à Democracia” (2005)[34], através de uma abordagem, histórica, filosófica e sociológica sucinta e competente, ressalta as mazelas que corroem a democracia atual.
Destaca o filósofo que o modelo democrático representativo configura-se como uma artimanha da “elite governante” (conceituada pelas teorias elitistas preteritamente tratadas) para manter o povo afastado do governo e garantir para si própria o privilégio de ocupar os cargos representativos e efetivamente exercer o poder. Aduz que “a representação é, em sua origem, o exato oposto da democracia”[35].
Rancière pontua, ainda:
O que chamamos de “democracia representativa” (e seria mais exato chamar de sistema parlamentar ou, como faz Raymond Aron, “regime constitucional pluralista), é uma forma mista: uma forma de funcionamento do Estado, fundamentada inicialmente no privilégio das “elites naturais” e desviadas aos poucos de sua função pelas lutas democráticas[36].
Rancière analisa que as lutas democráticas impingidas ao longo do último século promoveram uma maior inclusão social, o que robusteceu a democracia, ao tempo que atraiu para ela ódio. O autor ressalta que a igualdade é um pressuposto primordial do sistema democrático, mas que, entretanto, constitui-se como o atributo mais insultado por aqueles que negam a principal implicação da democracia: a possibilidade de acesso aos cargos dirigentes independentemente de qualquer título.
Sem pretensão de esgotar o tema, do exposto, é possível inferir que a cisão existente entre representantes e representados, bem como a incompatibilidade de seus interesses, podem ser consideradas causas que ensejam a crise do sistema representativo no mundo.
1.5. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE NO BRASIL
Redirecionando a análise para o caso brasileiro, poder-se-ia fazer uma retomada histórica da construção da democracia no Brasil, instituída pela Primeira Constituição Republicana, em 1891. Poder-se-ia, ainda, analisar as características da Primeira República (1889-1930), denominada de “República oligárquica”[37] por Boris Fausto, como um prenúncio dos anos seguintes; o golpe de Vargas e o Estado Novo (1930-1945); o cognominado Período Democrático (1945-1964); o golpe e o Regime Militar (1964-1985); chegando ao atual “Estado Democrático de Direito” (1988 – hoje).
Mas basta essa mera e infame retrospectiva histórica para evidenciar a fragilidade da democracia nessas terras tupiniquins.
As características predominantes entre os parlamentares brasileiros destoam fortemente do perfil da sociedade que diz representar. Acerca do retrato dos representantes eleitos nas últimas eleições nacionais – 2014, o site “Congresso em Foco” destacou[38]:
Homem, branco, na faixa dos 50 anos, com formação superior, empresário e dono de patrimônio superior a R$ 1 milhão. Essas são algumas das características predominantes entre os novos parlamentares. Um perfil que não reflete a maioria da sociedade, mas que repete a histórica distorção das representações no Parlamento brasileiro.
Essa realidade foi denunciada pela própria Câmara dos Deputados em notícia veiculada em seu sítio eletrônico, em 29 de janeiro de 2015[39]:
Homens brancos representam 80% dos eleitos para a Câmara
Entre os eleitos, 15,8% se declararam pardos e apenas 4,1%, pretos. Para especialista da UFRJ, baixa representatividade é reflexo da falta de candidaturas.
A bancada federal eleita para a próxima legislatura é composta por 80% de homens brancos. Entre os eleitos, 15,8% se declararam pardos e apenas 4,1%, pretos. No caso das mulheres, elas representarão quase 10% da Câmara dos Deputados no início de 2015. No conjunto de deputados, as pardas serão 1,6% e as pretas, 0,6%. Nenhum índio foi eleito.
De acordo o sociólogo e professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Luiz Augusto Campos, a baixa representatividade desses grupos no parlamento não reflete uma ausência de candidaturas entre esses segmentos. “Se a gente observa os dados disponibilizados pelo TSE, por exemplo, a gente vai ver que apenas comparativamente com a composição da Câmara 43% dos candidatos eram homens brancos. Quando a gente vai, por exemplo, para a composição da Câmara, esses 43% de candidatos se transformam em 72% de deputados federais eleitos”, calcula.
Para Luiz Augusto Campos, algumas discussões no parlamento são afetadas pela baixa representatividade de negros e mulheres no Legislativo. “Quando a gente observa um parlamento que tem 0,6% de mulheres pretas, fica difícil acreditar que serão discutidos os problemas desse setor da população com a qualidade necessária. Esse setor da população fica relegado a uma situação totalmente, ou quase totalmente, excluída das discussões políticas”, analisa.
Segundo o IBGE, as mulheres representam metade da população brasileira. Pelo Censo de 2010, 43% dos brasileiros se declaram pardos e 7,6%, pretos.
Demais disso, a história recente brasileira vem demonstrando o desgaste causado pela representatividade que não representa. O memorável “junho de 2013” inaugurou uma nova fase, em que as insatisfações político-sociais deixaram de ser ignoradas pela sociedade e passaram a andar nas ruas, com cartazes e gritos de ordem. A inicial luta pela revogação do aumento de tarifas de transporte desembocou num levante nacional que passou a ditar os rumos da agenda pública, ganhando, em seguida, novas e difusas pautas, à direita e à esquerda.
Interessante notar que uma das bandeiras levantadas nas manifestações ocorridas desde então é a ausência de partido[40]. O brado “sem partido” foi pronunciado por milhares de manifestantes como um grito de oposição ao modelo representativo vigente.
No Brasil, o descrédito popular com o sistema representativo encontra ressonância diária tanto nas redes sociais quanto na mídia escrita, televisionada ou digital. Exemplos recentes podem ser trazidos para reflexão, como a balizada opinião do Professor de ética e filosofia da Universidade Estadual de Campinas, Roberto Romano, veiculada no portal de notícias UOL, em 25 de outubro de 2017, na qual destaca a crise democrática no Brasil a partir da crise política que assola[41] o país:
Rejeição da denúncia contra Temer ameaça democracia e mostra “força bruta do dinheiro”, diz Roberto Romano
O professor de ética e filosofia Roberto Romano, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), vê como ameaça à própria democracia brasileira o resultado da votação na Câmara dos Deputados que arquivou a segunda denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB).
“O resultado mostra que efetivamente estamos nos últimos momentos do Estado Democrático de Direito”, afirmou nesta quarta-feira (25) ao UOL.
[...]
“O cidadão está totalmente afastado. O resultado desta quarta-feira é uma volta a mais na descrença popular no sistema representativo”, destacou Roberto Romano.
A criticidade da atual situação política brasileira agrava a percepção da crise do sistema representativo, que já era há muito anunciada, conforme destacou Alain Touraine, há mais de duas décadas[42].
Contudo, sabe-se que momentos de crise são oportunidades de fazer uma avaliação dos rumos tomados e readequar os caminhos para superá-la. Não deve ser diferente com a democracia, que deve reencontrar meios de atingir seu derradeiro fim: concretizar a supremacia da vontade popular.
II – A DEMOCRACIA DELIBERATIVA COMO ALTERNATIVA
2.1. CONTEXTO DE ORIGEM
Em um contexto em que predominavam as já desgastadas teorias democráticas que reduziam o alcance da democracia a um processo de agregação cujo objetivo era tão somente a eleição de membros da elite governante, já no fim do século XX, surge uma nova alternativa teórica à democracia: a democracia deliberativa.
Tal teoria consagra-se como espécie de democracia participativa, diferenciando-se pela ênfase no debate público, em que as decisões políticas são tomadas diretamente por quem a elas se submeterá, por meio de um “raciocínio público entre iguais”[43].
Embora seja sustentada por outros pensadores, sua principal matriz é trazida por Jürgen Habermas. O filósofo e sociólogo alemão defende que a democracia deliberativa apresenta-se como modelo ideal de democracia, sobretudo pela possibilidade de inclusão de “todos os outros”[44].
2.2.1 Conceito
O conceito de democracia deliberativa, conforme dito, foi cunhado pelo filósofo alemão Jürgen Habermas e diz respeito à democracia na qual a sociedade civil organizada tem um papel central como interlocutora das autoridades públicas.
A teoria da democracia deliberativa desenvolveu-se a partir da compreensão de que o processo democrático não pode se reduzir à prerrogativa popular de mera eleição de representantes. Historicamente, observa-se que tal acepção de democracia torna-a amesquinhada e manipulável, razão pela qual deve-se buscar alternativas que concretizem a democracia não apenas como a possibilidade de escolha de representantes, mas, também, como oportunidade de cada indivíduo poder deliberar publicamente acerca das questões públicas a serem decididas[45].
A democracia deliberativa sustenta que o exercício da cidadania ultrapassa a mera participação no processo eleitoral, demandando uma participação mais direta dos indivíduos no domínio da esfera pública, em um processo contínuo de discussão e crítica reflexiva das normas e valores sociais. Em síntese, o objetivo primordial da democracia deliberativa é promover a legitimidade das decisões tomadas coletivamente, mediante o encorajamento da participação popular nos assuntos públicos.
Nesse contexto, Jürgen Habermas enfatiza a necessidade do debate público para a formação de um consenso social, buscando a legitimidade das normas na racionalidade comunicativa reproduzida por meio da linguagem.
Nesse sentido, aduz:
A produção de direito legítimo através de uma política deliberativa configura, pois, um processo destinado a solucionar problemas, o qual trabalha com saber, ao mesmo tempo em que o elabora, a fim de programar a regulação de conflitos e a persecução de fins coletivos[46].
Pontifica Habermas que a troca de argumentos e contra-argumentos entre os cidadãos racionaliza e legitima a gestão da res pública por permitir a superação de conflitos mediante a cooperação de todos os deliberantes, de modo a alcançar uma decisão cujo resultado seja considerado positivo:
Para que haja a integração de uma sociedade, as ações de atores coletivos e singulares têm que ser coordenadas de tal modo que suas diferentes realizações e contribuições confluam num resultado positivo.[47]
Acerca do discurso como instrumento de consenso e de estruturação da democracia, com supedâneo nas concepções de Carlos Santiago Nino[48], Heloísa Krol afirma:
O resultado do discurso tem um valor epistemológico em razão do efeito positivo que tem a discussão para detectar falhas no conhecimento e na racionalidade e, sobretudo, na equivalência funcional que há entre consenso unânime entre todos os interesses e imparcialidade. Assim, é possível presumir que o resultado do discurso se aproxima de uma solução correta[49].
Desse modo, a deliberação na esfera pública permite detectar falhas na argumentação utilizada como fundamento de alguma decisão política. A busca conjunta por uma solução permite pinçar os melhores argumentos e razões para embasar tais decisões.
Considerando que em uma sociedade democrática devem prevalecer o discurso e a argumentação na esfera pública, tanto as questões sociais quanto as coletivas devem ser objeto de apreciação pelos cidadãos.
Destarte, na democracia deliberativa, a legitimidade das decisões políticas resulta de processos de discussão realizados na esfera pública e orientados por princípios, como o da inclusão e o da igualdade de participação.
2.2. CONDIÇÕES PARA A COOPERAÇÃO NA DEMOCRACIA DELIBERATIVA
Examinando as condições necessárias para realização da democracia deliberativa, Cláudio Pereira de Souza Neto[50], professor doutor da Universidade Federal Fluminense, concluiu que é preciso convergir as “condições procedimentais de democracia” idealizados por Jürgen Habermas com os “termos justos de cooperação social”, sustentados pela filosofia política de John Rawls.
O ponto de vista defendido pelo filósofo americano John Rawls, nesse contexto, abrange a concepção de um modelo substantivo de democracia deliberativa, em que o “uso público da razão” é o instrumento para a efetivação dos “princípios da justiça previamente justificados”[51] na deliberação pública.
Em suma, para Rawls, a democracia deliberativa e seus mecanismos de deliberação pública deveriam servir à concretização do valor justiça. Para tanto, se necessário, limites principiológicos poderiam ser aplicados no âmbito das deliberações de modo a garantir a “justeza” das decisões e uma “identidade material” da ordem política[52].
Acerca de sua teoria da justiça como equidade na sociedade democrática, Rawls doutrina:
Para concluir essas observações introdutórias eu diria que, uma vez que a teoria da justiça como equidade é concebida como uma concepção política da justiça válida para uma democracia, ela deve tentar apoiar-se apenas nas ideias intuitivas que estão na base das instituições políticas de um regime democrático constitucional e nas tradições públicas que regem a sua interpretação[53].
Habermas, por sua vez, repreende a utilização de princípio substantivos de justiça nas deliberações públicas que dão ensejo à democracia deliberativa, em razão do contexto de pluralismo atual. Para o autor alemão, a deliberação deve ser livre para determinar seu conteúdo e resultado, não devendo possuir pré-condicionantes materiais.
Quanto ao ponto, destaca Souza Neto:
Diferentemente de Rawls, o procedimentalismo sustenta que, em situações de complexidade e pluralismo, como as que têm lugar nas sociedades contemporâneas, qualquer modelo que dependa de uma concepção material de legitimidade é incapaz de dar conta das expectativas normativas inseridas na esfera pública pelos mais diversos grupos plurais.
Habermas defende que a democracia deliberativa seja concretizada mediante o mero atendimento de condições procedimentais que possibilitem a inclusão na deliberação pública. Assim, respeitados os pressupostos procedimentais, o conteúdo das decisões políticas encontrar-se-ia livre para alcançar quaisquer resultados.
Não aderindo absolutamente a qualquer das duas concepções, Souza Neto propõe uma lúcida conjugação entre ambos entendimentos, buscando agregar argumentos procedimentais e contratualistas, defendendo o modelo de “condições para a cooperação na deliberação democrática”.
O modelo proposto concebe a ideia de Habermas de que a deliberação deva se manter aberta quanto aos resultados, mas destaca a necessidade de que abarque também direitos essenciais ao sentimento de pertencimento dos indivíduos à comunidade, de modo que se sintam parte do todo e sejam motivados a cooperar. Para o estudioso, “o conceito de ‘condições’ deve abarcar também aqueles requisitos que tornam possível a ‘cooperação social’ por um longo espaço de tempo e em uma sociedade plural e democrática”[54].
Em suma, Souza Neto apresenta como condições fundamentais para a para o exercício da soberania popular e da cooperação na democracia deliberativa dois diretos/garantias: (i) a liberdade e (ii) a igualdade.
No que tange à liberdade, destaca a relevância dos vários tipos de liberdade para que o indivíduo possa ser capaz de exercer sua cidadania e tomar parte na deliberação e nas decisões públicas. Quanto a isso, conclui:
As liberdades protegidas pela democracia deliberativa não são apenas aquelas que exercem uma função imediata no processo democrático. A autonomia privada, em sua dimensão não imediatamente política, também está incluída, pois as pessoas só se dispõem a cooperar quando seus projetos de vidas razoáveis são tratados como dignos de igual respeito. Por esse motivo, a noção de “condições para a cooperação na deliberação democrática” abrange também liberdades como a religiosa e a de escolha da profissão. Embora ambas não exerçam uma função imediata no processo político, delas depende a motivação para cooperar tendo em vista a busca do bem comum[55].
A igualdade material também é condição imprescindível à deliberação democrática na medida que permite que os argumentos de cada cidadão sejam igualmente relevantes na composição das decisões. Relativamente a esse direito, Souza Neto arremata:
A igualdade também não é interpretada de modo simplesmente procedimental. A democracia deliberativa exige não só a igualdade de “possibilidade” para participar da vida pública, mas também a igualdade de “capacidades” para fazê-lo efetivamente – o que pressupõe um contexto econômico razoavelmente igualitário. Mas a igualdade democrática não se esgota na sua dimensão econômica; ela possui ainda uma dimensão cultura. O aporte deliberativo justifica tanto políticas redistributivas quando políticas de reconhecimento. Se não há igualdade material razoável e igual reconhecimento, não há real motivação para cooperar, e o processo democrático se reduz ao padrão “amigo-inimigo”[56].
Portanto, conclui-se que para que a experiência da democracia deliberativa alcance êxito, além da observância de requisitos procedimentais, devem ser contempladas também condições que permitam que o cidadão sinta-se parte e seja apto a influir no debate público, quais sejam: ser livre e igual.
2.3. A ESFERA PÚBLICA
Para além dos pressupostos acima elencados, é preciso considerar, outrossim, o conceito de esfera pública para a adequada realização do debate público. Tal conceito é basilar para a compreensão do funcionamento da democracia deliberativa em Habermas. Consoante o filósofo, a esfera pública é um local dialógico e interativo, destinado à deliberação comunicativa, um espaço no qual os indivíduos interagem, debatem as decisões tomadas por autoridades políticas, gerando uma rede de fluxos comunicativos[57].
A democracia deliberativa chegou a ser acusada de inexequível por pressupor e depender da existência de um locus democrático em que as questões públicas seriam debatidas por aglomerados de cidadãos.
Na obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública” (1992), Habermas constrói seu raciocínio a partir da ideia de que, na Europa do século XVII, com o desenvolvimento do capitalismo mercantil, surgiu a necessidade de criação de um espaço entre o Estado e a esfera privada, em que os sujeitos poderiam realizar discussões livres e racionais acerca do exercício da autoridade política[58].
Para Habermas:
A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos[59].
Considerando que a esfera pública não necessariamente deva corresponder a um espaço formal de comunicação, mas, antes, deva também contemplar formas simples de interação em arenas conversacionais, Habermas afirma:
Qualquer encontro que não se limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade comunicativa que uns concedem aos outros, movimenta-se num espaço público, constituído através da linguagem. Em princípio, ela está aberta para parceiros potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou que poderiam vir a se juntar [...]. Quanto mais elas [as esferas públicas] se desligam de sua presença física … tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para a generalização da esfera pública[60].
Acrescenta, ainda, que:
Em sociedades complexas, a esfera pública forma uma estrutura intermediária entre o sistema político, de um lado, e os setores privados do mundo da vida e sistemas de ação especializados em termos de funções, de outro lado. Ela representa uma rede supercomplexa que se ramifica espacialmente num sem número de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e subculturais, que se sobrepõem umas às outras; essa rede se articula objetivamente de acordo com os pontos de vista funcionais, temas, círculos políticos, assumindo a forma de esferas públicas mais ou menos especializadas, porém ainda assim acessível a leigos[61].
Hodiernamente, um locus de discussão pública com potencial para abarcar a todos é uma realidade concreta. Conquanto ainda não seja empregada em toda a sua capacidade, a internet constitui o espaço público de informação e compartilhamento que permite a inclusão em escala global de todos os discursos, o que Rousiley Maia nominou de “esfera pública virtual”[62].
Nesse ínterim, é possível sustentar que a esfera pública, idealizada por Jürgen Habermas como uma “estrutura comunicacional” em que o agir comunicativo constrói as decisões públicas, pode ser uma ferramenta tecnológica desenvolvida para ser utilizada através da rede mundial de computadores; hoje, a internet.
III – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos últimos dois séculos, a democracia viu seu sentido original, compreendido como governo do povo, amesquinhar-se e restringir-se à concepção de um sistema de escolha de uma minoria governante.
Conforme visto, a complexidade e a pluralidade da sociedade contemporânea não encontram, hoje, correspondência nos atores políticos, eleitos para atuar como representantes do interesse coletivo. Isso especialmente porque o modelo representativo vigente corresponde a uma negação do que se entende por governo do povo, afastando-se progressivamente dos interesses que diz representar.
Tal situação desencadeou uma crise no sistema democrático, a partir do ceticismo de que ele possa cumprir seu derradeiro fim, qual seja, concretizar a supremacia da vontade popular.
Posto que, em última instância, a soberania e a titularidade do Poder Constituinte Originário pertencem ao povo, faz-se urgente a busca por alternativas democráticas que permitam a retomada e o exercício da democracia por quem lhe pertence.
Nesse contexto, a democracia deliberativa de Jürgen Habermas apresenta-se como opção viável, tendo em vista considerar o indivíduo como sujeito ativo no processo de construção das decisões políticas, a partir da formulação de debates públicos, em que todos tenham possibilidade de se expressar.
Para que os debates possam ser considerados materialmente democráticos, é imprescindível que existam condições de liberdade e igualdade entre os sujeitos atuantes, de modo que a cooperação coletiva possa ser efetivada. Ademais, a deliberação pública, conforme sustentada por Habermas, prescinde da esfera pública, o locus em que se travará as interações comunicativas, um espaço a que todos os sujeitos tenham acesso.
Não obstante a esfera pública de Habermas ser compreendida como um elemento utópico de sua teoria, hodiernamente, com o advento das novas tecnologias, o espaço público de comunicação e compartilhamento de ideias, cujo acesso é possível para os mais diversos atores sociais, é uma realidade: a internet.
Por todo o exposto, vislumbra-se que as novas tecnologias oportunizam a participação e a deliberação do povo na esfera pública, através da participação ativa do cidadão na esfera virtual, viabilizando a concretização da democracia deliberativa.
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[1] OBER, Josiah. The original meaning of “democracy”: Capacity to do things, not majority rule. Princeton, Stanford Working Papers in Class, 2007.
[2] BEETHAM, David apud Luis Felipe Miguel. Teoria democrática atual: esboço de mapeamento, p. 05. BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais. São Paulo, n.º 59, 1.º sem. 2005.
[3] BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade, p. 154. Tradução por Marco Aurélio Nogueira. 8ª ed. São Paulo, Paz e Terra, 2000.
[4] CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Discurso pronunciado no “Athénée royal de Paris”, 1819. Tradução de Loura Silveira. Traduzido da edição dos textos escolhidos de Benjamin Constant, organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes. Le Livre de Poche, Collection Pluriel. Paris, 1980.
[5] BENEVOLO, Leonardo. História da Cidade – 3ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
[6] TRABULSI, José Antônio Dabdab. Cidadania, Liberdade e Participação na Grécia, p. 10. Disponível em: >http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_livres/artg6-9.pdf<, acessado em 03 de outubro de 2017.
[7] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado – pp. 153-154, 33ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
[8]PINTO, Tales Dos Santos. O que é Idade Moderna?; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/historia/o-que-e-idade-moderna.htm>. Acesso em 05 de outubro de 2017.
[9] Idem.
[10] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 466-467. 14ª Ed. São Paulo: Ed. Ática, 2011.
[11] LOCKE, John apud Hans Kelsen. A Democracia, p. 283. Tradução: Ivone Castilho Benedetti; Jefferson Luiz Camargo; Marcelo Brandão Cipolla; Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
[12] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 467. 14ª Ed. São Paulo: Ed. Ática, 201
[13] Idem, p. 468.
[14] MIGUEL, Luís Felipe. Teoria Democrática Atual: Esboço e Mapeamento, p. 09. BIB, São Paulo, nº 59, 1º semestre de 2005, pp. 05-42.
[15] SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, Socialismo e Democracia, p. 301. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1961.
[16] Ibidem, p. 308.
[17] Idem.
[18] Ibidem, p. 317.
[19] Ibidem, p. 313.
[20] Ibidem, p. 321.
[21] MIGUEL, Luís Felipe. Teoria Democrática Atual: Esboço e Mapeamento, p. 09. BIB, São Paulo, nº 59, 1º semestre de 2005, pp. 05-42.
[22] Idem.
[23] MIGUEL, Luís Felipe. A Democracia Domesticada: Bases Antidemocráticas do Pensamento Democrático Contemporâneo, p. 19. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 45, nº 3, 2002, pp. 483 a 511.
[24] BOBBIO, Norberto. MATTEUCI, Nicola. PASQUINO, Giofranco. Dicionário de Política, p. 336 – 11º edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1º ed. 1998
[25] MIGUEL, Luís Felipe, op. cit.
[26] BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Giofranco. Dicionário de Política, op. cit., 396.
[27] Ibidem, p. 395.
[28] Ibidem, p. 335.
[29] MIGUEL, Luís Felipe. Teoria Democrática Atual: Esboço e Mapeamento, op. cit.
[30] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política, p. 281. Tradução por George Sperber e Paulo Astor Soethe (UFPR). São Paulo, Edições Loyola, 2002.
[31] TOURAINE, Alain. O que é a Democracia?, p. 79 – 2ª ed. Petrópolis, Editora Vozes, 1996.
[32] Ibidem, p. 82.
[33] RIBEIRO, Adélia Maria Miglievich. COUTINHO, George Gomes. Modelos de democracia na era das transições. Porto Alegre. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 6, n. 1, jan-jun. 2006.
[34] RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo, Boitempo, 2014.
[35] Ibidem, p. 70.
[36] Ibidem, p. 71.
[37] FAUSTO, Boris. História do Brasil, p. 261 – 13ª ed. São Paulo, Editora Universidade de São Paulo, 2009.
[38] Disponível em: <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-face-e-os-numeros-do-novo-congresso/>, acessado em 12 de outubro de 2017.
[39] Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/POLITICA/475684-HOMENS-BRANCOS-REPRESENTAM-71-DOS-ELEITOS-PARA-A-CAMARA.html>, acessado em 12 de outubro de 2017.
[40] BRASILINO, Luís. O Junho de 2013. Revista Le Monde Diplomatiqué. Disponível em: <http://diplomatique.org.br/o-junho-de-2013/>, acessado em 12 de outubro de 2013.
[41] AZEVEDO, Guilherme. Rejeição da denúncia contra Temer ameaça democracia e mostra “força bruta do dinheiro”, diz Roberto Romano. UOL, Notícias, Política. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/10/25/resultado-ameaca-democracia-diz-roberto-romano.htm>, acessado em 25 de outubro de 2017.
[42] TOURAINE, Alain. O que é a Democracia?, op. cit..
[43] COHEN, Joshua. Deliberation and democratic legitimacy, p. 186. Cambridge (MA), The Mit Press 1998.
[44] Referência à obra A inclusão do outro: estudo de teoria política de Jürgen Habermas, Frankfurt, 1996.
[45] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan./mar. 2007.
[46] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade – Volume II, p. 49. Tradução por Flávio Beno Siebeneichler – UGF. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997.
[47] Ibidem, p. 50.
[48] NINO. Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación, p. 390. Buenos Aires, Astrea, 1989.
[49] KROL, Heloísa da Silva. Democracia Deliberativa e Jurisdição Constitucional. A&C ‐ Revista de Direito Administrativo e Constitucional Belo Horizonte, ano 7, n. 28, abr. / jun. 2007.
[50] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 1, n. 1, jan./mar. 2007.
[51] Ibidem, p. 03.
[52] Idem.
[53] RAWLS, John. Justiça e Democracia, p. 204-205. Tradução Irene A. Paternot. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
[54] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Deliberação pública, constitucionalismo e cooperação democrática, op. cit., p. 04.
[55] Ibidem, p. 20.
[56] Idem.
[57] HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. São Paulo, Biblioteca Tempo Universitário, 2003.
[58] Idem.
[59] Ibidem, p. 92.
[60] Ibidem, p. 93.
[61] Ibidem, p. 107.
[62] MAIA, Rousiley Celi Moreira. Democracia e a internet como esfera pública virtual: aproximando as condições do discurso e da deliberação. Brasília, Universidade de Brasília, 2001.
Advogada e Técnica de Controle Externo do Tribunal de Contas dos Municípios do Estado de Goiás. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás (2010-2014), Especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2016-2017), Especializanda em Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Sul-Americana (2018-atualmente).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, RAISSA DA SILVA SANTOS. A crise de representatividade e a democracia deliberativa como alternativa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 out 2019, 11:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53552/a-crise-de-representatividade-e-a-democracia-deliberativa-como-alternativa. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
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