A Constituição Federal traz o direito à intimidade como garantia fundamental para o cidadão. Essa regra, porém, pode ser relativizada em prol de um objetivo mais importante, como proteger a sociedade de quem estiver praticando crimes e pondo em risco a paz social. As organizações e modalidades criminosas estão em constante evolução, e o Estado necessita acompanhar as mudanças de forma eficaz.
Por tais motivos, trouxe o legislador hipóteses em que podem ser utilizadas técnicas que contribuirão para uma eficaz persecução criminal, ainda que privando da garantia de sigilo o indivíduo. Porém, ao sopesar os bens em jogo em determinadas situações, verifica-se a total razoabilidade de infringir uma medida restritiva a alguém em prol de um bem maior. Uma das técnicas que podem se prestar a essa finalidade é a interceptação ambiental, sobre a qual teceremos breves considerações.
A Interceptação Ambiental é a captação de sinais ópticos, acústicos ou eletromagnéticos de determinado ambiente, por terceira pessoa judicialmente autorizada. Ou seja, um terceiro, de maneira dissimulada, irá inserir em determinado ambiente algum instrumento que viabilize a captação das imagens, sons ou sinais eletromagnéticos, a fim de demonstrar a prática de crimes. Dispõe o art, 3º da Lei nº 12850, in verbis:
Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da prova:
...
II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;.
No texto legal já vislumbramos a clara diferenciação entre a interceptação ambiental e a interceptação telefônica, sendo esta a captação de conversas por terceira pessoa sem conhecimento dos interlocutores.Na interceptação telefônica, apenas as conversas havidas ao telefone e os dados por ela abrangidos, conforme o alcance da autorização judicial, serão captados, ao passo em que na interceptação ambiental serão captados quaisquer sinais que se detecte no ambiente objeto da ordem judicial. Por tal motivo, existe entre os doutrinadores o entendimento que a Interceptação Ambiental excetua o Art. 5º, X da Constituição Federal, o qual trata da intimidade e vida privada das pessoas:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
A Interceptação Telefônica, por sua vez, seria exceção ao Inc. XII, que trata de sigilo das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
A previsão legal para utilização do instrumento investigatório da interceptação ambiental está na Lei nº 12.850, que em 2013 trouxe avanços para impulsionar a prevenção e repressão às organizações criminosas. Em seu art. 3º, traz a previsão da “captação de sinais óticos, acústicos ou eletromagnéticos”, em quaisquer crimes praticados por organizações criminosas e em qualquer fase de persecução criminal.
Porém, o diploma legal, conquanto traga a previsão da utilização dessa ferramenta investigava, silencia quanto a algumas questões que, quando não inviabilizam seu uso, dificultam bastante a atuação da Polícia Judiciária no que diz respeito ao meio de prova.
Primeiramente, a lei não trata de prazo para que o juiz decida em relação à concessão da Interceptação. A demora na apreciação do pedido pode levar a prejuízos na produção da prova e impossibilitar a obtenção de dados que seriam válidos apenas se oportunos. Havendo a perda do momento ideal, os dados produzidos correm grande risco de se mostrarem inúteis, resultando em perda de tempo, trabalho e recursos.
Silencia também a lei em relação ao prazo da medida, ficando a critério da Autoridade Judicial a ponderação em relação ao prazo durante o qual irá perdurar a restrição do sigilo. Fica ao arbítrio do juízo dimensionar o período que considera razoável para utilização da medida. Essa ausência deixa brechas para possíveis questionamentos futuros quanto à proporcionalidade da manutenção da constrição por um período mais longo, o que não ocorreria caso houvesse, como existe na Lei nº 9296/96, a delimitação do prazo.
Também ficou sem regulamentação a questão da forma para operacionalizar a medida. A lei não fala em entrada, técnica operacional para acesso ao ambiente que será objeto da interceptação, deixando a critério do responsável a decisão quanto à melhor forma de implementar o equipamento para viabilizar a captação dos sinais. Porém, como será invariavelmente necessário adentrar em ambiente privado para instalação de equipamento dissimulado, a pormenorização do método a ser utilizado para essa entrada seria de fundamental importância para evitar possíveis excessos.
Ademais, silencia ainda a legislação quanto ao auto circunstanciado. O auto seria a forma de apresentar todo o resultado obtido com as interceptações, apresentando a ocorrência ou não de crimes, eventos relevantes para a investigação, vínculos entre os investigados, enfim, demonstrando todo o material probatório colhido através da medida. Sem parâmetros legais, fica a critério do utilizador a forma de elaborar o auto.
Ocorre que, no início de 2019, foi apresentado pelo Ministério da Justiça o pacote anticrime, conjunto de mudanças legislativas que, se aprovadas, viabilizarão um combate mais eficaz ao crime organizado. No projeto, estão previstas diversas alterações ao instituto da interceptação ambiental, dentre as quais listaremos algumas.
Primeiramente, a interceptação ambiental, a exemplo da disciplina da lei nº 9296/96 acerca da interceptação telefônica, será prova subsidiária; ou seja, só poderá ser admitida caso a prova não possa ser produzida por outro meio. Essa é uma importante medida para evitar a “banalização” da interceptação, tratando-a devidamente como ferramenta excepcional. Como medida cautelar que é, também só será concedida na presença de indícios razoáveis de autoria e participação na infração penal, e no caso de crimes com pena máxima superior a 04 (quatro) anos e infrações penais conexas.
Além disso, traz agora regulamentada a entrada, com requerimento descrevendo circunstanciadamente o local e a forma de instalação do dispositivo de captação dos sinais.
Quanto ao prazo, a captação não poderá exceder 15 (quinze) dias, renovável por iguais períodos, se comprovada a indispensabilidade do meio de prova e quando presente atividade criminal permanente, habitual ou continuada. Além disso, vem prevista a possibilidade de que a captação ambiental seja usada como prova de infração criminal, mesmo que feita sem o prévio conhecimento da Autoridade Policial ou do MP, desde que comprovada a integridade da gravação. O pacote também traz positivada a desnecessidade de autorização judicial para captação de sinais em locais públicos, o que já se verificava nos casos concretos.
Ressaltamos também a previsão de aplicação subsidiária da Lei de Interceptação Telefônica (9296/96), quando omissa a lei específica.
Portanto, no que tange à potencial legislação, verificamos que, conquanto ainda não contemple a integralidade das questões atinentes à Interceptação Ambiental, o pacote de medidas anticrime, caso aprovado, tornará bem mais viável a utilização da ferramenta investigativa, importando em relevante avanço no combate às organizações criminosas.
A interceptação ambiental é uma ferramenta importante e eficaz no combate ao crime organizado, e deve ser utilizada de forma criteriosa. Tem sido importante aliada, em diversos países, na desarticulação de organizações criminosas. Cabe aos operadores sua utilização com parcimônia, o que terá ainda mais viabilidade caso tenhamos uma legislação mais completa, pormenorizada e específica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MOTA, Luig Almeida. O fenômeno da interceptação ambiental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3618, 28 maio2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24546. Acesso em: 15 set. 2019.
GRECO FILHO, Rogério. Interceptação telefônica: considerações sobre a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. v.1, 7 ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado, v. 1. – 15. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2014.
Delegada de Polícia Civil/ PE, Chefe da Unidade de Inteligência de Sinais da Diretoria de Inteligência da PCPE. Especialista em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SALES, LIGIA CARDOSO CORREIA. As lacunas na regulamentação legal da Interceptação Ambiental e as consequentes dificuldades de sua utilização no combate às organizações criminosas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 out 2019, 05:03. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53609/as-lacunas-na-regulamentao-legal-da-interceptao-ambiental-e-as-consequentes-dificuldades-de-sua-utilizao-no-combate-s-organizaes-criminosas. Acesso em: 23 dez 2024.
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