RESUMO: O presente estudo tem como objetivo precípuo analisar o tradicional instituto do habeas corpus sob a perspectiva histórica e à luz da sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, situar-se-á, temporalmente, o contexto do surgimento do remédio, procedendo-se, em seguida, à análise quanto a sua previsão normativa na Constituição da República e no Código de Processo Penal, socorrendo-se dos ensinamentos clássicos da doutrina. O trabalho é divido em três partes: a primeira, histórica e conceitual; a segunda, com análise prática do instituto; e a terceira, onde se apresenta a conclusão do estudo realizado.
Palavras-chave: direitos fundamentais, habeas corpus, processo penal.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. ORIGENS DO HABEAS CORPUS. 2.1. Origem histórica. 2.2. Origem no Brasil. 3. ESPÉCIES DE HABEAS CORPUS. 4. LEGITIMIDADE PARA AS AÇÕES DE HABEAS CORPUS. 5. ADMISSIBILIDADE DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS. 6. CABIMENTO DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS. 7. COMPETÊNCIA PARA AS AÇÕES DE HABEAS CORPUS. 7.1. Regras gerais. 7.2. Aspectos constitucionais. 8. PROCESSAMENTO E EFEITOS DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS. 9. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Segundo Edílson Mougenot, “o habeas corpus é o remédio jurídico-constitucional destinado a proteger a liberdade de locomoção do indivíduo, ameaçada por qualquer ilegalidade ou abuso de poder[1]”.
Conforme se depreende, o habeas corpus se destina a proteger o direito fundamental, constitucional à liberdade individual. Assim, serve também para tutelar atos jurisdicionais que, por via reflexa, influenciem indiretamente o exercício da liberdade do indivíduo, sem que seja necessária a efetiva constrição do direito de locomoção.
Trata-se de “garantia constitucional que se obtém por meio do processo[2]” e objetiva tutelar de forma eficaz e imediata a liberdade de locomoção, o direito de ir, vir e ficar, pelo que fica patente o seu caráter mandamental.
Embora esteja previsto no Código de Processo Penal como um recurso, o ensinamento clássico da doutrina[3] indica que o habeas corpus apresenta, na realidade, natureza jurídica de ação, é meio autônomo de impugnação – nas palavras de alguns, seria espécie de “remédio constitucional”. Observe-se:
Trata-se de ação de natureza constitucional, destinada a coibir qualquer ilegalidade ou abuso de poder contra a liberdade de locomoção. Encontra-se previsto no art. 5.º, LXVIII, da Constituição Federal. Não se trata de recurso, como faz crer a sua inserção na lei processual penal, mas, sim, de autêntico instrumento para assegurar direitos fundamentais, cuja utilização se dá através de ação autônoma, podendo, inclusive, ser proposto contra decisão que já transitou em julgado[4].
A impetração do habeas corpus constitui nova relação processual, através da qual se deduz pretensão em face de alguém, visando o restabelecimento ou a manutenção da liberdade de locomoção, mediante sentença de mérito. Diante da urgência que normalmente caracteriza o instrumento, à ação é previsto procedimento sumário, de cognição limitada. Essa “moldura” processual atual que destinada ao HC contrasta com a sua construção histórica no Brasil, de utilização costumeiramente muito mais ampla. De fato, tão ampla, que se chegou a nomeá-la “doutrina brasileira do habeas corpus”. Para entender melhor essa questão, oportuno analisar o desenvolvimento histórico do remédio.
2. ORIGENS DO HABEAS CORPUS
2.1. Origem histórica
A origem do habeas corpus remonta ao direito romano, o qual previa o interdictum de libero homine exhibendo, ação privilegiada por meio da qual um cidadão poderia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente[5]. A expressão habeas corpus vem do verbo habere, apresentar, e de corpus, corpo, de modo que significa exiba o corpo.
Alguns doutrinadores[6], entretanto, entendem que o instituto tem sua origem no Direito inglês. Apontam que foi previsto, originalmente, no art. 48 do Capítulo 29 da Magna Carta, outorgada, em 1215, pelo Rei João Sem Terra. O referido artigo dispunha o seguinte: “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdade, senão em virtude de julgamento por seus pares, de acordo com as leis do país”.
Mesmo após o advento da Magna Carta, as ofensas à liberdade continuavam, as ordens de habeas corpus eram frequentemente denegadas ou, mesmo, desobedecidas. Assim, em 1679, surgiu o Habeas Corpus Act, “consagrando-se o writ of habeas corpus, como remédio eficaz para a soltura de pessoa ilegalmente presa ou detida[7]”. Até então, o writ tinha sua aplicação restrita às pessoas acusadas de crime. Somente em 1816 essa garantia foi ampliada para combater outras prisões ilegais.
Daí, inclusive, o próprio nome do instituto: habeas corpus, literalmente “toma o corpo”. Ou seja, é realizada a apresentação do detido à autoridade competente, com forma de avaliar a adequação da prisão realizada – obviamente, de acordo com regras previamente estabelecidas. É o que ensina a doutrina[8]:
O termo habeas corpus, etimologicamente, significa “toma o corpo”, isto é, faz-se a apresentação de alguém, que esteja preso, em juízo, para que a ordem de constrição à liberdade seja justificada, podendo o magistrado mantê-la ou revogá-la. Embora atualmente não mais se tenha que fazer a apresentação do preso ao juiz, como regra, continua este analisando a legalidade do ato ameaçador ou constringente à liberdade de ir e vir do indivíduo. Acrescentemos a lição de ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO, demonstrando que habeas corpus vem do latim (habeo, habere = ter, exibir, tomar, trazer; corpus, corporis = corpo), significando simplesmente um meio de se obter o mparecimento físico de alguém perante uma Corte. Dentre as espécies históricas, destacam-se os seguintes tipos: a) habeas corpus ad respondendum: destinava-se a assegurar a transferência do preso de um lugar a outro para responder a uma ação penal; b) habeas corpus ad testificandum: destinava-se a trazer uma pessoa sob custódia para prestar um testemunho; c) habeas corpus ad satisfaciendum: destinava-se à transferência de um preso já condenado a um tribunal superior, a fim de se executar a sentença; d) habeas corpus ad subjiciendum: voltado a assegurar plenamente a legalidade de qualquer restrição ao direito de liberdade, apresentando-se o preso à Corte e os motivos do encarceramento, para apreciação judicial (O habeas corpus como instrumento de proteção do direito à liberdade de locomoção, p. 60). Em igual prisma, Pontes de Miranda, História e prática do habeas corpus, p. 43-44; Galdino Siqueira, Curso de processo criminal, p. 375.
2.2. Origem no Brasil
O habeas corpus foi previsto, de maneira expressa, pela primeira vez, no art. 340 do Código de Processo Criminal de 1832. Mas, de acordo com Pontes de Miranda[9], ele já estaria implicitamente previsto no direito pátrio desde a Constituição Imperial de 1824, cujo art. 179, § 8º preceituava que: “Ninguém será preso, sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei (...)”. Observe-se:
A Constituição do Império não o consagrou. Somente em 1832, o habeas corpus foi previsto no Código de Processo Criminal. Entretanto, no texto constitucional do Império, consignou-se que “ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados na lei; e nestes dentro de 24 horas contadas da entrada na prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz; e nos lugares remotos dentro de um prazo razoável, que a lei marcará, atenta a extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada, fará constar ao réu o motivo da prisão, os nomes do seu acusador, e os das testemunhas, havendo-as” (art. 179, VIII). O direito de evitar a prisão ilegal já se encontrava previsto, mas o remédio foi instituído em 1832. Foi estendido aos estrangeiros pela Lei 2.033, de 1871[10].
O fato é que a primeira Constituição a prever expressamente o instituto foi a de 1891, cujo art. 72, § 2º dispunha: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se achar em eminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder”.
Em razão dos amplos termos utilizados nesta previsão, surgiu a famosa polêmica entre Pedro Lessa e Ruy Barbosa. Enquanto aquele entendia que o instituto limitava-se à liberdade de locomoção, o último propugnava que poderia ser utilizado para a defesa de qualquer direito, negando interpretação restritiva ao remédio heróico em face do silêncio da lei. A discussão, entretanto, foi esvaziada com a reforma constitucional de 1926, que limitou o remédio constitucional à proteção ambulatória, sendo esta a linha adotada pela Constituição Federal de 1988. Nessa linha:
Inicialmente no Brasil existia o habeas corpus “liberatório” para proteger a liberdade de locomoção (jus manendi, ambulandi, eundi, viniendi ultro citroque ). Em 1871 (Lei n. 2.033/1871), foi alterada a Lei Processual de 1832 e introduzido o habeas corpus preventivo para os casos em que o cidadão estivesse ameaçado (na iminência) de sofrer uma restrição ilegal em sua liberdade. Era a consagração do habeas corpus preventivo (sequer consagrado na Inglaterra) 505.
Como explica PONTES DE MIRAND5A06, habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, dirigido aos que tivessem em seu poder a guarda do corpo do detido. O mandamento era: Toma (habeas vem de habeo, habere, que significa exibir, trazer, tomar etc.) o corpo do detido e venha submeter o homem e o caso ao Tribunal.
Tal é a importância do instrumento, não só no plano jurídico-processual, como também no campo social, que PONTES DE MIRANDA 507 afirmava, já em 1916, que o writ possuía uma extraordinária função coordenadora e legalizante, que contribuía de forma decisiva para o desenvolvimento social e político do País, impedindo inclusive a exploração da classe social baixa pelo coronelismo, que para isso contava com o auxílio da polícia e das autoridades políticas[11].
Atualmente, o habeas corpus está previsto no art. 5º, LXVIII, da CF: (...).
3. ESPÉCIES DE HABEAS CORPUS
Quanto ao mérito, a doutrina costuma dividir o instituto do habeas corpus em liberatório ou repressivo e preventivo:
Pode ser liberatório, quando a ordem dada tem por finalidade a cessação de determinada ilegalidade já praticada, ou preventivo, quando a ordem concedida visa a assegurar que a ilegalidade ameaçada não chegue a se consumar[12].
Quanto ao liberatório, tem-se que visa à restituição do status libertatis de alguém, isto é, volta-se contra o constrangimento à liberdade já consumado. A concessão desta espécie de habeas corpus será através da expedição de alvará de soltura, diante do qual a autoridade coatora deve libertar imediatamente o paciente.
Já quanto ao preventivo, a finalidade é afastar o constrangimento à liberdade antes que ele se consume. O fundamento da concessão do habeas corpus preventivo é a iminência da violência ou coação ilegal, bem como a possibilidade próxima de restrição da liberdade individual. Neste caso, o instrumento a ser expedido é o salvo-conduto. Costuma-se alertar para a situação em que houver mandado de prisão expedido e não cumprido. Em tal hipótese, em vez de habeas corpus preventivo ou repressivo, deverá ser expedido contramandado de prisão.
Ainda nessa linha, necessário ter em conta que, diante da importância da Ação, o habeas corpus pode ser deferido até mesmo de ofício pela autoridade. Essa previsão consta do art. 654, § 2º, do CPP e será pertinente sempre que o juiz ou tribunal verificar que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal. Será necessário recurso de ofício se a ordem de habeas corpus for concedida por juiz monocrático, conforme disposição do art. 574, I, do CPP.
Cumpre atentar que o relaxamento de prisão pelo juiz, quando constatar a ilegalidade da constrição da liberdade no auto de prisão em flagrante, não se confunde com a concessão de habeas corpus de ofício. Aquele ato judicial é cumprimento do mandamento constitucional presente no art. 5ª, LXV, da CF, onde se lê que “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.
No entanto, se o magistrado desobedecer ao referido mandamento, passará à condição de autoridade coatora, de modo que o instrumento hábil a fazer cessar o constrangimento ilegal será o habeas corpus.
Oportuno, ainda, observar a limitação constitucional ao uso do habeas corpus nos casos de punições disciplinares militares, constate do art. 142, §2º, CF. Sobre o tema, a doutrina estabelece algumas balizas, indicando que tal proibição não pode ser encarada de forma absoluta e literal:
Alguns aspectos merecem destaque quanto às punições na esfera militar:
a) a punição disciplinar militar que não envolve a liberdade de ir e vir não comporta jamais habeas corpus, devendo ser esgotada a instância administrativa. Caso o militar punido não esteja satisfeito com a finalização dos seus recursos, deve socorrer-se do Poder Judiciário na órbita comum (Justiça Federal – Forças Armadas; Justiça Estadual – Polícia Militar). Nessa ótica, editou-se a Súmula 694 do STF: “Não cabe habeas corpus contra a imposição da pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública”;
b) a punição que envolva prisão disciplinar contra militar é uma das modalidades de exclusão da esfera do habeas corpus. Entretanto, é de ser admitido o habeas corpus, em situações excepcionais. Sobre o tema, expressa-se ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO: “Esse único caso de impossibilidade do pedido de habeas corpus é justificado pelos princípios de hierarquia e disciplina inseparáveis das organizações militares, evitando que as punições aplicadas pelos superiores possam ser objeto de impugnação e discussão pelos subordinados”. Mas ressalta que a proibição não é absoluta, devendo ser admitido habeas corpus nos seguintes casos: incompetência da autoridade, falta de previsão legal para a punição, inobservância das formalidades legais ou excesso de prazo de duração da medida restritiva da liberdade. E argumenta ainda que não poderia haver proibição no capítulo reservado às Forças Armadas, pois seria uma limitação à proteção de um direito fundamental (liberdade de locomoção). Os direitos e garantias fundamentais têm hierarquia diferenciada, até porque tem a garantia da eternidade (art. 60, § 4.º, IV, CF) (O habeas corpus como instrumento de proteção do direito à liberdade de locomoção, p. 66-67). Parece-nos correta essa visão, com a ressalva de que a utilização do habeas corpus contra a prisão disciplinar militar somente pode dar-se em casos teratológicos, como os apontados antes, jamais se questionando a conveniência e oportunidade da medida constritiva à liberdade[13].
4. LEGITIMIDADE PARA AS AÇÕES DE HABEAS CORPUS
Quanto à legitimidade ativa, o habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, inclusive pelo próprio beneficiário, caso em que o impetrante é o paciente. “Toda pessoa poderá impetrá-lo, pouco importando se maior ou menor, nacional ou estrangeira[14]”. A capacidade postulatória não é condição para a impetração do remédio constitucional. Desde que alguém assine a seu rogo, o analfabeto também poderá impetrar. Quanto ao juiz de direito, em face da inércia da jurisdição, não poderá fazê-lo, a não ser que seja paciente ou que expeça habeas corpus de ofício em processo de para o qual tenha competência.
Já quanto à legitimidade passiva, prevalece o entendimento de que figura no polo passivo do habeas corpus pessoa apontada como coatora, seja ela autoridade ou não. Isto porque a CF não só fala em coação ilegal, mas também em ilegalidade, de forma que cabe habeas corpus contra ato de particular.
Neste ponto cumpre distinguir a figura do detentor da do coator, pois aquele não ocupará o polo passivo da ação constitucional. O detentor é aquele que exerce o ato de constrição de liberdade em nome de outrem. Portanto, somente poderá ser chamado ao procedimento de habeas corpus para declarar a mando de quem o paciente se encontra preso.
5. ADMISSIBILIDADE DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS
Tendo em vista que o habeas corpus é ação autônoma, em sede do juízo de admissibilidade deve ser observada a presença das condições da ação, quais sejam, legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido. Como a legitimidade já foi tratada no tópico anterior, necessário tratar das condições restantes.
Haverá interesse de agir quando forem observados os requisitos da necessidade e adequação, dentro das hipóteses legais do art.648, do CPP. Dessa forma, há necessidade quando a pessoa efetivamente teve, ou está prestes a ter, subtraída a sua liberdade de locomoção por ato ilegal de autoridade ou particular. Nesse sentido, cumpre destacar a Súmula 695 do STF, segundo a qual “não cabe habeas corpus quando já extinta a pena privativa de liberdade”. A adequação, por outro lado, diz respeito ao fato de o habeas corpus ser instrumento hábil a garantir estritamente a liberdade de ir, vir e ficar, não tutelando outros direitos.
“A possibilidade jurídica do pedido, por sua vez, refere-se ao habeas corpus como medida legal apta, dentro dos ditames do ordenamento jurídico, a fazer cessar toda e qualquer ameaça ou coação ilegal do direito ambulatório[15]”, afirma Mougenot. Assim, para o pedido ser admitido pelo ordenamento jurídico, não pode haver vedação expressa à pretensão, a exemplo da proibição de impetração em relação à prisão militar disciplinar.
Ainda segundo a doutrina, deve-se verificar a presença de direito líquido e certo, posto não admitida dilação probatória quanto ao instituto. Nesse sentido:
Embora nem a lei nem a Constituição Federal prevejam expressamente que a utilização do habeas corpus demande a existência de direito líquido e certo, tal postura restou consagrada pela doutrina e pela jurisprudência, não admitida, como regra, qualquer dilação probatória. Conferir em PONTES DE MIRANDA: “Direito líquido e certo é aquele que não desperta dúvidas, que está isento de obscuridades, que não precisa ser aclarado com o exame de provas em dilações, que é de si mesmo concludente e inconcusso” (História e prática do habeas corpus [Direito constitucional e processual comparado], p. 327).
Estabelece o art. 648 do Código de Processo Penal as situações de coação ilegal que comportam a impetração de habeas corpus. Naturalmente, cuida-se de um rol exemplificativo, até por que não ria a lei ordinária limitar a sua aplicação, já que a Constituição não o faz[16].
6. CABIMENTO DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS
As hipóteses de cabimento encontram-se enumeradas no art. 684, do CPP. Contudo, não se está diante de um rol taxativo, pois a Constituição prevê o remédio constitucional para todo e qualquer tipo de ameaça ou restrição da liberdade de locomoção, decorrente de ilegalidade ou abuso de poder. É o que entende a doutrina:
Estabelece o art. 648 do Código de Processo Penal as situações de coação ilegal que comportam a impetração de habeas corpus. Naturalmente, cuida-se de um rol exemplificativo, até por que não ria a lei ordinária limitar a sua aplicação, já que a Constituição não o faz[17]. (original sem destaques)
As causas legalmente previstas de coação legal podem ser listadas da seguinte forma (art. 648):
i) Ausência de justa causa: trata-se da inexistência de fundamento jurídico e suporte fático autorizadores do constrangimento à liberdade ambulatória[18]. A justa causa deve estar presente para autorizar a prisão, o inquérito e a ação penal, do contrário, há constrangimento ilegal. A verificação desse requisito não importa em exame profundo e valorativo de provas, pois a justa causa deve estar patente na mera exposição dos fatos;
ii) Prisão além do tempo determinado em lei: a jurisprudência firmou entendimento de que esse prazo é de 81 dias, resultado da soma dos prazos dos atos processuais. A instrução de processo de réu preso não deve exceder, assim, este prazo. Contudo, esta regra tem sido amenizada pelo princípio da razoabilidade, de forma que se admitem prazos maiores se as peculiaridades do caso concreto assim exigirem. Mas, no que diz respeito a manutenção da prisão de réu que já cumpriu a pena, a ilegalidade é manifesta. Da mesma forma, há excesso ilegal quando o réu, preso temporariamente, não é solto após 5 dias, sem que o prazo tenha sido prorrogado ou que a prisão temporária tenha sido convertida em preventiva. Por fim, convém destacar a Súmula 64 do STF, a qual dispõe que “não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”;
iii) Incompetência do coator: esta hipótese tem fundamento no art. 5º, LXI, da CF, o qual preceitua que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Isto significa que, excetuada a prisão militar disciplinar, os casos de prisão limitam-se a dois: a prisão em flagrante e a por mandado judicial de autoridade competente. Será competente o órgão jurisdicional que observar as regras da competência material, territorial ou por prerrogativa de função. A prisão decorrente de mandado de autoridade judiciária incompetente implica a ilegitimidade da constrição da liberdade ambulatória;
iv) Cessação do motivo que autorizou a coação: caberá habeas corpus porque a liberdade é a regra e a prisão, a exceção. Dessa forma, se não há mais o motivo que autoriza a prisão, não há justa causa e, portando, é ilegal o constrangimento à liberdade ambulatória;
v) Inadmissão de fiança, nos casos em que a lei autoriza: o art. 5º, LXVI, da CF, dispõe que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Assim, se, por culpa da autoridade coatora, o constrangido tiver negado o seu direito à fiança, ou se houver demora no arbitramento desta, cabe habeas corpus para que seja admitida a fiança ou arbitrado o seu valor para fins de liberdade provisória;
vi) Processo manifestamente nulo: o habeas corpus poderá ser utilizado para o reconhecimento de nulidade processual, ainda que já tenha findado o processo em razão de sentença transitada em julgado;
vii) Extinção da punibilidade: incidindo as causas extinção da punibilidade, previstas no art. 107 do CP, ou aquelas previstas em legislação esparsa, resta exaurida a pretensão punitiva ou executória do Estado, de forma que qualquer constrangimento à liberdade ambulatória, nestas hipóteses, é ilegal, salvo se por outro crime não estiver preso.
7. COMPETÊNCIA PARA AS AÇÕES DE HABEAS CORPUS
7.1. Regras gerais
Conforme ensina a doutrina, a competência para as processar e julgar as ações de habeas corpus é determinada por dois critérios, a territorialidade e a hierarquia. E, destes, “o primeiro critério a ser verificado é o territorial, buscando-se o lugar onde se dá a coação[19]”.
A territorialidade representa o local onde ocorreu ou irá ocorrer a coação. É requisito funcional, principalmente nas situações que demandam a impetração do habeas corpus perante o juízo monocrático ou perante os tribunais de segundo grau.
Já a hierarquia representa a qualidade da autoridade coatora – é a análise quanto ao conhecido “foro privilegiado”. Aqui, a ação de habeas corpus sempre será impetrada perante a autoridade superior àquela de que partiu a coação, em razão do disposto no art. 650, §1º, do CPP.
7.2. Aspectos constitucionais
As previsões constitucionais acerca do habeas corpus vão além daquelas constantes do art. 5º, LXVII e LXXVII, que tratam das hipóteses de cabimento e da gratuidade do remédio. Em verdade, os 102, 105 e 108 da CF trazem verdadeiras regras de competência sobre o HC (demonstrando a prolixidade da CF/88).
Assim, quanto à competência do STF para processar e julgar originariamente o habeas corpus, tem que está prevista no art. 102, I, alíneas d e i. Além destas hipóteses, conforme a Súmula 690 do STF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados especiais”.
No que diz respeito ao STJ, sua competência originaria esta fixada no art. 105,I, c, da CF:
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
c) os habeas corpus, quando o coator ou paciente for qualquer das pessoas mencionadas na alínea "a", ou quando o coator for tribunal sujeito à sua jurisdição, Ministro de Estado ou Comandante da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 23, de 1999)
Ainda na Constituição Federal há o estabelecimento da competência dos Tribunais Regionais Federais, aos quais compete, nos termos do art. 108, d, julgar originariamente quando a autoridade coatora for juiz federal, bem como procurador da República ou membro do Ministério Público Federal que atue na primeira instância.
Finalmente, o julgamento das ações de habeas corpus caberá aos juízes de primeiro grau da comarca onde ocorrer a coação ou ameaça à liberdade de locomoção, nas hipóteses não sujeitas à competência dos tribunais.
8. PROCESSAMENTO E EFEITOS DAS AÇÕES DE HABEAS CORPUS
No art. 654, §1º, do CPP estão previstos os requisitos da petição do habeas corpus. Nela, deverá constar o órgão jurisdicional a quem é endereçada a ação; o nome da pessoa que sofre ou está ameaçada de sofrer coação (o paciente); o nome de quem exerce a coação ou ameaça; a descrição dos fatos que configuram o constrangimento; a assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo.
A petição deve ser redigida em português, mas será admitida a impetração por estrangeiro. Também deverá ser clara e objetiva, explicitando detalhadamente os fundamentos do pedido, bem como lastreada com provas da ilegalidade da restrição de liberdade. O pedido confuso não será conhecido.
Pelo fato de o habeas corpus não comportar análise profunda e valorativa de provas, é muito importante a argumentação de fato e de direito a fim de demonstrar de plano a ilegalidade do constrangimento, bem como a instrução da petição com um mínimo probatório. Sobre o tema, a doutrina ensina:
Não se produz prova, como regra, no procedimento do habeas corpus, devendo o impetrante apresentar, com a inicial, toda a documentação necessária para instruir o pedido. Pode, porventura, o magistrado ou o tribunal, conforme o caso, requisitar da autoridade coatora, além das informações, outros documentos imprescindíveis à formação do seu convencimento, cabendo, também, à autoridade coatora, de ofício, enviar as peças que entender pertinentes para sustentar sua decisão.
Entretanto, nada deve ultrapassar esse procedimento, sendo incabível qualquer colheita de prova testemunhal ou pericial, desde que a questão demande urgência, como ocorre no habeas corpus liberatório. Nessa ótica está a jurisprudência majoritária: STJ: “É vedado o exame do material cognitivo e o minucioso cotejo da prova na via estreita do habeas corpus” (HC15.184-PI,5.ªT., rel.FelixFischer,16.08.2001,v.u.,RSTJ149/440).
Ampliando esse entendimento, no entanto, estão as posições de ADA, MAGALHÃES e SCARANCE: “Também não está excluída, por completo, a possibilidade de produção de outras provas, a testemunhal, por exemplo, especialmente quando se trata de pedido visando à expedição da ordem em caráter preventivo, pois nessa situação é preferível dilatar-se o procedimento, para melhor esclarecimento dos fatos, ao invés de não conhecer do writ por falta de prova cabal da ameaça” (Recursos no processo penal, p. 374). Parece-nos razoável esse entendimento, desde que efetivamente se trate de habeas corpus preventivo. Se a pessoa já está presa, deve ser suficiente a documentação existente no procedimento ou no processo para fundamentar essa medida coercitiva, sem necessidade de outras colheitas[20].
Finalmente, quanto aos efeitos, podem ser listados os seguintes:
i) A concessão de habeas corpus liberatório implica a libertação imediata do paciente, salvo se por outro motivo deva ser mantido na prisão (art. 660, § 1º, do CPP);
ii) Concedida a ordem de habeas corpus preventivo, será dado ao paciente salvo conduto assinado pelo juiz (art. 660, § 4º, do CPP);
iii) O processo será renovado se o habeas corpus for concedido em virtude de nulidade do processo (art. 652, do CPP);
iv) Quando concedido para trancar inquérito policial ou ação penal, impedirá seu curso normal;
v) No caso de concurso de agentes, a concessão de habeas corpus a um dos réus será estendida aos outros que se encontrem na mesma situação, desde que não seja fundada em motivos de caráter exclusivamente pessoal (aplicação analógica do art. 580, do CPP).
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme se pretendeu demonstrar acima, o habeas corpus se destina a proteger o direito fundamental, constitucional à liberdade individual. Serve, assim, para tutelar atos jurisdicionais que, por via reflexa, influenciem indiretamente o exercício da liberdade do indivíduo, sem que seja necessária a efetiva constrição do direito de locomoção.
De origem remota, alguns autores identificam suas primeiras manifestações ainda no direito romano, por meio do interdictum de libero homine exhibendo. Outros, traçam o instituo somente a partir da Magna Carta, outorgada em 1215 pelo Rei João Sem Terra. Em uma moldura mais atual, contudo, foi o Habeas Corpus Act, de 1679 que se consagrou “o writ of habeas corpus, como remédio eficaz para a soltura de pessoa ilegalmente presa ou detida[21]”. Até então, o writ tinha sua aplicação restrita às pessoas acusadas de crime.
No Brasil, o habeas corpus foi previsto, de maneira expressa, pela primeira vez, no art. 340 do Código de Processo Criminal de 1832. Mas, de acordo com Pontes de Miranda[22], ele já estaria implicitamente previsto no direito pátrio desde a Constituição Imperial de 1824. Mas, de forma expressa, a institucionalização constitucional do habeas corpus só veio com a de 1891, a primeira republicana.
Para além disso, pode-se notar que a conformação legal do HC, apesar de limitada pela própria natureza sumária do instituto – típico de situações em que a urgência impera, pelo que necessária a observância de requisitos de admissibilidade estritos, como interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e presença de direito líquido e certo -, é ampliada ao limite nas suas hipóteses de cabimento, previstas apenas de forma exemplificativa no Código de Processo Penal.
Na verdade, pode-se dizer, como Pontes de Miranda, que, no Brasil, “a tendência foi sempre a de se ampliar o cabimento do grande remédio jurídico, com que enriqueceram o direito brasileiro os autores do Código de Processo Criminal[23]”.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 3ª ed. Renovar: Rio de Janeiro, 1996.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O HC sempre foi uma garantia ampla contra abusos. Revista Consultor Jurídico. 24 de janeiro de 2012. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-jan-24/direito-defesa-defesa-uso-habeas-corpus, acesso em 08.10.2019.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.
BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 24.10.1941.
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 757.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
MOUGENOT, Edílson. Curso de processo penal. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3a ed. São Paulo: Max Limonad, 1997.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ª ed. São Paulo: Mallheiros, 2008.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
[1] MOUGENOT, Edílson. Curso de processo penal. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 790.
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 906.
[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 422.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 886.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 791.
[6] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 13. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 592
[7] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 757.
[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 886.
[9] LOPES JR, Aury. Op. Cit., p. 592.
[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 887.
[11] LOPES JR, Aury. Op. Cit., p. 592.
[12] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 889.
[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 890.
[14] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 11. Ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 907.
[15] MOUGENOT, Edílson. Curso de processo penal. 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p.809.
[16] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 891.
[17] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 891.
[18] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 762.
[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 893.
[20] NUCCI, Guilherme de Souza. Op. Cit., p. 907.
[21] CAPEZ, Fernando. Op. Cit., p. 757.
[22] LOPES JR, Aury. Op. Cit., p. 592.
[23] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O HC sempre foi uma garantia ampla contra abusos. Revista Consultor Jurídico. 24 de janeiro de 2012. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-jan-24/direito-defesa-defesa-uso-habeas-corpus, acesso em 08.10.2019.
Advogada. Graduada em Direito na UFPE e pós graduação em Direito Constitucional pela Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NICOLAU, Raisa Tavares Pessoa. Habeas Corpus: Origem, aplicação e espécies Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 out 2019, 04:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53677/habeas-corpus-origem-aplicao-e-espcies. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Precisa estar logado para fazer comentários.