RESUMO: esse trabalho tenciona analisar os direitos fundamentais às inviolabilidades dos sigilos fiscal e bancário; sua inclusão como matéria afeta à reserva jurisdicional; sua interação com o poder de requisitar dos órgãos do Ministério Público no âmbito de investigação criminal; a (i)legitimidade deste em tais requisições; e o tratamento dado a estas questões pelos tribunais brasileiros. Através de uma pesquisa bibliográfica e documental e utilizando-se ainda o método dedutivo, procura expor e discorrer sobre a legislação mais relevante acerca das matérias em questão, bem como traz posicionamento doutrinário e jurisprudencial em sentidos diversos. Perpassa brevemente pelas noções de direitos fundamentais e sua importância na concretização do Estado democrático e de como a garantia dos direitos fundamentais está relacionada com a recíproca limitação do poder na própria estrutura interna do Estado. Vislumbra a inexistência de norma no direito brasileiro que autorize o Ministério Público a proceder à quebra dos sigilos fiscal e bancário mediante requisição a Fazenda Pública, de modo que o interesse do parquet no acesso a tais informações deve ser submetido ao controle do judiciário, sob pena de declaração de ilicitude da prova obtida por requisição direta do órgão e que, ademais, a manutenção de tal imposição importa à contenção do poder do Ministério Público e eventuais abusos que poderiam ser praticados.
Palavras-chave: direito à privacidade; inviolabilidade de dados.
ABSTRACT: this paper intends to analyze the fundamental rights to the inviolability of fiscal and banking secrecy; its inclusion as matter affects the jurisdictional reservation; its interaction with the power to request from the Public Ministry in the scope of criminal investigation; the legitimacy of the latter in such requisitions; and the treatment given to these questions by the Brazilian courts. Using bibliographical research and the deductive method, it seeks to expose and discourse about the most relevant legislation on the subjects in question, as well as brings doctrinal and jurisprudential positioning in different meaning . It briefly touches on the notions of fundamental rights and their importance in the realization of the democratic State and how the guarantee of fundamental rights is related to the reciprocal limitation of power in the internal structure of the State. It envisages the absence of a rule in Brazilian law that authorizes the Public Ministry to proceed with the breach of fiscal and banking secrecy upon request to the Public Treasury, so that the interest of the parquet in accessing such information must under penalty of a declaration of unlawfulness of the evidence obtained by direct request of the organ and that, in addition, the maintenance of such imposition matters to the restraint of the power of the Public Ministry and possible abuses that could be practiced. Keywords: right to privacy; data safeguarding.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, no bojo do seu art. 129, enumera funções competentes aos órgãos do Ministério Público, o qual tem caráter de instituição permanente essencial à Justiça e goza de autonomia administrativa e funcional. Dentre tais funções, estão elencadas as de promoção privativa da ação penal pública (inciso I) e de requisição de diligências investigatórias e instauração de inquérito policial (inciso VIII).
Evidentemente, as funções acima exemplificadas concedem ao parquet um amplo grau de poder, assim entendido, em razão de sob o fundamento de tais funções ser possível a relativização de direitos alheios. Na requisição de diligências investigatórias tal grau de poder se vê ainda mais acentuado quando se tem a possibilidade de afastar de tal procedimento investigativo o crivo do judiciário, que é o que se pode extrair da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625/93) e da Lei do Ministério Público da União (Lei n. 75/93), uma vez que ambas reafirmam os poderes mencionados, sendo acrescentado, ademais, no que tange ao MPU que a tais requisições nenhuma autoridade poderá opor, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo (art. 8º, § 2, da Lei n. 75/93).
A despeito de tudo isso, o constituinte buscou tutelar alguns direitos individuais, com expressa previsão, que podem ser antagônicos aos poderes em questão atribuídos ao Ministério Público, dentre eles a inviolabilidade da vida privada (art. 5º, X) e sua inovadora extensão que consiste na inviolabilidade do sigilo de dados (art. 5º, XII), havendo ressalvas a tais inviolabilidades à decisão judicial, bem como nas hipóteses e na forma por lei estabelecidas para fins de investigação ou instrução processual penal.
Frente às normas expostas, surge um cenário de insegurança jurídica, em razão de celeuma interpretativa gerada por interesses opostos. Vejamos. No que pese a doutrina vacilar se os sigilos fiscal e bancário estão assegurados constitucionalmente pela inviolabilidade da vida privada ou pela inviolabilidade do sigilo de dados, é unânime, para a doutrina e jurisprudência, que há proteção constitucional de ambos sigilos, os quais abarcam dados que, muitas vezes, são de relevante interesse ao Ministério Público em seu intento investigativo e acusatório quando no trato de crimes de natureza financeira, interesse que se opõe ao do investigado, vez este entenderá pela necessidade de intervenção judicial para a quebra dos sigilos, enquanto aquele entenderá ser legítima a requisição direta de dados sigilosos ao fisco e às instituições financeiras.
Na prática jurídica, é de grande relevância o engessamento de um entendimento, dado que a questão pode desaguar na validade de provas juntadas aos autos, as quais poderão ser questionadas, e declaradas ilícitas, quando houver requisição direta pelo parquet sem a submissão ao judiciário, o que por sua vez pode eivar o processo de nulidade absoluta. Apesar disso, é possível apreciar na literatura técnica e nas decisões judiciais atinentes à matéria entendimentos divergentes, o que é, sem dúvidas, nocivo ao direito nacional.
É justamente sobre tais questões que pretende o presente trabalho discorrer, de modo a buscar o estabelecimento de uma visão mais adequada e em conformidade com o pensamento da doutrina mais razoável e, sobretudo, em conformidade com os anseios da Constituição. Utilizou-se então o método dedutivo através da pesquisa bibliográfica e documental. Serão levados em consideração, também, os efeitos práticos no dia-a-dia jurídico dos entendimentos aqui esposados.
DIREITO FUNDAMENTAL À INVIOLABILIDADE DOS SIGILOS FISCAL E BANCÁRIO
A inviolabilidade do sigilo fiscal, assim como o sigilo bancário, é entendida pela doutrina como uma espécie de direito fundamental, mais precisamente situado no que atine à vida privada ou, ainda, à inviolabilidade de dados, sendo, ambos direitos, erguidos ao plano constitucional com a Constituição Federal de 1988, a partir das disposições dos incisos X e XII em seu art. 5º. Vejamos:
Art. 5 [...] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...] XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
O assunto da inviolabilidade do sigilo fiscal também encontra abrigo no art. 198 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional), onde busca-se a vedação da divulgação, por parte da Fisco, de informações obtidas em razão da atividade “sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. No caso, excetuando a requisição de autoridade judiciária, que se consubstancia no juiz, na solicitação de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, por meio de processo administrativo, para fins de apuração de prática de infração administrativa, bem como não é vedada a divulgação de informações relativas: a representações fiscais para fins penais; inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; e parcelamento ou moratória.
Na literatura geral em direito tributário, não é comum encontrar informações como a conceituação, sequer, do instituto do sigilo fiscal e seu alcance na ordem jurídica vigente. Observa-se que se dá uma maior relevância ao tema do dever de sigilo profissional sob o viés do art. 197 do CTN, enquanto ao instituto aqui em análise limitam-se os autores a breves comentários ao art. 198 da mesma legislação. É o caso de Paulo de Barros Carvalho (2005, p. 540), que brevemente trata da matéria com a afirmação de que:
[...] é vedada a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão de ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
Não é muito diferente o que se encontra em Hugo de Brito Machado (2014, p. 258), de maneira que a prelação dos autores se resume à literalidade do já 5 mencionado art. 198 do CTN e às exceções por ele próprio instituídas, sem o adequado aprofundamento que merece o tema dado a sua complexidade que vai além da legislação específica em direito tributário para alcançar o direito processual penal e o direito constitucional.
Sendo o assunto do direito aos sigilos atrelado ao do direito à vida privada, ao recorrer a demais doutrinadores, quanto ao último, vê-se por este abraçadas uma infinidade de relações firmadas pelo sujeito, são essas relações as de caráter pessoal, familiar, íntimo, profissional, comercial, entre outros (MENDES, 2015, p. 377).
Enquanto os sigilos fiscal e bancário abarcariam mais estritamente as informações havidas em razão das relações entre o sujeito e o Fisco e instituições financeiras que revelem informações próprias à vida privada.
No mais, parte da doutrina nacional entende a inviolabilidade dos sigilos fiscal e bancário como contida, ou como extensão, da inviolabilidade da vida privada, isto em razão da própria natureza dos dados que podem ser obtidos em tais relações, é o caso de Gilmar Mendes (2015, p. 385), que acompanhando a linha de pensamento exposta pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, em sua obra insere os sigilos fiscal e bancário em tópico dedicado à privacidade, contudo, não deixa de reconhecer que “já se sustentou que a sede desse sigilo estaria mais bem localizada no inciso XII do art. 5º da Constituição”.
Já Alexandre de Moraes (2008, p. 69), entende que com o trazimento da inviolabilidade de dados, com o inciso XII, do art. 5º, da Constituição, quis-se complementar a proteção ao direito à intimidade e vida privada, sito no inciso X do mesmo dispositivo, de modo que opta por tratar dos sigilos fiscal e bancário com essa dupla proteção constitucional.
Percepção semelhante à acima mencionada sobre o direito fundamental em questão tem Oswaldo Saraiva Filho (2014, p. 105), pois mesmo ao reconhecer os sigilos fiscal e bancário como institutos distintos, entende que ambos encontram sua origem nos mesmos dispositivos constitucionais, que seriam os incisos X e XII do Art. 5º, mais precisamente diz que “Mesmo sendo institutos diferentes, ressaltase, ainda, que os sigilos bancário e fiscal são corolários do direito à privacidade e à inviolabilidade da comunicação de dados”, e chega à conclusão de que, por isso, à ambos aplicam-se as mesmas exegeses.
Apesar da divergência acerca do disposto no art. 5º, XII, da Constituição Federal, proteger ou não os sigilos aqui tratados, não parece haver na doutrina ou na jurisprudência posicionamento que discorde de haver proteção constitucional a tal direito, de modo a girar qualquer discussão acerca do tema sobre o alcance do direito individual em questão e se está ele protegido ou não pela reserva de jurisdição, assuntos que se pretende discorrer mais a frente.
Quanto à natureza dos direitos individuais em tela, as inviolabilidades da privacidade e dos sigilos tratados, enquanto direitos fundamentais, compõem o rol dos direitos fundamentais de primeira dimensão, pois têm a essência dos primeiros direitos formalmente reconhecidos no ordenamento jurídico dos Estados. Assim, possuem caráter individualista e para sua efetivação não se requer, à princípio, uma prestação positiva por parte do Estado ou de qualquer terceiro, pelo contrário, requer-se do Estado um não agir consistente na não intromissão nos assuntos que são próprios aos sujeitos, os quais possuem o direito de resistir à tais intromissões.
Nesta linha de pensamento, para Jellinek, que estabelece quatro situações ou status que pode o sujeito haver com o Estado, os direitos à privacidade e ao sigilo fiscal e bancário estariam situados no que chamou de status negativus, vez que as relações atinentes à vida privada são hipóteses nas quais o indivíduo titulariza direito de defesa contra ilegítima atuação do Estado (CUNHA JR., 2013, p. 552).
Por se tratar de direito fundamental de primeira geração, juristas como Ives Gandra e José Augusto Delgado (MARTINS, 2000, p. 113), compreendem a privacidade e a inviolabilidade do sigilo fiscal como cláusulas pétreas, acrescendo este último que “não podem sequer ser objeto de alterações que os enfraqueçam, mesmo porque se tal ocorrer haverá tendência à sua abolição”.
No mesmo esteio, Delgado, assim como os demais autores, reconhece a inviolabilidade do sigilo fiscal enquanto espécie de projeção do direito à intimidade, afirmando, ademais, que:
Enquanto direito individual de primeira geração, o direito à intimidade e à privacidade não pode ser de qualquer forma restringido ou anulado. Pode, entretanto, ser quebrado em circunstâncias especialíssimas, por determinação do Poder Judiciário.
Deste modo, no que pese não haver consenso sobre estarem os sigilos fiscal e bancário contidos no direito à intimidade ou no direito à inviolabilidade de 7 dados, repita-se, não parece haver doutrina que desconheça a existência do direito aos sigilos em questão, isto enquanto um direito fundamental. Sendo razoável aqui reconhecer a clara relação entre os sigilos fiscal e bancário e o direito à intimidade, vez que o objeto de proteção dos sigilos ultrapassa o ato de não prestar para terceiro o dado sigiloso e alcança justamente as informações que são próprias ao sujeito, em razão de sua natureza privada, portanto, resguardadas pelo direito à privacidade, neste sentido:
A inviolabilidade do sigilo, não sendo faculdade exclusiva da privacidade (é também da segurança da sociedade e do Estado), é conditio sine qua non (condição), mas não é conditio per quam (causa) do direito fundamental à privacidade. Ou seja, se não houver inviolabilidade do sigilo não há privacidade, mas se houver inviolabilidade do sigilo isto não significa que haja privacidade (pode haver outra coisa, como a segurança do Estado ou da sociedade). (FERRAZ JR., 1992)
Ademais, estudada a questão da previsão do direito aos sigilos fiscal e bancário na ordem jurídica, bem como de sua natureza de direito fundamental, cumpre melhor analisar esta última questão e as implicações que esta natureza do direito em comento é capaz de produzir no âmbito das atividades do Estado, em especial as atividades fazendária e de investigação criminal.
Relação entre os direitos fundamentais e a realização do interesse público
Toda importância que se dá ao tema da inviolabilidade do sigilo fiscal e bancário não se esvazia em si, mas surge justamente em conseqüência de um outro tema, que seria o do legítimo exercício de funções do Estado, como a de tributar e fiscalizar através do Fisco, bem como a de requisitar instauração de inquérito policial e iniciar ação penal através do Ministério Público. Isto é, porque uma vez iniciado o exercício de tais funções pelos órgãos do Estado quase sempre se poderá observar a mitigação de direitos fundamentais, aí incluído o direito à inviolabilidade do sigilo fiscal/bancário e, por conseguinte, à privacidade.
De tal maneira, fica evidente, a impossibilidade de se falar em direitos absolutos, mesmo em se falando de direitos fundamentais, aqui mais precisamente porque que tais direitos podem esbarrar na realização do Estado, quando da proteção da ordem tributária, seja administrativa ou criminalmente. Entram em foco 8 então, as inviolabilidades da privacidade e dos sigilos fiscal e bancário, que podem sob determinadas condições serem relativizadas, ou mesmo afastadas em sua inteireza.
Por tais razões, a garantia e a possibilidade de afastamento de direitos fundamentais, que num Estado verdadeiramente democrático privilegia-se instrumentos limitadores do poder que o próprio Estado concentra, a começar pela idéia da separação de poderes concebida por Montesquieu, que se concretiza em mecanismos de checks and balances, onde é afastada a concentração de poder por uma só pessoa ou um só órgão, o que por óbvio, tenciona conter abusos perpetrados por prepostos do Estado.
Busca-se, então, numa democracia a harmoniosa distribuição de poderes à órgãos autônomos entre si, numa separação de poderes não absoluta para que possibilite a contenção mútua destes, como dito, a fim de evitar abusos quando do exercício das funções cabidas ao poder em questão, abusos estes que, numa eventual falha dos instrumentos limitadores de poder estatal, podem culminar em atos atentatórios à direito fundamental, tal como o direito a inviolabilidade fiscal e bancária.
Portanto, não parece possível haver garantia de direitos fundamentais num Estado sem eficiente separação de poderes, a importância de ambos assuntos na constituição de um Estado é tamanha que, já em 1789, foram postos lado a lado no art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, pois “Toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação de poderes, não tem constituição” (CUNHA JR., 2013, p. 529).
Pode ser percebido, no mais, que essa preocupação com a justa atuação do Estado não é atual, posto que mesmo antes da clássica tripartição dos poderes idealizada por Montesquieu foi possível verificar na história, ao menos tentativas, de se introduzir na ordem dos Estados tais instrumentos limitadores de poder, é o caso do item de n. 39 da Magna Charta Libertatum do ano de 1215, que traz a desvinculação da lei e da jurisdição da pessoa do monarca a partir da adoção do que seria um embrião da judicialidade e do devido processo legal.
É nessa linha de pensamento, que Dirley da Cunha Jr. (2013, p. 562) chega à conclusão de que: 9 A afirmação histórica e progressiva dos direitos humanos fundamentais sempre esteve centrada em torno da idéia de limitação do poder político [...] Quer dizer, a idéia da limitação do poder dos governantes sempre constituiu pressuposto fundamental do reconhecimento da existência de direitos comuns a todos os indivíduos, qualquer que fosse o estamento social – clero, nobreza e povo – no qual eles se encontrassem.
A partir de tais elucidações acerca da estreita relação entre a garantia dos direitos fundamentais e a separação de poderes é que se pode vislumbrar uma discussão sobre a legitimidade na relativização do sigilo fiscal/bancário a partir de requisição direta pelo órgão do Ministério Público, ou se tal direito na hipótese de investigação e instrução criminal estaria protegido pelo instituto da reserva de jurisdição, pois não parece razoável se ater tão somente a letra da legislação nacional a respeito, uma vez que mesmo que esta fosse das mais claras, continuaria a ser necessário um olhar mais atento e sistemático às disposições constitucionais e a motivação ideal de tais disposições.
O PODER REQUISITÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM CONFRONTO COM O DIREITO À INVIOLABILIDADE DOS SIGILOS FISCAL E BANCÁRIO
O Ministério Público é inserido no ordenamento nacional pelo art. 127 da Constituição Federal, situado no capítulo IV do IV título, que trata “das Funções Essenciais à Justiça”, onde é afirmado como instituição permanente, sendo-lhe assegurada a autonomia funcional e administrativa, no que pese não constituir um Poder do Estado propriamente dito.
É no art. 129, também do Texto Constitucional, que são elencadas as funções institucionais do Ministério Público, dentre as quais a disposta no inciso VIII, que trata das requisições de diligências investigatórias e de instauração de inquérito policial, função esta a de maior interesse no presente trabalho, pois daí se vislumbra justamente a legitimidade do poder requisitório do órgão em tela frente à outros órgãos públicos e mesmo frente à particulares.
Na legislação infraconstitucional o Parquet encontra regramentos na Lei Complementar n. 75/93 – Lei Orgânica do Ministério Público da União – e na Lei n. 8.625/93 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – onde se pode ver reforçado 10 princípio da independência funcional da instituição, bem como definidas suas funções com ainda maior espectro que na Carta Maior.
Com mais especificidade quanto ao poder de requisição do órgão do Parquet, da Lei n. 75/93 é possível destacar, por relevante, o art. 8º, com ênfase no § 2º, in verbis:
Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência: [...] § 2º Nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido.
Relevante, pois com sua restrita leitura, pode-se amparar como legítima a possibilidade de amplo e irrestrito acesso pelo Ministério Público, por requisição direta ao Fisco, às informações de naturezas fiscal e bancária, sendo desconsiderado o sigilo, isto, por força do § 2º do transcrito dispositivo, o que implicaria, consequentemente, na relativização dos direitos individuais protegidos pelos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal. Ademais, a Lei n. 8.625/93 traz disposições semelhantes em seu art. 26 ao traçar os poderes do órgão no exercício de suas funções, contudo com uma menor intensidade, vez que não afasta expressamente a exceção de sigilo às requisições do órgão.
Desta exposição, não resta dúvidas sobre a legitimidade do órgão do Ministério Público na requisição direta de documentos para instrução de procedimento investigatório, vez que tal é função consagrada pela Lei Maior e por leis infraconstitucionais, contudo, são os limites do poder em questão que não parecem delimitados, o que não faz presumir a inexistência de tais limites, pois é propriamente sua imposição aos poderes do Estado que confere equilíbrio à relação entre este e seus súditos, de maneira que a ausência da previsão de freios quando da instituição de um poder é capaz de levar à fragilização das garantias fundamentais e, com estas, à fragilização da própria democracia.
A partir das conclusões já traçadas, no que toca à necessidade de se compreender os poderes do Estado dentro de um complexo de instrumentos limitadores, deixa de parecer jurídico defender a amplitude do poder conferido ao Parquet com o dispositivo retromencionado, sem uma devida apreciação sistemática do ordenamento jurídico nacional e, sobretudo, de outros dispositivos, decisões e obras técnicas sobre a matéria.
Ao analisar bibliografia sobre a questão, apesar de doutrinadores como Moraes (2008, p. 73), Cunha Jr. (2013, p. 694) e Nascimento (2014, p. 32) em suas obras chegarem à conclusão de que há necessidade de intervenção judicial para o acesso à informações fiscais e bancárias, há decisões judiciais e autores em sentido oposto em maior ou menor grau, é o caso de Bruno Calabrich (2006, p. 185) que afirma não estar o direito aos sigilos em pauta abraçado por cláusula de reserva jurisdicional, pois tal direito estaria protegido pelo inciso X do art. 5º da Constituição Federal, o qual não traz expressamente o instituto, o mesmo autor aponta também que “Precisamente por não estar albergada pela reserva jurisdicional é que se reconhece às CPIs a possibilidade de ‘quebra’ dos sigilos bancário e fiscal independentemente de previa autorização judicial”.
Ademais, Bruno Calabrich (2006, p. 186), mais precisamente no que tange ao sigilo fiscal, chega à conclusão de que não se pode cogitar a existência de sigilo de informações entre órgãos do Estado, no caso entre o Ministério Público e a Administração Fazendária. E que, no mais, a interpretação literal e restrita do art. 8º da Lei Complementar n. 75/93 seria o bastante para afirmar a legitimidade do Parquet na requisição direta de informações, mesmo quando protegidas constitucionalmente por sigilo, pois a norma em questão “é categórica ao autorizar a requisição de informações e documentos de qualquer natureza, não sendo lícito a nenhuma autoridade recusar-se a atender a requisição sob o argumento do caráter sigiloso da informação ou documento pretendido”.
É de se observar de logo, das afirmações do autor acima que, no que pese se reconhecer às Comissões Parlamentares de Inquérito a possibilidade de quebra dos sigilos bancário e fiscal, tal não justifica a legitimidade do Ministério Público na mesma situação sem ordem judicial, uma vez que as CPIs encontram fundamento constitucional no art. 58 da Carta Maior, no qual é afirmado que tais comissões detêm poderes de investigação próprios de autoridade judicial, diferentemente dos poderes de investigação do MP.
Quanto à impossibilidade de se cogitar a existência de sigilo de informações entre órgãos do Estado, também afirmada por Bruno Calabrich, deve-se ter em conta o tema da separação de poderes já trazido à baila, o qual estabelece limites na própria organização interna do Estado, de modo a não merecer prosperar as conclusões do autor, pois é necessária a distinção entre a Administração 12 Tributária e a atividade investigativa realizada pelo Ministério Público ou pela Polícia Judiciária, nesse viés é a preleção de Machado e Janini (p. 21, 2015), in verbis:
[...] compete ao ente da Administração proteger e preservar aquelas informações fiscais recebidas contra terceiros não autorizados a acessálas. Além disso, o sistema jurídico não autoriza o uso dos dados fiscais para uma finalidade diversa daquela relacionada à arrecadação e fiscalização tributária. É o que explica Luís Eduardo Schoueri (2013, p. 815): “se a autoridade administrativa teve uma informação em razão de seu ofício, é apenas no exercício deste que a informação pode ser utilizada”.
Ainda, em contrapartida às afirmações de Calabrich nas mencionadas passagens de sua obra que sugerem estar a sua conclusão em acordo com a jurisprudência nacional, Cunha Jr. (2013, p. 694), fazendo menção ao julgado STF, Al-AgR 541265/SC, afirma que:
[...] o entendimento da Suprema Corte consolidou-se no sentido de não possuir caráter absoluto a garantia dos sigilos bancário e fiscal, sendo facultado ao juiz decidir acerca da conveniência da sua quebra em caso de interesse público relevante e suspeita razoável de infração penal.
No mesmo sentido são os julgados citados por Moraes (2008, p. 73) para defender a existência da cláusula de reserva jurisdicional quando no trato dos sigilos fiscal e bancário, veja-se:
1 Nesse sentido: STF – 2ª T. – HC nº 85.088/ES – Rel. Min. Ellen Gracie, Diário da Justiça, Seção I, 23 set. 2005, p. 50 e RTJ 195/978. Conforme destacou a Ministra Ellen Gracie, “o acesso às informações derivadas da quebra do sigilo bancário do paciente, que serviram de justa causa à ação penal ora em trâmite, foi logrado a partir do requerimento do Ministério Público Federal perante o Judiciário. Tal autorização foi baseada em indícios constantes de um dossiê remetido pela Receita Federal e não de procedimento administrativo tributário. Sem respaldo, portanto, a alegação do impetrante de que esse procedimento teria sido irregular”. Conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “o sigilo bancário do contribuinte não pode ser quebrado com base em procedimento administrativo-fiscal, por implicar indevida intromissão na privacidade do cidadão, garantia esta expressamente amparada pela Constituição Federal – art. 5º, inciso X” (STJ – 1ª T. – Resp. nº 121.642/DF – Rel. Min. Demócrito Reinaldo, Diário da Justiça, Seção I, 22 set. 1997, p. 46.337) [...].
Mendes (2015, p. 385) ao expor sobre o tema dos sigilos fiscal e bancário adota posicionamento mais ameno, pois reconhece que o STF não trata a quebra dos sigilos como matéria sob reserva de jurisdição, contudo, reconhece também que o mesmo Tribunal resiste a que o Ministério Público possa determinar tal quebra por meio de requisição direta, isto, por falta de autorização legal específica, ocasião em que aponta decisão do Tribunal na RE 215.301-0-CE de 26 de junho de 1999, in verbis:
A norma inscrita no inc. VIII, do art. 129, da C.F., não autoriza o Ministério Público, sem a interferência da autoridade judiciária, quebrar o sigilo bancário de alguém. Se se tem presente que o sigilo bancário é espécie de direito à privacidade (...), somente autorização expressa da Constituição legitimaria o Ministério Público a promover, diretamente e sem a intervenção da autoridade judiciária, a quebra do sigilo bancário de qualquer pessoa.
Ademais, conclui Mendes (2015, p. 386) que a matéria da quebra dos sigilos em tela se encontra à faculdade de lei específica para conferir a órgãos do Poder Público o poder de determinar a abertura de informações de natureza sigilosa, sempre sob a condição de estarem tais determinações fundamentadas com as razões que justifiquem a medida. Para fins de exemplo, aponta a Lei Complementar n. 105/01, que confere aos agentes do Fisco o poder de requisitar de instituições financeiras informações de operações e serviços de contribuintes, sem a necessidade de autorização judicial.
A partir de tais apontamentos, que podem ser apreciados nas obras dos citados autores, não passa despercebido o fato de haver divergências que vão a sentidos totalmente opostos, mesmo quando se faz referência ao entendimento da Suprema Corte, o que demonstra haver discrepâncias, inclusive no âmbito do Tribunal e, por isso, torna-se imprescindível a análise de decisões judiciais relevantes à matéria da quebra dos sigilos fiscal e bancário, em especial por órgão do Ministério Público, antes de qualquer consideração que pretenda encerrar as questões aqui tratadas.
Contudo, de plano, é possível notar a tendência da doutrina em afirmar a necessidade da intervenção judicial na quebra dos sigilos fiscal e bancário pelo Ministério Público, seja por sustentar falta de lei que o autorize ou por sustentar a existência de reserva jurisdicional, no mais, chegando a discussão a alcançar o tema da necessidade de imposição de limites recíprocos aos órgãos do Estado a fim da garantia da democracia e, consequentemente, de direitos fundamentais, o que faz razoável, desde logo, afirmar que a mais ideal maneira de garantia de direitos fundamentais quando de eventual necessidade de relativização é a submissão de tanto ao Poder Judiciário, que limitará a atuação do órgão que pretende a relativização, de modo a impedir a concretização de abusos com medidas não razoáveis e desproporcionais.
É neste sentido, das palavras acima, que Nascimento (2014, p. 36) levanta críticas à atribuição do que chama de “superpoderes” ao Ministério Público, que surgiriam com a tomada da função investigativa da Polícia Judiciária pelo mencionado órgão, de modo a não somente pretender a presidência de investigações como também se furtar do controle de outros órgãos a partir de requisições diretas e em procedimentos os quais atribui caráter sigiloso, de modo que a junção de tais funções usurpadas, como sugere, com a função de acusador acarretaria num desequilibro entre o MP e a parte acusada num eventual processo. Na mesma direção de raciocínio afirma que:
A vida das pessoas não pode ser devassada fora dos limites toleráveis. E a investigação direta, por escapar de qualquer controle, não é boa para a democracia. Decorrente disso, a apuração unilateral, sob essa perspectiva afastada de qualquer garantia para o investigado, não tem lugar nas práticas republicanas que manda observar o due process of law contra o abuso de todos os matizes.
Ainda, ao citar Cesar Asfor Rocha, Nascimento (2014, p. 24), preleciona que “No estado democrático, é dogma que as instituições reciprocamente se controlem, não sendo de cogitar-se que alguma delas possa ficar imune a limitações”.
Tucci (p. 84, 2004) posiciona-se em semelhante linha de pensamento e, também tecendo críticas ao alcance da possibilidade de investigação pelo Ministério Público, escreve:
Em epítome, e, já agora, com GUILHERME DE SOUZA NUCCI, não devendo existir qualquer instituição superpoderosa, permitir, ao Ministério Público, por melhor que seja a intenção de seus membros, a realização da investigação criminal ou fiscalização, “(...) significaria quebrar a harmônica e garantista investigação de uma infração penal (...)”. Mais do que isso, representaria, como de fato representa, uma indesejável e inadmissível ditadura ministerial, na fase pré-processual da persecutio criminis, com afronta aos direitos e garantias constitucionais do investigado [...].
Então, o alcance do poder de requisitar do Parquet vai além da existência e do entendimento de leis que o autorize, pois com o mais breve aprofundamento da questão já se abre mais uma vez a discussão acerca dos direitos fundamentais de primeira geração, como os das inviolabilidades fiscal e bancária, que se efetivam justamente a partir de limitações ao Estado e sua abstenção em se imiscuir indevidamente na privacidade de seus súditos, portanto, o poder de requisição do MP deve ser visto a partir das limitações promovidas a fim de efetivação de direitos.
Há, por outro lado, os limites dos próprios direitos fundamentais, já que se sabe não serem absolutos, sendo um desses limites a legítima atuação do Estado em suas funções e, por isso, devem essas funções estar delimitadas com clareza para a estrita atuação do Poder Público, dentro da legalidade, de modo que o controle de um órgão por outro é salutar para manter tal atuação contida em seus devidos limites.
SIGILOS FISCAL E BANCÁRIO SOB A ÓTICA DA JURISPRUDÊNCIA
Como já se pode notar, diferentes doutrinadores atribuem alcances diversos à efetivação do direito às inviolabilidades fiscal e bancária, vez que ora se entende como matéria afeta à reserva jurisdicional, ora não, e para ambas situações parecem os autores ter à sua disposição decisão judicial que milite em seu favor, o que torna imprescindível uma detida análise de decisões judiciais que contribuam ao amadurecimento da questão, em especial as exaradas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.
Importa, de início, explorar o delineamento dado pelos tribunais aos conceitos dos sigilos fiscal e bancário, de modo a precisar quais são as informações protegidas pelo instituto, contudo parecem raras as decisões que fazem menção a tanto, certamente por haver a sedimentação do entendimento de não estarem acobertadas pelos sigilos as informações simplesmente cadastrais, ou seja, dados qualificadores do indivíduo, de maneira a restar protegidas todo o resto de informações, que sejam capazes de revelar de fato algo atinente à vida privada do sujeito. É nesse sentido breve passagem de citação usada em decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento de Recurso Especial:
O que é pré-requisito para a “quebra” de sigilo não pode também ser oponível ao fisco como sigiloso. Desse modo, se a obtenção da ficha cadastral do sujeito passivo (nome, CPF/CNPJ, endereço) é necessária para preencher o critério para a quebra do sigilo, conforme dispõem o art. 3º, § 2º, II, do Decreto n. 3.724/2001, por decorrência lógica, não pode estar sujeita ao sigilo. 5. Dados cadastrais, tais como o nome completo, CPF/CNPJ, endereço e manutenção de conta-corrente em instituições financeiras, são dados de informação obrigatória ao Fisco por parte do sujeito passivo quando da sua declaração do imposto de renda. Não havendo que se falar aí em oponibilidade de qualquer tipo de sigilo à Administração Tributária Federal, pois a simples mudança da 16 fonte da informação não gera a oponibilidade do dever de sigilo. (STJ - REsp: 957379 PR 2007/0127161-2, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 02/12/2010, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/12/2010)
Vê-se então que a decisão acima afasta da proteção dos sigilos bancário e, consequentemente dado a similitude, fiscal os dados meramente cadastrais, no mais, já na década de 90, era essa a tendência doutrinária e jurisprudencial nacional, conforme preleciona Ferraz Jr. (1992) que ao falar de dados cadastrais relativos ao nome, filiação, endereço e número de inscrição no cadastro de pessoas físicas, afirma que:
Esse tipo de dado (que, por sinal, acrescido de outras informações de duvidosa constitucionalidade chega a ser comercializado no negócio chamado mala direta), conforme fizemos ver anteriormente, embora privativo do sujeito, é condição de sua identificação para efeito dos intercâmbios sociais que ocorrem inclusive na vida privada. Destacados dos intercâmbios privados, eles não estão protegidos pela privacidade.
Isto vem sendo reconhecido pela jurisprudência, no caso até mais estrito do sigilo bancário, como se observa em diversos julgados, nos quais cadastros de que constem apenas os chamados dados pessoais (nome, endereço, filiação, número de registro) não são considerados objeto de sigilo. Ainda, neste sentido, foi o voto do Min. Celso de Mello no julgamento de Habeas Corpus, que em trecho é dito: Em hipótese semelhante, na qual se discutiu a abrangência das informações protegidas pelo sigilo fiscal e bancário, esta colenda Quinta Turma entendeu que dados como endereço, número de telefone e qualificação dos investigados nela não se inserem. (STF - HC: 108319 RJ, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 03/09/2014, Data de Publicação: DJe 09/09/2014)
Superada a questão do alcance do que seriam as informações sigilosas, é relevante tratar da moradia constitucional do direito às inviolabilidades dos sigilos fiscal e bancário, ao apreciar alguns julgados dos tribunais superiores, foi possível constatar a recorrente fundamentação do direito em questão tanto no inciso X, quanto no inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, de maneira que além de haver o reconhecimento dos sigilos como extensão do direito à vida privada, reconhece-se também o seu acobertamento pelo direito à inviolabilidade de dados, vejamos: Segundo entendimento desta Corte Superior, os poderes conferidos ao Ministério Público pelo art. 129 da Carta Magna e pelo art. 8.º da Lei Complementar n.º 75/93, dentre outros dispositivos legais aplicáveis, não são capazes de afastar a exigibilidade de pronunciamento judicial acerca da quebra de sigilo bancário ou fiscal de pessoa física ou jurídica, mormente por se tratar de grave incursão estatal em direitos 17 individuais protegidos pela Constituição da República no art. 5º, incisos X e XII. (STF - RE: 835159 DF, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 16/10/2014, Data de Publicação: DJe 22/10/2014)
Também reconhecendo a eficácia do inciso XII foi a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:
A despeito de o sigilo das informações fiscais e bancárias não ser absoluto, uma vez que pode ser mitigado quando haja preponderância de interesse público, notadamente da persecução criminal, o próprio texto constitucional (art. 5º, inciso XII) exige a prévia manifestação da autoridade judicial, preservando, assim, a imparcialidade da decisão. (STJ – RHC: 26236 RJ, Relator: Min. ARNALDO ESTEVES LIMA, Data de Julgamento: 15/12/2009, Data de Publicação: DJe 01/02/2010)
De tal modo, no que pese a já mencionada discussão doutrinária acerca de estar ou não o direito aos sigilos fiscal e bancário acobertados pelo direito à inviolabilidade de dados, o judiciário nacional os tem conferido essa dupla proteção constitucional. Ademais, a partir dos dois últimos julgados citados, já se vislumbra uma prévia do tratamento dos tribunais superiores no que tange à necessidade de autorização judicial para o acesso à informações de natureza sigilosa pelo Ministério Público.
Assim, predomina o entendimento de que os já citados art. 129 da Constituição Federal e art. 8º da Lei Complementar n. 75/93, não têm o condão de mitigar os direitos fundamentais em questão, mesmo que esses dispositivos confiram poderes ao órgão do Parquet, como o fez aquele último dispositivo legal, no qual é afirmado que não se poderá opor exceção de sigilo às requisições do órgão. Tal posição da Justiça se faz por força da proteção que a Constituição dá à matéria, entendida, algumas vezes, como afeta à reserva de jurisdição, como é o caso do julgado acima, que ao fundamentar o direito aos sigilos fiscal e bancário como advindo do art. 5º, inciso XII, da Carta Maior, entendeu que somente “por ordem judicial” seria possível violar o sigilo dos dados.
Neste mesmo sentido se deu decisão do Superior Tribunal de Justiça em recente julgamento, no qual, para além de reconhecer a matéria da quebra dos sigilos fiscal e bancário como atinente à reserva de jurisdição nas hipóteses de persecução penal, procura aclarar a distinção entre tal hipótese e os casos de compartilhamento/transferência do sigilo bancário entre instituições financeiras e fisco, que é matéria já pacificada em razão do julgamento da ADI n. 2859-DF, que 18 versou sobre a constitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar n. 105/2001. Na situação do julgamento acima citado, o HC n. 260.519-SP do STJ, foi questionada não a legalidade de requisição direta do Parquet de informações abrangidas pelo sigilo fiscal, mas sim o envio de ofício de tais informações pela própria autoridade fazendária ao Ministério Público para fins de representação criminal.
Na hipótese, o Fisco fundamentou a legalidade da conduta com o art. 198, § 3º, I, do Código Tributário Nacional, que afirma “§ 3º Não é vedada a divulgação de informações relativas à: I – representações fiscais para fins penais”, contudo o STJ, ao interpretar o dispositivo, entende que “A notícia crime não poderia abranger o compartilhamento de extratos bancários e documentos fiscais com conteúdo protegido por sigilo (declaração de imposto de renda, livros contábeis etc.)”.
Ainda no mesmo julgamento, o relator buscou afirmar a distinção entre a atividade do Fisco e a atividade do órgão do Ministério Público, tendo afirmado: Repito, em benefício da clareza: apesar de, no âmbito fiscal, haver permissão para transferência de dados financeiros do contribuinte, as informações sigilosas obtidos durante o procedimento administrativo fiscal devem ser protegidas contra o acesso de terceiros e, assim, não podem ser compartilhadas para uso em persecução penal sem autorização judicial, pois, no âmbito penal, ainda permanecem sob reserva absoluta de jurisdição. (STJ – HC: 260.519 SP, Relator: Min. ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 14/12/2016, Data de Publicação: DJe 19/12/2016)
Ainda, é salutar que se discorra sobre os requisitos que têm exigido os tribunais para que se efetive uma devida quebra de sigilo, seja bancário ou fiscal, uma vez que nada adiantaria tão apenas exigir manifestação judicial sem que se tenha parâmetros para a fundamentação desta. Foi neste sentido que se deu decisão do STF no julgamento do HC n. 84.758-GO, onde se procurou afirmar que não deve a quebra do sigilo servir à buscas generalizadas e que resultem em indiscriminado devassamento da vida privada das pessoas, pois tal manipulação arbitrária da quebra do sigilo por entes do Poder Público se mostrariam em clara desconformidade com os postulados de um Estado Democrático, por tais razões afirmou-se que: Para que a medida excepcional da quebra de sigilo bancário não se descaracterize em sua finalidade legítima, torna-se imprescindível que o ato estatal que a decrete, além de adequadamente fundamentado, também indique, de modo preciso, dentre outros dados essenciais, os elementos de identificação do correntista (notadamente o número de 19 sua inscrição no CPF) e o lapso temporal abrangido pela ordem de ruptura dos registros sigilosos mantidos por instituição financeira. (STF – HC: 84.758 GO, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/06/2006)
Desta exposição, é notável que os tribunais superiores, sabidamente, posicionam a matéria da quebra dos sigilos fiscal e bancário pelo Ministério Público como atinente à reserva de jurisdição, de modo a não reconhecer o poder requisitório do órgão como capaz de por si mitigar direitos fundamentais de ordem constitucional que são os direitos à vida privada e à inviolabilidade de dados. Contudo, mesmo os tribunais mantendo tal posicionamento, inclusive após o julgamento da ADI n. 2.859/DF, que não tem pertinência direta com o poder de requisição do parquet, o órgão insiste em se auto-conferir o poder de quebra dos sigilos fiscal e bancário sem a intervenção do judiciário, de modo a tornar recorrentes recursos e habeas corpus em que se reconhece a ilicitude da espécie de prova assim obtida, o que revela a banalização do instituto da requisição pelo MP, cumulado com a desconsideração de direitos fundamentais por este e pela Autoridade Fazendária, que atende às requisições ilegítimas.
O compartilhamento de sigilo firmado pelo julgamento da ADI n. 2.859/DF e possíveis implicações sobre o caso do Ministério Público
No que pese a transferência do sigilo bancário ao Fisco sem manifestação judicial ser atualmente admitida, tendo em vista a aquiescência do STF a partir do julgamento da ADI n. 2.359/DF, que versou sobre os poderes concedidos ao Fisco pela Lei Complementar n. 105/2001, a princípio tal assunto não teria repercussão imediata sobre a possibilidade de requisição direta de informações fiscais e bancárias sigilosas pelo Ministério Público, uma vez que a lei em questão trata estritamente da atribuição de poderes à autoridade fazendária em face de instituições financeiras.
Ocorre que, quando se afirma a não prevalência da reserva de jurisdição à mitigação do direito ao sigilo bancário como oponível ao Fisco em razão da existência do que se chamou de “compartilhamento de sigilo” sob a justificativa de persistir o dever de sigilo do órgão da administração pública, como foi feito no 20 julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade em tela, exsurge a possibilidade de se justificar com o mesmo argumento o acesso direto a tais informações pelo Ministério Público, bem como para qualquer outro órgão interessado nas informações, pois se poderia alegar a persistência do sigilo, numa espécie de sigilo intramuros.
De primeiro plano, tal possibilidade já se mostra desarrazoada, pois, conceder-se-ia ao Estado em todas as suas esferas de atuação a detenção de amplo espectro de informações que a princípio lhe foram cedidas tão somente para a finalidade fiscal. Tal cenário importa numa evidente inexistência de limites na comunicação entre órgãos estatais que deveriam manter coerente distanciamento, para a preservação da separação de poderes, das garantias individuais e, assim, do Estado democrático, porquanto esse irrestrito compartilhamento de informações cria instituições super poderosas e isentas do controle de outro poder público minimamente desinteressado no uso de tais informações.
Outrossim, o poder da administração tributária no acesso à informações de natureza privada dos contribuintes tem sua origem no art. 145, § 1º, da Constituição, o qual prediz, dentre outras coisas, que é “facultado à Administração Tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Veja-se então que o constituinte ao conferir o poder de fiscalização do Fisco, o fez assim “especialmente para conferir efetividade a esses objetivos”, objetivos estes estritamente ligados à atividade de tributar e não outra, como a persecução penal.
Nessa conformidade, defender a existência da preservação dos sigilos fiscal e bancário intramuros, com a possibilidade de amplo “compartilhamento do sigilo” dentro da estrutura do Estado, contudo entre órgãos voltados à atividades distintas, se mostra não somente como um menosprezo ao princípio da separação de poderes, mas um menosprezo também à regra do art. 145 da Constituição, que fortalece tal princípio, de modo a limitar os fins dos poderes de fiscalização da Administração Tributária.
Assim, sempre que o acesso e o compartilhamento de informações sigilosas se mostrarem necessários ao Estado, é razoável que tal necessidade seja submetida a exame do Poder Judiciário, que em tese é desinteressado das 21 informações em questão, corrobora com essa ideia o pensamento do Min. Celso de Mello em trecho de seu voto, que fora vencido, no julgamento da ADI n. 2.859/DF, veja-se:
Em havendo situação de colidência entre princípios impregnados de qualificação constitucional, como pode ocorrer entre as prerrogativas institucionais da Administração Tributária, de um lado, e os direitos e garantias básicas dos contribuintes, de outro, a resolução desse estado de antagonismo deverá constituir objeto de um pertinente juízo de ponderação, a ser exercido não por um dos sujeitos parciais da relação litigiosa, que certamente atuaria “pro domo sua”, mas, isso sim, por um terceiro juridicamente desinteressado, como os órgãos integrantes do Poder Judiciário do Estado.
Nesse viés parece lamentável que se tenha criado no julgamento da ADI em questão o que se chamou de mera transferência/compartilhamento de sigilo, inflando ainda mais o Estado de poderes livres de controle prévio e lançando precedentes para o fim dos limites do poder de fiscalizar do Estado e, por conseguinte, o fim dos direitos à vida privada e à inviolabilidade de dados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente toda a explanação feita ao longo do presente trabalho acerca da matéria da inviolabilidade dos sigilos fiscal e bancário, é possível concluir pela indubitável proteção constitucional conferida a tal direito, que assume caráter fundamental, devendo este, por essa característica, ser tomado como cláusula pétrea. No mais, os sigilos em questão encontram claro abrigo no disposto pelo art. 5º, X, da Carta Maior, pois o pretendido com a atribuição da qualidade do sigilo aos dados fiscais e bancário é justamente a proteção à vida privada do sujeito, além de o direito encontrar abrigo também no inciso XII do mesmo dispositivo, o qual trata do sigilo dos dados em si e não dos efeitos de tais dados, como o fez o anterior.
Quanto à questão do poder de requisição do Ministério Público, tem-se que apesar da ampla extensão dada pela Lei Complementar n. 75/93, onde se afasta à exceção de sigilo como oponível às requisições do órgão, não goza o parquet de poder legítimo à mitigação do direito aos sigilos fiscal e bancário diretamente, não somente em razão da inexistência de lei que institua um procedimento para tanto, mas também em razão da sistemática do ordenamento 22 jurídico não permitir, pois além haver cláusula de reserva de jurisdição no art. 5º, XII, da Constituição, o art. 198 do Código Tributário Nacional, ao impor o dever de sigilo à Administração Tributária, impõe também evidente distinção entre a atividade fazendária e a atividade de qualquer outro órgão do Estado, aí incluído o MP, vez que institui a reserva de jurisdição sempre que a divulgação não for para investigação de prática de infração administrativa.
Ademais, ao bem da mais razoável interpretação da Constituição as decisões dos tribunais superiores seguem a linha de pensamento acima esposada, o que, infelizmente, não denota que o órgão do Ministério Público e o Fisco venham respeitando tal entendimento e, por conseguinte, direitos fundamentais do contribuinte/investigado, isto porque continuam os tribunais sendo provocados a rechaçar com a declaração de ilicitude de provas, as requisições diretas do MP de quebra de sigilo fiscal no âmbito da investigação e instrução criminal, o que, por sua vez, somente ocorre por igual desrespeito havido pela autoridade fazendária que atende às requisições ilegítimas. Desta maneira, não detém o Ministério Público de legítimo poder capaz de relativizar o direito aos sigilos fiscal e bancário, bem como não detém também a Administração Tributária legitimidade para a cessão de informações sigilosas voltadas a fins alheios à atividade fiscal sem a manifestação judicial, a qual, em ambos os casos se mostra como meio eficaz na preservação das garantias individuais e no controle do poder do Estado, razão pela qual o direito às inviolabilidades em questão se situa como matéria atinente à reserva de jurisdição.
É evidente então que tentativas do órgão do Ministério Público na quebra direta dos sigilos se revela abuso desmedido, que vai de encontro à legislação infraconstitucional e constitucional, capaz de culminar na fragilização do sistema de separação de poderes, tão caro à proteção das garantias fundamentais, isto porque restaria desequilibrada a igualdade entre o parquet e o investigado, seja no âmbito da investigação criminal ou da ação penal, pois se atribuiria um “superpoder” ao órgão, o qual se veria isento do controle de qualquer outro, hipótese que se revela como indesejada numa democracia. Resta então, ao judiciário o papel de julgar a razoabilidade do interesse na quebra dos sigilos fiscal e bancário, bem como repudiar tal quebra com a declaração da ilicitude de provas, quando obtidas por meio da ilícita quebra dos sigilos.
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Bacharel em Direito, especialista em Penal e Processo Penal pela Faculdade Baiana de Direito, pós-graduado pela Universidade Católica do Salvador no curso de preparação para a carreira da Magistratura da EMAB, Autor dos livros Ativismo Judicial e o TJBA, Mecanismos Extrajudiciais de Pacificação e Solução de Conflitos e a (In) Aplicabilidade do CDC nas Relações Médico-Paciente pela Editora Sal da Terra. Analista Judiciário e Assessor do Desembargador Corregedor das Comarcas do Interior do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, MARCELO DE ALMEIDA. Exceção de sigilo ao poder requisitório do Ministério Público em face de informações fiscais: reserva jurisdicional e ilicitude de prova Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2019, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53899/exceo-de-sigilo-ao-poder-requisitrio-do-ministrio-pblico-em-face-de-informaes-fiscais-reserva-jurisdicional-e-ilicitude-de-prova. Acesso em: 23 dez 2024.
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