O presente artigo se volta à análise do texto “Adeus à separação de Poderes?” de João Maurício Adeodato.
2. Separação de poderes por Montesquieu
A teoria dos poderes, conhecida como separação dos poderes ou equipotência, estabelecia, como condição para o Estado de direito, a separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário e a independência entre eles. Essas três funções deveriam ser dotadas de igual poder.
O poder legislativo faz as leis, assim como aperfeiçoa ou ab-roga as já feitas. Com o poder executivo, ocupa-se o magistrado da paz e da guerra, envia e recebe embaixadores, estabelece a segurança e previne as invasões. O poder judiciário dá ao magistrado a faculdade de punir os crimes ou julgar os conflitos da ordem civil.
No entanto, Montesquieu ressalta a interpenetração de funções judiciárias, legislativas e executivas, uma vez que a separação total é desnecessária e inconveniente. A equivalência dos poderes também é negada implicitamente por ele ao afirmar que o judiciário é um poder nulo. A separação de poderes da teoria de Montesquieu teria, portanto, outra significação.
“Trata-se de encontrar uma instância independente capaz de moderar o poder do rei (executivo). É um problema político, de correlação de forças, e não um problema jurídico-administrativo, de organização de funções. [...] seria necessário que o funcionamento das instituições permitisse que o poder das forças sociais contrariasse e, portanto, moderasse o poder dos demais”[1].
Montesquieu afirma que uma experiência eterna atesta que todo homem que detém o poder tende a abusar do mesmo. Para que não se possa abusar desse poder, é necessário organizar a sociedade política de forma a limitar o poder pelo poder.
Kant estabeleceu um silogismo da ordem estatal em que o legislativo se apresenta como a premissa maior, o executivo a premissa menor e o judiciário, a conclusão.
3. O judiciário segundo a separação de poderes
Na Constituição brasileira, a separação de poderes é uma cláusula pétrea. O advento dessa separação ocorreu durante o constitucionalismo liberal, que defendia os direitos fundamentais de primeira geração e acreditava na “mão invisível” do mercado, além do otimismo quanto às possibilidades da razão.
Segundo a separação de poderes, o judiciário deve aplicar a lei, ligando a norma geral posta pelo legislativo ou executivo ao conflito concreto. O judiciário deve manter a neutralidade ética e um domínio técnico diante da lei, sendo descarregado de responsabilidades políticas. Atualmente, correntes como o ativismo judicial e a hermenêutica filosófica propõem uma politização do judiciário, o qual é criador de direito e realizador de demandas sociais em defesa dos cidadãos.
No final do século XVIII surge a escola positivista École d’Exégèse francesa, a qual defende que a generalidade é um elemento essencial da norma jurídica, cabendo ao juiz apenas o papel de bouche de la loi, uma vez que a clareza da lei não prescinde de interpretação. Dessa forma, o legislativo fica responsável pela elaboração das leis, o que lhe atribui um grande peso.
Já no século XX, ocorreu uma evolução conduzida pela crescente complexidade das sociedades modernas. Müller afirma que a norma é criada somente diante do caso individual, e que a generalidade é uma característica do texto, não da norma.
A crescente complexidade social aumenta a imprecisão do discurso, tornando instável o modo como a instância decisória dirá o direito e como o texto genérico positivado interferirá na decisão concreta futura. As características evolutivas da separação de poderes são agrupadas em três grupos, e até hoje existem juristas do direito ligados a cada uma dessas correntes.
4.1. Teorias da única decisão correta
A antropologia iluminista, através de uma visão silogística, afirma que todo juiz ética e tecnicamente decidirá da mesma maneira: a aplicação do direito está pré-determinada por valores-fins, escolhidos pela legislação.
Uma democracia mais pragmática se desenvolve, pelo princípio de maioria, realizado através do sufrágio, assumindo a formalização procedimentalista do direito que vai caracterizar todo o positivismo: justo é aquilo que a lei diz que o é.
Para os seguidores dessa corrente, interpretar consiste apenas em aplicar a lei ao fato, pois o conceito de norma jurídica é identificado com o de lei. Os aplicadores do direito apenas o reconhecem, jamais criam direito. Não se distingue significante (lei) de significado (norma). As decisões administrativas e sentenças são meras aplicações da lei, uma vez que a lei tem sentido e alcance claros e distintos, os quais podem ser notados por qualquer intérprete.
Eles reduzem o problema da hermenêutica apenas a adequar a norma e o fato. Essa visão leva à convicção de que cada caso concreto pode ser considerado como aplicação de uma lei a um texto legal e só admite uma decisão propriamente justa e correta. Também defendem que o judiciário só deve agir se provocado e deve restringir-se ao caso concreto.
A Escola Histórica, a da Livre Investigação Científica, a do Direito Livre e outras criticam o legalismo exegético, defendendo que há normas jurídicas individuais e que a sentença cria direito novo. Essa concepção enfraquece a separação de poderes.
Os positivistas mais críticos advogam a tese do texto da lei como “moldura” das decisões, considerando intransponível a necessidade de interpretação. Um conflito concreto teria algumas possíveis decisões diferentes, todas igualmente adequadas, dentro da abrangência dos textos aplicáveis. No contexto político, não só a separação de poderes como o princípio da maioria devem ser mitigados para evitar a constante revisão de decisões já tomadas.
A metodologia é dedutiva: vê no direito uma ciência cujo ato de conhecimento provém da compreensão dialética entre a norma e o fato. A norma forma uma moldura em relação às decisões adequadas. Nesse momento entra o poder discricionário do decididor.
A aplicação do direito procedimentaliza-se e a lógica das normas passa a ser hipotética, o que apóia uma menor literalidade e uma maior importância às condições concretas de cada caso. Os normativistas reconhecem que o juiz cria direito. Assim, a generalidade deixa de ser essencial à norma jurídica e a sentença é reconhecida como forma de expressão e criação do direito positivo.
A imagem da estrutura hierárquica e piramidal do ordenamento jurídico revela que toda norma jurídica é aplicação, em vista das normas que lhe são superiores no sistema, e é criação, em relação às normas inferiores.
Para os positivistas, o procedimento são as regras de controle que estão postas; os pós-positivistas acreditam em um procedimento superior, ditado pela razão ou pela evolução histórica, independente de positivação. Em outros termos, o procedimento está positivado: dogmaticamente, para os positivistas normativistas, ou não, para os positivistas sociologistas; para outros, o procedimento é válido por si mesmo, racional.
Para os realistas, o conhecimento se dá na intersubjetividade, depende de um controle público da linguagem, o que envolve fatores de poder. O ceticismo e o relativismo estão presentes no conhecimento preciso dos fatos e dos direitos, o caráter arbitrário da decisão é acentuado.
A interpretação do direito é feita pelo processo indutivo e a decisão não ocorre de maneira geral. O juiz decide primeiro para depois procurar no sistema o fundamento textual da sua decisão. Dessa forma, toda norma jurídica é individual: a lei é apenas um dado de entrada para construção da norma diante do caso concreto. A decisão é casuística, individual e irracional, para os mais extremados. Não há decisão correta, há decisão efetiva. O realismo diminui a importância do legislador e exacerba a função do judicante.
As fontes do direito são expressões lingüísticas da norma, podendo ser orais, pictóricas, gestuais, como qualquer comunicação. A norma é o significado, uma idéia de sentido; suas fontes de expressão são significantes.
Essas teorias demonstram a insegurança jurídica, colocando em dúvida a eficácia da separação de poderes. A validade e a generalidade passam a ser atributos do texto, e não da norma. No centro da problemática hermenêutica do direito estão seus paradigmas de racionalidade, as tentativas de estabelecer limites, o problema do critério.
O juiz deixa de ser considerado neutro; os direitos não têm mais caráter meramente declaratório e de respeito passivo, exigindo intervenção para serem realizados. Dessa forma, o judiciário também assume um papel político. A progressiva diferenciação entre texto e norma, a crescente procedimentalização formal das decisões e o aumento de poder do judiciário tornam obsoleta a tradicional separação de poderes.
“O princípio perdeu pois autoridade, decaiu de vigor e prestígio. Vemo-lo presente na doutrina e nas Constituições, mas amparado com raro proselitismo, constituindo um desses pontos mortos do pensamento político, incompatíveis com as formas mais adiantadas do progresso democrático contemporâneo, quando, erroneamente interpretado, conduz a uma separação extrema, rigorosa e absurda”[2].
Em um ordenamento jurídico já sobrecarregado, sobrecarrega-se também a atividade criadora do julgador e seu poder discricionário aumenta. Mas esse crescimento de seu papel não significa que o judiciário consiga administrar essa sobrecarga. A ineficácia judicial conduz a uma crise de legitimação do judiciário. Críticas e debates ao modelo de escolha e nomeação de juízes culminam na tese do controle externo do judiciário. No entanto, a sociedade civil merece um controle tanto dos magistrados e tribunais como do executivo e do legislativo, tentando manter a força retórica da separação de poderes.
ADEODATO, João Maurício. Adeus à separação de poderes? In ADEODATO. João Maurício. A retórica constitucional – sobre tolerância, direitos humanos e outros fundamentos éticos do direito positivo. São Paulo: Saraiva, 2008.
WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os Clássicos da Política. 11ª Ed. São Paulo: Ática, 1999. Vol. 1
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
Graduado em Direito pela UFPE. Pós-graduação em Processo Penal pela Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM; Pós-graduando em Direito Constitucional e em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Única.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PATRIOTA, CARIEL BEZERRA. Uma análise da teoria da separação de poderes sob a ótica de João Maurício Adeodato e da decisão judicial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 dez 2019, 04:21. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53939/uma-anlise-da-teoria-da-separao-de-poderes-sob-a-tica-de-joo-maurcio-adeodato-e-da-deciso-judicial. Acesso em: 23 dez 2024.
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