SUMÁRIO: Introdução. 1. A nova sistemática de recorribilidade das decisões interlocutórias. 2. Hipóteses de cabimento do agravo de instrumento previstas no art. 1.015 do CPC. 3. Problemas decorrentes da taxatividade absoluta. 4. Critério jurisprudencial: a taxatividade mitigada. Conclusão. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Dentre as novidades trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC) em matéria recursal, certamente a tentativa de se criar um rol taxativo de decisões interlocutórias impugnáveis mediante agravo de instrumento é uma das mais polêmicas e que mais geram discussões doutrinárias.
O objetivo do presente artigo é apresentar essa novidade, demonstrar os problemas dela decorrentes e expor como a jurisprudência pacificou o entendimento acerca da natureza jurídica do rol do art. 1.015 do CPC. Para tanto, será abordado, no primeiro tópico, o dispositivo em apreço, comparando-o com o sistema de recorribilidade de decisões interlocutórias do CPC de 1973 e destacando os motivos pelos quais o legislador do CPC atual optou por adotar modelo diferente, que reduz as hipóteses de impugnação imediata de tais decisões.
No segundo tópico, serão abordados, um a um, os casos de cabimento do agravo de instrumento elencados no art. 1.015. Conforme se verá, o rol não se exaure nas hipóteses descritas no dispositivo, mas engloba, também, outras situações expressamente referidas em lei.
O terceiro tópico discorrerá acerca dos problemas decorrentes da taxatividade. Nesse sentido, far-se-á um contraponto à alegação de que a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias traz prejuízo à celeridade processual, bem como se destacará que a restrição das decisões impugnáveis por meio de agravo de instrumento gera um efeito colateral danoso: o aumento do número de impetrações de mandados de segurança. Serão, ainda, citados exemplos emblemáticos de decisões interlocutórias que não estão inseridas na lei como agraváveis, mas que, por sua natureza, deveriam estar.
A última parte deste trabalho terá o propósito de abordar a tese jurídica fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp nº 1.704.520–MT, no qual se reconheceu a taxatividade mitigada do art. 1.015 do CPC. Procurar-se-á apresentar os motivos pelos quais se entende que a solução jurisprudencial encontrada harmoniza-se com os postulados da ampla defesa, da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal.
1. A NOVA SISTEMÁTICA DE RECORRIBILIDADE DAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIAS
O CPC promoveu relevante alteração na sistemática do agravo de instrumento, prevendo hipóteses taxativas para o cabimento desse recurso. É o que se extrai de seu art. 1.015:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
I - tutelas provisórias;
II - mérito do processo;
III - rejeição da alegação de convenção de arbitragem;
IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica;
V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação;
VI - exibição ou posse de documento ou coisa;
VII - exclusão de litisconsorte;
VIII - rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio;
IX - admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros;
X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução;
XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1º;
XII - (VETADO);
XIII - outros casos expressamente referidos em lei.
Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.
Adotou-se, assim, posição intermediária entre aquela adotada pelo Código anterior, que previa a recorribilidade das decisões interlocutórias como regra (art. 522), e aquela, defendida por alguns durante as discussões que permearam o anteprojeto do novo Código, de que as decisões interlocutórias deveriam ser, invariavelmente, irrecorríveis.
O CPC de 1973 estabelecia que em quaisquer decisões suscetíveis de causar à parte lesão grave e de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação fosse recebida, seria cabível o agravo de instrumento. Nas demais situações, deveria ser manejado o agravo retido. Já sob a égide do CPC de 2015, a modalidade retida foi abolida, de modo que, não sendo cabível a interposição do agravo de instrumento dentro das hipóteses taxativamente previstas, restará à parte questionar a decisão em sede de preliminar de apelação ou em contrarrazões, já que a matéria não é atingida pela preclusão (art. 1.009, § 1º).
O objetivo do legislador ao reduzir as hipóteses de recorribilidade em separado das decisões interlocutórias teria sido o de prestigiar os princípios da celeridade e da eficiência processuais, bem como de conservar os poderes do juiz de primeiro grau na condução do processo. Entretanto, conforme se verá no tópico 3 deste trabalho, a taxatividade dos casos de agravo de instrumento tem gerado problemas relevantes.
2. HIPÓTESES DE CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO PREVISTAS NO ART. 1.015 DO CPC
Segundo o art. 1.015, inciso I, do CPC, caberá agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre tutelas provisórias.
Importante registrar que, em seu art. 294, o novo Código distingue as tutelas provisórias em urgência e evidência. A primeira é pertinente às situações em que se verifica a presença do fumus boni iuris (probabilidade do direito) e do periculum in mora (perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo), conforme estabelece o art. 300. Já a segunda (tutela de evidência) independe da demonstração desses elementos, e será concedida quando: i) ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte; ii) as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante; iii) se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito e iv) a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável (art. 311).
O agravo de instrumento é cabível tanto nos casos de concessão quanto de indeferimento da tutela provisória. Entretanto, em caso de confirmação, concessão ou revogação em capítulo da sentença, o recurso cabível será a apelação (art. 1.013, § 5º).
O inciso II do art. 1.015 prevê o cabimento de agravo de instrumento diante de decisões interlocutórias que versarem sobre o mérito do processo. Trata-se, tipicamente, da hipótese de julgamento antecipado parcial do mérito, realizado nas situações em que um ou mais dos pedidos formulados mostrar-se incontroverso ou a causa estiver em condições de julgamento antecipado (art. 356). Nesses casos, embora haja decisão de mérito, cuida-se de julgamento apenas parcial, que não põe fim à fase de conhecimento mediante sentença, razão pela qual o recurso cabível não é a apelação.
Por força do inciso III do art. 1.015, está igualmente sujeita a agravo de instrumento a decisão que rejeita a alegação de convenção de arbitragem (compromisso arbitral ou cláusula compromissória). Cabe ao réu, em preliminar de contestação, suscitar a existência de convenção de arbitragem (art. 337, inciso X). Uma vez rejeitada, abre-se a via do agravo de instrumento, a fim de se evitar que o encaminhamento da controvérsia ao juízo arbitral venha a ocorrer apenas em sede de apelação, após já ocorrido pronunciamento judicial de primeiro grau. Note-se que, em se tratando de sentença que acolhe a alegação de convenção de arbitragem, haverá extinção do feito sem resolução do mérito (art. 485, VII), ensejando, assim, recurso de apelação (art. 1.009).
Consoante determina o art. 1.015, inciso IV, o agravo de instrumento também é cabível em face de decisão que julga, procedente ou não, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Importa avaliar, todavia, se o pedido de desconsideração foi apreciado mediante decisão interlocutória (art. 136, caput) ou em sentença. Neste último caso, o recurso cabível será a apelação (art. 1.009, § 3º).
De igual forma, é viável o manejo de agravo de instrumento quando da rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou do acolhimento do pedido de sua revogação, nos termos do inciso V do art. 1.015. A recorribilidade, nesse caso, justifica-se pelo fato de que a parte hipossuficiente necessita, desde logo, reverter o indeferimento de seu pleito de isenção, sob pena de ver o feito extinto pela falta de recolhimentos das custas processuais. Entretanto, registre-se que, também aqui, o recurso cabível será a apelação quando a questão for resolvida em sentença (art. 101). Por outro lado, no caso de deferimento da gratuidade, a medida adequada será a impugnação na contestação, na réplica ou nas contrarrazões de recurso, consoante disposto no art. 100.
Conforme o art. 1.015, inciso VI, também desafia agravo de instrumento a decisão que verse sobre exibição ou posse de documento ou coisa, incidente que integra a fase probatória do processo (arts. 396 a 404). A nosso ver, esse é o recurso cabível, inclusive, nos pedidos de exibição formulados em face de terceiros, pois tal circunstância não retira o caráter incidental do procedimento. Ademais, o art. 402 do CPC prevê que o pedido de exibição perante terceiro será apreciado por meio de decisão, ao contrário do que se verificava no Código anterior, quando a matéria era solucionada mediante sentença (art. 361).
Outro pronunciamento jurisdicional que dá ensejo a agravo de instrumento é a decisão que exclui litisconsorte ou rejeita pedido de limitação do litisconsórcio, nos termos dos incisos VII e VIII, respectivamente, do art. 1.015. Está-se diante de provimento que não põe fim ao processo, enquadrando-se, pois, no conceito de decisão interlocutória estabelecido no art. 203, § 2º, do CPC. Note-se que, no segundo caso – rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio –, o legislador entendeu que tal decisão é agravável por seu potencial de implicar prejuízo à celeridade processual e, consequentemente, prejuízo às partes; o mesmo entendimento, porém, não foi adotado para os casos de decisão que defere o pedido de limitação, caso em que o expediente processual adequado seria, em princípio, a preliminar de apelação (art. 1.009, § 1º).
Por força do art. 1.015, inciso IX, é cabível agravo de instrumento das decisões interlocutórias sobre admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros. O CPC considerou, como casos de intervenção de terceiros, a assistência (arts. 119 a 124), a denunciação da lide (arts. 125 a 129), o chamamento ao processo (arts. 130 a 132), a desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137) e a participação do amicus curiae (art. 138).
Constam, ainda, no rol de decisões que admitem agravo de instrumento, as que versarem sobre concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução – art. 1.015, inciso X. Os embargos à execução não possuem, em regra, efeito suspensivo (art. 919, caput); entretanto, esse efeito poderá ser concedido quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes (art. 919, § 1º). Por se tratar de decisão interlocutória – que não extingue, portanto, a execução –, abre-se a via do agravo de instrumento.
O inciso XI do art. 1.015, por sua vez, dispõe ser cabível o agravo de instrumento em face de decisão interlocutória que redistribui o ônus da prova. À luz do princípio da cooperação entre as partes, que norteia o atual modelo de processo civil brasileiro (art. 6º do CPC), o juiz pode, excepcional e fundamentadamente, inverter o ônus da prova nos casos previstos em lei, diante de peculiaridades da causa ou quando verificar que a outra parte detém melhores condições de produzi-la, nos termos do que prevê o art. 373, § 1º.
Por fim, o parágrafo único do art. 1.015 prescreve que também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.
O rol legal de decisões interlocutórias que ensejam a interposição de agravo de instrumento não se exaure, porém, nas hipóteses especificamente descritas no art. 1.015, uma vez que esse mesmo dispositivo prevê, em seu inciso XIII, o cabimento do recurso em “outros casos expressamente referidos em lei”.
Nesse sentido, é possível encontrar normas que prescrevem a admissão de agravo de instrumento ao longo do próprio CPC e, também, em leis esparsas.
No CPC, mencionem-se o art. 354, parágrafo único, que dispõe sobre o cabimento de agravo de instrumento quando sentença terminativa julgar parcialmente a demanda, e o art. 1.037, § 13, inciso I, segundo o qual caberá agravo de instrumento em face de decisão que julga pedido de prosseguimento de processo sobrestado por força de recursos especial e extraordinário repetitivos. Há, ainda, outros dispositivos que, a rigor, seriam dispensáveis, pois veiculam hipóteses já contempladas no art. 1.015; é o caso do art. 101, caput (já compreendido no inciso V do art. 1.015) e do art. 356, § 5º (já contido no inciso II do art. 1.015).
Na legislação esparsa, é possível encontrar: o art. 19, § 1º, da Lei 4.717/1965, segundo o qual é cabível agravo de instrumento das decisões interlocutórias proferidas em sede de ação popular; o art. 17, § 10, da Lei 8.429/1992, que dispõe sobre o seu cabimento em face da decisão que receber a petição inicial da ação de improbidade administrativa; o art. 100 da Lei 11.101/2005, pelo qual o agravo de instrumento é admitido em caso de decisão que decreta a falência; e o art. 7º, § 1º, da Lei 12.016/2009, que determina ser agravável a decisão do juiz de primeiro grau que conceder ou denegar a liminar em mandado de segurança.
3. PROBLEMAS DECORRENTES DA TAXATIVIDADE ABSOLUTA
Os benefícios esperados pela adoção da taxatividade para as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento não estão claramente demonstrados, e muitos processualistas têm questionado a pertinência de se restringir a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias aos casos expressamente descritos na lei.
Nesse sentido, a alegação de que a limitação de hipóteses visa a conferir maior celeridade ao processo é combatida pelo fato de que o recurso em exame não é o único responsável pela morosidade da prestação jurisdicional. Com efeito, os fatores que dificultam ou impossibilitam a duração razoável do processo são mais amplos, envolvendo desde o comportamento das partes, de seus procuradores e da autoridade judiciária, até aspectos estruturantes relacionados a elementos materiais necessários ao bom desempenho das funções jurisdicionais por seus diversos órgãos.
Não se pode, pois, a pretexto de uma suposta celeridade processual, restringir o direito à instância recursal, que está diretamente relacionado aos princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo legal e da ampla defesa.
Ademais, cumpre notar que a aventada celeridade decorrente da limitação dos casos de cabimento do agravo de instrumento não prospera quando se observa que, à luz do art. 1.009, § 1º, do CPC, as decisões não agraváveis podem ser impugnadas em preliminar de apelação ou nas contrarrazões. Ora, a menos que se admita que tais preliminares mereçam menos relevância ou tenham menos condições de prosperar que o agravo de instrumento, não se vê sentido lógico em considerar que tragam maior celeridade processual. Nesse sentido, são pertinentes as considerações de Daniel Amorim Assumpção Neves:
Por outro lado, as eventuais vantagens da novidade legislativa só serão reais se a impugnação da decisão interlocutória elaborada como preliminar de apelação ou nas contrarrazões desse recurso for rejeitada. Postergar para o momento de julgamento da apelação o julgamento da impugnação da decisão interlocutória é armar uma verdadeira “bomba relógio” no processo. Não é difícil imaginar o estrago que o acolhimento da impugnação de decisão interlocutória nesse momento procedimental ocasiona ao procedimento, ao anular todos os atos praticados posteriormente à decisão interlocutória impugnada. Basta imaginar um processo no qual a prova pericial foi indeferida, a parte não pode agravar e alegou o cerceamento de defesa na apelação. Depois de longo lapso temporal, quando o tribunal de segundo grau finalmente enfrenta e julga a apelação, reconhece que houve um cerceamento de defesa. Voltam-se os autos ao primeiro grau para a produção da prova pericial, sendo no mínimo a sentença anulada. É realmente concernente com os princípios da economia processual e da duração razoável do processo tal ocorrência?[1]
Por outro lado, a redução dos casos de cabimento de agravo de instrumento tem o efeito colateral – a nosso ver, pernicioso – de aumentar os casos de impetração de mandado de segurança. De fato, a decisão interlocutória que não esteja elencada na lei como agravável constitui ato de autoridade capaz de causar à parte lesão ou ameaça de lesão a seu direito líquido e certo. Entretanto, utilizar o mandamus como instrumento recursal para questionar decisões interlocutórias é promover o desvirtuamento dos propósitos do remédio constitucional, além de não alterar a realidade do número de feitos submetidos à segunda instância.
Por fim, há diversas decisões interlocutórias que não estão contidas nas hipóteses legais de decisões impugnáveis por agravo de instrumento, embora devessem estar. É o caso, por exemplo, do decisum que determina a emenda da petição inicial; da decisão que acolhe ou rejeita a alegação de incompetência; da decisão que indefere o negócio jurídico processual; da decisão concernente à produção de provas (com exceção dos casos de que tratam os incisos VI e XI do art. 1.015 do CPC) e da decisão que indefere o pedido de segredo de justiça. Em todos esses casos, o diferimento da análise da insurgência para sede de apelação é ineficaz ou contraproducente, gerando o cerceamento do direito que a parte deveria ter de questionar, de imediato, o provimento jurisdicional que lhe causou danos.
Sob o ponto de vista da técnica legislativa, melhor seria que o CPC tivesse elencado as hipóteses de não cabimento do agravo de instrumento, e não se proposto à árdua missão de prever todos os casos em que as decisões interlocutórias devem ser imediatamente julgadas, dada a vastidão de casos que haveriam de estar contemplados.
Tendo em vista todas essas razões, alguns processualistas passaram a defender que o rol do art. 1.015 admite interpretação extensiva ou analógica, de modo a contemplar situações semelhantes às previstas em seus incisos; outros foram além, sustentando que o rol é exemplificativo e, por essa razão, todas as decisões interlocutórias possuem o atributo da recorribilidade imediata. Todavia, a primeira corrente é criticável pelo fato de que nem sempre se encontrará norma no rol do art. 1.015 que fundamente a interpretação extensiva ou analógica – podendo-se citar, por exemplo, a decisão que indefere o segredo de justiça, para a qual não se extrai nenhuma hipótese semelhante do rol legal. A segunda corrente, por sua vez, é passível de questionamento pelo fato de ignorar a vontade do legislador de restringir o espectro de decisões agraváveis.
Nesse cenário, a jurisprudência desenvolveu a tese de que as hipóteses legais de cabimento do agravo de instrumento possuem taxatividade mitigada. É o que se abordará no próximo tópico.
4. CRITÉRIO JURISPRUDENCIAL: A TAXATIVIDADE MITIGADA
No bojo do REsp nº 1.704.520–MT, julgado sob a sistemática dos recursos especiais repetitivos (Tema nº 988), o STJ adotou interessante solução para a controvérsia referente à recorribilidade imediata das decisões interlocutórias, sedimentando seu entendimento por meio da seguinte tese:
O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação.
Em substancioso voto, a relatora, Ministra Nancy Andrighi, examinou a natureza jurídica do rol do art. 1.015 a partir do modelo constitucional de processo e das normas fundamentais previstas no Capítulo I do Título Único do Livro I do CPC. Nessa ordem de ideias, invocou o princípio da inafastabilidade da jurisdição – que, em sua acepção moderna, engloba não apenas o exercício do direito de ação, mas, também, do direito à tutela jurisdicional e ao efetivo acesso à justiça – para concluir pela possibilidade de se flexibilizar a taxatividade das hipóteses legais de agravo de instrumento.
Assim, o critério mais adequado para aferir o cabimento do recurso deveria ser a urgência, expressa no fato de que, caso a decisão interlocutória não seja combatida de imediato, sua discussão em momento posterior restaria inútil. Essa seria a linha adotada pelo ordenamento jurídico de outros países, a exemplo de Estados Unidos, França, Alemanha e Argentina.
Ademais, deve-se ter em conta que o processo constitui instrumento que caminha em direção à solução dos conflitos, de maneira que retornos a estágios anteriores, como aqueles decorrentes do exame postergado das decisões interlocutórias pelo segundo grau de jurisdição, necessitam ser evitados. Confira-se, a propósito, o seguinte trecho do voto condutor do precedente sub examine:
De outro lado, a questão da urgência e da inutilidade futura do julgamento diferido do recurso de apelação deve ser examinada também sob a perspectiva de que o processo não pode e não deve ser um instrumento de retrocesso na pacificação dos conflitos.
Está na raiz etimológica de “processo”, derivada do latim “procedere”, que se trata de palavra ligada a ideia de percurso e que significa caminhar para frente ou marchar para a frente. Se processo fosse marcha à ré, não se trataria de processo, mas de retrocesso e essa constatação, apesar de parecer pueril, está intimamente ligada à ideia de urgência no reexame de determinadas questões.
De fato, justamente para evitar as idas e as vindas, as evoluções e as involuções, bem como para que o veículo da tutela jurisdicional seja o processo e não o retrocesso, há que se ter em mente que questões que, se porventura modificadas, impliquem regresso para o refazimento de uma parcela significativa de atos processuais deverão ser igualmente examináveis desde logo, porque, nessa perspectiva, o reexame apenas futuro, somente por ocasião do julgamento do recurso de apelação ou até mesmo do recurso especial, seria infrutífero.
Desse modo, o STJ assentou que, independentemente do uso de técnicas de interpretação extensiva ou analógica do art. 1.015, verificando-se a urgência decorrente da inutilidade do exame futuro da decisão interlocutória, é cabível o recurso de agravo de instrumento. Adotou-se, assim, a expressão taxatividade mitigada para se referir às hipóteses de cabimento do recurso, conforme elucida a seguinte passagem do voto condutor:
Em última análise, trata-se de reconhecer que o rol do art. 1.015 do CPC possui uma singular espécie de taxatividade mitigada por uma cláusula adicional de cabimento, sem a qual haveria desrespeito às normas fundamentais do próprio CPC e grave prejuízo às partes ou ao próprio processo.
A orientação adotada pelo STJ trouxe preocupações em relação à preclusão. Com efeito, o art. 1.009, § 1º, do CPC determina que as questões resolvidas por decisão que não comporta agravo de instrumento não se submetem à preclusão, podendo ser suscitadas em preliminar de apelação ou contrarrazões; a contrario sensu, precluem as decisões que, comportando agravo, não venham a ser impugnadas por esse recurso. Nesse sentido, a tese jurídica firmada pela jurisprudência poderia, à primeira vista, trazer a consequência da preclusão quando, existente a urgência, a parte não interpusesse agravo de instrumento.
Entretanto, conforme ressaltou o próprio STJ, o cabimento do agravo de instrumento na hipótese excepcional admitida pelo julgado está sujeito a um duplo juízo de conformidade: de um lado, da parte, que, verificando a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação, interpõe o agravo de instrumento; de outro, do Tribunal competente para julgá-lo, que avaliará a efetiva presença da urgência.
Na ausência de um desses juízos, ou seja, se a parte não identifica urgência ou se o Tribunal não a reconhece, mantém-se a recorribilidade da questão por meio de preliminar de apelação ou contrarrazões, não havendo falar-se em preclusão.
De todo modo, objetivando proporcionar maior segurança jurídica, e com fundamento no art. 23 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) – segundo o qual a decisão que estabelece interpretação ou orientação nova sobre norma de conteúdo indeterminado deve prever regime de transição –, o STJ houve por bem modular os efeitos do reconhecimento da taxatividade mitigada, determinando que a tese seja aplicada apenas às decisões interlocutórias proferidas após a publicação do respectivo acórdão.
CONCLUSÃO
O CPC em vigor modificou significativamente a sistemática de recorribilidade das decisões interlocutórias. Resgatando, em parte, o modelo do Código de 1939, pretendeu criar um rol exaustivo das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento. Trata-se de decisões que o legislador presumiu como potencialmente causadoras de prejuízo caso não pudessem ser questionadas de imediato. Afora essas hipóteses taxativas, todas as demais decisões interlocutórias teriam que aguardar o momento da interposição do recurso de apelação para serem suscitadas em sede de razões ou contrarrazões.
Verificou-se, entretanto, que a intenção de criar numerus clausus de hipóteses que autorizam a interposição de agravo de instrumento gera problemas relevantes para o sistema recursal. Com efeito, os casos de decisões interlocutórias capazes de causar danos irreversíveis são demasiadamente vastos e diversificados, enquanto obstar que as partes recorram de tais decisões pode significar afronta às normas fundamentais e aos princípios constitucionais do processo, a exemplo da ampla defesa, da inafastabilidade da jurisdição e do devido processo legal.
Nesse sentido, parece-nos escorreita a conclusão, adotada pela jurisprudência do STJ, de que o rol de decisões interlocutórias descritas no art. 1.015 do CPC possui taxatividade mitigada. Assim, às hipóteses legalmente previstas deve ser acrescida outra, de caráter mais amplo: a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão em momento posterior.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. Vol. 3. 15ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018.
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NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2018.
[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 1660.
Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Murilo Santos. Das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento: a taxatividade mitigada do art. 1.015 do CPC Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 dez 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/53979/das-hipteses-de-cabimento-do-agravo-de-instrumento-a-taxatividade-mitigada-do-art-1-015-do-cpc. Acesso em: 23 dez 2024.
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