Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir o direito fundamental à saúde, os limites contratuais estabelecidos pelos planos de saúde privados e a relação de consumo estabelecida entre os planos e seus segurados. É uma pesquisa bibliográfica e documental, na qual estudou-se o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação às negativas de tratamento médico pelos planos de saúde privados decorrentes da aplicação de cláusulas contratuais abusivas estabelecidas por meio de contrato de adesão. O posicionamento do STJ é de que esta recusa injustificada caracteriza falha na prestação de serviço e devem ser compensados os danos materiais e morais causados. Conclui-se que no ordenamento jurídico brasileiro há a aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, principalmente diante do ativismo judicial cada vez mais presente no ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave: direitos fundamentais; direito à saúde; direitos sociais; direitos humanos; planos de saúde.
Abstract: This paper has as its aim to discuss the fundamental right to health, the contractual limits established by the private health plans and the consumption relationship established between the plans and their customers. It is a bibliographic and documental research, in which we studied the Superior Court of Justice (STJ) position on the denial of medical treatment by the private health plans caused by unfair contractual terms established by adhesion contracts. The positioning of the STJ is that this unjustified refusal characterizes failure to provide service and that the moral and material damages must be compensated. The conclusion is that in the Brazilian legal system the fundamental rights are immediately applied in the private relations, especially concerning the increasingly present judicial activism in the Brazilian legal system.
Keywords: fundamental rights; right to health; social rights; human rights; health plans.
Sumário: 1. Introdução; 2. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas; 3. Os planos de saúde privados: uma relação de consumo; 3.1 Os contratos de adesão e o posicionamento do STJ; 4. Danos Morais e a Teoria da Indenização Punitiva; 4.1 Ativismo Judicial e os efeitos econômicos das decisões desfavoráveis aos planos de saúde; 5. Considerações Finais.
Este artigo tem por objetivo discutir o direito fundamental à saúde a partir da relação de consumo estabelecida entre os planos de saúde e seus segurados. Para isso, discutiremos a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, os contratos de adesão e suas cláusulas abusivas, assim como o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) diante de negativas de tratamento.
O Direito à saúde é um direito fundamental de segunda geração, classificado como direito social no Art. 6º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88). A saúde é direito de todos e dever do Estado devendo ser garantido o acesso universal e igualitário (art. 196, CRFB/88) e são de relevância pública as ações e serviços de saúde (Art. 197, CRFB/88).
Os direitos fundamentais para José Afonso da Silva (2010, p.178) são aqueles que sem os quais a pessoa não se realiza, não convive, nem sobrevive, não bastando ser formalmente reconhecidos, mas materialmente efetivados para todos e estão formalmente presentes no título II da CRFB/88 intitulado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
Tais direitos estão diretamente ligados à dignidade da pessoa humana, princípio que fundamenta o Estado Democrático de Direito brasileiro (Art. 1º, IV CRFB/88). Os direitos fundamentais serão tratados aqui como aqueles positivados, expressa ou implicitamente, no direito constitucional. Estes direitos possuem uma dimensão negativa, o direito de defesa e a dimensão positiva, direito a prestações (SARLET, 2010, p.17-8).
As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata conforme disposto no Art. 5º, §1º da CRFB/88, ou seja, tais normas não dependem de regulamentação para serem aplicadas no ordenamento jurídico.
Há duas posições doutrinárias relacionadas a este dispositivo, parte da doutrina filia-se a ideia de que a aplicabilidade imediata refere-se somente aos direitos presentes no Art. 5º, e parte de que se refere ao todo disposto no título II da CRFB/88.
Adota-se, neste artigo, a segunda posição doutrinária, ou seja, de que o direito a saúde também possui aplicabilidade imediata. Nas palavras de Ingo Sarlet:
[...]a saúde, comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, da dupla fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias fundamentais [...] as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares. [...](SARLET, 2007, p.3).
2.A eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas
Sabe-se que tanto o direito à saúde, quanto o direito ao consumidor estão inseridos no título II da CRFB/88 “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. O dever prestacional do Estado de dar efetividade aos direitos fundamentais é conhecido como eficácia vertical (Estado-particular), enquanto a relação entre particulares é conhecida como eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A controvérsia doutrinária está em determinar como se realiza a eficácia destes direitos fundamentais nas relações entre particulares. Há três teorias relacionadas a aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais: a da não aplicabilidade, a da eficácia mediata ou indireta, e a da eficácia direta ou imediata.
A teoria da não aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas é conhecida como state action, para esta teoria os direitos fundamentais obrigam somente o Estado, é a teoria predominante nos Estados Unidos da América (EUA). Para Sarmento e Gomes (2011, p.67), a doutrina não dá o tratamento adequado aos direitos fundamentais pois “muitos dos perigos e ameaças à pessoa humana provêm não do Estado, mas de grupos, pessoas e organizações privadas”.
Além desta teoria, Tavares (2012, p.532) destaca a existência da public function theory, desenvolvida posteriormente nos EUA, a qual permite a vinculação direta dos particulares quando estiverem exercendo atividades tipicamente estatais.
A teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais foi desenvolvida por Günter Dürig em 1956 e é predominante no direito germânico, por esta teoria os direitos fundamentais não teriam eficácia direta, dependendo do legislador para terem eficácia nas relações privadas. Sarmento e Gomes (2011, p.66-8) definem-na como teoria intermediária, pois Dürig admite a possibilidade de os indivíduos renunciarem a direitos fundamentais nas relações privadas e a criação de “portas de entrada” para estes direitos por meio de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados estabelecidos pelo legislador. Os autores ressaltam que, para adeptos desta teoria, a incidência direta dos direitos fundamentais conflitaria com a autonomia privada ou autonomia da vontade no Direito Privado.
Para Sarmento e Gomes (2011, p. 68), por meio desta teoria haveria uma maior segurança jurídica devido a primazia do legislador em relação ao juiz, só cabendo ao Judiciário interpretar as cláusulas gerais e indeterminadas estabelecidas pelo legislador.
Enquanto Tavares (2012, p.532) destaca que os partidários desta teoria parecem admitir a eficácia direta e imediata em casos de completa lacuna legislativa, ou da possibilidade de a própria lei declarar a eficácia direta em determinadas situações, como pela determinação do Art. 11 do Código Civil de irrenunciabilidade de certos direitos:
[...]Essa tese abre a discussão acerca de se a aplicação direta ou indireta, quer dizer, se a adoção de uma ou outra corrente, seria uma opção do legislador [...] podendo-se cogitar, até da possibilidade de a lei declarar-se, expressamente, pela eficácia direta para determinada área das relações sociais, como uma decorrência desta doutrina. (TAVARES, 2012, p.532)
A doutrina mais adotada pelos autores brasileiros é a teoria da eficácia direta ou imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, ou seja, a vinculação imediata dos particulares, posição adotada por Hans Nipperdey em 1954. A crítica a esta teoria, como ressalta Tavares, está na possibilidade de constitucionalizar todas as relações privadas:
Realmente, com a eficácia direta e imediata corre-se o grave risco, especialmente no Brasil, de constitucionalizar todo o Direito e todas as relações particulares, relegando o Direito privado a segundo plano no tratamento de tais matérias. Como produto dessa tese ter-se-ia, ademais a transformação do STF em verdadeira Corte de Revisão porque todas as relações sociais passariam imediatamente a ser relações de índole constitucional, o que não é desejável. (TAVARES, 2012, p.533).
Contudo, para Sarmento e Gomes (2011, p.72) a doutrina da eficácia imediata não é radical, e a maior parte dos adeptos reconhece que o Judiciário deve aplicar a norma vigente, somente se afastando desta quando incompatível com a ordem constitucional.
Isto pode ser comprovado pelo pensamento de um dos adeptos desta teoria, para Sarlet (2011, p.383), o deslocamento da decisão final sobre a ponderação dos direitos para o Poder Judiciário impõe maior cautela nas decisões, recomendando que nas hipóteses de conflito entre os direitos fundamentais e o princípio da autonomia privada ocorra a análise tópico-sistemática e a ponderação dos valores, para que não haja um sacrifício completo de um dos direitos fundamentais em conflito.
Como sabemos, em sua dimensão prestacional, os direitos fundamentais sociais possuem um vínculo intenso com a dignidade da pessoa humana, ao se relacionar a um mínimo existencial para a vida digna (SARLET, 2010, p. 21). Inclusive, para Ana Paula Barcellos (2011, p.302), a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça incorporam o mínimo existencial que compõe o núcleo da dignidade da pessoa humana, possuindo tais direitos status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário.
3. Os planos de saúde privados: uma relação de consumo
Os planos de saúde privados exercem a chamada saúde suplementar e são fiscalizados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Conforme Pscheidt (2014) esta suplementação dá-se mediante o pagamento direto do consumidor ao prestador de serviço ou por meio das contribuições mensais do consumidor (planos de saúde). Desta maneira, a empresa assume a obrigação de prestação de serviços de saúde ao paciente-consumidor, como definido por Campos Scaff:
[...] a própria empresa de planos de saúde assumirá, por meio dos profissionais e dos recursos hospitalares e laboratoriais por ela credenciados e que com ela mantêm vínculos duradouros e efetivos a obrigação de prestar os serviços necessários e pretendidos pelo consumidor. (CAMPOS SCAFF, 2010, p.51).
Esta relação de consumo já era reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por meio da súmula 469 “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”. Entretanto, esta súmula foi cancelada em 11 de abril de 2018. A posição mais recente do STJ é de que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não se aplica às relações constituídas entre usuários e operadoras de autogestão, conforme texto da súmula 608 do STJ: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.
Ribeiro (2019) define autogestão em saúde:
A autogestão em saúde é o segmento em que a própria instituição é a responsável pela administração do plano de assistência à saúde oferecido aos seus empregados, servidores ou associados e respectivos dependentes, sendo o único modelo que elimina a necessidade de contratação de intermediários.
Desta maneira, nestas situações de contrato de autogestão, em casos de negativa de tratamento médico, aplicar-se-á o Código Civil de 2002 (CC/02). Nestas demandas em que é provocado, o STJ tem analisado se há inadimplemento contratual e para aplicação de dano moral, se houve a violação de direito de personalidade:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. VIOLAÇÃO AO ART. 1.022, II, DO CPC/2015. DEFICIÊNCIA NA ARGUMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. PLANO DE SAÚDE. MODELO DE AUTOGESTÃO. APLICAÇÃO DO CDC. IMPOSSIBILIDADE. APLICAÇÃO DAS NORMAS DO CÓDIGO CIVIL. NEGATIVA DE TRATAMENTO. ATO ILÍCITO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INCIDÊNCIA AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL CONFIGURADA. EXCESSIVIDADE DO VALOR ARBITRADO. REEXAME. SÚMULA 7/STJ. QUANTIA RAZOÁVEL E PROPORCIONAL. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. O Superior Tribunal de Justiça entende que o recurso especial possui natureza vinculada, exigindo, para o seu cabimento, a imprescindível demonstração, de forma clara e precisa, dos dispositivos legais apontados como malferidos pela decisão recorrida juntamente com argumentos suficientes à exata compreensão da controvérsia estabelecida, sob pena de inadmissão pela incidência da Súmula 284/STF. 2. Nos termos da jurisprudência vigente nesta Corte Superior, apesar de mostrar-se inviável a inserção das regras do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de planos de saúde pelo sistema de autogestão, às operadoras é imposta a observância do princípio da força obrigatória do contrato regido pelo CC/2002, o qual disciplina, na execução dos pactos, a aplicação da boa-fé objetiva. 3. Este Tribunal Superior possui orientação jurisprudencial no sentido da impossibilidade de configuração automática do dano moral quando a operadora de plano de saúde, com base em interpretação contratual, nega cobertura de tratamento médico requerido por beneficiário. 4. Todavia, constatada situação excepcional, como a do caso apresentado nos autos, na qual a negativa de tratamento médico acarrete profundo abalo psicológico e físico ao paciente, não há ilegalidade no reconhecimento do dano extrapatrimonial. 5. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, é inviável, em julgamento de recurso especial, que esta Corte Superior revise o quantum arbitrado nas condenações ao pagamento de indenizações por dano moral, ante a incidência da Súmula 7/STJ. 6. Não se mostra excessiva a quantia de R$ 7.000,00 (sete mil reais) fixada para o pagamento de indenização a título de dano moral, a qual se encontra em sintonia com a jurisprudência deste Tribunal Superior. 7. Agravo interno desprovido. (BRASIL, STJ. Agravo Interno no Recurso Especial nª 1809914/ES, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/10/2019, DJe 22/10/2019, grifo nosso)
Neste artigo, temos como foco do direito à saúde estabelecido em uma relação de consumo. De toda forma, é importante ressaltar que ainda que o regime jurídico seja diferente, o direito a saúde não perde seu caráter de direito fundamental, cabendo aos planos de saúde assegurar a efetividade deste direito.
3.1Os contratos de adesão e o posicionamento do STJ
Neste artigo, quanto a aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, adota-se a eficácia direta destes, principalmente ao tratarmos de relações de consumo, baseadas em um contrato de adesão.
Os contratos de adesão são assim denominados por suas cláusulas serem estipuladas unilateralmente, estando o consumidor limitado a aderir ao contrato caso queira ou precise adquirir o produto ou serviço oferecido (NUNES, 2011, p. 668).
Ressalta Campos Scaff (2010, p.53-4) que nos contratos de massa relacionados às prestações de serviços médicos, a regra observada é a utilização dos contratos-tipo, a adesão a cláusulas e disposições previamente formuladas pelas empresas, em que constarão os limites do atendimento, a forma de pagamento do preço, o prazo contatual, os períodos de carência e o sistema de reembolso.
As relações de consumo caracterizam-se pela hipossuficiência do consumidor em relação ao prestador de serviço. O consumidor é vulnerável em relação ao fornecedor: “essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico” (NUNES, 2011, p.174-5).
Como o consumidor é hipossuficiente, as cláusulas contratuais decorrentes do contrato de adesão devem ser interpretadas de forma mais benéfica ao consumidor, conforme o disposto no Art. 47 do CDC. Como pode ser observado pelo julgado a seguir:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. CUSTEIO DE COLOCAÇÃO DE STENT. RECUSA. ÍNDOLE ABUSIVA. DANO MORAL E MATERIAL. CABIMENTO. AGRAVO INTERNO PROVIDO. AGRAVO CONHECIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. 1. O Tribunal de origem adotou posicionamento consentâneo com a jurisprudência desta egrégia Corte, que se orienta no sentido de considerar que, em se tratando de contrato de adesão submetido às regras do CDC, a interpretação de suas cláusulas deve ser feita da maneira mais favorável ao consumidor bem como devem ser consideradas abusivas as cláusulas que visam a restringir procedimentos médicos. 2. Outrossim, observa-se que o eg. Tribunal a quo seguiu a jurisprudência desta Corte no sentido de considerar que "a exclusão de cobertura de determinado procedimento médico/hospitalar, quando essencial para garantir a saúde e, em algumas vezes, a vida do segurado, vulnera a finalidade básica do contrato" (REsp 183.719/SP, Relator o Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 13.10.2008). 3. Ademais, nas hipóteses em que há recusa injustificada de cobertura por parte da operadora do plano de saúde para tratamento do segurado, como ocorrido no presente caso, a orientação desta Corte é assente quanto à caracterização de dano moral, não se tratando apenas de mero aborrecimento. Precedentes. 4. Agravo interno provido para, reconsiderando a decisão agravada, conhecer do agravo a fim de negar provimento ao recurso especial. (BRASIL, STJ. AgInt no AREsp 1247880/MS, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), QUARTA TURMA, julgado em 16/08/2018, DJe 24/08/2018, grifo nosso)
Inclusive, o STJ em recorrentes decisões tem classificado como abusivas as cláusulas que excluem tratamento prescrito para garantir a saúde ou a vida do segurado, podendo o plano de saúde estabelecer as doenças que estão incluídas na cobertura, mas não o tipo de terapêutica indicada para a cura.[1]
Por exemplo, as cláusulas contratuais que excluem a cobertura de órteses, próteses e materiais diretamente ligados ao procedimento cirúrgico pelo qual se submete o consumidor são nulas por serem consideradas abusivas.[2]
Cláusulas abusivas são definidas por Brandão (2011, p.134) como “cláusulas que são contratadas cotidianamente entre as partes, mas foram repelidas pelo ordenamento jurídico por ser lesivas e trazer danos ao consumidor”. O rol exemplificativo de cláusulas abusivas é previsto no Art. 51 CDC, e estas cláusulas são nulas de pleno direito, ou seja, desde o seu nascimento, produzindo efeito retroativo (ex tunc) quando declaradas nulas judicialmente (BRANDÃO, 2011, p.134-5).
Contudo, apesar destas cláusulas serem consideradas nulas pelo Judiciário, o contrato deve ser mantido. Conforme determina o Art. 51, §2º do CDC, em regra, a nulidade da cláusula contratual não invalida o contrato, exceto quando desta invalidade decorrer ônus excessivo a qualquer das partes. Desta maneira, como destaca Barros (2011, p.101), o contrato é mantido por força do princípio da preservação dos contratos.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. EXCLUSÃO DE COBERTURA RELATIVA À PRÓTESE. ABUSIVIDADE. DANO MORAL. 1. Recurso especial, concluso ao Gabinete em 06.12.2013, no qual discute o cabimento de compensação por danos morais decorrente de negativa de fornecimento de prótese ortopédica por plano de saúde. Ação de cobrança ajuizada em 06.01.2011. 2. É nula a cláusula contratual que exclua da cobertura órteses, próteses e materiais diretamente ligados ao procedimento cirúrgico a que se submete o consumidor. 3. Embora o mero inadimplemento contratual não seja causa para ocorrência de danos morais, é reconhecido o direito à compensação dos danos morais advindos da injusta recusa de cobertura de seguro saúde, pois tal fato agrava a situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado, uma vez que, ao pedir a autorização da seguradora, já se encontra em condição de dor, de abalo psicológico e com a saúde debilitada. 4. Recurso especial provido. (BRASIL, STJ. Recurso Especial nº 1.421.512-MG (2013/03922820-1) Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 11/02/2014, Terceira Turma, grifo nosso).
Pelo julgado do Recurso Especial nº 1.421.512-MG, nota-se o reconhecimento da nulidade da cláusula a qual exclui o procedimento cirúrgico, como também da compensação por danos morais decorrentes da recusa da cobertura. Para a relatora Ministra Nancy Andrighi só o inadimplemento do contrato não justifica a compensação por danos morais, contudo a compensação é devida a partir do agravamento da situação de fragilidade psicológica pela qual passa o segurado.
O mesmo pode ser observado no julgamento do Recurso Especial nº 1651289 - SP, em que foi negada a cobertura médica de uma enfermidade coberta pelo plano de saúde:
CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO. DOENÇA. COBERTURA. RECUSA INJUSTIFICADA. DEVERES ANEXOS OU LATERAIS. BOA-FÉ OBJETIVA. VIOLAÇÃO. DANO MORAL. OCORRÊNCIA. 1. O propósito recursal é determinar se a negativa da seguradora ou operadora de plano de saúde em custear tratamento de doença coberta pelo contrato tem, por si só, a aptidão de causar dano moral ao consumidor segurado. 2. Embora o mero inadimplemento, geralmente, não seja causa para ocorrência de danos morais, a jurisprudência do STJ vem reconhecendo o abalo aos direitos da personalidade advindos da recusa indevida e ilegal de cobertura securitária, na medida em que a conduta agrava a já existente situação de aflição psicológica e de angústia no espírito do segurado. 3. A recusa indevida e abusiva de cobertura médica essencial à cura de enfermidade coberta por plano de saúde contratado caracteriza o dano moral, pois há frustração da justa e legítima expectativa do consumidor de obter o tratamento correto à doença que o acomete. 4. Existem situações, todavia, em que a recusa não é indevida e abusiva, sendo possível afastar a presunção de dano moral, pois dúvida razoável na interpretação do contrato não configura conduta ilícita capaz de ensejar indenização. 5. O critério distintivo entre uma e outra hipótese é a eventualidade de a negativa da seguradora pautar-se nos deveres laterais decorrentes da boa-fé objetiva, a qual impõe um padrão de conduta a ambos os contratantes no sentido da recíproca colaboração, notadamente, com a prestação das informações necessárias ao aclaramento dos direitos entabulados no pacto e com a atuação em conformidade com a confiança depositada. 6. In casu, o tratamento para a doença (neoplasia) por meio de radioterapia teria sido previsto no contrato, e a negativa de cobertura teria sido justificada pelo fato de o método específico de tratamento não estar previsto na lista de procedimentos da Agência Nacional de Saúde. Como a negativa de cobertura não estava expressa e destacada no contrato e como o tratamento seria necessário e indispensável à melhora da saúde, a recusa ao custeio do tratamento mostra-se injusta e decorrente de abuso, violando a justa expectativa da parte, o que revela a existência de dano moral a ser indenizado. 7. Recurso especial conhecido e provido. (BRASIL, STJ. Recurso Especial nº 1651289/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/04/2017, DJe 05/05/2017, grifo nosso)
Pelo exposto, deve-se descartar o argumento de que a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas descumpriria os princípios da autonomia da vontade e da liberdade contratual. Justamente pelos direitos fundamentais estarem diretamente ligados à dignidade da pessoa humana, é impensável a não aplicação destes direitos. Sabe-se que os princípios ao estarem em aparente conflito não deixam de ser aplicados, mas sofrem ponderação conforme o caso concreto, por isso, deve-se analisar como o Judiciário tem lidado com esta ponderação de valores.
Inclusive, como expõe Sarlet (2010, p.29), os princípios da autonomia privada e da liberdade contratual são princípios fundamentais implicitamente consagrados e limites importantes para as intervenções nas relações privadas, mas não são obstáculos para a eficácia direta dos direitos fundamentais.
Em uma relação contratual os princípios da probidade e da boa-fé objetiva devem permear toda a relação, desde o pré-contrato até a sua execução, como previsto no Art. 422 do CC. Ademais, como disposto no Art. 421 do CC o princípio da autonomia da vontade será limitado pela função social do contrato: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Como ressalva Venosa, o interesse social deve ser analisado pelo Poder Judiciário no caso concreto:
[...] O controle judicial não se manifestará apenas no exame das cláusulas contratuais, mas desde a raiz do negócio jurídico. Como procura enfatizar o atual diploma, o contrato não mais é visto pelo prisma individualista de utilidade para os contratantes, mas no sentido social de utilidade para a comunidade. Nesse diapasão, pode ser coibido o contrato que não busca essa finalidade. Somente o caso concreto, as necessidades e situações sociais de momento é que definirão o que se entende por interesse social. (VENOSA, Coleção Direito Civil, v.2, 2009, p.366).
A função social do contrato de plano de saúde está em fornecer um serviço de qualidade para o consumidor. As cláusulas contratuais ao excluírem determinados tratamentos, principalmente em casos de emergência, colocam em risco a saúde e a vida do paciente-consumidor. Estas cláusulas são reiteradamente consideradas ilegais pelo Judiciário, por quebrarem a relação de confiança estabelecida entre o paciente-consumidor e os planos de saúde e, consequentemente, infringirem o princípio da boa-fé objetiva.
4.Danos Morais e a Teoria Da Indenização Punitiva
Os danos morais visam ao desestímulo das ações que causam dor e prejudicam psicologicamente a vítima, a estes é atribuído um valor compensatório quando esta dor é comprovada, juntamente com a presença dos requisitos da responsabilidade civil subjetiva: ato ilícito, culpa, dano e nexo causal.
Para Venosa o “dano moral é o prejuízo que afeta o ânimo psíquico, moral e intelectual da vítima”, sua atuação é nos direitos de personalidade. Para o autor, será dano moral aquele que gerar um “distúrbio anormal na vida do indivíduo” (2009, p. 41). Já Lisboa (2008, p.138) ressalta que o dano moral não possui valor econômico, devendo ser fundamentado em pena civil e desestímulo.
Enquanto para Sampaio Júnior (2009, p. 93) o instituto da responsabilidade civil passa atualmente por uma revisão, pois começa a ser visto não só como um meio de propiciar ressarcimento pelos prejuízos causados, mas também como uma maneira de estabelecer uma conduta socialmente desejável. Para o autor, isso se deu a partir do momento em que os danos morais tornaram-se passíveis de compensação pecuniária e também com a aplicação da teoria dos punitive damages (indenização punitiva) no direito brasileiro. Sobre o objetivo da indenização dos danos morais, diz Sampaio Junior:
[...] O objetivo da responsabilidade civil, no que diz respeito aos danos morais, não é o de reparar o dano e recompor o patrimônio lesado, mas sim compensar a vítima. Não há como pretender retornar ao statu quo ante, por se tratar de uma violação a valores imateriais, sem correspondente pecuniário. A ofensa irrogada não pode ser apagada, e o dano causado à honra, à moral, à reputação ou à imagem, não pode ser desfeito. Por conseguinte, a indenização consiste em soma em dinheiro capaz de propiciar à vítima algum conforto, uma satisfação material pelo dano moral que lhe foi infligido. (SAMPAIO JUNIOR, 2009, p. 95, grifo nosso).
Na prática, pode-se observar pelo Recurso Especial nº 1.421.512-MG, o dano moral é reconhecido pela nulidade da cláusula que recusa a cobertura da cirurgia de prótese. No caso, o recurso especial se deu porque o Tribunal de Justiça de Minas Gerais julgou procedente o pedido de nulidade da cláusula, mas negou a compensação por danos morais. Enquanto, o STJ vem reconhecendo a caracterização de danos morais em casos de negativa de cobertura injustificada de prótese, pela dor causada ao paciente que já se encontra em uma situação de fragilidade e, por isso, o STJ deu provimento ao recurso.
Já no Agravo Regimental 602.526-RJ, o tribunal de origem seguiu o posicionamento do STJ reconhecendo a caracterização de danos morais na recusa da cobertura, de maneira injustificada, em caso de cirurgia de urgência realizada por médico ou hospital não credenciado. O posicionamento do STJ é de que esta recusa injustificada caracteriza falha na prestação de serviço e devem ser compensados os danos materiais e morais causados. Desta maneira, o agravo foi improvido sendo mantida a decisão do tribunal de origem.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. 1. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NÃO VERIFICADA. 2. CONTRATO SUBMETIDO ÀS REGRAS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NEGATIVA DE COBERTURA INJUSTIFICADA. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO DE URGÊNCIA. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANOS MORAIS CARACTERIZADOS. SÚMULA 83/STJ. 3. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Não há violação ao art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. 2. Conforme entendimento adotado pela jurisprudência deste Tribunal Superior, em se tratando de contrato de adesão submetido às regras do CDC, a recusa injustificada de autorização para realização de cirurgia de urgência feita por médico ou hospital não credenciados constitui falha na prestação do serviço, caracterizando o dano moral. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL, STJ. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 602. 526 – RJ (2014/0273452-8) Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Data de Julgamento: 03/02/2015, Terceira Turma, grifo nosso).
A teoria da indenização punitiva (ou punitive damages) tem como intenção valorar o dano moral de forma que a punição ao ofensor o desestimule a cometer a mesma infração. A teoria tem origem no direito inglês, e é muito aplicada no direito norte-americano. Discute-se doutrinariamente a aplicabilidade desta doutrina no direito brasileiro, porque o instituto do dano moral não tem por objetivo o enriquecimento da vítima:
A aplicação do punitive damages nos Estados Unidos da América, que na década de 70 até os anos 90 privilegiou a fixação de indenizações em valores muito elevados, passando com frequência da cifra de milhão de dólares, tem servido, por vezes de argumento para a rejeição do caráter pedagógico-punitivo da reparação do dano moral no Brasil. (ZANETTI, 2009, p.96).
Quanto a indenização no direito à saúde, pode-se constatar no Relatório do Agravo Regimental 570.267-PE (2014/0214726-6) do STJ, o relator Ministro Moura Ribeiro afirmando que a verba indenizatória deve ser fixada em montante que desestimule o ofensor, sem que constitua enriquecimento indevido:
Sobre a alegação de ser exorbitante a verba indenizatória, não obstante o grau de subjetivismo que envolve o tema e a ausência de critérios determinados e fixos para a quantificação do dano moral, esta Corte tem-se pronunciado no sentido de que a reparação do dano deve ser fixada em montante que desestimule o ofensor a repetir a falta, sem constituir, de outro lado, enriquecimento indevido. (BRASIL, STJ Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 570.267-PE (2014/0214726-6), Relator: Ministro Moura Ribeiro, Documento 39123097. Data de Julgamento: 02/10/2014, Terceira Turma).
Esta postura jurisprudencial é criticada por Mendonça (2012, p. 90-3), pois para o autor, o STJ ao determinar a função compensatória e punitiva para a fixação do valor do dano moral, sem delimitá-las e determinar a sua composição, utiliza estes termos como recursos retóricos. Desta forma, o autor afirma ser imprescindível avaliar o valor indenizatório de maneira individualizada para analisar se há uma postura punitiva.
[...] a técnica desenvolvida pela corte competente para dar a última palavra em matéria de indenização por danos morais pode não ser a melhor. Favorece-se, com ela, a criação de uma situação de incerteza e subjetividade. E – o que é mais grave – torna-se impossível saber se os montantes indenizatórios fixados são efetivamente capazes de realizar as funções a que se presta a responsabilidade civil, entre as quais a de dissuasão, mencionada apenas genericamente e sem qualquer critério técnico. [...] (MENDONÇA, 2012, p. 93).
Quanto ao objetivo de dissuasão da responsabilidade civil, para Mendonça será atingido quando o autor do dano for responsabilizado na exata extensão do seu dano (2012, p.95-6). Ademais, afirma que a redução da indenização não pode ser mais atrativa do que tomar as medidas necessárias para evitar o dano (2012, p. 103).
Mendonça (2012, p. 111-4) também destaca que as indenizações punitivas são utilizadas em casos nos quais o lesante tem a possibilidade de se esquivar da reparação integral dos danos que provoca, pois o estímulo para a realização destas atividades será excessivo. O autor afirma que Robert Cooter e Thomas Ulen sugeriram a utilização do múltiplo punitivo[3], quando o magistrado perceber que o autor do dano deixou de adotar determinadas medidas quando sabia que apenas uma parte dos lesados demandaria judicialmente.
Diante destas exposições doutrinárias, pode-se notar que a teoria da indenização punitiva não é claramente aplicada, pois, apesar do STJ utilizar-se do dano moral como compensatório e punitivo não determina em seus acórdãos quais valores referem-se a cada fator de compensação dos danos morais.
E os valores dos danos morais ainda são baixos se comparados com os dos tribunais americanos em que a indenização punitiva é aplicada na casa dos milhões de dólares. Conforme o relatório do Recurso Especial Nº 1.421.512 – MG, os valores de danos morais determinados pelo STJ não costumam ultrapassar R$ 20.000,00 não configurando, desta maneira, a aplicação da teoria da indenização punitiva nos moldes americanos.
[...]Após análise de vários dos últimos precedentes desta Corte acerca do tema, todos publicados do ano e 2010 em diante: REsp 1.072.308/RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 10.06.2010 (R$10.000,00); AgRg no Resp 1.088.992/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, DJe de 06.12.2010 (R$10.000,00); AgRg no Ag 1.010.856/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJe de 01.12.2010 (R$8.000,00); AgRg no Ag 1.085.240/RJ, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 15.02.2011 (R$4.000,00); Resp 1.167.525/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJe de 28.03.2011(R$30.000,00); REsp 1.190.880/RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 20.06.2011 (R$15.000,00); AgRg no REsp 1.253.696/SP, 4ª Turma, Rel. Min.Luis Felipe Salomão, DJe de 24.08.2011 (R$4.500,00); REsp 1.109.978/RS, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 19.09.2011 (R$15.000,00); AgRg no AREsp 14.557/PR, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo, DJe de 03.10.2011 (R$8.000,00); AgRg no AREsp 46.590/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 07.11.2011 (R$5.000,00); REsp 735.750/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Raul Araújo,
DJe de 16.02.2012 (R$20.000,00); e REsp 1.304.110/RJ, 3ª Turma, minha relatoria, DJe de 14.03.2012 (R$15.000,00) - e a partir de uma média aproximada dos valores neles estabelecidos a título de danos morais, afigura-se razoável a fixação da compensação nos termos que haviam sido estabelecidos na sentença de primeiro grau, ou seja, R$ 8.000,00 (oito mil reais). (BRASIL, STJ, Recurso Especial nº 1.421.512-MG (2013/03922820-1). Documento 33685152. RELATÓRIO E VOTO. Relatório, p.5. Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 11/02/2014, Terceira Turma, grifo nosso).
Logo, há uma devida indenização punitiva por danos morais, mas as quantias estipuladas pelo STJ não configuram indenizações que fogem da realidade brasileira, condena-se ao pagamento das despesas da cirurgia e pelos danos morais causados. Nota-se a necessidade de equilíbrio nas relações contratuais. Afinal, o direito à saúde é sim um direito fundamental, mas os recursos da empresa (plano de saúde) são limitados e a recorrente interferência do Judiciário pode levar uma empresa a falência, afetando seu equilíbrio econômico-financeiro.
4.1 Ativismo Judicial e os efeitos econômicos das decisões desfavoráveis aos planos de saúde
A eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas tem sido recorrente nas decisões do Judiciário brasileiro e esta postura é classificada pela doutrina como ativismo judicial. Nas palavras de Barroso (2009, p.6) o ativismo judicial pode ser definido como uma “participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.” Ou seja, o Judiciário aplica a Constituição de forma mais ampla possível, atribuindo direitos muitas vezes ainda não propriamente regulamentados pelo Legislativo ou determinando a prática de políticas públicas ainda não instituídas pelo Poder Executivo.
A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2009, p.6, grifo nosso).
Neste trabalho não foi analisada a interferência do Judiciário no âmbito estatal, mas não se pode negar a constante interferência do Judiciário nas relações privadas. Deste modo, cabe aos planos de saúde adotar medidas preventivas para manter seu equilíbrio econômico-financeiro.
Os planos de saúde privados têm recursos limitados e dependem da contraprestação de seus segurados para se manterem economicamente viáveis. Com o aumento do custo na prestação de seus serviços, a lógica é os planos de saúde terem de aumentar as mensalidades, afinal, trabalha-se com o risco de enfrentar uma demanda judicial.
As relações contratuais são regidas pela autonomia da vontade, pela liberdade contratual, mas também são regidas pela boa-fé objetiva e pela função social dos contratos. Como afirmado por Garcia (2015, p. 19), a defesa do consumidor não é incompatível com a livre iniciativa e o crescimento econômico, pois ambos estão previstos como princípios constitucionais:
A defesa do consumidor não é incompatível com a livre iniciativa e o crescimento econômico. Ambos estão previstos como princípios da ordem econômica constitucional, de acordo com o disposto no art. 170 da CF. Com isso, o Código de Defesa do Consumidor procura compatibilizar a defesa do consumidor com a livre iniciativa. Nesse sentido, o empresário somente tem assegurado o livre exercício da atividade econômica (parágrafo único do art. 170 da CF) se respeitar e assegurar os direitos do consumidor. Como exemplo, o empresário poderá elaborar contrato de adesão, estipulando as cláusulas contratuais para o fim de sua atividade, desde que não sejam abusivas. (GARCIA, 2015, p.19).
O objetivo do Judiciário ao interferir nestas relações deve ser o de atingir o equilíbrio das relações contratuais. Por isso, é necessária a análise de cada caso em concreto para estipular a condenação e indenização proporcionais. Não se pode impor a uma empresa privada obrigações que seriam estatais, assim como não se pode impor aos planos de saúde uma prestação desproporcional. Esta é a posição adotada por Ferreira (2011, 5.4):
[...] Por serem contratos privados, aplica-se assim, o princípio da obrigatoriedade dos contratos, que representa a força vinculante das convenções, ou seja, tendo as partes por livre e espontânea vontade decidido firmar o contrato, ficam elas obrigadas a este, porém, restritivamente aos limites por ele estabelecidos. [...]
Os contratos de planos de saúde e suas cláusulas devem representar o limite para a prestação contratual, devendo haver reparação somente quando estas cláusulas se comprovarem abusivas conforme o plano contratado. Como já exposto, o STJ não considera abusivas cláusulas que limitam a cobertura de doenças, mas sim aquelas limitativas de formas de tratamento a doenças cobertas pelos planos.
Como destaca Mendonça (2012, p. 94), ao citar os conhecimentos de A. Mitchell Polinsk e Steven Shavell, a indenização na responsabilidade civil deve ser equivalente ao prejuízo provocado para que não provoque consequências socialmente indesejáveis, ou seja, resultados ineficientes:
[...] Já diante de uma regra de responsabilidade subjetiva, caso a indenização corresponda fielmente ao prejuízo, o potencial causador de danos será induzido a cumprir o parâmetro de diligência exigido, tomando as medidas adequadas de precaução. Se a indenização superar o prejuízo, o lesante em potencial terá incentivos ainda mais fortes para encontrar o parâmetro de diligência. No entanto, caso a indenização seja inferior ao prejuízo causado, o parâmetro de cuidado poderá não ser cumprido, especificamente na hipótese em que os custos de precaução exigidos pelo parâmetro de cuidado forem superiores à indenização fixada, o que resultará em uma dissuasão inferior ao ótimo social (underdeterrence). (MENDONÇA, 2012, p.95).
O Judiciário deve considerar as consequências econômicas da responsabilidade civil, pois suas decisões influenciam nas posturas econômicas a serem adotadas pelas empresas. Quanto mais equilibradas forem as decisões, mais eficientes para a preservação da saúde do segurado serão as respostas dos planos de saúde.
Por todo o exposto, conclui-se pela aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, principalmente diante do ativismo judicial cada vez mais presente no ordenamento jurídico brasileiro.
O direito à vida e a dignidade da pessoa humana compõe o mínimo existencial dos direitos fundamentais sociais como o direito à saúde. Desta maneira, o Judiciário vem aplicando a nulidade de cláusulas consideradas abusivas. O STJ entende que os planos de saúde podem estabelecer as doenças incluídas na cobertura, mas não o tratamento destas.
Nas ações de responsabilidade civil por descumprimento destes contratos, além do ressarcimento por estes tratamentos, vem sendo concedida indenização por danos morais pelo agravamento psicológico do segurado. Contudo, a aplicabilidade da teoria da indenização punitiva ainda não é clara, pois alega-se o caráter compensatório e punitivo dos danos morais, mas estes fatores não têm sido destrinchados nas decisões judiciais.
Questiona-se a recorrente interferência do Judiciário nas relações privadas, porque a proporcionalidade e razoabilidade deve estar presente tanto na ponderação dos princípios quanto na fixação das indenizações. Encargos maiores do que as suas responsabilidades contratuais não devem ser impostos às empresas privadas.
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[1] Seguindo este entendimento: STJ: Agravo Regimental nº 570.267-PE (2014/0214726-6), Agravo Regimental nº 7.865-RO (2011/0093740-9), Agravo Regimental nº 192.612-RS (2012/0128066-5), Agravo Regimental nº 368.748-SP (2013/0219073-0).
[2] Seguindo este entendimento: STJ Recurso Especial nº 1.421.512-MG (2013/03922820-1), Recurso Especial nº 1.364.775 - MG (2012/0271075-0).
[3] O múltiplo punitivo é o fator que calcula o “prejuízo sofrido pela vítima multiplicado pela recíproca probabilidade de responsabilização do causador do dano, ou seja, pela recíproca do erro de execução” (MENDONÇA, 2012, p.113).
Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (PPGD/UFMS). Site: www.ariadne.adv.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Ariadne Celinne de Souza e. Direito à saúde: os limites contratuais dos planos de saúde privados e o ativismo judicial diante da negativa de tratamento médico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2019, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54005/direito-sade-os-limites-contratuais-dos-planos-de-sade-privados-e-o-ativismo-judicial-diante-da-negativa-de-tratamento-mdico. Acesso em: 23 dez 2024.
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