RESUMO: Aparece a figura de Constituição simbolicamente autorizada. São discutidos o papel e o caráter supremo da Lei Fundamental. Optou-se por conceber o sentido de “inspiração” como pano de fundo para a formação do imaginário e da prática implícita na maximização e divinização das normas fundantes do Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Crise Constitucional. Democracia. Autoridade.
ABSTRACT: The symbolically authorized Constitution figure appears. The role and supreme character of the Fundamental Law are discussed. It was decided to conceive the meaning of “inspiration” as a backdrop for the formation of the imaginary and the practice implicit in maximizing and divinizing the founding norms of the Democratic Rule of Law.
KEYWORDS: Constitutional Crisis. Democracy. Authority.
RESUMEN: Aparece la figura de la Constitución simbólicamente autorizada. Se discute el papel y el carácter supremo de la Ley Fundamental. Se decidió concebir el significado de "inspiración" como telón de fondo para la formación de lo imaginario y la práctica implícita en maximizar y divinizar las normas fundacionales del Estado de Derecho Democrático.
PALABRAS CLAVE: Crisis constitucional. Democracia Autoridad.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O PODER SIMBÓLICO DAS DECLARAÇÕES LEGAIS; 3. O ARGUMENTO SÓLIDO DA INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL; 4. CRITICANDO, EM PROVISÓRIO TÉRMINO, O MONITORAMENTO HISTÓRICO: panorama geral das tentativas de “constitucionalizar” o Direito. REFER~ENCIAS.
1.INTRODUÇÃO
“Um país dividido”. Assim foi conceituado o Brasil por grandes contingentes midiáticos e partidos políticos. Dos dois lados, o ódio à corrente oposta. Digladiam-se em nome da Constituição, mas, pelas convicções que têm, não parecem entender muito bem do que essa “coisa defensável” se trata. Lutam incessantemente por votos nas eleições presidenciais de 2018, reclamam mudança e revelam desconforto. Isso é familiar nos países que gozam de instabilidade legislativa. Foi, durante o século XIX, o problema (guardadas proporções temporais e geográficas) da Prússia, conforme menciona Lassalle[1]. A escrita de um punhado de regras quase deontológicas restaria sublime, contudo, isenta das responsabilidades que uma autoridade “de carne e osso” representa, enquanto fator real de poder. Talvez o desafio maior resida no fato de quaisquer manifestações oficiais da vontade coletiva serem emanadas pelo órgão interessado redutível ao legislador humano, imperfeito e corruptível. A classe dos construtores regulamentares do ordenamento jurídico é suspeita. O intelectual duvida, teme pela racionalidade, assim como o estudioso do Direito Público se converte em imprudente, caso negligencie a constitucionalidade[2].
Vale trazer à recordação fato importante, mas, por vezes, deixado de lado: a Constituição – no Brasil – é uma lei[3] de caráter especial. Seu estilo, pois, reside mais no que se constrói a partir dela e menos do hermetismo mágico verborrágico. Passou pelo inebriante clima da redemocratização, recebeu cortes e, por certo, nunca se bastou onipotente, onipresente e onisciente. É resultado do momento histórico, busca reconhecimento e projeta garantias futuras, promessas arraigadas no voto confiante dos grupos populares – merece o apelido “Carta Cidadã”.
Todavia, não há tão simples resolução do impasse: elementos pragmáticos do poder se opõem a formas jurídicas, dando respaldo a duas ordens opostas – a dos fórums, tribunais e cátedras e a das ruas, campos e classes (HESSE, 1991). Incongruências subsistem no complexo normativo, sendo óbvia a constatação de que o Direito Constitucional – e seu objeto científico de estudo, a Constituição – não podem ser reduzidos à factual constatação de situações. “Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.” (LASSALLE, 2001, pp. 10 e 11) Simplificando, temos um ingênuo convite à conformação do real à justificação que lhe daria o ideal (dever-ser) científico, digno dos lamentos epistemológicos. Se fosse irrecuperável a mutabilidade, que relevo teria a mera fixação de palavras “sem força” numa folha de papel?
Se os exércitos e canhões[4], uma influente nobreza respeitada[5], os proprietários de grandes áreas industriais[6], os banqueiros, a consciência coletiva cristalizada na cultura vulgar[7] e “nos casos extremos e desesperados”, nós – o povo[8] – formamos a única validez autoproclamada “Constituída” (com “C” maiúsculo), que exclusivamente importa se for impressa nas gráficas estatais, com tinta e celulose, perderia o sentido falar-se em “supremacia” da Lei Fundamental? A resposta é afirmativa. Mas, há livramento do cárcere teórico, fundado em disputas basilares para a existência, inclusive de um ramo técnico autônomo, a saber, o jusconstitucionalismo moderno?
Neste instante, julga-se salutar dizer que uma isolada compreensão dos fenômenos não conduzirá a respostas satisfatórias. O pluralismo será a chave cognitiva reveladora dos prováveis limites refratários do jurídico e do político. Sem embargo, não há concretude sem regras gerais que a orientem (leis físicas, morais, institucionais). Considerando a “espirituosidade” no povo e sua condição inventiva para sinalizar concepções acerca do regime, dos ordenamentos e das opiniões modulares cabíveis ao futuro nacional, nota-se exequível liberalidade na sugestiva gestação do meio-termo na matéria pública mandamental, a saber, nem tanto dirige-se o barco ao porto nebuloso das tempestuosas inclinações circunstanciais, nem tampouco se arrisca nas águas profundas de ideologias longínquas. Sabores econômicos, civilizatórios e culturais definem, em máximo contorno positivo, o resultado final de rigidez (ou flexibilidade) que se consegue imprimir à fluída unidade formal, regida simbolicamente[9]. “A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade.” (HESSE, 1991, p. 14). Comandar a nação requer equilíbrio que não cabe em palavras escritas e, na ambivalência, só pode prosperar quando não ficam os súditos do Estado mergulhados no acaso quotidiano da realidade, às vezes, cruel inimiga.
Voltemos[10] ao ponto de levante: a autoridade (leia-se autorização prática) da Constituição. Epístola Fundante do ente material que se pretende converter em Estado Democrático de Direito não pode confundir-se com meras proposições, dobrando-se ao arrepio do Pacto originário e contorcendo-se mediante adaptações mirabolantes da “vontade de Constituição” original. Pela “vontade de poder” não se fazem domínios perpétuos, contudo, se forem efêmeras demais as conclusões tiradas do momento histórico no qual se modifica a senda vigente, resta o caos.
De nada servirão as prolixas e extensas motivações articuladas com aparência de verdade dogmática, melhor é o simples e conciso essencial. Nem é perfeito o unitarismo centralizador, corolário do medievo, muito menos prosperou o federalismo puro, fragmentário. O modelo posto nos Estados Unidos da América do Norte se mostrou perene até agora, sendo, consequentemente, uma referência típica ilustrando quão esparsas (momentosas exceções) se tornam revisões, emendas e “reparos” no mandamento geral, desde que os líderes locais (estaduais) exerçam costumes, decidindo segundo patamares igualmente restritos a tutelas governamentais e jurisdicionais situadas em regiões cujos valores não se misturam inteiramente – assim como água e óleo se distinguem a olho nu – aos de outra localidade. A polêmica Lassalle versus Hesse que exploramos é a figura de melhor alcance para dizer que um mínimo preceito, de ética e natureza, se faz obrigatório à respeitabilidade da fonte jurídica em ruptura – que é o choque fato + (somado) a prescrições. Cruzada histórica segue no recalque dos pouco inclinados à obediência do ramo publicista (fundado como frágil apêndice do Direito Privado romano) que, mormente nas sociedades latino-germânicas, avança triunfante quanto ao confronto ser/dever-ser. O dever (otimizado) transmite ao real aquela nobreza imperial de uma exultação na fé. As coisas sofrem mudanças e se mostra de bom alvitre fornecer algo duradouro, mais firme que um objeto destrutível. “A Constituição jurídica não significa simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassalle.” (HESSE, 1991, p. 25). Mesclam-se o ser e o dever-ser, materialmente um sobrepujando e imperando sobre o outro no mesmo passo em que o segundo transborda, cristalizando sua mais-moral e contrariando, dialeticamente (a antítese da pragmática) o status quo. “Em suma, vê-se que de modo mais meticuloso do que Lassale, Hesse faz uma coordenação entre o fator social, o ser, e o fator jurídico, dever ser”. Continuando na linha racional supra, vale a ênfase na repetição: “Logo, a Constituição jurídica não é mera folha de papel, como dispunha Lassale, mas sim uma interação coordenada entre a Constituição social e Constituição jurídica, que se encontram justamente na correlação acima dita”. (SANTOS, 2018)
Ademais, é estéril toda legislação ordinária, decreto, medida provisória, portaria, resolução e – com reiterada acentuação – a Constituição mitigada, estilhaçada e ignorada por seus destinatários. A crise (neo)constitucional deve ser superada imediatamente, sob pena de falência.
a constituição é a ordem fundamental jurídica da coletividade. Ela determina os princípios diretivos, segundo os quais deve formar-se unidade política e tarefas estatais ser exercidas. Ela regula procedimentos de vencimentos de conflitos no interior da coletividade. Ela ordena a organização e o procedimento da formação da unidade política e da atividade estatal. Ela cria bases e normaliza traços fundamentais da ordem total jurídica. Em tudo, ela é „plano estrutural fundamental, orientado por determinados princípios de sentido, para a configuração jurídica de uma coletividade. (HESSE, 1998, p. 37 apud SOUZA NETO, 2018, p. 16)
Essa “Vontade de Constituição” ainda que dependa inicialmente da boa-vontade dos atuais ocupantes do Poder, aos poucos irá adentrar na consciência coletiva da população, ocupando espaço de destaque na irradiação da normatividade inerente a uma Constituição séria (que tenha efetivamente intenção e poder de eficácia).
Hoje certamente se tem a consciência de que a Constituição representa um bem imaterial imprescindível para a uma sociedade democrática. Ademais, até se acredita que ela possa mudar a realidade por meio da imposição de certos deveres, exercícios cotidianos, para o atingimento de suas finalidades. (SOUZA NETO, 2018, p. 19)
É singular dever resgatar, livrar as Constituições da periférica pré-condição de mera “profecia futurística”. O engessamento pretérito da ordem constitucional (“exceção” de 1964 a 1987) cede lugar e é substituído pela democracia, centro de legitimidade pós-1988. Livre carga hermenêutica e preponderância das aberturas semânticas moldariam o gérmen simbólico da concreção “real”, fortaleza do pós-moderno social-constitucionalismo “líquido” (MENÉNDEZ, 2018).
2.O PODER SIMBÓLICO DAS DECLARAÇÕES LEGAIS[11]
As fórmulas pelas quais o mundo ocidental veio a construir seus rumos normativos complexos são condicionadas por representações simbólicas do enérgico senso-autoridade, que granjeou, por séculos, respeito social e escopo político privilegiado. As narrativas contemporâneas sobre o momento caótico no qual se situam os ditames legiferantes, emanações do voto popular representativo (enquanto instrumento que leva, às instituições produtoras de leis, seus remetentes) ordinário da república. Toma-se, como redutível cosmovisão, o “poder constituinte” descentralizado, como tipo do “comando normativo” (originário e derivado). Toda e qualquer proposição definidora e pretensamente portadora de objetividade é suportada pelo entendimento materializado da convicção jurídica.
Nesse sentido, o Estado progressivamente ingressa como motivo de seleção, apropriação e condução dos planos politicamente avençados. “O Estado é manifestação, talvez a mais complexa, do fenômeno político que é próprio e decorre da convivência dos homens com seus semelhantes, condição primeira de sua formação e perpetuação como espécie”. (COELHO, 2014, p. 267) A dimensão idealista (Hegel), segundo a qual há uma Carta Estatal e uma fundação social realizada não prosperou, pois seu caráter aparentemente contraditório manteve isoladas as duas “metades” complementares – tese e antítese – do instinto dialético juridicamente observável. O político antecede, só em manifestação sensível, o jurídico. Não lhe é estranho nem ignora variações existenciais intersubjetivas. Saindo do pressuposto reducionista que encerra na Constituição todas as encantadoras majestades da pureza semântica, inteireza cognoscente e validade universal, ter-se-á a coletânea de espécies legais (da lei complementar à portaria ministerial) cuja eficácia poderia, muito bem, ser confundida e manifestada graças ao mesmo “comando supremo” que, em última instância, transforma as palavras declaradas naturalmente em sentenças fixas a serem obedecidas. Logo, ao “[...] poder que surge como confirmador da estrutura do Estado e que confere direitos e deveres aos cidadãos e impõe limites à própria soberania do Estado, dá-se o nome de poder constituinte.” (COELHO, 2014, p. 268) E não só é esse impulso revolucionário que modela o ente governamental da nação (em democracias), mas, inclusive, todas as intervenções da ordem jurídica no regular curso dos eventos sociais. É vantajoso substituir o “constituinte” por outro termo, menos romântico e mais próximo das vivências (tanto parlamentares quanto cívicas): “poder de lei”, em sentido largo.[12]
Mediante o processo unificador acima suposto, não se repreendem os alicerces da Lei Fundamental em articulação da soberania determinada pelo poder público, assistente nato das maiorias e das minorias nacionais, quando estas se encontram vulneráveis aos arbítrios letárgicos visíveis durante crises sediadas na insustentabilidade policontextural das bases políticas, que abandonam coesão[13]. O cerne do problema terminológico reside no generalista conformismo dogmático tradicional, que deifica o discurso constitucional e quer homogeneizar os interesses. É preciso fazer, como artífice motivado, uma epistemologia nova, metodologia legítima e abstraída sem excessiva ilação hipotética pseudopopular. O povo, afinal, passa de ente deontológico para ator seminal do espetáculo público.
Durante a Revolução Francesa, surgiu como cristalino rio sociológico, o duplo elemento – constituinte/constituído. Porém, não havia, no hegemônico intento classificatório do “terceiro estado”, uma justificativa suficientemente resistente às pressões burguesas (clamor por liberdade, igualdade e fraternidade econômicas protoliberais) que, passados 200 anos, ditariam regimes e conduziriam governos europeus à glória ou à guerra. As reunificações na Itália e na ex-Prússia (a ser convertida e expandida como Alemanha) deram impulso à formulação dos discursos e modelos constitucionais que, mais tarde[14], revolucionariamente, transmutaram conteúdo e material histórico em teses inclusivistas (sociais de direito) favoráveis à manutenção de certos espaços tradicionais e, por outro lado, operacionalização modernizadora dos institutos vetustos (o Parlamento, a decisão magistral). Por liberalistas tendências, obediência “contratual” recai no seio da vindicação teórica do novo Estado burguês, que não enxergará, nas massas, alguma transcendência além do óbvio trabalho maniqueísta imposto pela dualidade individuo X comunidade vazada no combate de boas práticas contra o mau encarnado nas tentativas anti-hegemonia.
A magnitude, novamente, sobranceira e simbólica da manutenção alegórica das normas (regras e princípios) gerais e, inclusive, constitucionais, é, hoje, clara. Apesar de relutâncias doutrinárias, o “acoplamento” estrutural – direito + (adicionado à) política – permite aprendizagem e diálogo entre conteúdos traduzidos pelo autofechamento (parcial) das influências recíprocas entre sistemas autônomos.
Narrativas epistêmicas, sublimadas pelo Leviatã ilustrativo (Hobbes), ordenam confusão entre limites ficcionais e realismos somáticos (profanos já no laicismo clamado) instintivos hermetismos de dominação[15]. As promessas imperiais e republicano-democráticas não foram cumpridas, o que leva, expressamente, à defesa constante da diluição constitucional repelindo, no juízo prático, fins e direitos “igualitários” redutíveis pela harmônica “vontade potencial” que se ignora ou, no mínimo, é só virtualmente um “ato consumado” no interior da dinâmica social plurinominal.
3.O ARGUMENTO SÓLIDO DA INSPIRAÇÃO CONSTITUCIONAL
Justificação significa enunciação de posturas, conjunto de práticas políticas jurídicas e sociais que, razoavelmente, põem “no regime”, ou seja, determinam os limites e funções a serem levados adiante, a ideia de autoridade classificada como valor – democrático, autocrático ou em formação. Em seu tempo, tornar justo quer significar, também, solidificar um momento histórico, fragmento preservado dos implicados na denominada (por Hesse) “vontade de constituição”[16], que sofrerão influência das predisposições outurgadas por interpretações direcionadas a criação de fatos experimentais que, futuramente, reproduzirão (os fatos como papel concreto da vida) dever-ser nos tribunais (controle jurisdicional) e nos foros públicos (esfera cidadã).
O alcance de todo princípio, decisão e direito positivado libera um sinal: conhecer e reclamar, desde o quotidiano, um sentido para a normatização ordinária, em geral, e para a Carta Republicana Constitucional, em particular, é parte essencial da propriedade respeitosa, porque cívica, incluída na práxis legal, que há de ser retirada do monopólio classista (poder-se-ia imaginar “jargão de elite” no formalismo jurídico) e submetida, defensivamente, a livres hermeneutas, grupos, coletividades e indivíduos plurais, outrora subalternizados.
Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição. (SANTOS, 2018)
Mens legislatoris, eis o mito que ludibria a muitos. No caminho semiológico dos conceitos, é improvável localizar consenso sobre o universo produtor das leis. Decorrência lógica do adjetivo “legal” enquanto cosmo possível, a função abstrata de dizer o Direito (iuris) motiva obediência “fidedigna” ao ordenamento enquanto integração de substâncias regulares e mandamentais A sociedade Moderna e, por extensão, o modelo desenvolvimentista brasileiro, não consegue funcionar independente das corruptelas políticas e existenciais na visão fadada à tragédia. Verdadeira eficácia do Direito (sobretudo Constitucional) nem sequer transmite ao plano real sua vigorosa propriedade – uniformemente variada – e, criticamente, infere-se “recodificação” nas vertentes teóricas irreconciliáveis. Exemplo: o desmembramento constitucional proposto por Richard Albert (RIBEIRO, 2018), que, embora não seja proposta imediatamente dialogada com a conjuntura brasileira, dá respaldo a interessantes saídas “intuitivas” quanto ao desprestígio dos “fundadores inspirados” da Nova Face Redemocratizada (1985-presente)[17].
Remonta às origens do Estado Constitucional de Direito a certificação de lacunas em toda sustentação jurisdicional ou “leiga”. Portanto, compreensões abertas e petrificantes determinismos em cláusulas legisladas (majoritariamente aceitas, em tese) não apresentam resistência irretocável. Isso resvala na insegurança, questionadora de tudo pretensamente encerrado, na vaporização das fontes “alquímicas” antes surpreendidas (no teísmo, na realeza) pelas revoluções de humores populares desestruturantes e hoje renascentes (no presidente idolatrado, nos redentores ungidos pelo voto) quando novas lógicas e contradições fendem o abstrato “equilíbrio das esferas celestes” que julgávamos(?) eterno. O traço redutor dessas falhas concretas, naturalizadas por anos sem vigência perfeita da qualificação (espaço vital) dos meios e fins nacionais brasileiros, seria controle de constitucionalidade, uma intervenção brusca no rumo das coisas.
Falar em controle da vinculação constitucional obrigatória na formatação, tramitação, promulgação, publicação e entrada de leis (ou atos normativos equiparados a espécies coercivas) é dizer que a Constituição projeta-se sobre todos os ramos do Direito e, em último arremate, que há constitucionalização das searas públicas (tributária, penal, internacional humanitária, etc) e particulares (questões civis de foro íntimo). Originalmente, prevalecia o tipo difuso de confrontação entre duas expressões legisladas – a critério do julgador restava assinalada a “verdade” nos casos levados à Corte. Segue o relógio das épocas e, no século XX será premiada a concentração dos feitos cuja natureza rogava por uma especialização máxima nos conhecimentos e tratamentos “interdisciplinares” (Direito/Política) umbilicalmente amarrados nas Cartas Régias (Constituições de tantas virtudes e ilusões quantos são os países e dilemas terrestres): eis o poder concentrado nos Supremos Tribunais, recinto-mor da justificação hierarquicamente superior à justiça “comum”. Tendências (multifocais ou mistas) aportam no mundo contemporâneo, inclusive auxiliando, com peças repostas, a montar um quebra-cabeça latino-americano – em disputa, as correntes americana e europeia – dependente das repercussões locais atribuídas ao neoconstitucionalismo. O Brasil, vale a digressão, adota movimento “dual”, a saber, utiliza tanto uma moderação hermenêutica liberalizante, que permite incidental nulidade “entre partes” de expressão contrária ao Texto Maior a ser declarada segundo juízos e tribunais “menores”, quanto a declaração direta de (in)constitucionalidade do diploma nocivo, que será (o erro do legislador ou administrador) eliminado[18] pelo Supremo Tribunal Federal. Isso enriquece o repertório de tautologias e distorções internas no campo das decisões oriundas, tanto do próprio STF quanto dos fóruns localizados em comarcas e varas das mais de cinco mil cidades localizadas em território federado pátrio.
Nenhuma opção antagônica à concorrente e, muito menos a mistura generalizada de ambas, satisfaz a coletividade cidadã. O liberalismo elitista e a pragmática ética conservadora da eleição semidireta resumida no ritual do voto merecem ser afetados por quebra radical. A solidez da “representação argumentativa” (Robert Alexy nas palavras de Roberto Gargarella, este último citado por MURILLO, 2018, p. 113) é arrimo ontológico do Constitucionalismo Popular, que não tem uma resposta trancada argumentativamente correta, contudo divide-se em tantas quantas forem as deliberações necessárias, sem abandonar o respeito à transcendente organização processualmente “imparcial”[19] (sem desvirtuar o debate democrático nem discriminar diferentes pontos de vista) implicada na ação de todos os afetados pela excelsa Autoridade Interpessoal sobre o mundo epistêmico da vida, planeta tão próximo e, sem remédio, tão distanciado pela fina incisão “negra” reposta na geracional dúvida – como se traduzirá a memória.
4.CRITICANDO, EM PROVISÓRIO TÉRMINO, O MONITORAMENTO HISTÓRICO: panorama geral das tentativas de “constitucionalizar” o Direito
Compreender o ofício historiográfico, ciência que escreve e lê vidas (batalhas, vitórias, fracassos e cotidiano) é incumbência demasiadamente conflituosa. Sentem-se, os atores em sua época, personagens da arena existencial (“nós” presentes e “eles”, os pais-fundadores), vítimas da omissão ou do acaso arbitrário que o historiador às vezes, inconscientemente, teima em manter. Advertimos, porque não fazemos parte do rol especialista na recomposição documental, fraqueza pela advertência que um tópico de ensaio conforma: generalização, sempre a velha tentativa de dizer tudo simplesmente. Como soi acontecer no labor jurídico, também aqui a história é invocada para “ligar” traços subjacentes nas tratativas politológicas (neologismo?) do mundo constitucionalizado. Os pioneiros (tribos hebreias pré-romanas) e, no Brasil, o império (coroado sob tutela norte-americana em 1824 graças à criatividade do poder moderador) não se distinguem tanto pelos séculos quanto são comparáveis na medida das suas instrumentalidades locais.
Cronologicamente, há quem tente definir Constituição absolutamente, relativamente, positivamente, idealmente. Mas, seja qual for o modelo selecionado em cada região do globo, as origens parecem-nos fluentes insights cuja pertinência satisfaria, derradeiramente, o ambicioso “querer” da autoridade orgânica, explicada tão-so por ela mesma. Nessa busca filosófica (e filológica) da “totalidade” monolítica do Estado – mero rebento das necessidades temporais –, os alemães (SCHMITT, 2003) legaram pontos sobressalentes que, sem prejuízo das limitações, até hoje acham-se reproduzidas nos manuais direcionados a estudantes de graduação e pós-graduação. É clássico o entendimento de nascimento da constituição (a) mediante imposição unilateral do agente encorpado no Poder Constituinte ou (b) através do pacto entre vários entes.
Constituição e Estado foram gestados juntos. Durante a “fase dos segmentos” (suspiros finais do medievo – séculos XIII a XVI), as classes pouco a pouco perdem identidade genealógica e vão constituindo uma “contratualização” dos módulos administrativos privados. O velho cânone hierárquico (se quisermos, publicamente embrionário, enquanto regente das vidas homogêneas) paulatinamente vai perder substância em favor das transformações disciplinares e do liberalismo vindouro. “La unidad política como tal, se había hecho problemática en la realidad y en la conciencia. La vieja constitución feudal militar se había disuelto, haciéndose independentes en gran medida los vasallos.” (SCHMITT, 2003, p. 66) A Magna Carta inglesa de 15 de julho de 1215 é marco da nova fase “ensolarada” que o Direito viverá, melhor ainda, dos limites que notarão a sinfônica ordem projetada à moda heterocompositiva. O Rei (ente sacro do governo, hoje) suportará concessões (direitos e deveres previamente postos à fronte do homem comum) para sobreviver. Essa trama parece, grosso-modo, ser a longa trajetória das alegadas “invasões” do Direito Público, leia-se, Constitucional(izado), na propriedade agrária, familiar, moral, corporal do cidadão moderno, legatário do Renascentismo pré e pós-industrial.
Fragmentárias ou gregárias, as situações alternativas fazem do constitucionalizado um valor menos ou mais forte, respectivamente. O Brasil, com experiências insólitas (sete Cartas materialmente rasas, esporádicas – Diplomas Supremos em 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988 – e uma fratura expositiva do hiato 1969-1987) impressiona, quando comparado a centenária federação, liderança dos Estados Unidos. Estabilidade ao norte, golpes ao sul. É inviável traçar um encadeamento lógico para representar as “escolhas de ação inovadora” em cada momento ímpar. Nem sempre os ainseios populares eram efervescentes, nem sempre o Poder emanado dos Chefes (de Governo e Estado) comprovou real motivação para alterar o status. Por isso mesmo as tímidas lições doutrinárias fundamentadoras do itinerário “glorioso” nas Grandes-Normas jamais convergiram. Falta coesão.
Dinâmica ramificação dos domínios de validade captados pelos estados-nações problematizam querelas e “sugam” energias que, no caso da libertação constitucional em voga, acumulariam e construiriam abordagens totalizantes, includentes até o topo dos direitos fundamentais. As instituições, produtos das ansiedades setoriais gradualmente modificadas, permanecem inauditas, esperando “diferenciação funcional” perfeita (na Sociologia). O curso das formas temporais não é retilíneo, curvando-se procedimentalmente. Fazer a diferença, no sentido empírico das vivências pretéritas bem aproveitadas, significa olhar o racional futuro como se aprendizado anterior dirigisse certeza na posterior realização (alimentação heterotrófica do sistema formalmente constituído) da ideia geral bem-estar. O que importa, no fundo, está na superação do posto, enxergar além das sinopses românticas (heróis das conquistas parlamentares ou corporativistas foram desmascarados), indo contra as fantasias, aproveitando críticas sem esquecer – nem saudosamente imitar – o eterno retorno das pulsões “espontâneas” juridicamente coordenado.
Dada a colisão dos fatos (pré-história, Idades registradas e, hodiernamente, sessões televisionadas marcantes, dignas da internauta opinião “senso comum”), limitar-se a datas é consecução de objetivo supérfluo quando única ferramenta debatida. Autores já fizeram, magistralmente, conexão entre razão e decisão (os romanistas) e, nas Faculdades de Direito, a análise propedêutica enfrenta, apesar das restrições, mais preceitos metodológicos reveladores das sendas (pontes) caóticas entre “ontem” e “hoje”. Os codificados instantes da Constituição servem, testados, para ofensivas e sanções improváveis, metáforas ocultas na resignificação frenética do longevo amanhã.
5. REFERÊNCIAS
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SOUZA NETO, Gentil Ferreira de. A força normativa da constituição, judicialização das políticas públicas e o compromisso significativo. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, 2018. Disponível em: <http://dspace.idp.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/2446/Disserta%C3%A7%C3%A3o_Gentil%20Ferreira%20de%20Souza%20Neto_DIREITO%20CONSTITUCIONAL_2018.pdf?sequence=1>. Acessado em 14. ago. 2018.
[1] Em A Essência da Constituição, um célebre opúsculo dirigido ao público leigo e aos líderes sindicais, fica patente o pessimismo. “Lassalle não mostra muito otimismo com as possibilidades e potencialidades do povo desorganizado: os servidores do povo são retóricos, os dos governantes são práticos utilitários e oportunistas.” (LASSALLE, 2001, p. xvi).
[2] “Desacredita da capacidade do legislativo para emendar as constituições, porque provocará sempre reações, da mesma forma que desacredita que as assembleias nacionais – que em um único momento ele [Lassalle] chama de assembleia constituinte – possam romper o trágico drama das contradições entre as forças que apoiam a Constituição real e a consciência nacional rebelada.” (LASSALLE, 2001, p. xviii) Ora, a flagrante crise da tripartição dos poderes (Montesquieu) não é tão antiga quanto poderiam pensar nossos jovens, recém-lançados nos bancos de bacharelado. Bem diferentemente, vozes bradavam censurando tal diretriz já no momento revolucionário francês (1789) e seguem mesmo hoje (2019).
[3] Prova disso é que não se trata de imutável consagração principiológica nem de livro teológico, segundo demonstram inúmeras emendas e o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
[4] Cfr. LASSALLE, 2001, p. 12.
[5] Cfr. LASSALLE, 2001, p. 13.
[6] Cfr. LASSALLE, 2001, p. 14.
[7]Cfr. LASSALLE, 2001, p. 16.
[8] Cfr. LASSALLE, 2001, p. 17.
[9] No próximo item, ficará mais claro o entendimento dos “símbolos”.
[10] Em certos momentos, a linguagem pessoal é colocada. Isso ocorre para inserir o leitor no franco diálogo com o autor destas linhas, pois não há objetividade nem subjetividade absolutas em ciências humanas, mormente, nas produções delas servidas.
[11] Remete-se o leitor interessado no aprofundamento temático à obra, clássica por sua modernidade, A Constitucionalização Simbólica, de Marcelo Neves (1994), que resgata, partindo do sociólogo alemão Niklas Luhmann e sua teoria sistêmica, a crítica sobre interfaces política-justiça que violam flagrantemente a neutralidade ideológica relativa que o Estado presume guardar. Nesta pesquisa, optou-se por outro trajeto. Não se levou às últimas consequências a separação entre “legislação simbólica” e “constituição simbólica”.
[12] Ou “força de lei”, noutro sentido, mais filológico, conforme sugere Jacques Derrida em seminal livro que não pôde ser consultado nesta ocasião.
[13] “O poder constituinte seria então atributo da nação e expressão de sua soberania e que ao elaborar uma Constituição não estaria preso a limites preexistentes”. (COELHO, 2014, p. 268) Inexiste, pois, uma clara distinção entre as naturezas a) da cinergia geratriz que conduz um povo à sua Constituição e b) da propositura, mediante seleção popular indireta dos projetos ideológicos que serão convertidos em leis a serem cumpridas individualmente pela (quase) totalidade dos cidadãos, O Código Civil ilustra bem as dificuldades em se permanecer atribuindo caráter etério aos gestos criadores do mundo jurídico, bem como os microssistemas dele filiados – consumerista (Código de Defesa do Consumidor), infanto-juvenil (Estatuto da Criança e do Adolescente), feminista (Lei Maria da Penha), etc. Os emgenhosos procedimentos críticos do transdisciplinar alvo específico constitucional tecem as seguintes imagens: 1) o poder constituinte é capacidade de retorno real, organização estrutural móvel e 2) esse mesmo aborda uma potência criadora do ser. “El poder constituyente constituye la sociedad, identificando ló social y lo politico en un nexo ontológico.” (NEGRI, 2014 apud FORERO-MEDINA e SANDOVAL, 2018, p. 79, itálico acrescentado)
[14] Mormente após a Primeira Grande Guerra (1914-1918).
[15] Anular singularidades incômodas parece ser o privilégio inacabado de Leis Fundamentais rígidas, escritas, semânticas, analíticas e jovens (como a brasileira).
[16] Vide o referido na p. 16 desta monografia.
[17] Cfr. Item 3, infra.
[18] Quando o dano produzido for irremediável, a lesão será mitigada ou cessará a produção de seus efeitos.
[19] Tecnicamente, a deliberação é comunicação parcial, aceitando que ela levará em conta as vulnerabilidades subjetivas.
Advogado (OAB-CE, inscrição nº 38.063) membro de comissão temática "Ensino Jurídico" da Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Crato. Mestrando em Educação, especialista em Direito das Famílias (2018) e em Direito Constitucional (2019) pela URCA (Universidade Regional do Cariri), Graduado em Direito pela mesma IES.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Ramiro Ferreira de. Cadê a autoridade da Constituição? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 dez 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54014/cad-a-autoridade-da-constituio. Acesso em: 23 dez 2024.
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