HARUO MIZUSAKI
(Orientador)
RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso tem como principal objetivo a análise da soberania do tribunal do júri, se este é um princípio absoluto ou não. Porém, para chegar ao resultado será necessário tecer estudo com relação à evolução histórica do instituto do tribunal do júri no ordenamento jurídico brasileiro, abarcando todas as constituições brasileiras anteriores a de 1988. Posteriormente, será feita uma abordagem do procedimento do Tribunal do Júri, que é dividido em duas fases, ou seja, considerado bifásico. A primeira fase é denominada de fase de acusação (judicium accusationis), que abrange a fase do inquérito policial, do oferecimento e recebimento da denúncia ou queixa, da defesa e instrução, e finaliza com uma decisão de pronúncia ou impronúncia. Em seguida, caso o réu seja pronunciado pelo juízo competente, será encaminhado à sessão de julgamento de mérito. Importante ressaltar que os jurados julgam matéria de fato, ficando a cargo do juiz presidente aplicara pena de acordo com o veredicto proferido por eles. Desta forma, condenado ou absolvido, tanto o réu quanto a vítima (ou parentes), terão em algumas hipóteses o direito de recorrer da sentença proferida pelos jurados. Diante de alguns casos, verifica-se que a soberania do tribunal do júri, por diversas vezes é mitigada ou relativizada, de modo a colocar em dúvida o mandamento constitucional. Desta feita, o presente trabalho tem como objetivo trazer à análise do posicionamento doutrinário e jurisprudencial em casos que a soberania do tribunal do júri não é respeitada, ou seja, tornada relativa.
Palavras-Chave:Tribunal do Júri. Relatividade. Crimes dolosos.
ABSTRACT:The present work of completion of course has as main objective the analysis of the sovereignty of the jury court, whether this is an absolute principle or not. However, to reach the result it will be necessary to study in relation to the historical evolution of the jury court institute in the Brazilian legal system, encompassing all Brazilian constitutions prior to 1988. Subsequently, an approach will be made to the procedure of the Jury Court, which is divided into two phases, that is, considered biphasic. The first phase is called the prosecution phase (judicium accusationis), which covers the phase of the police investigation, offering and receiving the complaint or complaint, defense and instruction, and ends with a decision of pronunciation or inpronunciation. Then, if the defendant is pronounced by the competent court, he will be referred to the merits trial session. It is important to point out that jurors judge matter in fact, being in charge of the presiding judge to apply the sentence according to the verdict given by them. Thus, convicted or acquitted, both the defendant and the victim (or relatives), will have in some ways the right to appeal the sentence handed down by the jurors. In the face of some cases, it turns out that the sovereignty of the jury court is repeatedly mitigated or relativized, in order to question the constitutional commandment. This time, the present work aims to bring to the analysis of doctrinal and jurisprudential positioning in cases that the sovereignty of the jury court is not respected, that is, made relative.
Keywords: Jury Court. Relativity. Willful Crimes.
INTRODUÇÃO
Desde a antiguidade, há indícios de que povos da Grécia ou Roma antiga reuniam-se em grandes praças com o intuito de submeter a julgamento aqueles que por ventura descumpriram o pacto social firmado entre eles, ou praticavam algo contrário e violador da cultura ali vivida por todos.
Com o passar do tempo, o julgamento neste formato, ou seja, não só realizado por grandes autoridades, mas sim trazendo parcela da sociedade para que atuasse no “judiciário”, e assim julgando os seus pares, fora passando por diversas modificações até chegar aos moldes que são hoje, denominado Tribunal do Júri.
Nos dias atuais, a forma de proceder com o procedimento e até mesmo a maneira de como é instituído o instituto do Tribunal do Júri, percebe-se a diversificação entre os países. Cabe então a cada país, constituir o tribunal em questão, do melhor modo possível de acordo com o costume local e a legislação penal e processo penal vigentes.
O presente artigo visará o estudo acerca do Tribunal do Júri brasileiro, mais precisamente com relação a sua soberania e a dos seus veredictos. Para que isso aconteça, será necessário abarcar a evolução histórica do instituto aqui no Brasil, analisando como cada constituição brasileira tratou acerca do tema ou até mesmo se deixou de tratar.
Também serão tecidas argumentações sobre o princípio constitucional da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, abarcando se é um princípio absoluto, a possibilidade de coexistência com o princípio do duplo grau de jurisdição sem que um exclua ou diminua a capacidade jurídica do outro.
Além disso, a competência do Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, a qual, de antemão está prevista constitucionalmente. Serão especificados quais são esses crimes, delineando a sua base legal e algumas peculiaridades, como por exemplo, podem ser submetidos a julgamentos os crimes em questão na sua forma tentada ou consumada, somente não quando considerados culposos, frisa-se que são levados a julgamento sob o rito do Tribunal do Júri os crimes dolosos contra a vida.
Posteriormente, tecer-se-á o estudo do procedimento bifásico do Tribunal do Júri. Quais são os atos que são realizados na primeira fase e as decisões que podem ser proferidas pelo juiz competente nesta fase. Em seguida passa-se a segunda fase, conhecida como a de julgamento onde o Juiz-Presidente juntamente com os sete jurados sorteados dentre os vinte e cinco convocados realizaram a sessão de julgamento, onde o acusado poderá ser absolvido ou condenado do crime que lhe é imputado.
Por conseguinte, serão expostos os casos em que se entende haver a relatividade da soberania do Tribunal do Júri e dos veredictos emanados pelos jurados, assim como os casos em que não haver qualquer violação a soberania do veredicto se por ventura forem questionados por meio de interposição de recurso de apelação, pelo Ministério Público ou assistente de acusação contratado pela vítima ou seus familiares.
1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRIBUNAL DO JÚRI
O surgimento do Tribunal do Júri no mundo jurídico não se sabe com exatidão, porém a doutrina presume que nos moldes parecido com o atual, se deu com a Magna Carta de 1215 com o rei João Sem Terra, na Inglaterra, segundo o fundamento de que “Ninguém poderá ser detido, preso ou despojado de seus bens, costumes e liberdades, senão em virtude de julgamento de seus pares, segundo as leis do país” (citação por Nucci em seu livro Processo Penal e Execução Penal de 2016). Tendo como interpretação a busca por um julgamento estatal menos arbitrário e consequentemente mais imparcial.
Com a Revolução Francesa em 1789, o instituto propagou-se pela Europa até chegar em outros países, inclusive nos da América Latina, conforme leciona o autor Guilherme Nucci (2016, p.437).
No Brasil, o Tribunal do Júri fora instituído pelo príncipe regente à época, com a criação da Lei de 18 de junho de 1822, que tratava da competência para processar e julgar os crimes de imprensa. O tribunal era composto por 24 juízes de fato, os quais eram escolhidos entre cidadãos de respeitável reputação e considerados bons.
Com a Constituição Imperial de 1824, manteve-se o tribunal do júri, mas ampliando a sua competência para julgamento de mais fatos na espera cível e criminal, inclusive os dolosos contra a vida. Essa competência esteve prevista nos artigos 151 e 152 da referida Constituição. Deve-se pontuar aqui que a Lei do Império n. 261/1841, em seu art. 54, não previa fase de acusação, determinando o encaminhamento do réu diretamente ao júri. Isso ocorria porque os delegados possuíam competência instrutória e decisória:
Art. 54. As sentenças de pronuncia nos crimes individuaes proferidas pelos Chefes de Policia, Juizes Municipaes, e as dos Delegados e Subdelegados, que forem confirmadas pelos Juizes Municipaes, sujeitão os réos á accusação, e a serem julgados pelo Jury, procedendo-se na fórma indicada no art. 254 e seguintes do Código do Processo Criminal.
Nessa análise cronológica, passada a Constituição de 1934, adveio a de 1937 a qual fora a única constituição brasileira que não trouxe em seu texto a previsão constitucional do Tribunal do Júri, por ocasião de ter sido proclamada em período ditatorial, em que o Brasil estava passando pelos anos da ditadura militar.
Já em 1946, a Constituição Federal trouxe de volta o instituto com previsão na parte dos direitos e garantias individuais, que nas palavras de Nucci:
“veio como se fosse uma autêntica bandeira na luta contra o autoritarismo, embora as razões tenham sido outras, segundo narra Victor Nunes Leal (citado por Nucci), ou seja, por conta do poder de pressão do coronelismo, interessado em garantir a subsistência de um órgão judiciário que pudesse absolver seus capangas.” (2016, p. 438).
Deve-se pontuar que o art. 141, §28 da Constituição determinava que o número de membros do Tribunal fosse ímpar, o que evitava a possibilidade do empate na deliberação entre os jurados trazer alguma dúvida na decisão.
A penúltima constituição brasileira, do ano de 1967, manteve o Tribunal do Júri, limitando-se somente a ideia de que os crimes ali julgados seriam os dolosos contra a vida.
Finalmente, a atual Constituição Federativa do Brasil de 1988, confirma a competência do Tribunal do Júri como direito e garantia fundamental, inserindo o dispositivo no artigo 5º inciso XXXVIII, assegurando a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida
2 PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS
O instituto do Tribunal do Júri, recepcionado pela Magna Carta de 1988, trouxe como princípios constitucionais, dentro do rol nos direitos e garantias fundamentais no artigo 5º, inciso XXXVIII, a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Todas essas garantias asseguradas em tal artigo são cláusulas pétreas não podendo ser suprimidas ou possuir a sua eficácia reduzida, conforme leciona o artigo 60, §4º da Constituição Federal.
O princípio da soberania dos veredictos serve de base para aplicação em todos os processos que seguem o rito do júri, ou seja, na sessão de julgamento o veredicto do Conselho de Sentença deve ser respeitado pelo Juiz que preside a sessão, não podendo no momento da sentença, mesmo que não concorde com o que foi decido pelos jurados, dar aplicação técnica diversa do que fora decido. O mesmo acontece em relação às decisões proferidas pelos tribunais e tribunais superiores cujos processos estejam em grau de recurso.
Vale ressaltar que os jurados, pessoas escolhidas entre os membros da sociedade em que o réu está inserido, julgam matéria de fato, conforme preceitua o artigo 482 do Código de Processo Penal e não de direito, cabendo ao juiz presidente a aplicação do direito, após o veredicto. In verbis:O Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido (grifo nosso).
Entende-se como matéria de fato, aquela ligada somente ao fato-crime, como por exemplo, a análise dos jurados se realmente aconteceu o crime (consumado ou tentado) que está sendo posto em julgamento, se o réu foi o autor do crime, as circunstâncias qualificadoras e as teses de defesas alegadas pelos advogados e pelo réu em seu depoimento em plenário sobre questões fáticas. Toda essa análise é feita por meio dos quesitos apresentados aos jurados, previstos no Código de Processo Penal, que são feitos por meio do Juiz Presidente aos sete jurados que formam o Conselho de Sentença, para a sessão de julgamento.
Na visão de muitos doutrinadores brasileiros, o princípio da soberania dos veredictos é da essência do Tribunal do Júri, fazendo com que a decisão ali tomada seja respeitada pelos juízes togados, pelos Tribunais de Justiça e Federal, bem como pelos Tribunais Superiores, os quais lhes são vedados, nos casos em que a sentença é submetida a recurso, tanto pelo Ministério Público quanto pelos advogados do réu, de modificar o mérito da causa, podendo não muito, anular o julgamento pelo júri, por inobservância a algum vício de forma, aumentar ou diminuir a pena, levando em consideração a decisão do júri, ou determinar que o réu seja submetido novamente a um novo júri para que a matéria seja revista por um outro tribunal do júri, igualmente competente para apreciar o crime em questão.
Acerca do referido princípio, o jurista Guilherme Nucci leciona que:
A soberania dos veredictos é a alma do Tribunal Popular, assegurando-lhe efetivo poder jurisdicional e não somente a prolação de um parecer, passível de rejeição por qualquer magistrado togado. Ser soberano significa atingir a supremacia, o mais alto grau de uma escala, o poder absoluto, acima do qual inexiste outro. Traduzindo-se esse valor para o contexto do veredicto popular, quer-se assegurar seja esta a última voz a decidir o caso, quando apresentado a julgamento no Tribunal do Júri. (2015, p.435) (grifo nosso)
Todavia, afirmar que o princípio constitucional da soberania dos veredictos é absoluto, sem nenhuma exceção que possa consequentemente acarretar certa relatividade em alguns casos é incorrer no equívoco.
Antes de debater a exceção existente e apontada por alguns autores, relevante ressaltar a necessidade da coexistência harmoniosa entre o princípio do duplo grau de jurisdição e o da soberania dos veredictos.
Em síntese, a sentença proferida ao final da sessão de julgamento é formada por duas etapas. A primeira, após o relatório, irá constar o veredicto do conselho de sentença, ou seja, a respostas dos quesitos feitos aos jurados, e consequentemente de qual maneira eles se posicionaram em relação ao caso que ali fora exposto a eles. Já em segundo momento, passa-se à fixação do quantitativo de pena, o qual é realizado pelo juiz presidente daquela sessão.
Assim, os ensinamentos de Fernando da Costa Tourinho Filho:
Se o Conselho de Sentença, condenar o réu, cumpre ao Juiz-Presidente, após breve relatório, reportar-se ao entendimento do Conselho no sentido de condenar o réu por determinada quantidade de votos (sempre 4 a 3), e uma vez estabelecida a pena-base, com os olhos voltados para os arts. 59 e 60 do Código Penal, o Juiz-Presidente considerará eventuais circunstâncias agravantes e atenuantes que tenham sido objeto dos debates (eventualmente na réplica e tréplica). Se os jurados reconheceram alguma causa de especial aumento ou de diminuição da pena, o Juiz fará a devida imposição. (2009, p. 166) (grifo nosso)
Conforme já dito acima, existe a possibilidade e oportunidade para recorrer da sentença prolatada no Tribunal do Júri, nas hipóteses previstas no artigo 593, inciso III, e alíneas, do Código de Processo Penalin verbis:
Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:
III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:
a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;
b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;
c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;
d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
Desta maneira, surgindo a vontade das partes em recorrer à instância superior da sentença proferida, a fim de obter uma nova análise, o Tribunal, caso entenda ser viável alguma modificação na condenação do réu, terá dois caminhos a seguir.
Se a modificação a ser realizada for somente sobre a pena, circunstância em que não concorde com a quantidade que fora fixado pelo juiz-presidente poderá alterar a pena, sem que seja necessário submeter o réu a novo júri.
Porém, se o tribunal entender que a matéria fática não foi devidamente analisada, e que o júri julgou erroneamente, não poderá substituir o veredicto do júri por uma decisão sua monocrática ou colegiada. Assim, deve remeter os autos para ao tribunal de origem para que o réu seja submetido ao novo julgamento.
Nesse mesmo sentido está o entendimento do autor Júlio Fabbrini Mirabete:
A soberania dos veredictos dos jurados, afirmada pela Carta Política, não exclui a recorribilidade de suas decisões, sendo assegurada a devolução dos autos ao Tribunal do Júri para que profira um novo julgamento, se cassada a decisão recorrida pelo princípio do duplo grau de jurisdição. (2003, p. 483) (grifo nosso)
Dessa forma, o princípio do duplo grau de jurisdição não foi suprimido como também não afeta de forma alguma o princípio da soberania dos veredictos, vez que nenhum direito fundamental é absoluto e o direito que as partes possuem, se inconformados com a decisão ali prolatada pelo Conselho de Sentença seja novamente revista, claro que dentro das situações apontadas acima. Não significa desrespeito ao instituto do Tribunal do Júri, mas sim a aplicação efetiva e conjunta do direito, da justiça e da soberania do júri.
Voltando à análise da exceção do referido princípio grande parte da doutrina aponta como a principal exceção a possibilidade de mudança da situação do réu por um tribunal em que haja juízes togados é por meio da revisão criminal.
A revisão criminal é a via utilizada somente pela defesa, depois de transitado em julgado a sentença condenatória, antes ou após a extinção da pena, de ser revisada a condenação que paira sobre o réu. Possui previsão nos artigos 621 a 631 do Código de Processo Penal.
Em relação à possibilidade de reforma da condenação do réu, que tenha cometido algum dos crimes dolosos contra a vida e que fora submetido a júri, sem que seja realizado um novo júri para que revise tal condenação, via ação de revisão criminal, os autores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues de Alencar, visam essa possibilidade em proveito do princípio da inocência nos casos de condenação indevida. Em suas palavras:
Contudo, em prol da inocência, tal princípio não é absoluto, admitindo-se que o Tribunal de Justiça absolva de pronto o réu condenado injustamente pelo júri em sentença transitada em julgado, no âmbito da ação de revisão criminal. (2019, p.1285) (grifo nosso)
Ademais, favorável a oportunidade da revisão criminal nos julgamentos de crimes dolosos contra a vida, também está o autor Eugênio Pacelli, que leciona:
Embora semelhante possibilidade, à primeira vista, possa parecer uma afronta manifesta à garantia da soberania dos veredictos, pode-se objetar em seu favor o seguinte: a ação de revisão criminal somente é manejável no interesse do réu e somente em casos excepcionais previstos expressamente em lei (art. 621, I, II e III, CPP); funciona, na realidade, como uma ação rescisória (do cível), legitimando-se pelo reconhecimento da falibilidade inerente a toda espécie de convencimento judicial e, por isso, em todo julgamento feito pelos homens. (2018, p. 570)
Destarte, tendo em vista a exceção mencionada e descrita acima, pode-se concluir que o princípio constitucional da soberania dos veredictos não é absoluto, não significando que o mesmo deve ser rechaçado vez que justo e necessário possuindo a sua devida importância e observância de aplicação nos tribunais de primeira instância em todas as sessões de julgamento. Todavia o individuo que ali se encontra para ser julgado não pode restar prejudicado por um direito fundamental e constitucional que possui, bem como a relatividade da competência do Tribunal do Júri é sempre para beneficiá-lo.
3 A COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI PARA JULGAR OS CRIMES CONTRA A VIDA
Os crimes julgados sob o rito do Tribunal do Júri estão previsto na parte especial do Código Penal Brasileiro, no Título I, dos Crimes Contra a Pessoa, em seu Capítulo I, dos Crimes Contra a Vida o qual inicia no artigo 121 até o artigo 128, os quais são todos dolosos contra a vida, tanto na forma tentada como forma na consumada, em harmonia com o texto da Constituição Federal de 1988.
Vale ressaltar que os crimes que porventura estiverem em conexão ou continência com algum crime doloso contra a vida, mesmo que não estejam dentro do rol acima mencionado, também serão submetidos ao processamento e julgamento do sistema bifásico do Tribunal do Júri, por força do disposto no artigo 78, inciso I do Código de Processo Penal “Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observado às seguintes regras: I – no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri”. (grifo nosso).
Apesar de ser o tipo de crime mais comum no cotidiano do julgamento pelo júri, por ser cometido em maior número e registrado nas repartições policiais, o crime de homicídio (artigo 121 do Código Penal), seja na sua forma simples, privilegiado ou qualificado, não é o único crime que pode ser submetido à sessão de julgamento do júri popular.
Ao se examinar a Lei Penal, tem-se presente dentre os crimes dolosos contra a vida que são submetidos ao júri, o crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, previsto no artigo 122 do Código Penal, o crime de infanticídio com disposição no artigo 123 do referido código, o crime de aborto seja ele provocado pela própria gestante ou com o seu consentimento, bem como o aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante, dispostos nos artigos 124, 125 e 126 também do Código Penal.
Quanto ao crime de homicídio, houve recentemente o acréscimo do inciso VI ao §2º do artigo 121 do CP, com a Lei n. 13.104/2015, que versa sobre a forma qualificada de homicídio denominada feminicídio. A nova qualificadora irá incidir quando a vítima for mulher e em razão de sua condição feminina, o autor intenta contra a sua vida. Normalmente em casos de violência doméstica ou familiar essa qualificadora estará presente e será perfeitamente aplicável.
Avançando no contexto da competência, interessante os apontamentos que o autor Aury Lopes faz acerca da competência constitucional do Tribunal do Júri. O primeiro ponto que o referido autor ressalta é em relação à prerrogativa de foro do réu. Em casos de conflito de competência, qual delas deverá prevalecer. Em suas palavras:
Em que pese a competência do júri ser constitucional, se a prerrogativa de foro também estiver prevista na Constituição, prevalece a prerrogativa de função. Isso porque, quando ambas as competências forem constitucionais, prevalece a jurisdição superior do tribunal. Nesse caso, um órgão de primeiro grau, como o Tribunal do Júri, jamais prevalece sobre um tribunal (jurisdição superior prevalente). Mas, destaque-se, a prerrogativa deve estar prevista na Constituição Federal. (2016, p. 264) (grifo nosso)
Todavia, a prerrogativa de função não prevalecerá caso ela esteja somente prevista na Constituição Estadual, para que não haja contradição do que preceitua Constituição Federal e a súmula 721 do Supremo Tribunal Federal: “A competência constitucional do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual.”
O segundo ponto que o autor menciona é em relação a continência e conexão em casos de um dos partícipes do crime tenha a prerrogativa de função. Nestes casos haverá a cisão do processo, ou seja, a separação do processo para que cada réu ser julgado no foro de sua competência, tendo em vista que a competência da prerrogativa de função também é prevista constitucionalmente, assim como a competência do Tribunal do Júri.
Portanto, depreende-se deste tópico que é da competência do Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida, ou seja, aqueles elencados e mencionados nos parágrafos anteriores, bem como os crimes conexos, desde que o autor não tenha prerrogativa de função prevista constitucionalmente, hipótese em que haverá prevalência desta. Caso a competência seja estabelecida por norma infraconstitucional ou por Constituição Estadual, a competência do tribunal popular prevalecerá e todos os crimes de sua competência deverão seguir fielmente o sistema bifásico para que não ocorra a supressão da norma constitucional.
4 DO PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI
O procedimento do tribunal do júri é considerado bifásico devido ao fato de ser composto por duas fases, a de acusação e de julgamento. Está previsto no Código de Processo Penal no Capítulo II, do Procedimento Relativo aos Processos da Competência do Tribunal do Júri, o qual faz a delineação de todo o procedimento especificando ambas as fases, desde o artigo 406 ao artigo 496.
A primeira fase se assemelha em muito ao procedimento comum, pois o juiz singular fará toda análise para, ao final, ter base e fundamentos para tomar sua decisão, que no caso do procedimento do júri será uma decisão de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação do crime para outro diverso do júri, diferente do procedimento comum que terminada a instrução e passada as alegações finais cabe ao juiz togado proferir uma sentença de absolvição ou condenação.
A fase de acusação e instrução tem início quando o juiz recebe a denúncia ou queixa, ordena a citação do réu para que apresente resposta à acusação no prazo de 10 (dez) dias, conforme determina o artigo 406 do CPP “o juiz, ao receber a denúncia ou a queixa, ordenará a citação do acusado para responder a acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. (grifo nosso).
Realizado o juízo de admissão e o réu devidamente citado, após oferecer reposta à acusação, surge uma situação peculiar. O artigo 409 do CPP traz a possibilidade de após a apresentação da defesa nos autos, do Ministério Público ou do ofendido/querelante, em casos de queixa crime, de oferecer réplica no prazo de 5 (cinco) dias, a fim de que responda as preliminares arguidas pelo acusado em sua defesa. Ressalte-se que somente é necessário que haja réplica se o acusado alega alguma preliminar ou anexa aos autos novos documentos.
Tanto acusação quanto defesa, podem arrolar até 8 (oito) testemunhas em suas respectivas peças, para que sejam inquiridas na audiência de instrução, conforme dispõem os §§2º e 3º do artigo 406.
Até a data designada para a audiência de instrução, a determinação pelo juízo da inquirição das testemunhas arroladas pelas partes e as demais diligências pleiteadas por elas, deverão ser realizadas no prazo máximo de 10 (dez) dias, em conformidade com o disposto no artigo 410 do CPP, “O juiz determinará a inquirição das testemunhas e a realização das diligências requeridas pelas partes, no prazo máximo de 10 (dez) dias.” (grifo nosso)
A audiência de instrução tem como finalidade colher o máximo de provas possíveis, sob o manto do contraditório e da ampla defesa para posteriormente ser decidido pelo juiz se o réu deve ou não ser submetido a julgamento pelo júri. O artigo 411 do Código de Processo Penal (CPP) versa sobre a audiência de instrução, deixando evidente de qual maneira devem os atos serem procedidos. Em primeiro momento será tomado às declarações do ofendido, ou seja, se for possível será colhido o depoimento da vítima.
Na seqüência será realizada a oitiva das testemunhas de acusação e defesa, nesta ordem. A eventual inversão da ordem estabelecida no artigo 411 do CPP, possivelmente poderá ser motivo de alegação de nulidade processual, caso comprovado o prejuízo sofrido pela parte e alegada em momento oportuno.
Para o doutrinador Gustavo Henrique Badaró, tal inversão não poderá ocorrer, devido ao fato de não haver no artigo 411 do CPP a ressalva prevista no artigo 400 do mesmo diploma legal com relação do artigo 222 também do CPP, o qual permite a inversão da oitiva das testemunhas. Em suas palavras:
Em caso de não comparecimento de uma das testemunhas de acusação, não será possível inverter a ordem de oitiva de testemunhas, colhendo-se o depoimento das testemunhas de defesa presentes, para somente depois, em outra audiência, ouvir a testemunha de acusação faltante. Nem mesmo quanto às testemunhas ouvidas por carta precatória será possível tal inversão. Aliás, neste ponto, é bastante esclarecedora a comparação da disciplina da audiência no procedimento comum ordinário (CPP, art. 400, caput) e no procedimento dos crimes dolosos contra a vida (CPP, art. 411, caput). No procedimento ordinário, o art.400, caput, do CPP dispõe que “à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem como aos esclarecimentos dos peritos [...]”. (destacamos) Já no art. 411, caput, não há tal ressalva: “a inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos [...] (destacamos) (2015, p. 658)
Acerca do tema é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. OITIVA DE TESTEMUNHAS. INVERSÃO DA ORDEM DAS PERGUNTAS. NULIDADE RELATIVA. NECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. NÃO COMPARECIMENTO À AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO E AUSÊNCIA DE INTERROGATÓRIO. ASSISTIDO POR ADVOGADO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. AUSÊNCIA DE ALEGAÇÕES FINAIS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. PROCEDIMENTO DO JÚRI. PEÇA NÃO ESSENCIAL. AGRAVO REGIMENTLA NÃO PROVIDO. 1. O entendimento firmado neste Sodalício, é no sentido de que a nulidade decorrente da inversão da ordem prevista no artigo 411, do CPP,é relativa, necessitando, portanto, para sua decretação, além de protesto da parte prejudicado no momento oportuno, sob pena de preclusão, da comprovação de efetivo prejuízo para a defesa, em observância ao princípio pás de nullitésansgrief, (art. 563, do CPP), o que não ocorreu na hipótese[...] 4. Esta Corte possui o entendimento jurisprudencial no sentido de que as alegações finais não são peça essencial nos julgamentos perante o Tribunal do Júri, pois o juízo de pronúncia é provisório, não havendo antecipação do mérito. 5. Agravo regimental não provido. (STJ – AgRg no AREsp: 480148 PE 2014/0040772-2, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 10/06/2014, T-5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/06/2014) (grifo nosso)
Além da inquirição das testemunhas, na audiência de instrução também é realizado os esclarecimentos com os peritos, às acareações e o reconhecimento de pessoas e coisas. Por fim, passar-se-á ao interrogatório do acusado.
Terminada a instrução, tem-se início as alegações finais que são feitas oralmente pelas partes, sendo de 20 minutos a cada uma, prorrogável por mais 10 minutos. Caso tenha mais de um acusado, o tempo de defesa e acusação será individual, ou seja, 20 minutos para que o advogado ou defensor público defenda seu constituinte e para o Ministério Público ou querelante faça as suas respectivas acusações.
Havendo assistente de acusação, este terá o prazo de 10 minutos para se manifestar, não podendo tal prazo ser prorrogado. Depois de sua manifestação a defesa terá o mesmo lapso temporal para manifestar-se.
Tais disposições estão previstas nos parágrafos 1º ao 6º do artigo 411 do Código de Processo Penal. Relevante ressaltar, que diferente do procedimento comum, as alegações finais no procedimento do tribunal do júri não podem ser convertidas em memorais, tendo em vista a necessidade da celeridade processual por causa das duas fases, bem como a observância da oralidade dos atos processuais e ao disposto no artigo 412 do CPP que o procedimento da primeira fase será concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias.
Terminada as alegações finais, o juiz proferirá a sua decisão em audiência, ou seja, também oralmente, ou a fará dentro do prazo 10 (dez) dias por escrito ordenando que os autos lhe sejam conclusos para isso, conforme dispõe o parágrafo 9º do artigo 411 do CPP.
Com relação às decisões que podem ser tomadas pelo juiz, as quais já foram citadas no decorrer do texto, no momento é imperioso tecer breves comentários acerca de cada uma. De início, tem-se a decisão de pronúncia que será tomada caso o juiz se convença da existência da materialidade do fato e de indícios suficientes de autoria ou de participação do réu naquele crime doloso contra a vida. O juiz ao decidir por pronunciar o réu deve fundamentar a sua decisão com base nos fatos comprovados nos autos durante a instrução.
Encontra previsão no Código de Processo Penal no artigo 413, “O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”. (grifou-se)
Diante do discernimento adotado pelo juiz em pronunciar o réu, ele consente em ser competência do Tribunal do Júri para analisar e julgar o mérito do processo, cabendo agora aos jurados na sessão de julgamento declarar se o réu é inocente ou culpado.
O juiz ao proferir a decisão de pronúncia, deve ater-se somente aos fatos e ter o devido cuidado para não entrar no mérito da causa, para que não ultrapasse o limite de suas funções ou delimitações por se tratar de crime da competência do júri.
Desta maneira, é aconselhável que o juiz evite certo tipos de expressões, como por exemplo,“o réu confessou o delito em juízo”, “restou devidamente comprovado que o réu é culpado”, essas e dentre outras que traduza e induza aos jurados que o réu seja plenamente culpado, não deixando assim margem para que eles decidam de acordo com suas convicções frente ao que a eles são apresentados no momento do julgamento em plenário com as manifestações da acusação, defesa e o depoimento do próprio acusado.
Ademais, o juiz não está atrelado à classificação que consta na denúncia. Em caso de entendimento diverso, o juiz pode dar definição jurídica diferente do fato narrado pelo promotor de justiça, modificando assim a capitulação do crime, mesmo que o acusado fique a mercê de receber uma condenação e pena mais grave. Essa possibilidade encontra respaldo jurídico no artigo 419 do CPP, “O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante na acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave”. (grifo nosso)
De outro giro, pode o juiz decidir por impronunciar o réu. De acordo com o artigo 414 do Código de Processo Penal, caso o juiz não se convença da materialidade do fato ou da existência de indícios de autoria ou participação, fundamentadamente, impronunciará o acusado.
Interessante a disposição do parágrafo único do artigo 414 de que se sobrevierem novas provas acerca do fato ocorrido poderá o acusado ser novamente denunciado, enquanto não ocorrer a extinção da punibilidade, em razão da sentença de impronúncia somente fazer coisa julgada formal. Tal disposição está em consonância com a súmula 524 do Supremo Tribunal Federal.
A sentença de impronúncia tem natureza terminativa e por esta razão poderá ser atacada por meio do recurso de apelação criminal, conforme o artigo 416 do CPP, “Contra sentença de impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação.” (grifo nosso)
Ademais, o artigo 415 do CPP traz em quais hipóteses o juiz absolverá sumariamente o acusado, que são: inciso I – provada a inexistência do fato; II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato; III – o fato não constituir infração penal e IV demonstrada causa de isenção de pena ou de execução do crime. Nesta hipótese, a sentença de absolvição põe fim a primeira fase do procedimento do júri e impede que a segunda fase se inicie.
Por fim, tem-se a decisão de desclassificação do crime doloso contra a vida para outro delito que não seja da competência do Tribunal do Júri. A desclassificação está prevista no artigo 419 do CPP, “Quando o juiz se convencer, em discordância com a acusação, da existência de crime diverso dos referidos no §1º do art. 74 deste Código e não for competente para o julgamento, remeterá os autos para ao juiz que o seja.” (grifo nosso)
Assim, trata-se de uma decisão interlocutória que declina a competência que inicialmente seria do júri para outro juízo que seja competente para julgar o fato diverso de crime doloso contra a vida. Os autores Távora e Alencar afirmam que o juiz não deve dizer o tipo penal que entende adequada a conduta descrita na inicial/denúncia, devido ser a opinio delicit do Ministério Público pois é o titular da ação penal (2019, p. 1302).
Destarte, finda a fase de acusação e instrução e sendo pronunciado o réu, o processo passa para a segunda fase do procedimento escalonado do Tribunal do Júri, a de julgamento. Agora a decisão de pronúncia servirá como parâmetro para a acusação, não podendo o órgão acusador imputar ao réu além do que ali consta, ou seja, não poderá sustentar teses acusatórias que foram arguidas na denúncia se elas foram afastadas no momento decisão de pronúncia.
O juiz competente do Tribunal do Júri ao receber o processo fará um despacho saneador onde, preservando a sua imparcialidade, determinará que se realizem os atos necessários para a elucidação dos fatos, como por exemplo, a intimação da acusação e defesa para que apresentem o rol das testemunhas que desejarão ouvir na sessão de julgamento, bem como após irá analisar as diligências requeridas pelas partes, como previsto nos artigos 422 e 423 do CPP.
O próximo passo é a formação da lista dos jurados que serão escolhidos para compor o conselho de sentença. Os jurados são escolhidos dentre os cidadãos que reúnam condições para exercer tal função, afim de abrir oportunidade para participação da sociedade no poder judiciário, bem como obtenha a realização de um julgamento democrático.
O autor Paulo Rangel, faz uma crítica em seu livro devidamente relevante com relação a composição da lista dos jurados. Apesar do §2º do artigo 425 fazer especificações dos núcleos comunitários os quais o juiz requisitará indicação de pessoas para serem jurados e trazer a expressão “outros núcleos comunitários”, esta ultima não é atendida pois resta evidente a restrição existente dos locais para escolha dos jurados, o que acaba influenciando de modo negativo posteriormente o veredicto a ser proferido. Suas palavras:
Era a oportunidade de estabelecer como forma de escolha dos jurados a relação do censo eleitoral, democratizando, o máximo possível, a chamada dos cidadãos a integrarem o Tribunal do Júri (cf. item 5.2, infra). A expressão “e outros núcleos comunitários” não será atendida pelo juiz. Nenhum juiz irá (se estivermos errados, ótimo) mandar ofício a associação de moradores de uma favela, ou a uma ONG que realiza um projeto social em um morro ou favela (Grupo Cultural Afro Reggae, Nós do Morro, Casa da Paz etc.), para que forneça nomes de pessoas que possam integrar o Conselho de Sentença.O olhar dessas pessoas sobre os fatos da vida é diferenciado. Não será um olhar estigmatizador,preconceituoso ou excludente. Será o olhar da diferença, do respeito ao próximo, o olhar da inclusão social. É isso oque se quer no Tribunal do Júri? Claro que não. Então essas pessoas não serão chamadas. (2019, p. 182)
Os artigos 426 e 427 do Código de Processo Penal tratam acerca do desaforamento, que nada mais é a transferência do julgamento para a comarca mais próxima, devido a imparcialidade do Conselho de Sentença quando estiver comprometida, ou por questão de ordem pública, ou até mesmo pela segurança pessoal do acusado.
A pauta de julgamento será organizada dando preferência para os acusados presos, dentre os presos, os que estiverem há mais tempo na prisão e havendo igualdade, os que primeiro foram pronunciados (artigo 429 do CPP).
Depois de decidida a pauta, será realizado o sorteio dos 25 (vinte e cinco) jurados que possivelmente participarão da sessão de julgamento. Deste sorteio poderá acompanhar o Ministério Público, a Ordem dos Advogados do Brasil e a Defensoria Pública. De acordo com o artigo 434 do CPP, os jurados que forem sorteados serão convocados por correio ou qualquer outro meio hábil, para comparecer na reunião, sob as penas das leis.
A composição do Tribunal do Júri está prevista a partir do artigo 447 do Código Processual Penal o qual a aduz que o tribunal é composto pelo juiz presidente e pelos 7 jurados dentre aqueles 25 convocados para aquela sessão de julgamento. Os arts. 448 e 449 ambos do CPP trazem os impedimentos para o exercício da função de jurado.
No dia da sessão de instrução e julgamento, antes da constituição do Conselho de Sentença, o juiz presidente deliberará sobre os casos de isenção e despensa dos jurados e pedidos de adiamento de julgamento, conforme o artigo 454 do CPP, bem como preleciona o artigo 460 que as testemunhas ficarão recolhidas em lugar que uma não consiga ouvir o depoimento da outra.
Realizada todas as diligências pendentes, o juiz presidente do Tribunal do Júri verificará se na urna contém as 25 cédulas com os nomes dos jurados sorteados e determinará que o oficial faça a chamada nominal deles. Se comparecer no mínimo 15 jurados, o juiz irá declarar abertos os trabalhos, como orienta os artigos 462 e 463 do CPP.
Em seguida, o juiz advertirá os jurados acerca dos impedimentos, suspeição e incompatibilidade, bem como da incomunicabilidade entre eles depois de sorteados para compor o Conselho de Sentença. Examinando a urna se encontra as cédulas nos jurados presentes, passa-se ao sorteio dos 7 jurados que formarão o Conselho de Sentença. Na medida do sorteio, a defesa e a acusação, nessa ordem, poderão recusar até 3 jurados, sem justificação, ou de maneira justificada se houver razões. Tais disposições nos artigos 467 a 468 do CPP.
Conforme o artigo 472 do CPP, formando o Conselho de Sentença, o juiz fará a seguinte advertência aos jurados: “Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça.” E os jurados, chamados nominalmente pelo juiz, responderão: “Assim o prometo”.
Passado este momento, iniciar-se-á a instrução em plenário prevista nos artigos 473 a 475 do CPP, onde serão tomadas as declarações do ofendido, caso seja possível, a inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e defesa e, por último, o interrogatório do acusado. Os jurados poderão formular perguntas que serão feitas por intermédio do juiz ou de forma escrita.
Tendo fim a instrução, terá início os debates, sendo concedida primeiro a palavra ao Ministério Público, após o assistente de acusação e terminada a acusação, terá a palavra a defesa. O parágrafo 4º do artigo 476 do CPP, prevê a replica pela acusação e a tréplica pela defesa. E o artigo 477 do mesmo diploma legal traz o tempo de uma hora e meia para acusação e defesa e uma hora para réplica e tréplica.
O artigo 478 do CPP aduz em relação ao que as partes não poderão fazer referência, in verbis:
Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências: (Redação dada pele Lei 11.689/2008)
I- à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado; (incluído pela Lei 11.689/2008)
II- ao silêncio do acusado ou à ausência de interrogatório por falta de requerimento, em seu prejuízo. (Incluído pela Lei 11.689/2008)
É proibida pelo artigo 479 do CPP a leitura de documento ou a exibição de objeto que não tenha sido juntado nos autos com três dias de antecedência, com a ciência da parte contrária.
Encerrados os debates e com a afirmação dos jurados de que estão aptos a julgar, serão eles questionados sobre a matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido. O caput do artigo 483 do CPP traz a ordem da denominada quesitação e o parágrafo primeiro do mencionado artigo aduz que se houverem respostas negativas de mais de três jurados nos quesitos I e II importa na absolvição do acusado.
Caso seja afirmativa a resposta de mais de três jurados sobre a materialidade do fato e a autoria e participação, serão indagados se absolve o acusado e decidindo pela condenação o julgamento prossegue.
Depois de realizada a votação, o juiz presidente proferirá a sentença nos moldes do artigo 492 do CPP, nos casos de condenação ou absolvição. Na hipótese de decisão de desclassificação, tratar-se de crime de menor potencial ofensivo poderá o juiz presidente também proferir a sentença, como prevê o parágrafo primeiro do referido artigo. A sentença será lida em plenário pelo juiz e após será encerrada a sessão (artigo 493 do CPP).
Além disso, será lavrada a ata dos trabalhos de cada sessão, devendo constar todos os acontecimentos e deverá ser assinada pelo juiz e pelas partes, em conformidade com os artigos 494 a 496 do Código de Processo Penal.
5 CASOS EM QUE HÁ A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA DO TRIBUNAL DO JÚRI E DOS VEREDICTOS
Em conformidade com o que vem sendo delineado acima ao longo deste artigo, é certo que o instituto do Tribunal do Júri em sua essência atende, pelo menos em grande parte, o que é proposto na Constituição Federal de 1988; que seja assegurado ao acusado a tutela do seu direito e garantia fundamental da liberdade através do julgamento pelos sete jurados.
Antes de aprofundar na análise dos casos em que se entende haver relatividade da soberania do Tribunal do Júri e dos veredictos é interessante mencionar a diferenciação feita pelo autor Walfredo Cunha Campos entre a soberania do Tribunal do Júri e a soberania dos veredictos proferidos pelo Conselho de Sentença.
Para o autor a soberania do Tribunal do Júri consiste na submissão ao julgamento dos crimes dolosos contra vida e seus conexos, e caso essa competência seja violada a soberania do tribunal estará comprometida. Já em relação à soberania dos veredictos, está adstrita a não-modificação da decisão por nenhum juiz togado, seja de primeiro e segundo grau, ou superior, devendo qualquer mudança ser emanada de um tribunal igualmente competente.
Em suas lições:
Interessante diferenciação conceitual lembrada por Renato Brasileiro de Lima citando Frederico Marques é a que se estabelece entre soberania do júri e soberania dos veredictos: soberania do júri é a impossibilidade de outro órgãojudiciário substituir-se ao Júri na decisão de uma causa por ele proferida; soberania dos veredictos, por seu turno, é a proibição de o juiz presidente proferir uma sentença que contrarie o que decidido pelos jurados. Em outras palavras, a soberania do júri se dirige ao Tribunal que, em julgamento de recursos ou ações de impugnação (como habeas corpus e revisão criminal), não pode substituir o Júri nas causas de sua competência; já a soberania dos veredictos é endereçada ao juiz presidente a quem é vedado contrariar a decisão dos jurados, sentenciando de maneira diversa ao deliberado por eles. (2017. Disponível em Minha Biblioteca Virtual no site do Ministério Público de Rondônia) (grifo nosso)
Frente a essa diferenciação, resta mais facilitado a compreensão dos próximos parágrafos.
Conforme já explanado no tópico quatro do presente trabalho, o atual procedimento do Tribunal do Júri é escalonado, ou seja, dividido por duas fases, instrução e julgamento. Houve com a reforma do Código de Processo Penal, advinda com a Lei n. 11.689/2008, diversas mudanças no rito do tribunal, procurando deixá-lo mais democrático e de maior compreensão para aplicação pelos juízes brasileiros.
A primeira observação a ser feita, acerca da reforma é com relação à ampliação das possibilidades de absolvição primária no juízo da primeira fase, previstas no artigo 415 do Código de Processo Penal.
Diante dos novos incisos do referido artigo, que confere ao juiz absolver sumariamente o acusado se, “I – provada a inexistência do fato;II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato; III – o fato não constituir infração penal; IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”, há maior discricionariedade de se discutir o mérito da causa, havendo assim certa contradição ao preceito constitucional da soberania do tribunal, no que tange a sua competência para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida.
Ora, como é sabido, cabe ao Conselho de Sentença, na segunda fase do procedimento do júri, analisar e julgar a matéria fática do processo. Todavia essa atribuição foi usurpada dos jurados, quando na primeira fase o juiz decide, face ao pedido proclamado pela defesa, por absolver sumariamente o acusado, sem que ele seja submetido ao julgamento pelo júri.
Em outras palavras, o juiz ao proferir a sentença de absolvição sumária exorbita, a nosso ver, os limites a ele impostos pelo legislador constitucional, vez que realiza julgamento da matéria fática, ou seja, do crime, o qual não é competente a fazer.
Parcela da doutrina parte do princípio de que o juiz singular na primeira fase, exerce o papel de filtrar os casos que necessariamente deverão ser submetidos a sessão de julgamento. Todavia indaga-se o seguinte: não deveria ser os setes jurados competentes para analisar se o acusado merece ou não ser absolvido sumariamente e para que isso aconteça, não deveriam participar de toda a instrução probatória, da colheita das provas?
Qual a razão de assegurar constitucionalmente a soberania de um Tribunal do Júri e de seus veredictos, se aos jurados lhe são apresentados e impostos a julgamento somente aquilo que um juiz togado entende ser necessário?
Ao nosso entendimento, seria perfeitamente cabível a unificação das duas fases atualmente existentes no procedimento do Tribunal do Júri, ou seja, tornando somente uma fase, a qual sejam os jurados submetidos a participarem de todo o procedimento, das colheitas de provas, da oitiva do depoimento das partes, vítima caso seja possível e acusado, para que consigam perceber com clareza a possível oscilação de versões que são contadas ao longo do processo e assim terem base para julgar.
Diferente do que acontece hoje, que o jurado toma conhecimento do fato, no momento da sessão, ficando a mercê do que lhe é apresentado pela acusação e defesa no momento das sustentações orais, e por diversas vezes tomam as suas decisões no momento do calor dos debates.
O autor Paulo Rangel compartilha do mesmo pensamento de que fosse possibilitado aos jurados acompanhar todo o processo. Em suas palavras:
Se o júri é o juiz natural da causa, os jurados devem ter o direito à produção de toda a prova em plenário e não como hoje ocorre, em que as partes dispensam a oitiva das testemunhas e reproduzem a leitura dos depoimentos em plenário, quebrando a fidelidade dos depoimentos. O ideal de colheita de provas seria se os jurados pudessem acompanhar todo o processo, desde o seu nascedouro até o plenário, para irem formando seu convencimento com o contato direto com as provas, pois quando chegassem em plenário, no dia do julgamento, já estariam com um panorama probatório idealizado dependendo apenas da sustentação técnica das partes. (2018, p.180) (grifo nosso).
O procedimento de envolver os jurados em todas as fases se iguala como é adotado nos Estados Unidos, no sistema jurídico Common Law. O júri federal, denominado Grande Júri, tem aplicabilidade na área criminal, nos crimes de maior gravidade, onde os jurados são convocados para o recebimento ou rejeição da denúncia e colheita de provas. Posteriormente, o réu é submetido ao Pequeno Júri onde é realizado o julgamento do crime a ele imputado pela acusação.
O doutrinador Wanderlei José dos Reis, faz interessante apontamentos sobre o Tribunal do Júri nos Estados Unidos, acerca do seu procedimento:
O Grand Jury tem previsão constitucional na quinta emenda e somente existe para as causas criminais. Na esfera federal a instituição do Grande Júri é obrigatória para os crimes graves, em especial para aqueles apenados com a pena capital, ou outro infamante, o que não ocorre no âmbito da jurisdição estadual. Trata-se de um procedimento sigiloso, composto, de acordo com as regras de cada Estado, de dezesseis a vinte e três membros, que pode ser convocado para duas finalidades: acusar os possíveis autores de crimes, ou, em outras palavras, receber a acusação feita pelo promotor de justiça (indictment) quando entender serem suficientes as provas apresentadas; ou investigar o possível cometimento de um crime e apresentar a acusação. Em razão de suas funções, o Grand Jury pode ouvir testemunhas, bem como levantar outras provas. Nestes termos, o papel do Grande Júri é desempenhar o judicium accusationis, numa fase preliminar (beforetrial) ao juízo da culpa, de modo que uma acusação a ele submetida será aceita se obtiver um quórum de maioria simples, quando então a causa será submetida ao Pequeno Júri. O Petit Jury, por sua vez, exercendo um juízo de culpa (trial), tem a incumbência de, em procedimento público, julgar o acusado, declarando-o culpado ou inocente, sendo possível, ainda, a recomendação ao juiz presidente da pena a ser aplicada, tal como ocorre em alguns Estados, nos quais havendo a condenação em razão de crime gravíssimo os jurados podem recomendar a aplicação da pena de morte ao condenado. (REIS, 2013)
Frente ao posicionamento de que haja somente uma fase no Tribunal do Júri, talvez surja a indagação com relação a incomunicabilidade dos jurados. Tal previsão não está prevista constitucionalmente, apenas no Código de Processo Penal o que pode perfeitamente ser revista, sem nenhum prejuízo a qualquer das partes do processo.
Avançando nos casos em que se entende haver a relatividade da soberania do Tribunal do Júri, passa-se a análise do crime de aborto praticado pela gestante ou por terceiros com ou sem o seu consentimento, que não são levados a julgamento pelo Júri devido ao fato do Ministério Público oferecer na denúncia a suspensão condicional processo, por força do artigo 89 da Lei n. 9.099/90.
As penas mínimas para os crimes de aborto praticado pela gestante ou com o seu consentimento, é cominado à gestante e para o terceiro que praticou o aborto a pena mínima de um ano. Já para o terceiro que provoque o aborto, sem o consentimento da gestante, a pena mínima é de três anos.
Diante da pena mínima de um ano, das condutas previstas no artigo 124 e 126 do Código Penal poderão os seus agentes, se primários e atendidas as condições previstas no artigo 77 do CP, serem beneficiados com a suspensão condicional do processo, de acordo com a previsão do artigo 89 da Lei n. 9099/90, in verbis:
Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena.
Todavia, é necessário observar que os crimes de abortos estão dentro do rol dos crimes dolosos contra a vida, por esta razão devem ser submetidos ao rito do procedimento do Tribunal do Júri, independente do quantum fixado da sua pena mínima.
Quando o Ministério Público oferece a suspensão do processo e suas respectivas condições, no ato da denúncia acaba por violar a soberania do Tribunal do Júri, vez que o juiz de instrução não é competente para julgar e não é o momento do acusado rejeitar ou aceitar a suspensão.
O correto é propor a suspensão em plenário de julgamento para que os jurados, os quais são competentes para julgar o mérito da causa, possam decidir se a gestante ou o terceiro, quem ali está sendo julgado, faz jus ou não ao recebimento da suspensão condicional do processo pelo crime de aborto praticado, cabendo por fim o acusado aceitar ou não a suspensão do processo.
Evidencia-se o posicionamento acima disposto, com o processo de n. 2012.01.1.158976-4julgadopelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, onde os réus receberam a proposta de suspensão condicional do processo em plenário ofertado pelo Ministério Público, não usurpando assim a competência do Tribunal do Júri.
Seguindo na análise dos casos de relativização, apresenta-se a seguinte indagação: viola a soberania dos veredictos se porventura o Ministério Público recorrer da sentença com base no artigo 593, inciso III do CPP, quando os jurados absolvem o crime conexo contrariamente a prova dos autos?
A resposta em nosso entendimento é não, pelos subsequentes fundamentos.
Para fundamentar o posicionamento de que a apelação criminal ministerial acerca do crime conexo absolvido contrariamente a prova dos autos, com base na aplicação errônea do princípio da consunção, não viola a soberania dos veredictos iremos trabalhar com o seguinte caso hipotético.
O réu é acusado e pronunciado pelo crime de homicídio (art. 121 do CP) em conexão com o crime de porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei n. 10.826/2003). É comprovado durante a instrução processual que acusado não adquiriu a arma de fogo com o objetivo exclusivo de intentar contra a vida da vítima, e sim, que o réu adquiriu a arma de fogo sem as devidas determinações legais muito tempo antes da prática do crime, não havendo desta forma conexão entre os distintos crimes.
O veredicto do Conselho de Sentença é pela condenação pelo homicídio e a absolvição do crime conexo do porte ilegal da arma de fogo, em razão da aplicação do princípio da consunção (o crime meio absorve o crime fim). Ora, absolvição evidentemente contrária a prova dos autos, pois o princípio da consunção não há de ser aplicado no presente caso devido ao fato de não se tratar aqui de crime meio e crime fim e sim de dois crimes praticados em diferentes momentos de consumação.
Diante dessa situação, o recurso por parte do Ministério Público para que a sentença seja reformada em relação ao crime de porte de arma de fogo, com fundamento de ter a sentença sido proferida contrariamente a prova dos autos, não viola o principio da soberania dos veredictos, vez que o MP exerce a função não só de parte do processo, mas também como fiscal da lei, e frente a decisões absurdas é seu dever buscar pela efetiva aplicação da lei.
Além do mais, como já exposto o princípio da soberania dos veredictos não significa que as decisões dos jurados sejam imutáveis e perfeitamente acertadas. Logo é cabível tal recurso, para que o pleito do Ministério Público seja atendido e o réu seja submetido a novo julgamento por júri diverso daquele que proferiu a primeira decisão, para que possivelmente se tenha uma decisão em conformidade com as provas dos autos.
Acerca do tema, colaciona-se o recente julgado abaixo:
APELAÇÃO CRIME. TENTATIVAS DE HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. CRIMES CONEXOS. PORTE DE ARMA. RECEPTAÇÃO. CONDENAÇÃO PELO TRIBUNAL DO JÚRI. APELO DEFENSIVO COM BASE NAS ALÍNEAS A , B , C E D DO INCISO III DO ART. 593 DA LEI PROCESSUAL PENAL. PRELIMINAR. NULIDADE. ANIMUS NECANDI. MANUTENÇÃO DAS QUALIFICADORAS. CONSUNÇÃO ENTRE OS DELITOS DE PORTE ILEGAL DE ARMA E RECEPTAÇÃO EM RELAÇÃO AO CRIME CONTRA A VIDA. INOCORRÊNCIA. DESÍGNIOS AUTÔNOMOS. DOSIMETRIA. PENAS REDIMENSIONADAS. [...] b) Provas concretas no sentido de que ambos os réus estavam portando armas de fogo, de forma autônoma, em momento anterior ao delito de tentativa de homicídio, o que foi devidamente descrito na denúncia, bem como que haviam recebido a arma em momento anterior, demonstrando de forma clara a distinção dos momentos consumativos, sendo inviável a absorção das condutas.[...]
(TJ-RS - ACR: 70079370409 RS, Relator: Rinez da Trindade, Data de Julgamento: 23/05/2019, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 06/06/2019)
Outrossim não viola o princípio da soberania dos veredictos e muito menos a soberania do Tribunal do Júri, o recurso interposto pela vítima ou sua família frente a absolvição do réu em plenário contrariamente a provas dos autos, para que seja submetido a novo julgamento.
Nesta hipótese, o acertado é que a apelação seja interposta pelo assistente de acusação já habilitado nos autos, para que se possa buscar a aplicação da sanção penal ao réu que praticou determinado crime contra a vida da vítima.
Entende-se que o direito e garantia a liberdade do réu previsto constitucionalmente, não deve prevalecer frente ao direito da vítima de ter a legislação penal devidamente observada e aplicada em seu caso, para que não surja o sentimento de que a impunidade prevaleça no nosso ordenamento jurídico, bem como tratar-se de medida de justiça.
Além disso, comprovado nos autos a prática delituosa realizada pelo réu, deve ser ele condenado a pagar, dentro das possíveis penas aplicadas pelo Código Penal, pelo mau que causou a outrem. Claro que garantido a plenitude de defesa em seu julgamento, como também previsto na Constituição Brasileira de 1988.
O mesmo não ocorre, quando o Ministério Público recorre da absolvição do acusado em plenário utilizando o fundamento do artigo 593, inciso III, alínea “d”, do Código de Processo Penal.
Apesar do Ministério Público atuar como parte do processo e fiscal da ordem jurídica, no momento em que ele em que interpõe apelação em face da sentença de absolvição ele não está em prol somente da vítima e sim, principalmente em prol da sociedade, devendo a apelação interposta ser considerada inconstitucional.
Os doutores, Lia Felberg e Rodrigo Felberg, em artigo publicado na revista jurídica online do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, desenvolvem igual posicionamento sob a argumentação de ser o referido recurso exclusivo da defesa e por estar ali previsto em benefício do réu e não contra si. Em suas palavras:
Doutrina e jurisprudência majoritárias, no entanto, convergem no sentido de que, apesar de soberano, o veredito dos jurados não é absoluto. É certo que as decisões dos jurados não podem ser alteradas em relação ao mérito, todavia, se anulada a decisão, outra deve ser proferida, também pelo Tribunal do Júri, o único competente para reavaliar o mérito do caso.Todavia, sustentamos que essa possibilidade admitida pelos Tribunais somente teria fundamento, desde que a inconformidade partisse da defesa. Isto é, se condenado pelo Tribunal do Júri, caberia ao réu, exclusivamente, apelar da decisão com fundamento no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal. A apelação pelo Ministério Público com fundamento "na decisão manifestamente contrária à prova dos autos", é inadmissível em face dos princípios constitucionais, eis que se trata de incontestável violação à norma garantidora.A possibilidade do recurso com esse fundamento é, sem dúvida, exclusiva da defesa, porquanto a soberania da decisão do Conselho de Sentença encontra-se no capítulo "dos direitos e garantias fundamentais", não podendo, evidentemente, militar contra o réu. (2013, p. 7)
Ressalta-se nos casos de revisão criminal, abordado acima como uma exceção ao princípio da soberania dos veredictos, não ferir a soberania do Tribunal do Júri em razão de que a competência do Júri já fora exaurida por ter a sentença transitada em julgado.
Ante o exposto, depreende-se haver nos casos apontados a presença da relatividade da soberania do Tribunal do Júri e dos veredictos emanados pelos jurados que compõe o Conselho de Sentença, e em outros casos a prevalência da soberania constitucional tanto do Tribunal do Júri quanto dos seus veredictos.
CONCLUSÃO
Por todo o apresentado, conclui-se pela importância ímpar que o instituto do Tribunal do Júri possui, não só no ordenamento jurídico brasileiro, mas também em todos os outros países que adotam tal procedimento para processar e julgar determinados crimes.
Ressalta-se a peculiaridade do júri ao convocar parcela da sociedade para compor o Conselho de Sentença na sessão de julgamento, materializa e oportuniza aos convocados a exercerem o seu papel de cidadão também no âmbito do judiciário e não só no período de eleições a cada quatro anos.
Ademais, a sentença proferida por sete jurados que estão ali somente com as suas convicções, entende-se ser mais justa do que aquela proferida por um juiz togado que está atrelado e limitado aos ditames legais e com o dever de fundamentar corretamente cada decisão ou sentença que profere.
Com o presente estudo, buscou-se trazer a compreensão mais facilitada do Tribunal do Júri, dos seus princípios constitucionais da soberania dos veredictos e da competência para julgar os crimes dolosos contra a vida, bem como acerca do seu bifásico procedimento.
Concluiu-se pela presença da relatividade da soberania do Tribunal do Júri nos casos de absolvição sumária pelo juiz na fase de instrução, o qual ao analisar a matéria fática não o é competente fazer.
E para que a relatividade neste caso deixe de existir, a possível exclusão da primeira fase passando o procedimento ter somente uma fase, onde aos jurados fosse oportunizado participar de todo processo, para que analisando todas as provas, seja, documentais, periciais ou testemunhais desde o início do processo, para que a sua decisão seja formada ao longo do período de instrução até o momento do julgamento, acredita-se que os veredictos emanados pelo Conselho de Sentença seriam mais justos e coerentes com a realidade processual do que acontece atualmente.
Fora também delineado com relação a suspensão condicional nos crimes de aborto, onde a proposta que é ofertada no ato do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, sendo que se aceita pelo réu, ele não será levado a julgamento pelo Júri. Entende-se que nestes casos, também há a relativização da competência do Tribunal do Júri, vez que o crime de aborto está dentro do rol taxativo dos crimes dolosos contra a vida, e que eventual suspensão do processo deveria ser oferecida na sessão de julgamento, sob o aval dos jurados que são os competentes para analisar o mérito da causa.
De outro giro, concluiu-se pela não existência da relatividade da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, nos casos em que o Ministério Público recorre da absolvição do crime conexo, em razão da decisão ser contrária a prova dos autos, bem como a aplicação errônea por parte dos jurados do princípio da consunção, devido ao fato de restar demonstrado momentos distintos da consumados dos crimes ali postos em julgamento.
Da mesma maneira, não violar a soberania dos veredictos dos jurados nos casos de absolvição do crime doloso contra a vida, contrária a prova dos autos, nos casos de interposição do recurso de apelação pela vítima ou sua família, através do assistente de acusação, por se tratar de medida de justiça a possibilidade do réu ser condenado, se submetido a novo julgamento. O direito da vítima (ou de sua família) de ver a justiça ser aplicada no seu caso deve prevalecer frente ao direito de liberdade do réu.
O mesmo não ocorre caso o Ministério Público recorra da sentença de absolvição em plenário com o fundamento de ser ela contrária a prova dos autos. Nesta hipótese o Parquet não está somente em favor dos interesses da vítima, e sim da sociedade como um todo. Indaga-se se a família não configura como sociedade? Sim, é parcela da sociedade que apresenta naquele determinado processo sentimento íntimo e subjetivo que o réu seja condenado, diferente do restante da sociedade que vê com certo repúdio o que aconteceu mas que não possui qualquer envolvimento pessoal.
E é por esse motivo, que o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público frente a uma absolvição em plenário de julgamento violaria a soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, pois ele estará em prol da sociedade.
Portanto, o raciocínio aqui delineado não é pela exclusão do Tribunal do Júri do ordenamento jurídico, mas foi delinear que em algumas situações é possível que haja a relatividade do Tribunal do Júri e de seus veredictos, a qual possui status constitucional, e em outras hipóteses que não há a relativização da soberania mesmo que apontada por muitos.
É deveras importante os tópicos apontados neste artigo, devido ao fato de que os crimes que são submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri são os dolosos contra a vida e em qualquer ramo do direito, seja penal ou civil, todos vão se posicionar a favor da vida e tentar rechaçar, repreender e punir todo aquele que intentar contra a vida de outrem.
Devendo então, o Tribunal do Júri ser mantido a sua previsão no ordenamento jurídico e melhorado nos pontos que foram expostos no decorrer deste artigo.
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bacharelanda em Direito pelo Centro Universitário São Lucas de Ji-Paraná
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTIAGO, Jessica Cardozo. A relatividade da soberania do Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 dez 2019, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54024/a-relatividade-da-soberania-do-tribunal-do-jri. Acesso em: 23 dez 2024.
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