Trabalho de conclusão do Curso de Pós-graduação em Direito Público da Faculdade Unyleya, sob a orientação da Professora Conceição Rejane Miranda da Cruz.
RESUMO: O legislador constituinte da Carta de 1988 assentou um rol expresso de direitos e garantias fundamentais explícitos, entre os quais está o direito de propriedade, também consignado, pelo Código Civil de 2002, como direito real. A mais tenra análise histórica da evolução interpessoal humana pode, sem prejuízo da relevância de outras liberdades essenciais, revelar que o desenvolvimento socioeconômico de um povo, nação ou comunidade, passa, fundamentalmente, pela possibilidade de negociar aquisições, de granjear coisas ou bens a que se possa atribuir valor patrimonial. A essencialidade destes atos de transferência ou repasse geral do domínio sobre algo, nas antepassadas e correntes relações multipessoais, é extremamente intuitiva, assim desvelando-se na medida em que aqueles atos representam a circulação, local, regional ou nacional, de riquezas e bens dotados de valor econômico, detendo a plena capacidade, proporcional ao respectivo volume de operações, de impulsionar, ainda que setorialmente em alguns casos, o desenvolvimento econômico social. Seja no contexto das primordiais operações de escambo comercial ou no âmbito das mais recentes modalidades de contrato de transmissão da titularidade de bens, permanece evidente sua a importância financeiro-econômica, notadamente pelo fato de significar a atribuição de diversas prerrogativas de soberania gerencial sobre o bem ou coisa dominada. E é esse conjunto de prerrogativas, objetivado nas negociações exemplificadas, antigas ou modernas, que pode ser compreendido, grosso modo, como propriedade. Embora exígua, desta explanação é fácil denotar o porquê da constitucionalização do direito de propriedade como direito fundamental. Na vigente ordem constitucional brasileira, a propriedade recebe uma disciplina jurídica específica quando inserida em zonas urbanas e um outro tratamento especializado quando localizada em áreas rurais. No âmbito urbano, o que efetivamente interessa a este trabalho, o constituinte originário outorgou aos Municípios a capacidade e competência para fiscalizar e administrar o controle das relações urbanísticas em geral, inclusive, sobre o exercício privado do direito de propriedade urbana, objetivando assegurar o bem-estar da coletividade local e manter a preservação da organização da cidade, concretizando-se a primazia do interesse público. A atividade fiscal dos Municípios, nesse contexto, é amparada por um regulamento constitucional e infraconstitucional diferenciado, mas, fundamentalmente, pelo princípio da função social da propriedade urbana. A função social da propriedade, também prevista no texto constitucional como direito (principiológico) coletivo fundamental, consubstancia o contrapeso da propriedade, finalisticamente voltada a frear os excessos do exercício desmedido do domínio privado. É preceito que tem aplicação específica, no âmbito urbanístico, para municiar o Município de legitimidade jurídica na determinação das medidas de polícia voltadas a assegurar o permanente aproveitamento do solo urbano. Quanto aos excessos do proprietário urbano, a aplicação da função social como ponto equilibrante é inquestionável, podendo licitar, inclusive, a eliminação da propriedade particular. E, conforme detalhamento seguinte, ante ao caráter especialíssimo do regime jurídico da propriedade urbana, a função social poderá abonar até mesmo as desapropriações motivadas pela eventual falta de uso ou utilização inadequada do imóvel urbano, em caráter sancionatório, tratando-se de instituto de ampla abrangência e eficácia jurídicas.
ABSTRACT: The constituent legislator of the Charter of 1988 established an explicit role of explicit fundamental rights and guarantees, including the right to property, also recorded by the Civil Code of 2002, as a right in rem. The more tenuous historical analysis of human interpersonal evolution can, without prejudice to the relevance of other essential freedoms, reveal that the socioeconomic development of a people, nation or community, fundamentally passes through the possibility of negotiating acquisitions, of obtaining things or goods to which may be attributed equity value. The essentiality of these acts of transfer or general transference of dominion over something in the ancestral and current multipersonal relations is extremely intuitive, thus revealing itself to the extent that those acts represent the local, regional or national circulation of wealth and gifted goods of economic value, holding the full capacity, proportional to the respective volume of operations, to impel, although sectorally in some cases, social economic development. Be it in the context of the primordial commercial barter operations or in the scope of the most recent modalities of contract of transmission of the ownership of goods, it remains evident the financial-economic importance, notably because it means the attribution of several prerogatives of managerial sovereignty over the asset or dominated thing. And it is this set of prerogatives, objectified in exemplified negotiations, old or modern, that can be roughly understood as property. Although it is small, from this explanation it is easy to denote the reason for the constitutionalisation of the right of property as a fundamental right. In the current Brazilian constitutional order, property receives a specific legal discipline when inserted in urban areas and another specialized treatment when located in rural areas. In the urban context, what really interests this work, the original constituent granted the Municipalities the capacity and competence to supervise and manage the control of urban relations in general, including, on the private exercise of the right of urban property, aiming to ensure the good -establishing the local community and maintaining the preservation of the organization of the city, concretizing the primacy of the public interest. The fiscal activity of the Municipalities, in this context, is supported by a differentiated constitutional and infraconstitutional regulation, but, fundamentally, by the principle of the social function of urban property. The social function of property, also foreseen in the constitutional text as a fundamental collective (fundamental) right, constitutes the counterweight of property, which is ultimately aimed at curbing the excesses of the excessive exercise of the private domain. It is a precept that has specific application in the urban area to provide the Municipality with legal legitimacy in determining the police measures aimed at ensuring the permanent use of urban land. As for the excesses of the urban owner, the application of the social function as a balancing point is unquestionable, being able to even bid for the elimination of private property. And, according to the following detail, given the special character of the legal regime of urban property, the social function may pay even the expropriations motivated by the eventual lack of use or inadequate use of urban property, as a sanctionatory, scope and effectiveness.
Keywords: Property. Right. Fundamental. Function. Social. Limit.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 EXPLANAÇÃO DOS ASPECTOS GERAIS DA CONTRAPOSIÇÃO ENTRE PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 1.1 O Direito Fundamental de Propriedade. 1.2 O Princípio da Função Social da Propriedade enquanto Direito Fundamental Coletivo. 1.3 Análise Prática da Relação Oposicional entre a Propriedade e sua Função Social no Âmbito Municipal Urbanístico. 2 BREVE ELUCIDAÇÃO HISTÓRICA DO SURGIMENTO DAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS E DA PROPRIEDADE NO PLANO INTERNACIONAL E NO BRASIL. 2.1 O Movimento Constitucionalista e o Advento dos Direitos Fundamentais. 2.2 A Correlação Direta entre o Regime Político Democrático e o Sistema Protetivo dos Direitos Fundamentais. 2.3 A Caracterização Básica da Propriedade e sua Função Social na Sistemática Constitucional Social-Intervencionista Brasileira. 3 A PROPRIEDADE NA DISCIPLINA INFRACONSTITUCIONAL DO CÓDIGO CIVIL E DO ESTATUTO DA CIDADE E A FUNÇÃO SOCIAL COMO LEGÍTIMO FUNDAMENTO DA ATIVIDADE MUNICIPAL DO ART. 182, § 4º, DA CRFB/88. 3.1 A Normatização Civilista do Direito Real de Propriedade. 3.2 O Paralelo entre a Atividade Municipal fundada no Art. 182, § 3º, e aquela baseada no Art. 182, § 4º, da CRFB/88. 3.3 A Atuação Municipal de Controle do Art. 182, § 4º, da CRFB/88, é fundada no Poder Administrativo de Polícia. 3.4 As Medidas Interventivas do Art. 182, § 4º, da CRFB/88, e a Aplicação da Função Social da Propriedade Urbana, como Base à Imposição do Adequado Aproveitamento do Solo Urbano. DISCUSSÃO. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
O art. 182, caput, da Constituição Federal de 1988, prevê que a política de desenvolvimento urbano será levada a efeito pelos Municípios, observadas normas gerais de lei federal, editada pelo Congresso Nacional.
Ainda segundo o referido dispositivo, a política urbanística tem por fim maior ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, o que deve ser continuadamente perseguido pelos Municípios como forma de realização de sua missão institucional.
Do que se pode aferir o caráter não facultativo do princípio da função social da propriedade, para efeito da normatização urbanística. Este se impõe obrigatório e vincula a atuação dos Municípios no sentido do dever de fiscalizar o uso do solo urbano, nas propriedades particulares inseridas em áreas urbanas ou de expansão urbana.
Nesta esfera é que insurge o embate entre os limites imanentes ao dever de vigilância municipal e o regimento constitucional e legal do direito de propriedade particular, marcantemente especializado e distinto, frente a outras liberdades públicas e direitos assemelhados.
É no âmbito específico da relação urbanística entre Município fiscalizador e proprietário particular fiscalizado que importa analisar a legitimidade jurídica, para além de parâmetros estritamente centrados em normas-regra, das faculdades e cautelas legalmente disponíveis ao Poder Executivo local para fazer valer o contínuo aproveitamento dos espaços e imóveis urbanos.
Isto tendo em vista, entre outros aspectos, que as referidas providências poderão, no limite das medidas possíveis, implicar a total perda da propriedade imóvel, com irreparável prejuízo ao seu titular.
Tal hipótese estaria efetivamente legitimada dentro da conjuntura jurídica nacional, notadamente em face da reconhecível insígnia constitucional e legal incidente sobre o direito de propriedade? É o exame que se faz a seguir.
A Constituição Federal brasileira de 1988, na qualidade de documento instaurador e assegurador do regime democrático de governo, consagra uma série de direitos voltados à proteção da sociedade popular.
Entre os quais têm destaque os direitos fundamentais, mais reconhecidos como sendo aqueles destinados a concretizar os princípios essenciais da base social democrática, como o da Dignidade da Pessoa Humana, ressalte-se de passagem, já há muito alçado à condição de Postulado Internacional dos direitos humanos.
A Carta Federal cidadã consagra um rol expresso de direitos fundamentais, sem prejuízo dos que dali restam implícitos, acionáveis tanto em âmbito individual quanto coletivo, mediante a vindicação das respectivas garantias, também patentemente consignadas no texto magno
O Poder Constituinte Originário instituiu diversos direitos e garantias individuais e coletivos fundamentais, notadamente entre os artigos 5º e 17, do Título II, da CRFB/88, dos quais vale nesta oportunidade ressaltar o Direito de Propriedade. À literalidade do dispositivo constitucional do art. 5º, XXII, tem-se que: “é garantido o direito de propriedade”.
Em que pese os direitos de cunho constitucional revelarem-se com uma maior densidade jurídica quando em paralelo aos de índole estritamente legal ou infralegal, sendo isso uma decorrência natural da própria supremacia formal das normas constitucionais, eles não assumem um caráter absoluto, podendo ser pontualmente relaxados, a depender do caso concreto e da natureza da aparente contradição entre dois ou mais direitos consagrados em norma da Constituição.
A relativização dos direitos estatuídos na Constituição Federal, inclusive daqueles expressamente listados como fundamentais, pode ser vislumbrada, no mais extremado exemplo, no próprio fato de o direito à vida, mais relevante bem jurídico da esfera de direitos de qualquer cidadão no mundo (e expresso do caput do art. 5º, da CRFB/88), não prevalecer frente à aplicação da pena de morte em caso de guerra declarada, presentes as respectivas hipóteses de cabimento, segundo prevê o mesmo art. 5º, XLVII, “a”, da CRFB/88.
Pelo seu caráter extremamente excepcional, vale conferir o teor expresso da referida disposição, literalmente: “XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”.
Com efeito, o Direito de Propriedade, inobstante levantado ao patamar de direito fundamental explícito, não se encerra absoluto ou inarredável, a exemplo dos demais de mesma categoria, sendo plenamente passível de mitigação pontual.
No entanto, não desconsiderada a relevância dos bens jurídicos fundamentalmente protegidos pela ordem constitucional, a relativização do direito de propriedade não pode ser vulgarizada, devendo amparar-se em causas juridicamente relevantes e imbuídas de um impacto metaindividual, efetivamente habilitadas a ensejar a inferiorização casuística de um direito munido de características especiais e tutelado de forma diferenciada.
O principal fundamento para a atenuação da eficácia jurídica do direito de propriedade é derivado de outra norma de natureza constitucional, inserida no mesmo art. 5º (inciso XXIII), da Constituição Cidadã, e consiste na Função Social da propriedade, norma-princípio explícita do texto maior. Conforme o sobredito dispositivo, “a propriedade atenderá sua função social”.
Ora, se a própria Constituição Federal determina que a propriedade deve atender a uma função social, não é difícil concluir que o referido direito fundamental haverá de ser restringido na medida em que for exercido com violação a outros direitos fundamentais de ordem supraindividual, coletivos ou difusos, direta ou indiretamente relacionados à sociedade local, regional ou até nacional.
Pelo que se nota que a função social da propriedade configura importante redutor constitucional da esfera jurídica do direito de propriedade, não à toa insculpida no corpo do mesmo art. 5º, da CRFB/88.
Deste modo, se o preceito do fim social da propriedade, de um lado, consubstancia óbice jurídico-constitucional ao gozo desregrado da propriedade, de outro, projeta uma proteção fundamental sobre os interesses transpessoais correlacionados à hipótese fática de eventual excesso ou inutilização de domínio, visto que tais interesses são resguardados pelos mesmos mecanismos constitucionais de garantia e efetivação de direitos fundamentais sob iminente ou efetiva violação.
Tendo em conta o referenciado limitador, consistente no dever de cumprimento de sua finalidade social, o exercício da propriedade, na forma de direito eminentemente individual ou relacionado a uma categoria limitada de beneficiários, fica condicionado à não violação das prerrogativas, interesses ou direitos de outros indivíduos ou grupos sociais entornados, em suma, à não causação de prejuízos a terceiros, mediata ou imediatamente abrangidos.
Apenas o fato supramencionado já seria capaz de revelar, minimamente, uma importância socioeconômica atrelada não somente à propriedade, cumulativamente positivada como princípio geral da Ordem Econômica (art. 170, II, CRFB/88), mas também à respectiva função social.
Não por acaso, o princípio magno da função social do domínio, igualmente à propriedade, além de constituir um direito fundamental também cumula a figura de princípio geral do ordenamento econômico, nos termos do art. 170, III, da CRFB/88, perfazendo-se parâmetro, de caráter negativo (porque limitador de outro direito), indispensável ao equilíbrio das relações econômicas.
Diante disso, não é difícil compreender o porquê da positivação constitucional da função social da propriedade. Esta objetiva, em sentido amplo, restringir o exercício do direito de propriedade aos casos desprovidos de abuso ou desproporção no uso das prerrogativas inerentes, servindo, principalmente, para tutelar interesses gerais ou coletivos mesmo no contexto do exercício de um direito preponderantemente individual: a propriedade ou domínio sobre bens por pessoa, natural ou jurídica.
Para além da evidente relevância do princípio do art. 5º, XXIII, da CRFB/88, em caráter de contrabalanço ao livre exercício da propriedade, inclusive para fins sócio-econômicos, interessa ponderar acerca da efetiva legitimidade deste preceito limitador em outras vertentes de sua aplicação.
Isso porque a função social também poderá constituir fundamento para o controle público da propriedade do qual resulte não apenas meros condicionamentos ao seu exercício, mas a própria subtração deste direito e respectivo bem dominado, ao resultado de considerável diminuição do acervo patrimonial particular envolvido, haja vista compreender a extinção da titularidade sobre bens imóveis privados.
Conforme as normas da legislação constitucional e federal a serem posteriormente analisadas, os Municípios da federação brasileira poderão, no campo da execução das políticas urbanas, chegar ao ponto de suprimir o direito de propriedade como a contramedida mais séria à violação da parcela social que lhe toca, mediante o instituto da Desapropriação estatal de bens particulares, exatamente em razão de descumprimento da função social.
Isto se diz ao passo em que existem situações inequívocas, inclusive expressas do texto constitucional, nas quais o consectário para a não concretização da finalidade social da propriedade constitui-se na irrevogável perda do domínio do imóvel urbano, elididas, que sejam, todas as facetas jurídicas da proteção especial que repousa sobre esse direito fundamental, no ordenamento vigente.
Neste sentido, cumpre esclarecer que o constituinte originário preferiu indicar os pressupostos necessários à efetiva configuração da função social da propriedade.
Para aquela inserida em área urbana, os requisitos são uns e, para a localizada em zona rural, são outros. Em relação aos bens dominados em áreas com características e finalidade urbanas, o atendimento “às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” é suficiente para assegurar, numa perspectiva ampla, genérica e complementável, a observância do pluricitado princípio, nos termos do art. 182, § 2º, da CRFB/88.
Elucidando, apenas de passagem, o mesmo fenômeno jurídico em âmbito rural, cumpre dizer que a efetivação da norma do art. 5º, XXIII, CRFB/88, quanto às propriedades rurais, dependerá do cumprimento dos seguintes requisitos expressos, a teor do art. 186, do mesmo documento, a saber:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Sem desmerecer a relevância da necessidade do cumprimento da função social da propriedade em zona rural e respectivos mecanismos de efetivação indireta pelo estado, esta pesquisa delimita o campo de sua avaliação nos aspectos ligados à intervenção pública municipal sobre a propriedade para fins urbanísticos (artigos 182 e 183, da CF/88).
A atuação do poder público municipal baseada nos artigos 182 e 183, da CRFB/88, pode assumir tanto um caráter eminentemente político, visando à implementação de políticas públicas previamente formuladas (183, § 3º), quanto deter uma natureza inspecional, de controle e supervisão sobre a conduta do proprietário quanto ao uso do imóvel urbano (182, § 4º), à luz da realização da função social da propriedade.
No primeiro caso, o Município tem a faculdade constitucional de transferir para si a propriedade de determinado imóvel privado, pela via da desapropriação urbanística (mediante prévia e justa indenização em dinheiro; art. 182, § 3º, CF/88).
Nesta hipótese, o Município objetiva utilizar o bem, ou o espaço urbano a ele correspondente, como um possível meio concreto de realização das atividades municipais ordinárias, voltadas, a final, à realização de obras públicas, prestação de serviços públicos e outorga de outras disponibilidades à sociedade local, num atendimento apenas secundário de seus anseios mais gerais e amplos.
Em tese, a aplicação do princípio da função social é apenas mediata ou transversal, visto que, na realidade, o fim direto da supressão do domínio privado é municiar o poder público de mais um instrumento de governança urbanística, a ser discricionariamente utilizado na transversão dos recursos públicos em comodidades populares, na medida da efetiva necessidade e conforme o respectivo planejamento político de governo.
É o que se vislumbra quando, ato contínuo à desapropriação, o Município providencia a construção de prédio para funcionar como sede administrativa de órgão ou entidade municipal, otimizando a prestação de serviços à população. Ou, ainda, quando se faz a instalação, em lugar do bem desapropriado, de equipamentos de mobilidade urbana, mobiliários de acessibilidade, entre outros.
Neste caso do art. 182, § 3º, da CRFB/88, a intervenção municipal supressiva do direito de propriedade de um, ou alguns poucos indivíduos, se dá em favor do poder público do Município, se baseando, pode-se concluir, no interesse público secundário, é dizer, do Município expropriante. Apenas potencialmente vem a servir aos intentos gerais da comunidade, e somente quando efetivamente convertida a ação expropriatória em bem jurídico tutelado à coletividade local.
Isto é, não se trata da imposição estatal de termos, condições ou pressupostos de utilização, ao agente particular, porquanto este permaneceria no domínio da coisa, não obstante os condicionamentos.,
Diferentemente, o dispositivo constitucional supracitado legitima a própria extinção do direito de propriedade particular, com a transferência da titularidade ao poder público, doravante responsável por decidir, na sede do mérito administrativo, a melhor destinação para o bem recém-incorporado ao seu acervo patrimonial.
Para além disso, na mesma esfera urbanística, mas para a atender a finalidade diversa e agora com base no art. 182, § 4º, CRFB/88, aos Municípios também é dado intervir sobre o patrimônio imobiliário particular em caso de comprovada inadequação do uso do solo urbano pelo proprietário.
Esta má utilização configuraria tipo expresso, do texto constitucional, de descumprimento do princípio da função social da propriedade urbana, e ensejaria a aplicação sucessiva de medidas de ingerência, no limite das quais estaria a desapropriação com o pagamento de indenização em títulos da dívida pública, sem garantia de recebimento prévio à desocupação, num cenário claramente mais gravoso ao administrado perdedor da propriedade.
Pela importância, vale a transcrição literal da regra do art. 182, § 4º, CRFB/88, fundamento constitucional autorizador das atividades municipais de polícia voltadas à imposição do atendimento da função social da propriedade urbana quanto à destinação e forma de uso do solo urbano, senão vejamos:
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Na espécie consignada acima, a conduta expropriatória do ente municipal, a título de terceira e mais extremada medida de coerção ao cumprimento do fim social da propriedade urbana, baseia-se no poder administrativo de polícia, assumindo um caráter claramente fiscal e de controle das faculdades privadas de gestão do espaço urbano pelo proprietário.
Contexto no qual, conquanto cabível controvérsia, o atendimento imediato ao interesse público primário local, que é o inerente e fundamental ao essencial desenvolvimento da sociedade municipal, detém a primazia, constituindo o fundamento direto da ação expropriatória do Município.
Relevada discussão que envolva as duas primeiras medidas do art. 182, § 4º, da CRFB/88, a desapropriação com indenização paga em títulos da dívida pública (sem precedência obrigatória à desocupação) ocorre num plano de fundo flagrantemente diferente daquele que envolve a perda da propriedade fundada no art. 182, § 3º.
Isto em razão de configurar atuação fiscalizadora que se volta, ao fim e ao cabo, à distribuição de benefícios sociais como fim maior, mediante ação pautada no intento principal de controlar a administração e uso privados irregulares dos espaços urbanos particularmente adquiridos.
Nada obstante à relevância do controle público sobre o exercício privado da propriedade, essa hipótese levanta questão acerca da efetiva existência de legitimidade, proporcionalidade e razoabilidade na adoção municipal desta última medida interventiva.
Haja vista significar a elisão irretroativa do domínio imobiliário particular pela via indenizatória de títulos da dívida pública, com resgate condicionado e prescritível, segundo será detalhado no decorrer desta análise monográfica.
O que convém indagar, nessa linha, é se o tão só não aproveitamento de um bem urbano validamente adquirido deveria ter o pesado condão jurídico para fundamentar a eliminação unilateral forçada da propriedade. Pois é o que ocorre na prática, quando recalcitrar o não aproveitamento do solo urbano pelo proprietário já subserviente aos efeitos coercitivos das duas primeiras providências do art. 182, § 4º, da CRFB/88.
Ainda mais quando se sabe operada a transferência do domínio imobiliário ao patrimônio municipal pela via de desapropriação compensada com pagamento em títulos de emissão da dívida pública, como antecipado, com resgate limitado a prazo certo e em parcelas estáticas, iguais e sucessivas.
Delimitado o escopo desta pesquisa ao caso específico das propriedades localizadas em área urbana ou de expansão urbana, relativamente às quais atribuída competência constitucional fiscalizatória aos municípios, cumpre analisar os fundamentos jurídicos sustentadores da legitimidade conjuntural, da razoabilidade estrutural das medidas disponibilizadas aos Municípios, limitadoras e até extintoras do domínio urbano privado, para efeito do cumprimento coativo da função social da propriedade.
Derradeiramente, afirma-se que o marco teórico da presente averiguação científica, em vista dos limites do tema anteproposto, basicamente gira em torno das normas constitucionais e infraconstitucionais federais que regulamentam de maneira relevante, em caráter genérico ou específico, o instituto da propriedade urbana e respectiva função social, no ordenamento pátrio.
Pelo que, analisando as concepções gerais da propriedade na legislação aplicável, presente na Constituição Federal e em documentos legais federais reguladores, e as lições doutrinárias mais destacadas, impende discutir, subsecutivamente, o liame e a consistência jurídica, numa perspectiva global da corrente ordem normativa, a relação de equilíbrio entre as normas constitucionais dos artigos 5º, XXII e XXIII, e 170, II e III, CRFB/88.
Normas magnas as quais, de um lado, consolidam a propriedade como direito fundamental e princípio geral da ordem econômica (propriedade privada, especificamente), indiscutivelmente imprescindível ao regular desenvolvimento das atividades que integram a econômica brasileira e, de outro, impõem o princípio da função social da propriedade como elemento público relaxador do seu normal exercício particular, também princípio-base da ordem econômica, como o principal motivador da polícia administrativa municipal para os fins do art. 182, § 4º, da CRFB/88.
Para o que se faz necessário considerar, na posterior discussão e para o fim da conseguinte conclusão, entre outros diplomas legislativos importantes, as definições e conceitos básicos relacionados ao instituto da propriedade trazidos pelo Código Civil brasileiro, lei ordinária federal nº 10.406/02.
Antecipe-se que a codificação privada o classifica como Direito de natureza Real, existindo intrinsecamente aos elementos da coisa ou objeto dominado, a despeito da pessoa titular. Fato que, indubitavelmente, só realça a especialidade e distinção deste direito constitucional, peculiarizando-o diante da atuação controladora do Município nos espaços urbanos.
A República Federativa do Brasil, instaurada nos moldes da Constituição Federal de 1988, é arregimentada por diversos princípios fundamentais, expressos dos incisos do art. 1º, da Carta constitucional.
Indubitavelmente, entres os citados princípios-base, expõe-se, em destaque, a Dignidade da Pessoa Humana. Mais que um princípio e de vigência supranacional, o instituto constitui uma das vigas mestras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, na cidade de Paris (França), por meio da Resolução 217 A (III).
A atual importância atribuída, nos âmbitos interno e internacional, ao axioma da dignidade humana não resulta do acaso, mas tem o seu nascedouro nos deletérios e insustentáveis desdobramentos dos conflitos armados multinacionais, que se desenrolaram no decorrer do último século, de todo incompatíveis com a tendência de amadurecimento ideológico da civilização mundial moderna e pós-moderna.
Para além das mais remotas tentativas de juridicização internacional de normas protetoras de direitos humanos, como é o caso, por exemplo, do Tratado de Westfália de 1648, os antecedentes históricos mais tangíveis voltados a cooperar para a instauração do atual sistema de tutela dos direitos humanos surgiram no pós-segunda guerra mundial, mais notadamente com a instituição do Direito Humanitário[1] (aplicável no contexto interno das guerras), e com a criação da Liga das Nações[2] (predecessora da Organização das Nações Unidas - ONU) e da Organização Internacional do Trabalho – OIT (MAZUOLLI, 2018).
Conquanto o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da CRFB/88, constitua o esteio maior dos demais direitos essenciais à existência e desenvolvimento das relações sociais hodiernas, os direitos e liberdades públicas fundamentais atualmente positivados nas ordens jurídicas internas dos países democráticos, difusamente conhecidos como Direitos Fundamentais, têm o seu advento entrelaçado a ocorrências históricas mais longínquas, diretamente ligadas à propagação do Constitucionalismo.
Conceitualmente, o Constitucionalismo pode ser compreendido como o movimento, de caráter político e filosófico, que intenta institucionalizar direitos e garantias em favor do povo, não raro subjugado a regimes governamentais monárquicos e imperiais de dominação e opressão incontidos, como forma de promoção da limitação do poder estatal (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Isto é, ainda quando inexistente a mais ínfima noção do conceito atualizado de direitos humanos, já se buscava mitigar o absolutismo do poder político das entidades socialmente dominadoras, exatamente para o fim de possibilitar maior liberdade e autonomia aos sujeitos integrantes das comunidades e agrupamentos sociais, em geral desprovidos dos meios bélicos suficientes a lhes garantir independência pela via da autotutela.
Pelo que é possível afirmar que o marco inicial do Constitucionalismo, historicamente, confunde-se com o advento concreto da consolidação institucionalizada, costumeira ou legislativa (a depender do grau de avanço jurídico e organizacional do grupo ou comunidade), de prerrogativas populares básicas e liberdades cívicas, em contraponto à inicial incondicionalidade da força estatal.
Segundo a posição de Karl Loewenstein, as primeiras manifestações palpáveis do movimento constitucional remetem ao período histórico da antiguidade clássica (constitucionalismo primitivo), referindo-se à organização político-social do povo hebreu, que era amparado pela “Lei do Senhor[3]”, nos termos das lições de Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 29), literalmente:
A origem do constitucionalismo remonta à antiguidade clássica, mais especificamente, segundo Karl Loewenstein, ao povo hebreu, de onde partiram as primeiras manifestações deste movimento constitucional em busca de uma organização política da comunidade fundada na limitação do poder absoluto. De fato, explica Loewenstein que o regime teocrático dos hebreus se caracterizou fundamentalmente a partir da ideia de que o detentor do poder, longe de ostentar um poder absoluto e arbitrário, estava limitado pela lei do Senhor, que submetia igualmente os governantes e governados, radicando aí o modelo de constituição material daquele povo.
Contexto em que cumpre apontar as mais relevantes fases da progressão cronológica do constitucionalismo, proporcionais ao grau de avanço da institucionalização pública da proteção popular em oposição à soberania despótica dos governos, para se dar a conhecer os primórdios dos direitos e garantias fundamentais na forma em que atualmente conhecidos, entre os quais figura o direito de propriedade.
Basicamente, os estágios do referido movimento são contemporâneos e identificados com as respectivas idades da evolução histórica humana mais recente registrada. De modo que se tem notícia do constitucionalismo Primitivo[4] (de 30.000 anos a.C. até 3.000 anos a.C.), Antigo (de 3.000 a.C. até o século V), Medieval (do século V até o século XV), Moderno (do século XV até o século XVIII) e Contemporâneo (ou Neoconstitucionalismo; do século XVIII aos nossos dias).
Avançando do que explicitado acerca do movimento constitucional da antiguidade clássica (constitucionalismo primitivo), correlacionado ao Estado hebreu, é possível referenciar o constitucionalismo Antigo nas cidades-Estado gregas, de que é modelo a cidade de Antenas (de 501 a 338 a.C.).
Na citada Atenas grega vigorava um sistema político-constitucional de democracia direta, fundado em larga isonomia entre “governantes e governados”, com o compartilhamento praticamente paritário do poder político entre basicamente todos os cidadãos (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Alude-se, na mesma fase, à República de Roma, do século V ao II a.C., haja vista a instituição de um destacado sistema de freios e contrapesos[5] entre os diversos entes e entidades exercentes do poder estatal.
Não obstante incomparável à consistência da estrutura distributiva de poder presente na referida Antenas grega, o mútuo controle interorganizacional também se punha a materializar considerável restrição a desmandos e arbítrios governamentais, em benefício direto dos populares (CUNHA JÚNIOR, 2017).
Se diz que é entre o constitucionalismo Medieval e o Moderno que advêm elementos de resguardo social não só suscetíveis, mas fortemente tendentes à padronização normativa e consolidação no tempo, dos quais a população governada cada vez menos podia prescindir na esteira do lento e gradativo processo de fortalecimento da voz do povo ante ao senhorio das forças políticas.
Até o início do século XIII d.C., o molde social mais recorrente nas comunidades organizadas era marcado pela existência de uma fonte unilateral de poder centralizadora de todas as funções estatais relevantes, desde as legislativas até às administrativas e jurisdicionais, na pessoa única do rei ou imperador, em geral alçado ao posto-mor por sucessão dinástica ou a partir de operações de conquista estrangeira, como forma de despojo e subjugação de povos inimigos.
Nas raras hipóteses em que o aparelho estatal era integrado por um conjunto mais complexo de órgãos e funções, com a presença de entes de composição plural, como parlatórios legislativos, estes não detinham tanta independência funcional e terminavam sobremaneira limitados pela autoridade central monárquica.
O Déspota figurava como o grande controlador da vida social. Controlava as atividades públicas em geral e suas auxiliares, a atuação de organismos extraestatais de interesse social, como a efetuada pelo corpo eclesiástico do país, e todas as demais atividades exercidas pelos atores comunitários residuais, desde os segmentos importantes, como os dos nobres e burgueses, até aos últimos substratos sociais.
Entretanto, no contexto da Inglaterra medieval, vários foram os atos de natureza jurídica praticados no sentido do reconhecimento formal de direitos essências aos governados, ainda que num primeiro momento limitadamente a poucas parcelas sociais.
Entre estes atos ressalta-se o marco constitucional da Magna Carta inglesa de 1215 (Magna Charta Libertatum), resultado do acordo firmado entre o Rei João Sem Terra, a Nobreza e a Igreja inglesas, principais sujeitos da interação social então existente (MORAES, 2019).
Pelo termos definidos no supraescrito pacto constitucional[6], responsável por juridicizar importantes limites ao poder absolutista do rei, ele próprio passaria a vincular-se à observância da maior parte das regras comuns a todos os cidadãos, obrigando-se, por exemplo, a respeitar prerrogativas pessoais basilares, como a da Liberdade, e direitos legitimamente adquiridos, como o direito de Propriedade, sobre o qual importará discorrer com maior ênfase deste ponto em diante.
Já no contexto inicial do constitucionalismo moderno, em um cenário político geral marcadamente menos tirânico, outros atos estatais complementares ao sobredito marco constitucional inglês, de 1215, também foram verificados na referida terra anglo-saxã, como é o caso da Petition of Rights, do ano de 1628, fruto de um ajuste celebrado entre o Rei Carlos I e o Parlamento (NOVELINO, 2014).
Demais disso, também em razão do forte impacto sócio-garantista, destaca-se a elaboração de outros documentos posteriores imbuídos da função normatizadora e assecuratória de liberdades e direitos essenciais, como o Habeas Corpus Act, em 1679, o Bill of Rights, no ano de 1689, e o Act of Settlement, no século XVIII, ano de 1701 (NOVELINO, 2014).
Pelo exposto, não restam dúvidas de que a Inglaterra foi o palco mundial dos maiores avanços no início do processo de politização das faculdades sociais fundamentais, no período da transição histórica entre o constitucionalismo medieval e o moderno.
Isto não ocorreu por acaso, mas decorreu, diretamente, da modificação funcional do máquina estatal inglesa, que se complexou pela instituição de diversos órgãos especializados pelo exercício exclusivo de poderes públicos, como os órgãos do poder judiciário, e os do poder legislativo (parlamentar), significativamente mais autônomos que outrora, além da própria auto-responsabilização do governo por excessos cometidos[7].
De forma que determinados direitos considerados fundamentais foram se estabilizando no tempo, tornando-se inabdicáveis às nações submetidas a qualquer forma de poder e correntemente objetivados em pleitos populares de melhoramento das condições de vida social. Até o momento histórico descrito por último, entre estes aparecem com grande enfoque o direito de ir e vir, enquanto liberdade fundamental, e o direito de propriedade.
Estes serviram de base maior ao desenvolvimento das subsequentes teses iluministas, atribuídas a jusfilósofos como Montesquieu, John Locke, Kant e Rousseau, a exemplo de doutrinas como a dos direitos naturais (fenômeno do jusnaturalismo) e do contrato social.
E a difusão deste ensino foi a mola propulsora das revoluções liberais norte-americana e francesa do fim do século XVIII (CUNHA JÚNIOR, 2017), acontecimentos responsáveis por atrelar o movimento constitucional à existência de documentos constitucionais escritos e marcar a fase final do constitucionalismo moderno, na perspectiva cronológica de Uadi Lammêgo Bulos (2018, p. 67).
Considerando a grande influência doutrinária de J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 48), apud Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 31), impende afixar transcrição literal de suas lições a respeito do presente tema.
O citado Constitucionalista português delineia uma sintetização histórica do constitucionalismo, desde à antiguidade clássica até à modernidade, em que os fenômenos constitucionais dos Hebreus, Gregos, Romanos e Ingleses restam resumidos à ideia una de constitucionalismo antigo, para além dos quais tudo vigorará ao título do constitucionalismo moderno, nos seguintes e exatos termos:
Fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos políticos, filosófico e jurídico os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma forma de ordenação e fundamentação do poder político. Este constitucionalismo, como o próprio nome indica, pretende opor-se ao chamado constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios escritos ou consuetudinários alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente limitadores do seu poder. Estes princípios ter-se-iam sedimentado num tempo longo, desde os fins da Idade Média até o Século XVIII”.
Com a ocorrência dos indicados eventos revolucionários, as constituições assumiram a acepção geral de instrumento escrito[8], dotado de uma maior força política, mais rigidez e um superior status hierárquico-normativo, voltado à concretização essencial de dois fins públicos, vale dizer: a “organização do Estado e limitação do poder estatal, por meio de uma declaração de direitos e garantias fundamentais”, nas palavras de Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 32).
A partir do que, por direta influência do Estados Unidos da América e da França, ante a uma clara tendência mundial de democratização do poder político, boa parte dos Estados soberanos passou a instituir constituições próprias, muitas destas escritas, como forma de assegurar direitos básicos ligados à liberdade de pensamento, ação e de aquisição de coisas móveis e imóveis diversas (propriedade), e até respectivos mecanismos de garantia ante à eventual violação, iminente ou efetiva, normatizando contornos delimitados à atuação estatal.
Pedra de tropeço à crescente eficácia jurídica doméstica da normatização de direitos fundamentais por constituições nacionais, as guerras internacionais dos períodos seguintes provocaram devastações genocidas e fizeram cair por terra grande parte dos esforços historicamente empreendidos, inclusive pela via da constitucionalização garantística, para o alcance do apaziguamento das relações entre os vários segmentos intrasociais. Foi o que ocorreu por força da 1ª guerra mundial (entre os anos de 1914 a 1918).
Pelo que a postura empregada na edição das novas constituições pós-primeira guerra, muitas as primeiras editadas por países recém independentizados, mudou sobremodo, passando-se a vigorar o chamado modelo de Estado de Bem-estar Social[9].
Padrão de posicionamento governista responsável por promover a conversão da atuação estatal eminentemente liberal e garantista numa atuação predominantemente social-intervencionista, aperfeiçoando a gama de direitos fundamentais até então conquistados, em destaque o direito de propriedade, pela participação prestacional direta do poder público.
O marco internacional da implementação do referido modelo de atuação política de governo se deu mais evidentemente com a elaboração da Carta Constitucional alemã de Weimar (1919), sob a influência imediata dos princípios consignados na Constituição mexicana de 1917.
Relativamente à Constituição de Weimar, ensina Alexandre de Moraes (2019, p. 3):
A partir da Constituição de Weimar (1919), que serviu de modelo para inúmeras outras constituições do primeiro pós-guerra, e apesar de ser tecnicamente uma constituição consagradora de uma democracia liberal – houve a crescente constitucionalização do Estado Social de Direito, com a consagração em seu texto dos direitos sociais e a previsão de aplicação e realização por parte das instituições encarregadas dessa missão. A constitucionalização do Estado Social consubstanciou-se na importante intenção de converter em direito positivo várias aspirações sociais, elevadas à categoria de princípios constitucionais protegidos pelas garantias do Estado de Direito.
A influência dos aludidos marcos constitucionais especificamente sobre o direito fundamental de propriedade também é tema pacificado na doutrina brasileira, seguindo-se as lições da doutrina do Civilista Paulo Lôbo (2018, p. 104):
O processo de constitucionalização da propriedade, que atrai a da posse, iniciou-se com as Constituições do México de 1917 e com a da Alemanha, de 1919.
O art. 27 da Constituição mexicana afirmava que a propriedade das terras era originalmente da nação, que podia transmitir o domínio delas aos particulares; estabeleceu, ainda, regras fundamentais para conservação do meio ambiente, fracionamento dos latifúndios, melhoramento das condições de vida da população rural e urbana.
Mas é na Constituição alemã de 1919 (Weimar) que, pela primeira vez, a propriedade é concebida como complexo de direitos e deveres fundamentais.
Os impactos do Documento de Weimar irradiaram-se, inclusive, sobre o Brasil e culminaram com a promulgação da Constituição Federal Republicana brasileira de 1934, que sagrou um paradigma de atuação estatal miscigenado.
Isso porque o poder público do Estado brasileiro manteve o caráter liberal (ou negativo) de sua atuação, quanto à preservação das liberdades básicas até então conquistadas, e assumiu uma postura intervencionista ou prestacional quanto à prevenção e reparação das principais mazelas sociais.
A partir daqui, interessante ater a presente análise aos direitos e garantias fundamentais, sejam os assegurados pela não intervenção estatal ou os viabilizados pela prestação do estado social, especificamente ligados à propriedade, cujo nascedouro histórico restou minimamente explicitado acima.
Explicitação para o fim da qual, diga-se, é desnecessário aprofundar apreciação sobre ao fenômeno constitucional da idade pós-moderna, porquanto é o que perdura até a atualidade sem grandes modificações estruturais sobre a já incontestável relevância material dos direitos fundamentais, notadamente a propriedade, para o fim deste trabalho.
Explanada a contextura de surgimento dos direitos fundamentais, importa traçar um paralelo de correlação direta entre os sistemas democráticos de governo, como o vigorante no Brasil, e o sistema jurídico de proteção de direitos fundamentais[10].
Sobre isso, ensina Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 489), em colação exata de suas palavras: “É inegável que o grau de democracia em um país mede-se precisamente pela expansão da efetividade dos direitos fundamentais da pessoa humana e pela possibilidade de sua afirmação em juízo”.
Também sobre o caráter estruturante e indissociável do grau de relação entre a democracia governamental e a tutela política dos direitos fundamentais, e à luz das lições de Paulo Bonavides (2000, p. 528), Dirley da Cunha Júnior (2017, p. 489) afirma:
Não há falar em democracia sem o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais. Eles têm um papel decisivo na sociedade, porque é por meio dos direitos fundamentais que se avalia a legitimação do todos os poderes sociais, políticos e individuais. Onde quer que esses direitos padeçam de lesão, a Sociedade se acha enferma.
Ainda nesse passo, se pode afirmar que os direitos fundamentais atenuam grandemente a discricionariedade arbitrária dos poderes públicos constituídos, obrigando-os a uma postura extremamente flexível, ora absenteísta ora prestacional, porquanto sobrelevados à inquestionável condição de padrão valorativo maior das ordens constitucionais democráticas, como é a brasileira, de observância vinculativa.
Ante à imprescindibilidade axiomática das prerrogativas fundamentais à higidez de qualquer sistema democrático de governo, se torna claramente desnecessário pretender esgotar argumentos e opiniões em tal sentido.
Pelo que é possível dispensar, inclusive, maiores aprofundamentos históricos acerca da completa evolução destes direitos na ordem jurídica nacional para o fim de subsumir a propriedade, e sua garantia, à qualificação de direito fundamental.
Consoante vaticinado, o vigente ordenamento constitucional pátrio consagra, no título dedicado expressamente aos direitos e garantias fundamentais, que “é garantido o direito de propriedade” (art. 5º, XXII, CRFB/88), num resgate permanente às primeiras conquistas do constitucionalismo, remontando à incipiência das vitórias populares na monarquia inglesa de 1215.
Objetivada nos mais diversos tipos de negócio interpessoal no transcorrer da história humana, podendo assumir caráter comercial, subsistencial, cultural ou assistencial sem fins lucrativos, a propriedade, enquanto, grosso modo, qualidade ou poder para se adonar de algo[11], vigora corrente até os presentes dias, constituindo fato dos mais comuns no emaranhado das relações jurídicas negociais, com grande repercussão na movimentação e evolução econômica micro e macrorregional do Brasil.
No que se refere especificamente às propriedades imóveis, isto é, que incidem sobre bens imóveis[12], o fenômeno jurídico da aquisição das prerrogativas relativas à titularidade do domínio pode ocorrer, basicamente, em dois tipos área ou espaço, na realidade brasileira, que são os urbanos e os rurais.
Na repartição constitucional de competências legislativas e materiais entre as Unidades Federadas brasileiras (consignadas entre os artigos 21 a 25, e 30, da CRFB/88) existem especificidades próprias das zonas rurais, e seus imóveis, que escapam do objeto desta pesquisa.
Pelo que as propriedades localizadas nas áreas urbanas e de expansão urbana é que figurarão sob esta análise, destacadamente quanto ao alcance e grau de liberdade de exercício, considerando os correspondentes limites e a atuação fiscalizadora do poder público municipal, à luz dos artigos 182 e 183, da CRFB/88.
Assim, cumpre expor o contexto jurídico geral, constitucional e legal, a partir do qual se permitirá concluir sensatamente acerca da existência de razoabilidade entre a liberdade e os limites impostos ao exercício, e até à manutenção, da titularidade da propriedade no contexto urbanístico, regido em caráter geral pelos prefalados artigos 182 e 183, da CRFB/88.
Porquanto, inobstante configure direito fundamental explícito da Constituição Federal e seja indispensável às relações econômicas (tendo sido normatizado, também, como princípio da ordem econômica; art. 170, III, CF/88), sobre a propriedade pesa, em contrapartida, o princípio da função social, também alçado ao nível de direito fundamental (art. 5º, XXIII, CRFB/88), na perspectiva da coletividade em face da qual o domínio vigore em caráter erga omnes, e de princípio geral da ordem econômica, a teor do art. 170, III, da CRFB/88.
A constitucionalização destes dois institutos em contrasentido nada mais é que uma clara demonstração de que no Brasil vigora uma ordem constitucional de natureza liberal-intervencionista, negativo-positivista.
Tal é resultante de uma progressiva modernização estrutural do sistema jurídico brasileiro, gradualmente implementada a partir do incremento de diversos elementos de solidarização social, o que vem ocorrendo desde a promulgação da Constituição republicana de 1934, de acordo com os ensinos de Paulo Lôbo (2019, p. 106):
No art. 5o, dois incisos estabelecem regras que constituem uma antinomia, se lidos isoladamente: o XXII (“é garantido o direito de propriedade”) é a clássica garantia da propriedade privada, do Estado liberal; o XXIII (“a propriedade atenderá a sua função social”) é a dimensão solidária e intervencionista, própria do Estado social.
A antinomia é reproduzida no art. 170, que trata da atividade econômica. Em um, dominante é o interesse individual; em outro, é o interesse social. Mais que uma solução de compromisso, houve uma acomodação do conflito de interesses, o que repercute nas decisões judiciais dos casos concretos
Em termos conceituais, a finalidade social do domínio particular, ou princípio constitucional da função social da propriedade, pode ser assim entendida, na contemporaneidade do vigente estado social brasileiro, conforme ensina Flávio Tartuce[13] (2019, p. 836):
Como é notório, a função social da propriedade constante da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002 sofreu forte influência da clássica doutrina de Leon Duguit, “para quem a propriedade já não é o direito subjetivo do indivíduo, mas uma função social a ser exercida pelo detentor da riqueza”.58
Assim, como observa o Professor Titular da USP Carlos Alberto Dabus Maluf, “Ao antigo absolutismo do direito, consubstanciado no famoso jus utendi et abutendi, contrapõe-se, hoje, a socialização progressiva da propriedade – orientando-se pelo critério da utilidade social para maior e mais ampla proteção aos interesses e às necessidades comuns”.59
Linha em que é oportuno trazer o contexto do atualizado enquadramento jurídico do princípio da função social da propriedade, elucidando-se os principais contornos de sua incidência relativizadora do domínio moderno, notadamente imobiliário, segundo lição de Paulo Lôbo (2019, p. 118):
A função social é incompatível com a noção de pertencimento absoluto da coisa a alguém, em que se admite apenas a limitação externa, negativa.
A função social determina o exercício e o próprio direito de propriedade ou o poder de fato (posse) sobre a coisa.
Lícito é o interesse individual quando realiza, igualmente, o interesse social. O exercício da posse ou do direito individual da propriedade deve ser feito no sentido da utilidade, não somente para o titular, mas para todos.
Daí ser incompatível com a inércia, com a inutilidade, com a especulação.
O princípio da função social aplica-se a qualquer tipo de propriedade ou de posse, de coisa móvel ou imóvel.
Ainda no que se refere à função social da propriedade à luz do constitucionalismo social pós-moderno, insta reafirmar que o preceito fundamental da finalidade social perfaz não apenas direito subjetivo fundamental coletivo da comunidade ao redor, contra a qual produzem-se os efeitos da propriedade individual, mas um legítimo dever jurídico diretamente imposto ao proprietário correspondente, seja ele pessoa física ou jurídico, de direito público ou privado.
Realidade que impõe ao proprietário o contínuo dever de exercer as prerrogativas de dono levando a efeito, inclusive proativamente, a preocupação de preservar a integridade da esfera jurídica de direitos sociais que lhe entorna.
Nessa sorte estão outras linhas da pluricitada doutrina de Paulo Lôbo (2019, p. 125), em seu teor literal:
Na contemporaneidade, a função social afastou-se da concepção de limites externos, passando a integrar os próprios conteúdos da propriedade e da posse. Esta é a orientação que se adotou na Constituição de 1988.
Integra como conjunto de deveres que devem ser cumpridos pelo titular sempre que exerça seus poderes de fato ou de direito. Não é mais algo externo, mas sim interno a essas titularidades, determinando suas próprias naturezas e seus exercícios.
Veja-se que a Constituição utiliza enunciados que remetem a deveres e não a limites, a exemplo do art. 182, § 2o (“A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências ...”).
Cumpre-se o que se deve. Aí não está dito que a propriedade está limitada à função social, mas sim que esta é dever jurídico que deve ser cumprido.
Também no sentido de traçar um bom paralelo acareador entre ambos os institutos esposados em oposição recíproca (num lado, o direito de propriedade, e noutro, sua função social), especificamente para efeito da regulamentação da ordem urbanística, ainda vale examinar as disposições mais sensíveis do regulamento geral infraconstitucional da propriedade, destacadamente o consignado no Código Civil de 2002.
É de amplo conhecimento que os chamados direitos reais subsumem-se a um regime legal específico, não figurando sob a disciplina obrigacional ou contratual do código civil, antes, submetidos à regência normativa do livro próprio do Direito das Coisas, no código regente das relações privadas.
No caso próprio das propriedades da esteira urbana, vigora regimento jurídico especial para efeito de aferição da legalidade do exercício do direito real de domínio, conforme os esclarecimentos da explanação a seguir.
Segundo a disposição do art. 1.225, da legislação civil codificada, as propriedades são classificadas como Direitos Reais, é dizer, gravam determinada coisa ou bem (em tese, móvel ou imóvel, corpórea ou incorpórea), em favor de alguém (pessoa natural ou jurídica), importando a seguinte transcrição literal:
1.225. São direitos reais: I - a propriedade; II - a superfície; III - as servidões; IV - o usufruto; V - o uso; VI - a habitação; VII - o direito do promitente comprador do imóvel; VIII - o penhor; IX - a hipoteca; X - a anticrese. XI - a concessão de uso especial para fins de moradia; XII - a concessão de direito real de uso; XIII – a laje. (Grifei)
Fundamentalmente, isso tem sua razão de ser no fato inequívoco de que as coisas não sujeitam nada a si, antes são, elas próprias, objeto da sujeição, de direito (bônus) ou ônus, atribuído em titularidade a alguma pessoa, natural ou ficcional.
Com efeito, é possível afirmar que o sujeito titular do direito real de propriedade, seja incidente sobre bem móvel ou imóvel, detém uma série de prerrogativas pessoais específicas correspondentes ao domínio[14] exercido sobre a coisa, as quais constituem e revelam os próprios atributos legais da propriedade.
Pela regra do art. 1.228, caput, do Código Civil/02, “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Dissertando acerca dos mencionados atributos, o professor Flávio Tartuce (2019, p. 833) estabelece os seguintes termos, literalmente:
a) Faculdade de gozar ou fruir da coisa (antigo ius fruendi) – trata-se da faculdade de retirar os frutos da coisa, que podem ser naturais, industriais ou civis (os frutos civis são os rendimentos). Exemplificando, o proprietário de um imóvel urbano poderá locá-lo a quem bem entender, o que representa exercício direto da propriedade.
b) Direito de reivindicar a coisa contra quem injustamente a possua ou a detenha (ius vindicandi) – esse direito será exercido por meio de ação petitória, fundada na propriedade, sendo a mais comum a ação reivindicatória, principal ação real fundada no domínio (rei vindicatio). Nessa demanda, o autor deve provar o seu domínio, oferecendo prova da propriedade, com o respectivo registro e descrevendo o imóvel com suas confrontações. A ação petitória não se confunde com as ações possessórias, sendo certo que nestas últimas não se discute a propriedade do bem, mas a sua posse. Prevalece o entendimento de imprescritibilidade dessa ação (por todos: STJ, REsp 216.117/RN, 3.ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 03.12.1999, DJ 28.02.2000, p. 78). O caput do art. 1.228 do CC possibilita expressamente que a ação reivindicatória seja proposta contra quem injustamente possua ou detenha a coisa. O exemplo típico envolve a ação proposta contra um caseiro, que ocupa o imóvel em nome de um invasor (injusto possuidor).
c) Faculdade de usar a coisa, de acordo com as normas que regem o ordenamento jurídico (antigo ius utendi) – esse atributo encontra limites na CF/1988, no CC/2002 (v.g., regras quanto à vizinhança) e em leis específicas, caso do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001).
d) Faculdade de dispor da coisa (antigo ius disponendi), seja por atos inter vivos ou mortis causa – como atos de disposição podem ser mencionados a compra e venda, a doação e o testamento.
Para além das faculdades subjetivas inerentes ao titular do domínio acima arroladas (que traduzem-se como os atributos da propriedade), o que já distingue sobremaneira seu regime jurídico frente aos demais direitos reais, a propriedade é considerada, na doutrina mais abalizada, um direito Absoluto, Exclusivo, Perpétuo, Elástico, Complexo e Fundamental.
Ante ao que já esposado, não fica difícil compreender a propriedade como um direito absoluto[15] que, focalmente, pode e até deve ser relativizado. Na realidade, o seu absolutismo tem relação direta com o fato de apresentar eficácia erga omnes, ou seja, produzir seus efeitos contra todos (TARTUCE, 2019).
Ademais, quanto à perpetuidade do domínio no direito brasileiro, Carlos Roberto Gonçalves (2018, p. 38)[16] afirma: “A propriedade é um direito perpétuo, pois não se perde pelo não uso, mas somente pelos meios e formas legais: desapropriação, usucapião, renúncia, abandono etc”.
Sobre a característica da exclusividade, Álvaro Villaça Azevedo (2019, p. 53) pontua o que segue:
O direito de propriedade é também exclusivo, o que vem reconhecido expressamente pelo art. 1.231 do Código Civil: “A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário”.
Isso significa que não podem existir, simultaneamente, dois ou mais proprietários sobre a mesma coisa, por inteiro. A luta contra o domínio repartido levou à vitória a revolução Francesa de 1789, como já dito, e que extinguiu a tripartição da propriedade (o estado tinha o domínio iminente, o senhor feudal o domínio direto – tirano, e o vassalo que tinha o domínio útil). Poder-se-ia indagar: e o condomínio? Contrariaria ele o princípio da exclusividade? Não, porque no condomínio, os condôminos exercem exclusivamente sobre suas quotas ideais direito de propriedade sobre a mesma coisa.
E sintetizando as demais características da propriedade, que são a elasticidade, a complexidade e a fundamentalidade, arremata Flávio Tartuce (2019, p. 836):
Direito elástico – característica que é atribuída, na doutrina nacional, a Orlando Gomes, a propriedade pode ser distendida ou contraída quanto ao seu exercício, conforme sejam adicionados ou retirados os atributos que são destacáveis.57 Na propriedade plena, o direito se encontra no grau máximo de elasticidade, havendo uma redução nos direitos reais de gozo ou fruição e nos direitos reais de garantia.
Direito complexo – por tudo o que está sendo exposto, a propriedade é um direito por demais complexo, particularmente pela relação com os quatro atributos constantes do caput do art. 1.228 do CC.
Direito fundamental – não se pode esquecer que a propriedade é um direito fundamental, pelo que consta do art. 5.º, XXII e XXIII, da Constituição Federal. Esse caráter faz que a proteção do direito de propriedade e a correspondente função social sejam aplicados de forma imediata nas relações entre particulares, pelo que consta do art. 5.º, § 1.º, do Texto Maior (eficácia horizontal dos direitos fundamentais).
Em reforço, o direito de propriedade pode ser ponderado frente a outros direitos tidos como fundamentais, caso da dignidade humana (art. 1.º, III, da CF/1988), particularmente naqueles casos de difícil solução (técnica de ponderação). Reafirme-se que essa técnica foi adotada expressamente pelo art. 489, § 2.º, do Novo Código de Processo Civil.
Destarte, não há o que olvidar da robustez e distinção próprias do regime constitucional e civilista tutelar do direito fundamental de propriedade. Todavia, no ponto especificamente relativo à destinação do imóvel no espaço urbano do Município, a propriedade de caráter imobiliário deve suportar consideráveis modificações regimentais, mitigadoras de seus elementos essências de proteção e vigência, em vista da especialidade, e conseguinte preponderância para fins urbanísticos, das normas do art. 182, parágrafos 3º e 4º, do texto constitucional.
Com fundamento direto nos dispositivos magnos aventados, o poder público dos Municípios tem legítima ingerência sobre os aspectos relativos ao uso ou desuso do solo urbano particular. Da sorte dessas disposições constitucionais dirigentes da organização urbanística, fica autorizada a intervenção municipal para efeito da desapropriação com fins políticos (interesse público secundário), e a expropriação para fins de readequação ou redistribuição social do bem (interesse público primário), atribuindo-se afetação social ao imóvel inserido na organização urbana.
Em ratificação à ideia acima está a doutrina de Sílvio de Salvo Venosa (2018, p. 288), que, nos termos do art. 5º, XXIV[17], da CRFB/88, aponta três possíveis fundamentos diretos à desapropriação, é dizer, necessidade pública, utilidade pública e interesse social.
O referido autor o faz indicando que, nos dois primeiros casos, a supressão do domínio ocorrerá mediante “justa e prévia indenização em dinheiro” e, na última hipótese, com indenização em títulos de emissão da dívida pública, quando o Município visará à concretização do interesse urbanístico social, é dizer, buscando o cumprimento forçoso da função social da propriedade.
Valiosas são as lições do autor Sílvio de Salvo Venosa nessa temática, porque ocupadas de conceituar os institutos da necessidade pública, utilidade pública e interesse social[18], distinguindo-os entre si, enquanto motivadores jurídicos dos atos de desapropriação de entes públicos, senão vejamos:
A Constituição vigente declara que são pressupostos para a desapropriação “a necessidade pública, a utilidade pública e o interesse social” (art. 5º, XXIV, e arts. 182 e 184).
Nos dois primeiros casos, resguarda-se a “justa e prévia indenização em dinheiro”. No último, o pagamento será em títulos da dívida pública.
As três modalidades de expropriação podem ser resumidas no conceito de utilidade pública. No entanto, o legislador preferiu tripartir as modalidades, pois assim pode discriminar as hipóteses e atribuir efeitos específicos a cada uma.
A necessidade pública denota urgência em obras ou atividade do Estado que determinam a pronta transferência do bem privado à Administração.
A utilidade pública demonstra a conveniência de apropriação do bem, sem que seja urgente ou imprescindível.
O interesse social é aquele que efetivamente permite ao Estado buscar o sentido social da propriedade. Decorre de circunstâncias para melhorar a distribuição e fruição da propriedade privada.
Os bens desapropriados por interesse social não se destinam propriamente a órgãos da Administração, mas à coletividade.
Visto isso, interessa explanar o tratamento doutrinário dispensado ao distintivo instituto da Desapropriação pública de bens patrimoniais particulares. Consoante entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2014, item 114.6), a desapropriação, inclusive quando praticada no contexto urbanístico pelos Municípios, pode ser assim sintetizada:
Instituto quatro vezes presente no texto constitucional (arts. 5.º, XXIV; 22, II; 182, § 3.º; e 184), a desapropriação é daqueles instrumentos interventivos que suscitam cuidados especiais, uma vez que se trata da modalidade mais gravosa de intervenção estatal na propriedade privada.
Segundo os parâmetros classificatórios adotados, podemos conceituá-la como o grau máximo de intervenção ordinatória e concreta do Estado na propriedade privada, que opera a transferência compulsória de um bem para o domínio público, de forma onerosa, permanente, não executória e de execução delegável, imposta discricionariamente pela declaração de existência de um motivo de interesse público legalmente suficiente.
Atrelando a adoção do instituto aos casos de imposição de medida voltada à consecução forçada da função social sobre domínios imobiliários, José dos Santos Carvalho Filho (2017, p. 871 e 872) trata da desapropriação, conceituando-a subsecutivamente, da seguinte forma:
Não obstante, convém relembrar, pela importância de que se reveste o assunto, que o direito de propriedade tem garantia constitucional (art. 5o, XXII, CF), mas a Constituição, como que em contraponto com a garantia desse direito, exige que a propriedade assuma a sua condição de atender à função social (art. 5o, XXIII). Sendo assim, ao Estado será lícito intervir na propriedade toda vez em que não esteja cumprindo seu papel no seio social, e isso porque, com a intervenção, o Estado passa a desempenhar sua função primordial, qual seja, a de atuar conforme os reclamos de interesse público.
[...]
Desapropriação é o procedimento de direito público pelo qual o Poder Público transfere para si a propriedade de terceiro, por razões de utilidade pública ou de interesse social, normalmente mediante o pagamento de indenização.
Neste sentido contextualiza-se a relevância do princípio da função social da propriedade, motor fundamental da intervenção estatal expropriatória, enquanto postulado responsável por modificar essencialmente o próprio conceito e forma de utilização do direito de propriedade na atualidade jurídica.
Como multidestacado, o preceito finalístico-social é o motivador maior da desapropriação pública para a consolidação dos interesses da sociedade local direta ou indiretamente envolvida, inclusive para o efeito peculiar das ordenações gerais sobre as edificações e solo urbano (art. 182, § 4º, CF/88).
Esta hodierna acepção de aplicação da função social constitui inequívoco resultado da direta influência do constitucionalismo social vigente na Constituição Federal de 1988. Em tal sentido, Paulo Lôbo (2019, p. 95):
Na contemporaneidade, as mudanças têm sido de tal magnitude que se cogita não mais de um genérico direito de propriedade, mas de direito das propriedades, além da viragem rumo à funcionalização, à interlocução com deveres gerais de conduta e ao exercício ambientalmente sustentável.
Não mais existe a propriedade concebida como direito individual
absoluto, exclusivo e oponível a todos, como expressão de soberania localizada, sem contemplação do interesse social ou coletivo. Essas transformações repercutem em todo direito das coisas.
A história do direito contemporâneo revela a desagregação da propriedade individualista, ante sua subordinação ao interesse coletivo, notadamente da segurança social, da salubridade pública, da preservação histórica e artística, do direito urbanístico, do direito agrário (Zattara, 2001, p. 4).
Acerca deste limitador principiológico da propriedade, o Código Civil, em sede não limitada às relações urbanísticas, consagra a função social e socioambiental da propriedade, consoante previsão expressa do art. 1.228, § 1º, CC/02, assim:
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
No campo específico das relações dirigidas pelo Direito Urbanístico, a função social da propriedade tem o seu atendimento imediatamente relacionado ao cumprimento das regras de organização urbana fundamental listadas no instrumento básico da respectiva política de desenvolvimento e de expansão urbana[19], a saber, o Plano Diretor[20] do Município.
Sem prejuízo de outros aspectos relativos à finalidade socioeconômica e socioambiental da propriedade, obviamente relevantes em suas esferas, o cumprimento da função social do direito real proprietário, no cenário urbano, dependerá apenas do atendimento “às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, § 2º, da CRFB/88).
Em assunto de política urbana, a Constituição Federal atribuiu competência material ou administrativa exclusiva aos Municípios, cabendo-lhes executar os aspectos centrais das políticas voltadas ao desenvolvimento e à expansão da cidade para fins urbanos.
Para este efeito, é que permite (art. 182, § 3º, CRFB/88) ao poder público municipal promover, em caráter privativo, a desapropriação de bens participantes do plano urbanístico, com pagamento de indenização em espécie e previamente à desocupação, visando à consecução de políticas públicas municipais em geral.
Exemplificando, em substituição ao solo urbano expropriado, o Município, seguindo critérios facultativos de gestão governamental, pode intentar instalar novas estruturas físicas ou aperfeiçoar a infraestrutura existente do transporte público intramunicipal, da rede de iluminação pública ou de saneamento básico, bem como edificar novas sedes administrativas para o governo visando à otimização da prestação dos diversos serviços municipais, como o de guarda e conservação do patrimônio estatal, educação, entre outros.
Inclusive, nada impede que a desapropriação tenha por finalidade subsequente a outorga de autorizações e permissões de uso ou ocupação atípica do espaço urbano por particulares (quiosque, trailer, feira e banca de venda de jornais e de revistas[21], por exemplo), para o fomento de atividades microeconômicas consideradas importantes e estratégicas, pela gestão pública, para determinadas áreas da cidade.
Tudo, para manter harmoniosa e funcional toda a ordem urbanística, integrada por todos os elementos e bens, móveis e imóveis, públicos e privados das zonas urbanizadas do Município, conforme a avaliação do mérito administrativo envolvido, independentemente de qualquer vinculação a um ou outro fim.
Do que se pode denotar um caráter estritamente político na atuação expropriatória autorizada pelo art. 182, § 3º, da CRFB/88, voltada a concretizar interesses diretos da administração do ente municipal, porquanto, como responsável pelo zelo e bom funcionamento da ordem urbanística, fica dotado de maior aparato físico instrumental ao cumprimento de suas missões institucionais, as quais, apenas mediatamente, confundem-se com a satisfação das necessidades do povo, num evidente privilégio do interesse público secundário[22].
Isto é, o poder público municipal desapropria onerosamente o imóvel privado para servir como um dos canais públicos para a só ulterior consecução dos genéricos interesses da coletividade, aqueles já ordinariamente defendidos pelos entes de direito público quando no exercício de sua atuação constitucional típica.
Tal atuação municipal expõe-se sobremaneira discricionária e esporádica, sem sazonalidade predeterminada, na medida da efetiva existência de necessidade de ampliação dos meios materiais voltados a instrumentalizar as atividades estatais gerais, destinadas a suprir carências genéricas da população local.
É dizer, correlaciona-se, imediatamente, com a disponibilidade ou comodidade a ser subsequentemente gerada pelo resultado da obra ou serviço público posterior à desapropriação, num beneficiamento apenas futuro da sociedade.
A retirada direta do domínio, baseada no 182, § 3º, embora pareça abrupta e excessiva, deve operar-se, na realidade, como a última ratio das possibilidades governamentais de resolução das situações urbanísticas e objetiva privilegiar o interesse coletivo, ainda que apenas quando convertida numa fruível prestação social, hipótese em que terá servido à tangibilização[23] da função social da propriedade.
Apesar de também estar inserido no capítulo da Política Urbana, outro, claramente diferente, é o contexto do funcionamento municipal urbanístico baseado no art. 182, § 4º, da Constituição Federal.
Aí o Município figurará como agente fiscalizador e disciplinador do uso (ou falta deste) empenhado sobre o bem urbano, numa relação de controle, eminentemente bilateral, entre ente fiscal e pessoa fiscalizada, na margem ativa do poder administrativo de polícia voltado, na espécie, a prevenir ou reprimir o mau exercício da propriedade privada, buscando o beneficiamento coletivo imediato, isto é, o cumprimento do interesse público primário.
O preceito constitucional do fim social da propriedade constitui, então, o fundamento intrínseco da ação municipal progressiva de correição fiscalizatória prevista no art. 182, § 4º, da CRFB/88, uma clara atividade de polícia para o resguardo do interesse público primário, exercida no âmbito urbano para forçar o adequado aproveitamento do solo urbano. Isto inicialmente pela via de medidas coativas indiretas e, persistindo a situação, pelo próprio Município diretamente, no contexto pós-desapropriação.
A doutrina de Alexandre Mazza (2018, p. 435) divulga um conceito de poder de polícia, explicando a concepção referenciada no art. 78[24], do Código Tributário Nacional – CTN, aduzindo que:
Poder de polícia é a atividade da Administração Pública, baseada na lei e na supremacia geral, consistente no estabelecimento de limitações à liberdade e propriedade dos particulares, regulando a prática de ato ou a abstenção de fato, manifestandose por meio de atos normativos ou concretos, em benefício do interesse público
Para além de mera interpretação subsuntiva[25] à definição legal do art. 78, CTN, assevera-se o reconhecimento expresso pela doutrina de que a atividade do art. 182, § 4, da CRFB/88, enquadra-se na concepção legal de atividade de polícia administrativa, conforme ratifica Matheus Carvalho (2015, p. 131), em termos literais:
Porém, modernamente, vêm-se admitindo atos positivos decorrentes do exercício do poder de polícia, ou seja, em determinadas situações, com previsão legal expressa, o Poder Público determina obrigações de fazer aos particulares em decorrência dos atos de polícia.
Neste sentido, o Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), regulamentando o art. 182, § 4º, da Carta Magna, estabelece, em seu art. 5º, que “Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e prazos para implementação da referida obrigação.
O Município, editando lei de caráter específico, em relação à área inserida na lei do plano diretor, poderá, num primeiro momento, através de meios indiretos de coerção28 (parcelamento, edificação e utilização compulsórios e, em seguida, IPTU progressivo), forçar o proprietário ao aproveitamento adequado do solo urbano.
Sendo as duas primeiras providências infrutíferas para coagir o titular do bem ao escorreito aproveitamento do imóvel, ao Município restará facultado retirar o bem da propriedade particular, tomando-o para si, através da desapropriação indenizada com pagamento em títulos da dívida pública, o que denota claro caráter sancionatório.
Feito o que, ele próprio, Município, agora proprietário formal do bem, submeterá o imóvel urbano às condições mínimas de adequação urbanística, afetando-o a alguma finalidade pública local, valendo a transliteração da disposição magna de base:
É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. (Grifei).
Na explicitação desta matéria, a União, exercendo competência legislativa concorrente[26] (art. 24, I, da CRFB/88) para legislar sobre direito urbanístico através da edição de normas gerais, elaborou a Lei Ordinária nacional nº 10.257/01, denominada Estatuto da Cidade.
O legislador federal o fez visando a regulamentar a execução municipal da política urbana (prevista nos artigos 182 e 183, CRFB/88), incluindo-se as já referidas providências coercitivas de adequação ou readequação aos limites de organização urbana expressos do plano diretor, na hipótese de não edificação, subutilização ou não utilização do solo urbano.
Sob o que se vê o claro intuito da União de disciplinar, em termos gerais, no plano subconstitucional, o exercício da propriedade urbana relativamente à forma e métodos de utilização do respectivo bem imóvel, visando a privilegiar interesses específicos e próprios da coletividade local.
Este é o interesse público primário dos Munícipes relacionado à boa ordenação e regular funcionamento do solo urbano, cooperando para o “bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”, conforme o art. 1º, parágrafo único do Estatuto da Cidade.
Tal é a eficácia prática das medidas do art. 182, § 4º, da Carta Federal, para fins de concretização da função social da propriedade urbana, que a lei geral das cidades as qualificou, entre outros, como instrumentos nacionais da política urbana no respectivo artigo 4º, incisos IV, “a”, e V, “a” e “i”.
Passo em que também lhes atribuiu, em disposições posteriores, uma regulação legal mínima, a qual é passível de suplementação local pelas legislações municipais correspondentes.
O parcelamento, edificação ou utilização compulsórios é a primeira medida imponível pelo Município ao proprietário urbano, via lei municipal específica, para área incluída no plano diretor, nos termos da lei federal geral (estatuto da cidade), quando constatada a não edificação, subutilização ou não utilização do solo urbano, visando à consecução compulsória do adequado aproveitamento do imóvel.
Neste contexto, o art. 5º, § 1º, I, da lei 10.257/01 explicita o que se entende por imóvel subutilizado, dizendo: “§ 1o Considera-se subutilizado o imóvel: I – cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente”.
Não aproveitando o imóvel urbano adequadamente, o proprietário será formalmente notificado pelo Município para cumprir a obrigação, com a averbação cartorária da comunicação, segundo a literalidade do § 2º, do art. 5º, da lei, assim: “§ 2o O proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis”.
Indo além dos demais detalhes relativos à citada notificação e prazos para cumprimento da determinação, cabe destacar a natureza Real[27] da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o solo urbano, como maneira de inseri-lo nos moldes da organização urbanística regular, imposta neste contexto.
A partir da eventual comunicação e correlativo registro público, ao lado do direito real de propriedade figurará o dever real de promoção do adequado aproveitamento do espaço urbano, o qual permanecerá ainda que vencida a titularidade do proprietário notificado em sede de eventual transmissão do bem a outrem, sem nenhum óbice, inclusive, ao decurso dos prazos já estabelecidos para a realização da determinação real.
Na hipótese de desobediência às condições e prazos fixados para o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, por parte do notificado, ou de terceiro adquirente do bem gravado com o mencionado ônus real, tem lugar a cobrança de IPTU[28] (imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana) com alíquota progressiva no tempo[29], dentro de um período de 5 anos consecutivos.
Inclusive, se, perfilhada esta segunda providência, não for atendida a obrigação real de parcelar, edificar ou utilizar o imóvel urbano dentro do prazo de 5 anos, o poder público municipal poderá continuar cobrando o prefalado imposto pela alíquota máxima (15%), até que seja efetivamente cumprido o dever.
Isto, sem prejuízo da possibilidade, em paralelo, de já proceder à execução da prerrogativa mais drástica, que é a Desapropriação do imóvel urbano com pagamento em títulos da dívida pública (art. 7º, § 2º, da lei 10.257/01).
Demonstrando o caráter gravoso que é inerente ao referido IPTU progressivo no tempo, o § 3º, do art. 7º estatutário, ainda proíbe expressamente a dispensa legal do pagamento ou o perdão de infrações tributárias correspondentes à exação progressiva, assim: “É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo”.
Avançando, dispõe o art. 8º, do Estatuto, que, esgotado o prazo de 5 anos para o adimplemento da obrigação real de aproveitamento do solo urbano (por meio do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios) após o início da cobrança do IPTU progressivo, legitima-se a adoção, por último, de ato expropriatório do solo urbano particular com indenização em títulos de emissão da dívida pública, mantida, ressalte-se, a faculdade de permanecer exigindo o relatado imposto pela alíquota máxima, até a plena satisfação da prestação.
Evidenciando a seriedade envolvida nesta hipótese está o dispositivo legal que obriga temporalmente o Município a promover o adequado aproveitamento do imóvel desapropriado dentro do prazo máximo de 5 anos, a contar da efetiva incorporação ao patrimônio municipal[30].
Obrigação pública de atribuir adequado aproveitamento ao solo urbano expropriado que poderá ser exercida diretamente ou indiretamente pelo Município. Quando indiretamente, por meio de terceiros concessionários ou alienatários do bem, os quais sub-rogar-se-ão no ônus real[31] de executar o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios inicialmente determinados, respeitado, em todo caso, o competente procedimento licitatório[32].
DISCUSSÃO
Indubitavelmente, o direito de propriedade submete-se a um regramento normativo especial. Previsto como direito fundamental, princípio da ordem constitucional econômica e direito de natureza real, atribui ao seu titular uma série de distintas prerrogativas, voltadas a assegurar seu exercício desimpedido e preservar sua existência sob o domínio do proprietário.
Entre outros possíveis pontos de flexibilização, a norma da função social da propriedade impõe a mais considerável mitigação do domínio real na vigente ordem jurídica, funcionando como escora ao controle externo do poder público em face das atividades ou inação particulares sobre bens, marcadamente os imóveis, das esferas patrimoniais privadas.
No contexto peculiar das organizações urbanísticas, sob execução e fiscalização municipal, as Municipalidades poderão atuar para reprimir a imoderação ou abusos do direito de propriedade privada, visando à integração do bem comum na ordem urbana, à pacificação e solidarização do beneficiamento social.
No entanto, cabe discutir se para o fim explicitado acima é proporcional e razoável que o poder público municipal, indo além do disciplinamento sobre o modo de exercício da propriedade no seio da comunidade urbana, chegue ao ponto da supressão integral do domínio, mesmo legitimamente adquirido na origem, elidindo todo um sistema jurídico de proteção diferenciada, como é o que resguarda o objetivado direito real.
Isto é, o fundamento da existência e positivação do princípio constitucional da função social da propriedade seria suficiente, na esfera urbanística, para, não meramente relativizar, mas nulificar, irrecobravelmente, todos os atributos e características da propriedade, via desapropriação[33] municipal? Tal não feriria, notadamente, a perpetuidade do domínio? É nesse quadro de discussão que passa-se a concluir do modo a seguir.
CONCLUSÃO
É inolvidável que a propriedade assume uma posição destacada no Direito brasileiro. Sua fundamentalidade geral está expressa do art. 5º, XXII, da Carta constitucional, e sua relevância às relações jurídicas financeiro-econômicas estampada no art. 170, II, do documento superior.
Sua origem é coetânea à insurgência temporal da institucionalização política das primeiras liberdades públicas fundamentais, cujo marco originário maior foi a Magna Carta inglesa de 1215, num período precedente do surgimento concepcional do próprio postulado da Dignidade da Pessoa Humana, contribuindo, aliás, para a construção histórica deste conceito básico absolutamente imprescindível às relações entre Estado e sociedade.
Trata-se de um direito que ultrapassa os limites da esfera pessoal do titular, incidindo, na realidade, sobre a própria coisa objeto do domínio, em referência, aí sim, ao sujeito dominial, pelo que classificado como direito real, nos termos do Código Civil brasileiro de 2002.
Também conforme a explanação acima, o direito de propriedade não figura como qualquer outro direito real, potencializado pela imputação legal de diversos atributos excepcionais, como as faculdades subjetivas atribuídas ao proprietário de usar, gozar, dispor e reaver o bem dominado. Ademais, é pacificado na doutrina como um direito real absoluto, perpétuo, exclusivo, complexo, elástico e fundamental, tudo nos termos da elucidação dos capítulos anteriores.
Porém, na seara da política de desenvolvimento e expansão urbana, de execução municipal, vige um regime constitucional característico pelo qual os Entes locais exercerão poder de controle e fiscalização sobre toda a ordem urbanística, que engloba todos os bens físicos móveis, numa perspectiva temporalmente limitada, e imóveis, correlacionados à expressão “solo urbano”, inclusive, aqueles de legítima propriedade particular de cidadãos ou pessoas jurídicas de direito privado, empresárias ou não.
Pelo fato de fazê-lo com inequívoca base no poder de polícia, os Municípios atuarão para promover o ininterrupto aproveitamento do espaço urbano, inicialmente, coagindo o proprietário particular a cumprir essa finalidade, por meio de medidas coercitivas, e, derradeiramente, ele próprio, Município, atribuindo a adequada afetação, após realizada a expropriação do imóvel urbano.
Veja-se que a atividade fiscalizadora do Município pode chegar ao ponto da eliminação unilateral compulsória da propriedade particular, se subsistir a desobediência às determinações preliminares, numa relativização de último grau da tutela jurídica da propriedade.
Tendo em vista que se dá como última ratio, o seu caráter sancionatório frente à insistência nas violações do proprietário, e que objetiva concretar o fim social da propriedade no âmbito urbano, reconhecendo o primado dos anseios e interesses da coletividade local sobre a irresponsabilidade individual do titular do domínio, não há como não compreender conjunturalmente devida a providência expropriatória do art. 182, § 4º, da CRFB/88, notadamente quando sob a luz da disciplina também especial da política urbana, na Constituição Federal.
O objetivo central da política urbana, competente aos Municípios, é assegurar o bem-estar dos munícipes, o que já denota a solidariedade social como meta básica da administração local, e ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, nos termos do art. 182, caput, do texto constitucional.
Ora, se o fim último das políticas municipais de desenvolvimento e expansão urbana é o integral desenvolvimento e aplicação da função social da propriedade particular, esta função deverá ser completamente implementada ainda que em face do total perecimento de direito real de domínio individual, tendo em vista que, para além do peso normativo do princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o privado, a função social também está consignada na ordem de princípio fundamental geral e princípio básico de organização econômica.
Ainda que, em tese, a propriedade e sua função social apareçam emparelhadas na qualificação de direitos fundamentais e princípios econômicos isonomicamente colidentes, a natureza solidário-social de expresso teor coletivista, máxime no contexto jurídico do constitucionalismo de estado de bem-estar social vigente no Brasil, intrínseco à norma principiológia da função social, a faz preceder em muito a soberania individualista limitada da propriedade privada.
Pelo que se conclui no sentido da existência de legitimação geral, regada a proporcionalidade e razoabilidade jurídicas, no ato público de desapropriação do solo urbano pelos Municípios no exercício da política urbana. O que se configura tendo em conta a especialidade do regime normativo inerente ao campo urbanístico
Isto notadamente pelo fato de a atuação fiscalizatória do art. 182, § 4, CF/88, consubstanciar pura atividade de polícia administrativa, subjugando-se interesses imobiliários privados mal executados à preponderância e supremacia do interesse público (primário), a legítimos condicionamentos, e supressão da propriedade como última ratio, tudo em prol do pronto atendimento dos anseios da coletividade municipal, plenamente amparada pelo princípio da função social da propriedade, mais destacado balizador constitucional dos atos expropriatórios praticados nas relações fiscalizatórias de direito público do âmbito municipal para efeitos urbanísticos.
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[1] Flávia Piovesan, Direitos Humanos e direito constitucional internacional, 2018, p. 203: “Na definição de Thomas Buergenthal, o Direito Humanitário constitui o componente de direitos humanos da lei da guerra (the human rights com-ponent of the law of war)4. É o Direito que se aplica na hipótese de guerra. [...]. Ao se referir a situações de extrema gravidade, o Direito Humanitário ou o Direito Internacional da Guerra impõe a regu-lamentação jurídica do emprego da violência no âmbito internacional. Nesse sentido, o Direito Humanitário foi a primeira expressão de que, no plano internacional, há limites à liberdade e à autonomia dos Estados, ainda que na hipótese de conflito armado”.
[2] Flávia Piovesan, Direitos Humanos e direito constitucional internacional, 2018, p. 204: “A Liga das Nações, por sua vez, veio a reforçar essa mesma concepção, apontando para a necessidade de relativizar a soberania dos Estados. Criada após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos seus membros”.
[3] Ainda sobre a origem do constitucionalismo, Uadi Lammêgo Bulos, Curso de Direito Constitucional, 2018, p. 67, ensina quanto à sua fase pioneira, a da Constitucionalismo Primitivo: “Segundo Karl Loewenstein, houve época em que as constituições se regiam pelas convicções da comunidade e pelos costumes nacionais, que se refletiam nas relações entre governantes e governados. Cita, como exemplo, a estruturação do antigo Estado hebreu. Assevera que os hebreus foram um dos primeiros povos a praticar o constitucionalismo (Teoría de la constitución, p. 154-157). Para Loewenstein, pois, o marco do nascimento do movimento constitucionalista foi entre os hebreus, que em seu Estado teocrático estabeleceram limites ao poder político pela imposição da Bíblia. Então caberia aos profetas, dotados de legitimidade popular, fiscalizar e punir os atos dos governantes que ultrapassassem os limites bíblicos. Eis aí a primeira experiência constitucionalista de que se tem registro. (Teoría de la constitución, p. 154)”.
[4] Datação atribuída à doutrina de Uadi Lammêgo Bulos, Curso de Direito Constitucional, 2018, p. 67.
[5] Precursor do ulterior checks and balances system, assim compreendido na doutrina de Guilherme Peña de Moraes, Curso de Direito Constitucional, 2019, p. 19:
“O sistema de freios e contrapesos provoca a limitação do poder político na medida em que estabelece a interpenetração das funções estatais e o controle recíproco entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, com a finalidade de impedir potenciais excessos dos Poderes do Estado, funcionando como condição de legitimidade do Governo”.
[6] Dirley da Cunha Júnior, Curso de Direito Constitucional, 2017, p. 31.
[7] Rafael Jiménez Asensio (Apud FACHIN, Zulmar. Curso de direito constitucional, p. 38) assinala como principais características do constitucionalismo na Idade Média: I) a supremacia do Parlamento; II) a monarquia parlamentar; III) a responsabilidade parlamentar do governo; IV) a independência do Poder Judiciário; V) a carência de um sistema formal de direito administrativo; e VI) a importância das convenções constitucionais.
[8] Para Canotilho, as constituições escritas assumiam o caráter de “técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 47), apud Dirley da Cunha Júnior, Curso de Direito Constitucional, 2107, p. 33.
[9] “O Poder Executivo agigantou-se. A transformação do Estado Liberal para o Estado do Bem-estar social mudou a relação Executivo-Sociedade”, conforme Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, 2019, p. 897.
[10] “Desse modo, pode-se dizer que os direitos humanos fundamentais servem de parâmetro de aferição do grau de democracia de uma sociedade”, resumiu Dirley da Cunha Júnior (2017, p.489), pautado pela doutrina de Paulo Gustavo Gonet Branco (Aspectos da Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. In: Hermenêutica Constitucional e os Direitos Fundamentais, ano 2000, p. 104).
[11] “O uso linguístico do termo “propriedade” tanto serve para significar direito de propriedade como a coisa objeto desse direito. Ela significa tanto um poder jurídico do indivíduo sobre a coisa (sentido subjetivo) quanto a coisa apropriada por ele (sentido objetivo)”, conforme ensina Paulo Lôbo, Direito Civil: Coisas, 2019, p. 98.
[12] Art. 79, do Código Civil de 2002, prevê que: “São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente”.
[13] Flávio Tartuce, Manual de Direito Civil, 2019, p. 838, ainda diz: “Na esteira dessas lições, é possível dizer que a função social pode se confundir com o próprio conceito de propriedade, diante de um caráter inafastável de acompanhamento, na linha do preconizado por Duguit. Assim, a propriedade deve sempre atender aos interesses sociais, ao que almeja o bem comum, evidenciando-se uma destinação positiva que deve ser dada à coisa.
Partilhando dessa forma de pensar, enunciado aprovado na V Jornada de Direito Civil, promovida em 2011, com a seguinte redação a respeito da propriedade rural: “Na aplicação do princípio da função social da propriedade imobiliária rural, deve ser observada a cláusula aberta do § 1.º do art. 1.228 do Código Civil, que, em consonância com o disposto no art. 5.º, inciso XXIII da Constituição de 1988, permite melhor objetivar a funcionalização mediante critérios de valoração centrados na primazia do trabalho (Enunciado n. 507)”.
[14] Para Flávio Tartuce, Manual de Direito Civil, 2019, p. 834 e 835: “não há razões para diferenciar as acepções de Propriedade e Domínio. Para findar o tópico, é fundamental verificar o conceito de domínio, que para muitos é sinônimo de propriedade, tese a que se filia este autor. Todavia, há quem entenda de forma contrária, caso de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que lecionam:
O domínio é instrumentalizado pelo direito de propriedade. Ele consiste na titularidade do bem. Aquele se refere ao conteúdo interno da propriedade. O domínio, como vínculo real entre o titular e a coisa, é absoluto. Mas, a propriedade é relativa, posto ser intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem pela imposição de deveres positivos e negativos de seu titular perante a coletividade. Um existe em decorrência do outro.
Cuida-se de conceitos complementares e comunicantes que precisam ser apartados, pois em várias situações o proprietário – detentor da titularidade formal – não será aquele que exerce o domínio (v.g., usucapião antes do registro; promessa de compra e venda após a quitação). Veremos adiante que a propriedade recebe função social, não o domínio em si”.
[15] “...ficou claro que a propriedade é o mais completo dos direitos reais”. Flávio Tartuce, Manual de Direito Civil, 2014 (p. 895).
[16] “Já os direitos obrigacionais, pela sua natureza, são eminentemente transitórios: cumprida a obrigação, extinguem-se. Não exigido o seu cumprimento dentro de certo lapso de tempo, prescrevem”.
[17] Art. 5º, XXIV, CRFB/88: “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.
[18] Diogo de Figueiredo Moreira Neto diz, Curso de Direito Administrativo, 2014, item 114.6.2, explicitando o tema, assevera:
“Enquanto as duas primeiras modalidades – a necessidade pública e a utilidade pública – visam a dotar o Estado de meios de atendimento a interesses gerais da sociedade, a terceira, a de interesse social, se destina a atender diretamente a interesses específicos de certos segmentos carentes da sociedade, destacando-se, como a mais notória e importante variedade dessa modalidade, a desapropriação para fins de reforma agrária (CF, art. 184), que se distingue das demais pela possibilidade de utilização pelo Estado de títulos especiais para o pagamento da indenização”.
[...]
“Mais recente modalidade é a desapropriação sancionatória, instituída pela Constituição de 1988 (art. 182, § 4.º, III), como um instrumento da política urbana. Neste caso, o Poder Público municipal, se fracassados outros instrumentos suasórios empregados para compelir o proprietário de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, a promover seu adequado aproveitamento, poderá decretá-la, como última sanção a ser imposta ao proprietário remisso”.
[19] Art. 2º, do Estatuto da Cidade, prevê que: “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais”.
[20] Pelo art. 182, § 1, da CRFB/88, o “plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.
[21] Regulamento trazido pela lei ordinária federal nº 13.311/16.
[22] Nas palavras de Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Curso de Direito Administrativo, 2018, p. 46, interesse público secundário: “é o interesse do próprio Estado, enquanto sujeito de direitos e obrigações, ligando-se fundamentalmente à noção de interesse do erário, implementado por meio de atividades administrativas instrumentais necessárias para o atendimento do interesse público primário, tais como as relacionadas ao orçamento, aos agentes público e ao patrimônio público”.
[23] Derivativo neológico do adjetivo “tangível”.
[24] Art. 78, do CTN: Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
[25] Derivação neológica do substantivo “subsunção”.
[26] Também aduz o art. 3o, do Estatuto da Cidade, que: “Compete à União, entre outras atribuições de interesse da política urbana: I – legislar sobre normas gerais de direito urbanístico”.
[27] Art. 6o, da lei 10.257/01: “A transmissão do imóvel, por ato inter vivos ou causa mortis, posterior à data da notificação, transfere as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5o desta Lei, sem interrupção de quaisquer prazos”.
[28] Pelo seu art. 7o, caput, o Estatuto da Cidade normativa que: “Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5o desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5o do art. 5o desta Lei, o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos”.
[29] O percentual da alíquota será aplicado ano a ano, na sede da lei municipal específica para área incluída no Plano Diretor e “não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento” (art. 7º, § 1º, da lei 10.257/01). (Grifei).
[30] § 4o O Município procederá ao adequado aproveitamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos, contado a partir da sua incorporação ao patrimônio público.
[31] § 6o Ficam mantidas para o adquirente de imóvel nos termos do § 5o as mesmas obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5o desta Lei.
[32] § 5o O aproveitamento do imóvel poderá ser efetivado diretamente pelo Poder Público ou por meio de alienação ou concessão a terceiros, observando-se, nesses casos, o devido procedimento licitatório.
[33]O procedimento, judicial e administrativo, para a concretização da Desapropriação está previsto no Decreto-lei nº 3.365/1941.
Especialista em Direito Tributário.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Paulo Martins Brasil. Função social da propriedade urbana: o legítimo fundamento para a Desapropriação Urbanística com Indenização em Títulos da Dívida Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2019, 04:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54034/funo-social-da-propriedade-urbana-o-legtimo-fundamento-para-a-desapropriao-urbanstica-com-indenizao-em-ttulos-da-dvida-pblica. Acesso em: 23 dez 2024.
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