GUILHERME CESTARI DADARIO
JOSÉ VITOR COCA GOUVEA
(Coautores)
RESUMO: Este artigo visa a entender a teoria tridimensional de Miguel Reale aplicada no contrato de fiança, abrangendo o conjunto: fato, valor e norma, bem como sua aplicação na responsabilidade civil deste contrato. O resultado obtido foi a explanação da comparação entre o positivismo de Hans Kelsen, o marxismo de Karl Marx e a teoria da tridimensionalidade de Miguel Reale. O fato social é um fato relevante para o mundo jurídico, onde há a busca por um direito. O valor é a carga valorativa atribuída a este fato pela sociedade, este valor poderá ser transformado em norma. Norma é a positivação atribuída ao fato e ao valor, com isso busca-se a coação pelo descumprimento dessa norma. O descumprimento da norma gera responsabilidade, sendo esta o dever de reparar o prejuízo gerado pelo seu descumprimento. O contrato de fiança é realizado quando o fiador se obriga a dar quitação pela dívida contraída pelo devedor para com o credor, o fato é relevante juridicamente por ser a busca pelo direito de garantir o pagamento de uma dívida, o valor é de grande importância para o credor, por ser uma garantia de que a obrigação será cumprida e a norma é a garantia da responsabilidade, impondo o dever de reparação pelo dano causado pelo seu não cumprimento. A responsabilidade do fiador será subsidiária, caso o devedor não pague, aquele irá arcar com o cumprimento da obrigação.
Palavras-chave: Contrato de fiança; Fiador; Responsabilidade Civil; Teoria tridimensional.
ABSTRACT: This article aims to understand Miguel Reale's three - dimensional theory applied in the guarantee contract, covering the whole: fact, value and standard, as well as its application in the civil responsibility of this contract. The result was an explanation of the comparison between Hans Kelsen's positivism, Karl Marx's Marxism, and Miguel Reale's theory of three-dimensionality. The social fact is a relevant fact for the legal world, where there is the search for a right. Value is the value load attributed to this fact by society, this value can be transformed into standard. Norma is the positivation attributed to the fact and to the value, with that it seeks the coercion by the noncompliance of this norm. Failure to comply with the rule generates responsibility, and this is the duty to repair the damage generated by its noncompliance. The guarantee contract is made when the guarantor undertakes to give discharge for the debt contracted by the debtor to the creditor, the fact is legally relevant because it is the search for the right to guarantee the payment of a debt, the value is of great importance for the creditor, as it is a guarantee that the obligation will be fulfilled and the norm is the guarantee of responsibility, imposing the duty of compensation for the damage caused by its non-compliance. The liability of the guarantor will be subsidiary, in case the debtor does not pay, the guarantor will bear the obligation.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A Teoria Tridimensional do Direito. 3 O Instituto Contratual. 4 A Fiança e sua Importância. 5 A Figura da Responsabilidade Civil. 6 Análise Crítica acerca junção da Teoria de Reale e os Institutos Civilistas. 7 Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O Direito e as normas jurídicas foram observados, durante um longo período, predominantemente sobre uma única dimensão, a qual era considerada a mais relevante para a explicação da formação das normas jurídicas. Os juristas da época tomavam como prisma apenas a norma ou simplesmente o valor, sem haver a interligação entre ambos e assim idealizar que cada fato possui um valor, o qual é considerado na elaboração e na aplicação de uma lei.
O presente trabalho visará expor o pensamento inovador de Miguel Reale, demonstrado em sua teoria tridimensional do direito aplicado à esfera civil, uma vez que trata-se do ramo do Direito o qual se encontra inserido no cotidiano do indivíduo, bem como atrela-se a este desde quando é apenas um nascituro se formando no ventre materno, acompanhando-o até após o falecimento para assim efetuar a sucessão dos bens deixados aos respectivos herdeiros, de forma que assim demonstra o quanto são atribuídos valores aos diversos fatos ocorridos na vida humana e que desta forma auxiliam na maneira em que a norma é disciplinada pelo legislador no momento em que será consubstanciada e passará a entrar em vigor, surtindo efeitos no corpo social. Tal teoria é de suma importância para a compreensão de um Direito não meramente abstrato, mas dialético, que se adequa a sociedade e se monta e remonta por ela e seus anseios.
Ao analisarmos de forma crítica a teoria de Reale é possível perceber que ela própria se transmuta, conforme o espaço e o tempo, na medida em que a pesquisa e a experiência elaborada e exposta pelo jurista ou filósofo avançam, analisando assim a base existencial da proposição realiana. A contribuição deste formidável pensamento do jusfilósofo brasileiro contribuiu não somente para o ramo jurídico, mas também para o ramo da Filosofia, devido a apreciação dos fatos e elementos por ele realizados.
Desse modo, Miguel Reale sustenta que a exigibilidade do cumprimento da norma não pode ter como escopo único o aspecto coercitivo da mesma, de maneira que age puramente como uma imposição estatal. Pelo contrário, a realização do comportamento conforme com as normas jurídicas deve fundamentar-se na relação valorativa dela com a sociedade. Melhor dizendo, a norma é o anseio, que possui grande carga valorativa da própria sociedade. Assim, o cumprimento da norma é requisito elementar para o bem da própria sociedade, de forma que é possível dizer que a observância da lei pelo grupo social gera a própria paz social entre os indivíduos, os quais se sentem seguros com a proteção que lhes é oferecida.
Portanto, quando o homem busca a justiça, ele não almeja algo externo, que não há em seu interior, mas sim a concretização de algo que já se encontra em seu interior. Isso porque, o homem é justo por natureza, visto que, seus anseios pelas justiças são a maior prova disto. Tão logo, o indivíduo busca materializar e uniformizar o ideal de justiça que há dentro de si em conformidade com os ideais que há no próximo, baseando-se na ética, moralidade e bom senso. Desse modo, a justiça não faz o homem, mas o homem faz a justiça, pois dentro de si há valores, uns maiores e outros menores, mas que são buscados pelo homem ao longo de sua vida.
Baseando-se nessa teoria, de complexidade acentuada, embora aplicabilidade apodítica, é que se baseará o presente trabalho, destacando os institutos previstos pelo Direito Civil para identificar o quão imprescindível é a aplicação do pensamento de Reale aos inúmeros casos que são ocasionados ao longo da vida. A metodologia utilizada foi a de pesquisa bibliográfica.
Destarte, o presente trabalho fará uma aclaração nos entendimentos sobre e teoria tridimensional de Miguel Reale, comparando-a, também, com as demais vertentes existentes e que eram predominantes em sua época, bem como a sua aplicabilidade na esfera civil e assim declarar quais são os mais relevantes fatos que são valorados pelo corpo social e que causam repercussão nas normas.
2 A TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO
A teoria tridimensional do direito é um pensamento sistemático elaborado pelo jusfilósofo brasileiro Miguel Reale. Segundo este, a integração normativa de fatos de acordo com valores seria o que formaria o Direito. Através desta ideia preliminar é possível extrair os três elementos de lógica da teoria tridimensional do direito são: fato, valor e norma (Reale, 2000, p. 119). Em linhas gerais, fato social é aquele que interessa ao direito, valor representa a relevância na qual a sociedade atribui a este fato, e norma concretiza-se quando o Direito passa a discipliná-lo. Esta teoria não foi formulada prontamente como conhecemos atualmente. Utilizando-se de observações e aprimorando assim as suas conjeturas, Reale a desenvolveu gradativamente com o tempo (Reale, 2000, p. 22-53).
Para uma verdadeira compreensão desta filosofia jurídica desenvolvida pelo jurista é necessário entender os aspectos sociológicos e históricos nos quais essa tese filosófica se refere. Isto se dá porque a situação concreta do homem está intimamente ligada aos modelos jurídicos (SOUZA, 2010, p. 145). O pensamento de Reale era claramente divergente ao do filósofo alemão Hans Kelsen (1881-1973), pois este defendia ferrenhamente, até alto ponto de sua vida, o positivismo, isto é, a incontestabilidade da norma positivada.
Apesar do acima citado, a teoria tridimensional do direito surge no início da década de 1940, período em que o jurista Kelsen era aclamado internacionalmente. Segundo este, o Direito consiste unicamente na norma. Entretanto, como defendeu Reale, o Direito não pode ser analisado sob um aspecto tão reducionista. Para o brasileiro, a norma era apenas fruto dos elementos: fato, valor e norma, uma vez que a norma não surgia por si mesma. Para que esta fosse criada, era necessário um embasamento em um fato, o qual recebeu uma carga valorativa da sociedade.
Durante a elaboração de suas proposições, Miguel Reale também elucidou a semelhança entre o ato moral e o ato jurídico. Ambos possuem cargas valorativas as quais impulsionam o seu exercício. Todavia, há uma nítida distinção: o primeiro parte exclusivamente do interno do indivíduo singular, enquanto o segundo não pertence a um único indivíduo em questão mas sim a um todo, o que justifica a coação para seu cumprimento (CALHEIROS, 2010, p. 143).
O momento inicial no qual surgiu a teoria supracitada foi nos primeiros anos da década de 40, período em que Getúlio Vargas era governante. Possuindo uma incontestável soberania sobre a população, seu governo totalitário representava um ideal que sempre esteve presente em nossa tradição jurídica: o caráter ético-normativo do Direito (SCHMIDT, 2008, p. 567). No período em questão é possível perceber que tal inclinação apenas justifica e legitima determinados atos governamentais os quais o povo não admitiria espontaneamente de maneira plena. Através do pensamento positivista, o ato jurídico recebe significado pelo traçado interpretativo ao qual será aplicado, pois inicialmente não possui sentido em si.
Reale sempre foi um ferrenho defensor de que era necessário desvencilhar-se do obsoleto conceito de bidimensionalidade jurídica, haja vista que esta não mais se adequava a realidade de nossa sociedade, sendo imprescindível a construção de uma nova teoria que correlacionasse os três fatores, os quais deveriam ser harmônicos para a concretização do ideal proposto pelos juristas e filósofos da época.
Muito embora a Filosofia seja uma ciência autônoma ao Direito, é inegável a íntima relação entre ambas. Tanto é que, em muitos estudos, aplica-se a chamada Filosofia do Direito. A origem etimológica da palavra Filosofia encontra-se pela união de duas palavras gregas: philos + sophia. A primeira significa “amor”, enquanto que a última significa “saber”, formando assim algo semelhante à “amor ao saber”. (ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires, 2009, p. 37). Ante o exposto, resta claro que a Filosofia, tal como o filósofo, não é detentora da verdade absoluta, mas apenas objetiva conhecer ainda mais, enquanto que o Direito busca sempre a verdade e a justiça. A união de ambas as ciências faz nascer um Direito mais humano, como já dito dialético, e não meramente baseando-se na primitiva ideia de punição, que nos remonta a épocas sombrias e injustas, mas sim a ideia o mais pura possível de justiça realmente, na qual a sanção é mera exteriorização da norma para que se concretize o que está posto nela, com a finalidade de obter-se a coesão social harmoniosa em todos os grupos sociais.
Ao longo da evolução do Direito, desde eras onde predominavam impiedosas oligarquias, forças estatais ou religiosas, atinge-se o período no qual predominam as regras morais e éticas para a efetivação das proposições jurídicas.
Conforme o entendimento de Reale o que há de ser preponderante é o que se encontra constituído no valor superior da justiça, havendo assim uma ordem justa, sendo os princípios idealizados através da razão para assim formar o Direito (REALE, 2003, p. 50). Afirma-se ainda que o Direito não pode ter enfoque puramente normativo, como ocorre no positivismo, tampouco puramente fático, como ocorre no marxismo. Quando isso ocorre, segundo ele, a realidade jurídica não se apresenta de forma plena, pois as demais dimensões acabam sendo ocultadas por aquela que recebe esse destaque e, na realidade, o Direito não pode priorizar ou menosprezar nenhuma de suas três dimensões.
Ainda sobre essas duas concepções jurídicas, comuns na cultura luso-brasileira, Reale ressalta as dificuldades que por elas podem ser geradas. É possível tomar como exemplo algumas leis as quais são criadas com um bom intuito, mas que, em contrapartida, não são bem contextualizadas. Destarte, acaba que a lei vem a perder a chamada eficácia. Para melhor compreensão desse problema nas duas correntes elucidam os dois exemplos abaixo:
Em um ônibus há um aviso de que é proibido adentrar com animais no veículo. Na corrente positivista, caso um indivíduo que fosse cego ou tivesse sérias dificuldades para enxergar buscasse adentrar no ônibus com o seu cão-guia, a única direção de um homem que é privado de um sentido, a norma seria aplicada de modo inexorável, proibindo desta forma que o pobre homem embarcasse no veículo, pois há uma norma a qual veda o embarque de passageiros com animais. De outro lado, na corrente marxista, o homem cego poderia adentrar no ônibus com seu cão-guia, e também, caso uma mulher quisesse entrar no mesmo ônibus, com 5 cachorros, 3 gatos, 2 passarinhos e 1 macaco, ela poderia livremente, pois seria observada apenas a realidade e não a norma, sendo permitidas incontáveis exceções. Neste sentido, é possível perceber que, compreendendo tais concepções, para a aplicação do Direito é necessário realizar diversos ajustes, ainda assim resultando em decisões incoerentes.
3 O INSTITUTO CONTRATUAL
Percebe-se desta forma que a teoria tridimensional proposta por Miguel Reale influenciou, até mesmo, alguns princípios e artigos de nossa legislação atual.
Podemos tomar como exemplo o artigo 421 do Código Civil, que assim dispõe: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Tal dispositivo se baseia na boa-fé objetiva, princípio este que também acolhido expressamente por nosso estatuto civil vigente. Assim como a função social da propriedade, a função social do contrato visa não apenas o aspecto norma, mas também o valor atribuído a esse fato, para que tais valores sejam preservados. Disposição semelhante inexistia no Código anterior de 1916, uma vez que este preservava a liberdade de contratar do indivíduo sem quaisquer restrições. Acerca deste pensamento, os juristas Gustavo Zambon e Nehemias Domingos de Melo elucidam, respectivamente:
Como visto, o princípio da função social do contrato desempenha o papel de impor aos titulares de posições contratuais o dever de perseguir, ao lado de seus interesses individuais, a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, relacionados ou alcançados pelo contrato. A função social do contrato consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes). (ZAMBON, 2015).
Sendo os contratos instrumentos importantes na circulação da riqueza e considerando que a propriedade deve cumprir sua função social (ver CF, art. 5º, XXIII), tendo ainda em vista a necessidade de proteção à dignidade da pessoa humana (ver CF, art. 1º, III), é preciso verificar se a vontade manifestada no contrato não está em confronto com o interesse social, pois se estiver este é que deve prevalecer. (MELO, 2014).
Observando tais apontamentos, impossível não vislumbrar a teoria tridimensional aplicada ao princípio função social do contrato, uma vez que este visa o bem-estar social e a justiça efetivamente alcançada face à discrepância entre os contratantes, o que se dá ao observar este fato, atribuir-lhe o devido valor e assim fazer com que a norma o discipline da maneira necessária.
Paulatinamente é perceptível que este fenômeno jurídico de criação das normas resulta da valoração de fatos em nossa cultura (MACHADO NETO, 2009, p. 80), uma vez que, através dos inúmeros fatos sociais ocorridos cotidianamente no ambiente cultural, os quais fazem despertar no corpo social alguma reação, de forma que confere algum valor ao respectivo fato e resulta na norma elaborada para agraciar a sociedade que, através de sua determinada cultura, exalou o seu parecer.
4 A FIANÇA E SUA IMPORTÂNCIA
A sucessão de valoração a determinado fato ocorre, por exemplo, no contrato de fiança, que é uma modalidade contratual acessória, também bastante comum no cotidiano brasileiro. Anteriormente, havia escassa regulamentação acerca do contrato de fiança. Entretanto, com o anseio social e alta valoração sobre o fato social da fiança, tornou-se crucial a elaboração de mais normas para regulamentar o assunto (LISBOA, 2004).
Pelo contrato de fiança, o fiador se obriga a pagar a dívida do devedor, se este a inadimplir. Esta obrigação poderá se estender aos herdeiros que irão responder nos limites da herança, sendo limitado no tempo decorrido até a morte do fiador. Imprescindível ainda destacar que o próprio Código Civil estabelece que o credor ainda não é obrigado a aceitar fiador, se este não for idôneo, não for domiciliado no domicílio onde tenha de prestar a fiança, e não possua bens suficientes com a finalidade de cumprir a obrigação, enquanto o devedor não precisa sequer saber da existência deste fiador, uma vez que basta o credor estar satisfeito com a fiança devidamente estabelecida com o indivíduo no qual assinará dando-lhe a garantia. Assim, Venosa (2018), notável civilista, declara que “enfatiza-se, desse modo, que esse contrato de garantia independe da vontade do devedor e o credor pode buscar esse reforço de cumprimento da obrigação até mesmo contra a vontade do devedor”.
Ademais, a garantia da fiança se dá pelo fiador através do seu próprio patrimônio, sendo uma garantia pessoal (ou fidejussória), possuindo vínculo imediato nas relações entre fiador e credor e mediato nas relações entre fiador e devedor, destacando ainda que, as dívidas futuras também podem ser objeto de fiança, entretanto o fiador apenas poderá ser demandado depois de se tornar a obrigação do principal devedor, certa e líquida. Neste sentido, Alessandro Segalla elucida em sua obra:
Ao falar-se de fiança e de obrigação fidejussória supõe-se ter havido, por parte de quem emitiu a declaração de vontade, o propósito ou a intenção de afiançar (animus fideiubendi); a existência desse animus supõe que o declarante conhece o sentido e as consequências da prestação de fiança, no que à sua vinculação concerne, supondo, portanto, que o fiador sabe o que está́ a fazer. A exigência de inequívoca declaração de vontade do fiador é plenamente justificável, pois implicando assumir obrigação alheia, a fiança altera a regra geral da responsabilidade própria (SEGALLA, 2013, p. 16).
Através das considerações acima realizadas é possível compreender que o presente instituto civilista surgiu justamente para satisfazer a garantia que o locador necessita para assim firmar o contrato com o locatário, uma vez que haverá a certeza quanto ao recebimento do quantum face ao inadimplemento por parte do devedor, ora locatário.
5 A FIGURA DA RESPONSABILIDADE CIVIL
O presente instituto se dá no momento em que surge uma violação de um direito particular, cabendo ao infrator do respectivo ato indenizar a vítima em pecúnia quando não for possível a reconstituição do estado anterior da coisa.
Os juristas Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona propõem que a responsabilidade é uma atividade danosa de alguém, atuando a princípio ilicitamente, infringe uma norma jurídica preexistente, seja ela legal ou contratual, estando assim, a mercê dos seus atos praticados, devendo reparar o dano que causou (2012, p.54).
Portanto, a responsabilidade acontece quando há a conduta causadora do dano e a obrigação de repará-lo, mas além da conduta e do dano, existe outro elemento essencial, o nexo de causalidade da conduta praticada pelo agente e o dano ocorrido. Desta forma, não basta apurar somente o dano, para responsabilizar o agente causador do prejuízo, mas sim deve existir a comprovação de que foi aquele determinado indivíduo que realmente praticou a conduta causadora do prejuízo. Silvio Rodrigues assim desenvolve assim este raciocínio: “de fato, o anseio de obrigar o agente causador do dano a repará-lo se inspira nos mais estritos princípios de justiça, principalmente quando o prejuízo foi causado intencionalmente” (2008, p.04).
Considerando a presente análise sobre o conceito de responsabilidade civil, evidente é o encaixe do instituto à teoria tridimensional de Miguel Reale, haja vista que somente ocorrendo determinados atos cometidos por quaisquer indivíduos, e que ocasionam algum dano à vítima do fato, é que compreende-se que o ato praticado teve um valor atribuído por aquele que sofreu o prejuízo e que assim, necessitou que o ordenamento jurídico pautasse um tópico acerca do assunto, disciplinando-o e fazendo surtir efeitos durante o cotidiano em sociedade.
6 ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA JUNÇÃO DA TEORIA DE REALE E OS INSTITUTOS CIVILISTAS
Diante da exposta teoria de Miguel Reale e das explicações pautadas nos institutos do Direito Civil, é inegável enxergar que, a seu ver, o Direito é feito num esboço lógico, que se cria de modo abstrato, entretanto baseado em uma realidade fática existente na sociedade atual. Isto é, os elementos fato, valor e norma não são resultantes de uma simples somatória, mas sim de uma interligação, pois ambos coexistem harmonicamente para que seja formulada a norma concreta capaz de regular a situação em questão. Certos fatos não recebem grande carga valorativa e, portanto, sobre eles não é elaborada nenhuma norma, pelo fato da desnecessidade de se fazê-lo. Assim, explanada a dimensão de que se trata o Direito Civil, bem como a incidência nos respectivos institutos no cotidiano, vislumbra-se claramente a aplicação prática da teoria proposta pelo jusfilósofo enquanto pautar-se nos elementos de sua teoria como requisitos para uma possível justificativa acerca da aplicação do respectivo instituto.
Outro aspecto interessante em sua teoria é que, em sua fundamentação ele revela que as normas não são geradas aleatoriamente de uma forma ilógica, mas sim se baseando no empirismo, ou seja, é o fruto das experiências humanas no meio no qual ele habita, revelando a subjetividade intrínseca em cada norma criada, como vem ocorrendo de forma repetitiva e impiedosa na vida em sociedade, mais especificamente na esfera dos interesses particulares. Desta forma, a norma será valorada pelo magistrado, na aplicação do Direito, analisando o caso concreto e as circunstâncias que o entornam, não apenas utilizando-se da chamada “letra da lei”. Esse entendimento é baseado no fato de que o Direito é feito por seres humanos e aplicados a seres humanos, sendo que para cada determinado fato, existem inúmeras circunstâncias a serem analisadas e assim amparar da devida forma a lide na qual foi levada até a tutela estatal. Logo, não seria razoável que a norma fosse aplicada “nua e crua” em todos os casos apresentados, sem avaliar o aspecto subjetivo que o distingue dos demais. O Direito não é uma ciência exata, a qual concede todas as respostas sobre todas as circunstâncias prontamente, mas sim uma ciência humana, aplicada por humanos os quais direcionam ao que se julga ser correto, sempre fundada nos valores éticos e morais, tanto da sociedade que os cerca quanto da humanidade que eles mesmos compõem (CZERNA, 1999, p. 127). Nas relações entre si, os particulares precisam sentir a ofensa do outro contra si, ainda que não seja tão aparente, para assim gravar o fato com a sua determinada carga valorativa, ocasionando a fundamentação legal para disciplinar a ocorrência existente em determinado momento.
O entendimento ao perceber que fato, valor e norma estão entrelaçados e devem ser analisados em conjunto, faz com o sociólogo, o filósofo e o jurista vejam o sentido dialético de suas investigações sobre essa tríplice. O Direito Civil, como fonte do ordenamento jurídico capaz de solucionar os conflitos de interesse entre os indivíduos em suas respectivas esferas particulares aplica em seus institutos, de forma sistemática, tais elementos elucidados por Miguel Reale em sua teoria, destacando ainda que o caráter normativo da esfera civil disciplina tanto os comportamentos individuais na sociedade quanto os coletivos, de modo a que haja a coesão harmônica dos indivíduos no grupo social.
Para Reale, seguindo a mesma lógica, o Direito também pode ser visto pela ótica de uma ordenação de bilateralidade atributiva, uma vez que, o indivíduo que tem ante si imposta uma obrigação, em contrapartida tem um direito. Nesse ponto, a norma deixou de ser apenas uma ordenação imperativa para tornar-se uma um direcionamento orientador, segundo o qual há de se ter a plena observância por todos os indivíduos em sociedade.
Os elementos componentes do Direito são extremamente importantes para a compreensão da aplicação das normas em si. É possível extrair o significado de cada um dos três elementos. Fato social é qualquer fato que ocorra na sociedade e que tenha relevância; os valores representam a valoração que fazemos a cada fato, dando pouco valor a uns e muito valor a outros e; a norma nasce de um fato que tem relevância, um fator relevante. Essa norma vai regular e reger a sociedade. Portanto, fato social, valor e norma são três dimensões que tem relação de implicação e polaridade.
Outro ponto a ser salientado é que através da análise e fundamentação axiológica é possível determinar a natureza tridimensional daquele fato jurídico em questão. Com isso é possível perceber que os valores são fatores cruciais para a humanidade, visto que embasam, sobretudo, as normas jurídicas (GARCIA, 1999, p. 1).
Em contraposição ao juspositivismo, a teoria de Miguel Reale nos apresenta um aspecto mais jusnaturalista, no qual há uma análise concreta de cada caso, não sendo a sentença mero ato mecânico reflexo do texto da lei, mas sim uma decisão na qual se leva em consideração todas as peculiaridades do caso, onde o magistrado faz a plena apreciação do caso. Isso traz de volta a corrente do Direito Natural, ou seja, aquele que já nasce com o homem, independentemente de estar transcrito na lei. Observando esses aspectos intrínsecos ao homem é o que Direito verdadeiramente se concretiza. Utilizando-se da valoração do fato é que se pode atingir a finalidade objetivada pelo Estado, que nada mais é do que a realização da Justiça e pacificação social. Da mesma forma que, o próprio Código Civil de 2002 elenca como um de seus princípios, a socialidade, o qual atribui o caráter de bem-estar social como diretriz das normas civis face ao individualismo presente no revogado Código Bevilácqua.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A teoria tridimensional do direito, proposta por Miguel Reale, nos traz a noção de não devemos nos prender apenas e tão somente ao puro enunciado da lei, sem levar em consideração a valorização de determinados fatos, que são elementares para a elaboração da norma. Diante do positivismo, tanto o legal, de pensadores como Augusto Comte e Hans Kelsen, quanto o social, de pensadores do Marxismo, é evidente que essa tridimensionalidade do jusfilósofo brasileiro concretiza-se como uma indiscutível originalidade, tanto na tradição jurídica brasileira quanto na mundial, inclusive.
Essa teoria aplicada ao Direito Civil, ramo jurídico comum do cotidiano, nos mostra uma perspectiva dialética do Direito, inspirando-se nos atos constantemente ocorridos ao longo da vida humana, ou seja, é um reflexo da realidade fática tida com grande valor pela sociedade. Assim, a noção de Direito desvencilhou-se do prisma unilinear e reducionista que, sobre ele antes era explanado. Apesar da evidente inovação da teoria, a princípio ela foi compreendida de forma errônea, devido ao fato de que, na época de seu surgimento, as três dimensões eram estudadas separadamente, como se entre elas não houvesse interligação.
Desse modo, nota-se que o Direito é dinâmico e estável, isto é, a medida que a sociedade se transforma surge a necessidade de o Direito se adequar a sociedade atual (por isso dinâmico), de modo que, geram efeitos nas relações entre particulares nas mais diversas especificados, seja um fato que ocasiona responsabilidade civil, bem como uma revisão contratual, por exemplo. Entretanto, quando essas adaptações são realizadas através de determinadas alterações, elas se mantêm por um longo período, não mudando novamente “do dia para noite” (por isso estável). Então é uma renovação e adaptação do Direito, conforme os valores da sociedade atual, podendo ser observadas cotidianamente no Direito Civil.
REFERÊNCIAS
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Bacharel em Direito pela FADAP/FAP - Faculdade de Direito da Alta Paulsita
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Marcus Vinicius Balbino de. A Teoria Tridimensional do Direito Aplicada aos Institutos do Direito Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jan 2020, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54165/a-teoria-tridimensional-do-direito-aplicada-aos-institutos-do-direito-civil. Acesso em: 27 dez 2024.
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