Resumo: O presente trabalho tem por finalidade conduzir uma reflexão jurídica a respeito da experiência comum do juiz na recepção dos meios probantes, tendo como escopo o modelo imparcial corroborado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Baseando-se na pesquisa bibliográfica de leis e literaturas, o trabalho procurou abordar de forma crítica e inquisitiva, a relação da norma do art. 375 do novo Código de Processo Civil com os princípios e garantias corroboradas no texto constitucional, tendo em vista, que, ao juiz, seria razoável atribuir-lhe o dever de usar sua livre convicção para admitir as provas, ou melhor, à aplicação do direito? Espera-se ao final que o presente questionamento propicie a elucidação do tema, considerando-se que é de extrema importância o estudo e o debate do assunto, principalmente por parte dos operadores do direito, no exercício equânime e justo do direito.
Palavras-chave: Princípio da imparcialidade; Convicção; Aplicação do direito; Constituição
Abstract: The purpose of this paper is to address a legal reflection regarding the experience of the common judge in receiving evidence, has as scope the impartial model corroborated by the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988. Based on the bibliographic research of laws and literature, the work sought to approach, in a critical and inquisitive way, the relation of the norm of art. 375 of the new Code of Civil Procedure with the principles and guarantees corroborated in the constitutional text, considering that, to the judge, it would be reasonable to attribute to him the duty to use his free conviction to admit the evidence, or better, to the application of the law ? In the end, it is expected that the present work will provide an elucidation of the topic in question, considering that it is extremely important to study and debate the subject, mainly by law operators, in the fair and equitable exercise of the law.
Keywords: Principle of impartiality; Conviction; Application of law; Constitution
Sumário: 1. Introdução. 2. A experiência comum e o novo cpc: divergências e críticas. 3. Imparcialidade, convicção motivada e discricionariedade 4. Considerações finais. 5. Referências
1. INTRODUÇÃO
A utilização da experiência comum do magistrado é um assunto ainda controverso na seara jurídica. Embora uma parcela da doutrina entenda ser plausível o uso da livre convicção do juiz no momento da instrução probatória, outra parte entende ser inadmissível, pois fere certos preceitos, tais como, a imparcialidade e os princípios gerais do direito. Tais controvérsias vêm impulsionando divergências com as propostas do modelo de Estado Democrático de Direito, o qual preza pela vinculação da jurisdição constitucional com o devido processo legal.
Dessa forma, tem-se no ponto de vista da doutrina e da literatura que o subjetivismo é uma realidade constatável à atividade jurisdicional, estando, em certos casos, presentes na atuação dos julgadores, nos julgamentos e demais decisões judiciais.
Tendo como escopo a referida crítica, o presente estudo adotará como norte os seguintes questionamentos: a aplicação da experiência comum fere as contribuições do Estado Democrático de Direito? Sobretudo, a imparcialidade? É possível o juiz utilizar sua livre convicção na recepção das provas?
Sem grande complexidade, o artigo analisará o dispositivo da norma do art. 375 do CPC em comparação com as garantias constitucionais, especialmente, a imparcialidade, tendo em mente que a atividade jurisdicional precisa se apoiar nos princípios e aportes incluídos na lei, mantendo uma postura equânime e justa na aplicação do direito.
O método de pesquisa utilizado foi o jurídico-dogmático, considerando as instituições, aportes e garantias sociais presentes no ordenamento jurídico, através de uma abordagem crítica e sistêmica dos diversos institutos jurídicos.
2. A EXPERIÊNCIA COMUM E O NOVO CPC: DIVERGÊNCIAS E CRÍTICAS
No que diz respeito a nova perspectiva adotada no novo ordenamento processual, é fato consolidado que a promulgação da Lei nº 13.105/2015 revolucionou o direito processual civil brasileiro, uma vez que, proporcionou grande alento para a promoção de importantes alterações, tais como, a celeridade procedimental, a conversão das ações individuais em coletivas, a redução de recursos, a priorização da autocomposição e entre outros inúmeros feitos.
Houve também, neste ínterim, um fortalecimento do vínculo entre os institutos processuais com as garantias dispostas na Carta Magna de 1988, como por exemplo, a eficácia e fundamentação das decisões judiciais e a imparcialidade dos órgãos julgadores, que, indubitavelmente, reforçaram a aplicação das normas processuais.
No que tange as mudanças promovidas pelo atual código, há um assunto que ainda gera discussões no meio jurídico. Tal questão é o dispositivo incluído na norma do art. 375 do novo CPC, o qual estabelece que o juiz poderá aplicar as regras de experiência comum subministradas pela observação do que “ordinariamente” acontece (BRASIL, 2016, p. 91).
Apesar de promover mudanças dignas de elogios, a alteração proposta pelo CPC no mencionado dispositivo continua sendo alvo de numerosas críticas, se tratando para alguns como um retrocesso para o processo civil, no que se refere a adoção da experiência comum. Dentre esses críticos, Streck (2020) entende na redação do comentado dispositivo a existência de dois aspectos, a saber, o objetivo e o subjetivo. De certa forma, pondera-se que a reunião destes dois elementos é um espaço suscetível de debates e questionamentos, já que a norma está autorizando a aplicação da regra por meio de experiências pessoais e não aquelas decorrentes da lei.
Sobre o dispositivo, este encontrava-se previsto no CPC de 1973 na norma do seu art. 335, bastando o magistrado na falta de normas jurídicas, a aplicação da experiência comum quando lhe achasse melhor (BRASIL, 2019). Por sua vez, o novo código manteve inalterado o mesmo entendimento na recepção do meio probatório, oportunizando ao juiz adotar sua visão no que lhe acredita ser habitual. É possível, na presença de lacunas o uso da experiência comum? E a analogia, os costumes e os princípios basilares do direito?
Como bem observado por Câmara (2018, p. 234) o CPC de 1973 foi promulgado em um regime de exceção que não possuía em seu texto original qualquer compromisso com o Estado Democrático de Direito, não se importando sequer com os direitos inerentes aos jurisdicionados, devido ao seu caráter técnico.
Por conseguinte, nas observações de Maia Filho (2004, p. 59) a experiência comum do juiz continua sendo um conceito em branco e decorre de um vazio que a própria norma deixa em aberto, pois, o que é comum para um pode ser incomum para outro, e vice-versa. Noutro vértice, as regras de experiência comum poderiam ser uma via alternativa para que o julgador, com base no seu entendimento pessoal/habitual promova a tutela jurisdicional de forma unilateral. Assim, geram-se dúvidas ao intérprete à aplicação do dispositivo, tendo em vista que, diante da imparcialidade objetiva como é possível o juiz usar de sua própria consciência?
Depreende-se nesses casos que a prática das regras de experiência comum necessita de um juízo singular, haja vista que, cada indivíduo possui vivências únicas do que lhe habitualmente acontece. Nesta senda, do dispositivo acima citado extrai-se certa subjetividade por parte do magistrado ao analisar determinado meio probatório, gerando certa contradição com as contribuições propostas pelo Estado Democrático de Direito, o qual propende a imparcialidade dos órgãos julgadores.
Neste diapasão, verifica-se uma inconstância com o que prega o texto constitucional e a legislação infraconstitucional, os quais respectivamente, tutelam pela imparcialidade e objetividade. Isto posto, como ficaria a imparcialidade do órgão julgador na utilização do seu próprio entendimento e experiência individual?
3. IMPARCIALIDADE, CONVICÇÃO MOTIVADA E DISCRICIONARIEDADE
Consoante as lições de Cintra, Grinover e Dinamarco (2006, p. 58) a imparcialidade elabora uma cognição de distanciamento do juiz com os litigantes e os meios probatórios, sem que haja facilitação com uma parte ou com outra, servindo a imparcialidade como parâmetro no qual o julgador está entre os jurisdicionados, preservando a validade e legitimidade do procedimento judicial.
Em outros termos, segundo Theodoro Junior (2011, p. 254) declarar que o magistrado é imparcial significa dizer que o mesmo deve conduzir o procedimento sem inclinar a balança, no decorrer da ação, para qualquer um dos jurisdicionados, concedendo a um deles, como exemplo, oportunidades favoráveis à exposição dos fatos e provas disponíveis, sendo imperiosa a observação da moral, dos bons costumes e dos princípios.
Sobre a base principiológica da imparcialidade, esta encontra-se calcada na norma do art. 5º, XXXVII do texto constitucional, ao dispor que “não haverá juízo ou tribunal de exceção.” (BRASIL, 2018, p. 10). Além disso, somando-se ao referido mandamento, a lei maior também estabeleceu na norma do seu art. 5º, LIII que “ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente” (BRASIL, 2018, p. 11), ou seja, por um indivíduo investido no cargo de magistrado, onde sua prática será realizada em conjuntura com os requisitos essenciais ao exercício da jurisdição, tais como, a investidura, o juízo natural e a imparcialidade.
Segundo alguns autores, dentre eles, Câmara (2019, p. 235) e Theodoro Júnior (2011, p. 257-258) entendem que a imparcialidade é o pressuposto de fundamentação e eficiência da chancela jurisdicional, dado como o princípio da fundamentação das decisões, o qual determina o texto constitucional na norma do seu art. 93, IX, que toda decisão judicial deve ser fundamentada, sob pena de ser considerada nula (BRASIL, 2018, p. 35).
Ainda assim, entre os diversos princípios instituídos no ordenamento jurídico pátrio está o princípio do convencimento motivado, que nas palavras de Gonçalves (2015, p. 489) serve como filtro no exercício da atividade judicante, em que o magistrado se mantenha adstrito aos elementos probatórios reunidos no feito, não se baseando na sua livre convicção. Cumpre ao juiz formar o seu convencimento analisando as provas produzidas, porém, esta deve ser embasada e fundamentada nos elementos constantes nos autos.
Nas afirmações de Câmara (2018, p. 234) enquanto a legislação anterior falava em livre admissão da prova, o código atual estabelece incumbir ao juiz a apreciação da prova. O desaparecimento do advérbio “livremente”, deve ser considerado pelo intérprete na procura da forma autêntica de entender-se o sistema, sendo que, a atividade jurisdicional não é e não possui natureza discricionária. Não se pode reconhecer ao juiz a possibilidade de, indiferentemente, escolher este ou aquele meio probatório na formulação de seu convencimento, ainda que posteriormente seja fundamentado.
Desse modo, a fundamentação do princípio em voga advém da perspectiva de que o juiz não goza de autonomia para agir de acordo com a sua cognição subjetiva, ou seja, de forma discricionária. Deve ele vincular seu exercício legal com os mandamentos dispostos no ordenamento jurídico.
Como bem levantado por Maia Filho (2004, p. 68), extrai-se no exame das regras de experiência comum que o juiz não tem permissão para prolatar a decisão com base no seu conhecimento particular que possa ter dos fatos da lide, mas sim que o julgador tem a prerrogativa de “interpretar” os fatos provados no procedimento judicial, absorvidos pela experiência comum. Se o julgamento se basear em ciência pessoal do juiz, ter-se-á um julgamento nulo, eis que o julgador estaria despido da imparcialidade.
Outrossim, assevera-se o axioma no qual a atividade jurisdicional não é e não pode ser discricionária. É impossível reconhecer ao juiz a possibilidade de utilização de sua própria consciência, ou melhor, da experiência comum de acordo com sua própria vontade. Conforme leciona Câmara (2018, p. 232) é necessário buscar que um Estado que se diz Democrático e de Direito demanda-se de plena vinculação com os preceitos estabelecidos na lei, porquanto, não se pode admitir o pensamento no qual seria indiferente para o Direito e para a sociedade que o magistrado escolha este ou aquele meio, porque, ao final, se chegaria à conclusão que seria juridicamente indiferente dar-se razão a uma das partes ou à outra.
Sendo assim, fica a cargo dos juristas, estudiosos e operadores do direito a investigação jurídica sobre a instrução probatória e as regras de experiência comum. A pesquisa associada ao diálogo crítico e racional concederão ótimos direcionamentos para a análise do assunto ao caso concreto, reafirmando assim, como já destacado por Theodoro Júnior (2011, p. 261) a devida proteção do devido processo legal e a efetivação do justo procedimento judicial.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, porém sem que se esgote a discussão do tema proposto, vale a pena destacar alguns pontos para reflexão.
Sabe-se que o novo Código de Processo Civil foi um louvável avanço para o processo civil. Diferente do seu antecessor o novo código reestruturou os entendimentos concernentes à atividade judicante, principalmente o modo de aplicação do Direito, restabelecendo notadamente, o vínculo com a Constituição e seus princípios positivados.
Como já levantado pelo texto, existem diversos questionamentos e abordagens jurídicas a respeito do tema, o que leva a crer, que o Direito demanda de constantes reflexões, dado que, este não é uma ciência acabada e exata, pelo contrário, está sempre sujeito a alterações e discussões.
Apesar dos posicionamentos e críticas no tocante ao dispositivo, precisa-se perquirir que o atual paradigma processual/constitucional prioriza a utilização imparcial e equânime no exercício da jurisdição, posto que, sem a imparcialidade não haveria o que se falar igualdade e equidade, tampouco, na premissa de que vivemos em uma ordem jurídica justa. O Direito necessita ser revestido pela imparcialidade, a fim de que cumpra com o seu mister, que é servir como instrumento na manutenção da harmonia e do convívio social.
Destarte, fica a reflexão sobre o discutido dispositivo. Havendo dúvidas ao recepcionar a prova, o juiz deve adotar sua livre experiência no que lhe acredita ser comum, ou valer-se da analogia, dos costumes e dos princípios, assim como dispõe o ordenamento jurídico? Sabe-se que no atual cenário jurídico é inconcebível a premissa na qual o Estado/juiz pode valer-se do seu próprio entendimento, ou ainda escolher este ou aquele jeito para promover a tutela jurisdicional, visto que, a prática judicante está longe de ser discricionária. Cabe a comunidade científica e aos operadores do direito zelarem pela imparcialidade e equidade dos atos processuais, ao passo que, a máquina judicial precisa apoiar-se nos princípios e prerrogativas inerentes ao sistema normativo, se abstendo de qualquer arbitrariedade.
5. REFERÊNCIAS
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MAIA FILHO, Napoleão Nunes. As Regras da Experiência Comum na Formação da Convicção do Juiz. Revista dialética de Direito Processual (RDDP). São Paulo, n. 17, p. 59-75, ago. 2004.
STRECK, Lênio Luiz. O NCPC e as esdrúxulas "regras de experiência": verdades ontológicas? 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-abr-09/senso-incomum-ncpc-esdruxulas-regrasexperiencia-verdades-ontologicas>. Acesso em: 20 jan. 2020.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. O compromisso do Projeto de Novo Código de Processo Civil com o processo justo. Revista de informação legislativa. Brasília, ano 48, n. 190, p. 237-263, abr/jun, 2011.
Graduado em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NEVES, Kelvyn Luiz. O novo CPC e aplicação das regras de experiência comum do juiz: divergências com a proposta do Estado Democrático de Direito? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54329/o-novo-cpc-e-aplicao-das-regras-de-experincia-comum-do-juiz-divergncias-com-a-proposta-do-estado-democrtico-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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