RESUMO: Trata-se de artigo resultante de pesquisa teórica com fundamento em revisão bibliográfica. Após discussão sobre os conceitos de Direito e Garantias, analisar-se-á a Liberdade, sob a ótica das Escolas Penais Clássica e Positiva, com posterior crítica dos estudiosos de Frankfurt. Para tanto, partem da premissa de que o Direito Penal deve ser limitado ao máximo, o que implica sua incidência apenas sobre aquelas condutas que violem, de maneira agressiva, os bens indispensáveis para a vida em comum, como a vida, a saúde, a propriedade. O direito penal só deve intervir se comprovada a lesividade concreta do bem jurídico, em situação de afronta à coletividade, impondo-se a produção de um dano ou de um perigo concreto de dano de forma significativa, capaz de afetar as condições comunitárias essenciais ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana.
Palavras-Chave: Liberdade - Direitos Fundamentais - Escola de Frankfurt - Sociedade de Risco - Direito Penal Mínimo.
SUMÁRIO: Introdução; 1 Direito e Garantia; 2 Garantia e Liberdade; 3 Escolas Penais e a Liberdade; 4 Preceitos da Escola de Frankfurt; 5 Conclusão; 6 Referências.
INTRODUÇÃO
Os direitos e garantias fundamentais são direitos previstos na Constituição Federal e inerentes à pessoa humana. Além disso, cada vez mais ganham relevância, sobretudo no contexto de defesa da liberdade. No entanto, eles podem colidir entre si. Consequentemente, levanta-se um importante debate doutrinário e jurisprudencial acerca do sopesamento de direitos fundamentais e da sua força no ordenamento jurídico.
Essa discussão ganha especial relevância quando estudamos o Direito Penal, que é o ramo do direito que aplica a mais terrível pena tipificada pelo ordenamento jurídico. A pena restritiva de liberdade não é vista por ninguém como algo satisfatório; ela é compreendida apenas como ultima ratio, como medida extrema e aplicável quando as demais opções esgotaram-se. Assim, a fim de se buscar relacionar as influências mútuas entre a ideia de liberdade e Direito Penal, perguntamos como o conceito de liberdade foi e é pensado, para verificar a realidade dessa concepção na legislação, doutrina e jurisprudência brasileira.
É preciso ter claro que o reconhecimento e a defesa de direitos e garantias fundamentais implicam necessariamente limites às políticas públicas de segurança. Limites, porém, que nada mais são do que a concretização dos custos desses mesmos direitos e dessas mesmas garantias. E que, somente quando esses precisos limites forem levados a sério sem qualquer desvio, será possível, a partir do Direito Penal, avançar no sentido da recondução do Estado de Direito às razões que lhe dão fundamento.
Ressignificar as bases do moderno Direito Penal é tarefa ainda a ser cumprida em sua completude. Os expoentes da Escola de Frankfurt claramente já nos apontavam a necessidade de rever a lógica do sistema, e até hoje, ainda assistimos a uma forte resistência à aplicação dessa conquista teórica no âmbito da dogmática e das práticas penais.
Nesse sentido, propomo-nos, neste sucinto artigo, após conceituar Direitos, Garantias e Liberdade, fazer uma reflexão sobre as principais Escolas Penais que estruturaram o pensamento criminológico, destacando a liberdade como o principal elemento. A escolha da liberdade, como farol nessa empreitada, justifica-se pelo fato de o Direito Penal ter historicamente alicerçado suas teorias e práticas em discursos que tomavam a liberdade como valor prioritário.
1 DIREITOS E GARANTIAS
O art. 5º da Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Vimos que ao longo da história os direitos e garantias fundamentais foram sendo construídos e, portanto, tornaram-se instrumentos de afirmação das sociedades modernas.
É natural poder afirmar que a Antiguidade não conheceu os direitos individuais, visto que somente a partir do desenvolvimento do direito constitucional inglês, com a edição da Magna Carta, é que o mundo passou a gozar de maiores liberdades, especialmente diante do Estado, que era absoluto e onipotente.
Percebemos, no entanto, que os direitos fundamentais, constituem-se de direitos individuais e coletivos, sociais e políticos e são os indispensáveis ao pleno desenvolvimento do homem e do cidadão, especialmente frente ao Estado que tem por obrigação não somente respeitá-los, mas também assegurá-los e protegê-los. Já as garantias fundamentais são os instrumentos constitucionais colocados à disposição dos indivíduos e das instituições para fazer valer os direitos fundamentais.
Na doutrina o tratamento da distinção entre direitos e garantias ainda não encontrou um ponto pacífico, havendo autores que utilizam estas categorias indistintamente, e outros que defendem a existência de direitos somente quando estes estejam acompanhados de suas garantias.
A confusão entre estes dois termos defende FERRAJOLI, desqualifica as duas maiores conquistas do constitucionalismo moderno que são a internacionalização dos direitos fundamentais e a constitucionalização dos direitos sociais, que ficam reduzidos, na falta de adequadas garantias, a simples declarações retóricas, ou melhor, a vagos programas políticos juridicamente irrelevantes. Isto, por si só, justificaria a distinção entre os direitos e as suas garantias.
As razões que levam FERRAJOLI a sustentar a distinção entre os direitos subjetivos que são as expectativas positivas (ou de prestação) ou negativas (de não lesão) atribuídos a um sujeito por uma norma jurídica, e os deveres correspondentes que deles constituem as garantias igualmente impostas por uma norma jurídica, sejam estas garantias primárias, quer dizer, às obrigações ou os deveres a eles correlativos, ou garantias secundárias, ou melhor, as obrigações de segundo grau de aplicar a sanção ou de declarar a nulidade das violações das primeiras, encontram sua justificativa numa razão muito mais de fundo, inerentemente ligada à natureza positiva e nomodinâmica do direito moderno.[1]
CADEMARTORI esclarece esta distinção, após destacar que as garantias são técnicas de limitação da atuação do estado e de implementação da ação do Estado, no que respeita, aos direitos de liberdade no primeiro caso e aos direitos sociais no segundo, conclui que “no léxico político quando se fala em garantia, e em garantismo, pretende-se indicar as tutelas e defesas que protegem um bem específico é constituído pelas posições dos indivíduos na sociedade política, isto é, pelas liberdades individuais e direitos sociais e coletivos”. Ou seja, “[...] fala-se na defesa e suporte dessas liberdades e direitos”.[2]
Não se pode olvidar que o garantismo jurídico destaca a existência de micro- e macro- poderes que denunciam a limitação da esfera do estado de direito e de suas garantias. Quer se destacar com esta tese que junto às situações jurídicas de poder e as relações a elas correspondentes, ocorrem também poderes e sujeições extrajurídicos que se desenvolvem em sede de instituições jurídicas abandonadas a dinâmicas sem qualquer controle. A função garantista do direito, neste sentido, consiste na limitação dos poderes e na correspondente ampliação das liberdades.
Deve-se buscar a ampliação do estado de direito para se alcançar e controlar as esferas dos outros poderes, buscando ampliar as liberdades e estender as garantias jurídicas aos espaços não alcançados, daí se conclui que a problemática dos direitos fundamentais está interligada com o desenvolvimento da democracia.
Portanto, os direitos delimitam o perímetro do que é lícito ou não para a atividade estatal. Não é de hoje a lição de que somente poderá haver intervenção legítima do Estado onde não se afrontarem os direitos individuais. Para tanto, como forma de restaurar o equilíbrio, uma vez perdido, estipulam-se também nas bases constitucionais as denominadas garantias fundamentais, medidas que caminham na mesma capitulação com os direitos fundamentais.
A Carta Política de 1988 trouxe em seu bojo um amplo arco de garantias que se conectam à atividade jurisdicional. E tal ocorreu por conta da necessidade de garantir-se a possibilidade da interferência do Poder Judiciário em todas as vezes que for chamado para tutelar os direitos fundamentais vilipendiados. Como consequência, impôs-se uma necessária adaptação da interpretação e aplicação da legislação ordinária, material e processual, aos preceitos maiores do texto constitucional. Descortina-se com a referida Carta uma nova ordem pautada num sistema garantista.
Em vista desse quadro não há como negar a necessidade da imposição de limites à atuação estatal, visando à proteção dos direitos fundamentais em todos os níveis e segmentos. Debruçando os olhares na metodologia adotada pela vigente Carta Magna, infere-se que os direitos fundamentais textualmente previstos não são exclusivos, permitindo-se, ainda a inclusão de outros implicitamente considerados e passíveis de serem reconhecidos pela ordem constitucional havida. Com isso se concebe a capacidade de adequação da estrutura jurídica à realidade social, esta mutante. Não pairam dúvidas que o núcleo estruturante dessa ordem processual garantista reside no princípio da dignidade da pessoa humana. Estando abrigado no texto constitucional como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, esse princípio implica que toda atuação do Poder Público tem que ser avaliada tendo em vista o respeito ao indivíduo, sob o risco de ser transgredida a dignidade da pessoa humana.
Ora, ao instituir o Estado Democrático de Direito, a Constituição da República de 1988 desencadeou uma necessária adequação do ordenamento jurídico nacional ao novo modelo político-social que nela finca raízes. Para que essa dinâmica ocorra com êxito é necessário apreender o direito como promovedor de medidas práticas que assegurem essa transformação, vislumbrando na lei um instrumento de ação concreta do Estado[3].
Desse modo, para que efetivamente se operem as necessárias adaptações, os direitos fundamentais não podem ser minimizados ao patamar de meras formalidades ou de simples instrumento de aplicação da lei. Ao contrário, devem espelhar um padrão inspirador na conformação de todo o ordenamento jurídico que, ao passo de prevê-los, proporciona, ainda, um eficiente sistema de garantias a ser acionado quando de sua violação pelo agente estatal.
É de bom alvitre atentar que o legislador constituinte de 1988, ao adentrar na seara da temática proposta no presente artigo, fez constar no Título II da Carta Magna, dois tipos distintos, quais sejam: direitos fundamentais e garantias fundamentais, repisando o pronto entendimento de que os direitos possuem o caráter declaratório, ao passo que as garantias instrumentalizam tais direitos.
2 A LIBERDADE
A doutrina afirma ser o documento histórico mais importante na concretização dos direitos e garantias fundamentais a Magna Carta da Inglaterra de 1215. Tal importância se dá, principalmente, por ser a Magna Carta, não um documento de natureza constitucional, mas sim, por ser um documento que objetivava a proteção dos direitos dos homens livres por meio da limitação do poder da realeza.
A Magna Carta tornou-se um modelo de liberdades públicas, consubstanciando-se num sistema primordial ao desenvolvimento constitucional inglês. Por sua vez, concretizou-se, também, como alicerce jurídico de onde se extraiu os pilares da ordem jurídica e democrática da sociedade inglesa.
A primeira causa ao surgimento da teoria dos direitos fundamentais traz suas raízes na liberdade do ser humano, que à época do direito das gentes vivia em comunhão com o bem comum, onde tudo era de todos, inexistindo-se a noção de propriedade privada. Tal liberdade veio a ser restringida, por vezes, de maneira integral, quando da opressão política e social voltada à garantia da dominação econômica.
Da necessidade incontestável da liberdade, a evolução social evidenciou carências outras, também consideradas essenciais ao ser humano e, por isso, consideradas também direitos humanos fundamentais. Tais direitos se constituíram, e continuam a se constituir, de maneira variável.
Os direitos fundamentais apresentam sua gênese na concepção humana de que a liberdade é o bem mais precioso à existência digna da vida. Deve-se ter em mente que a ideia de liberdade não representa, tão somente, a condição individual do ser humano de poder se locomover, resumindo-se a liberdade ao direito de ir e vir.
A liberdade é expressão bastante ampla. É gênero que comporta diversas espécies. Observa-se que, com a evolução histórica da humanidade, a liberdade era restrita em relação ao homem e à sociedade. Com o tempo, esta sociedade primitiva se consagra em Estado e, a liberdade passa a ser combatida pelo indivíduo em relação ao Estado.
Inúmeros registros, que remontam às épocas remotas da humanidade, evidenciam que a liberdade já era considerada como uma condição essencial ao ser humano. Aquele que não dispunha da liberdade era considerado escravo e, por isso, privado dos demais direitos.
Geralmente, o escravo era submetido ao trabalho exaustivo, não somente em razão da sua condição, mas também pelo fato de que o trabalho era considerado desonroso ao homem livre, por vezes impróprio às suas atividades intelectuais que tinham seu fundamento no aproveitamento do tempo ocioso.
Segundo esclarece Álvaro Vieira PINTO:
A sociedade escravista produz um tipo de saber adequado a seus interesses. É capaz de importantes descobrimentos e criações no domínio das ciências e principalmente das artes, porém se revela incompetente em desenvolver outros setores, nos quais não vê interesses práticos. É uma sociedade fundada no conceito ético do bem, entendido como ociosidade. A educação visa a preparar o homem para aproveitar o tempo livre (claro está que tão só os proprietários, as classes dirigentes o possuem). Daí o grande florescimento das letras e das artes nesta sociedade. Este caráter é comprovado pela etimologia da palavra “escola”, que significa literalmente em grego “ociosidade”[4]
Com o passar dos anos, a escravidão começa a ser combatida e declarada indigna, ainda que tenha persistido o sistema escravocrata por muito tempo. Esta modalidade de liberdade, que restringia e colocava o escravo na condição de coisa, permaneceu por longo período histórico sem a devida atenção.
O momento que faz emergir os ideais de liberdade se torna transparente quando ocorre o considerável desenvolvimento do mercantilismo. Neste contexto, a classe social diretamente envolvida com o comércio emerge e vem a exigir do Estado outra modalidade de liberdade, qual seja, a não intervenção estatal nos assuntos regidos pela vida privada.
Neste contexto surge a gênese da doutrina liberal, cuja bandeira defendia a liberdade absoluta da economia, refletindo-se à liberdade absoluta do homem em todas as suas atividades. Este ideal de liberdade se referia expressamente à intervenção estatal que estagnava a possibilidade de crescimento da atividade mercantil e, consequentemente da classe burguesa.
3 MOVIMENTOS PENAIS E A LIBERDADE
3.1 Escola Clássica
Projetada no continente europeu no século XVIII, a Escola Clássica é ponto de partida obrigatório para a análise pretendida. Essa tradição teórica elabora, de maneira habilidosa, uma nova leitura do Direito Penal em contraposição à assumida pelo Antigo Regime, podendo ser mesmo considerada como um dos alicerces sobre o qual se estrutura, até então, a Dogmática Penal. Nesse universo, a liberdade aparece como a pedra angular de um discurso que vai ter, como principal bandeira, a humanização das práticas penais e a consolidação da segurança jurídica.
Os autores da referida Escola (filósofos e juristas), apesar de suas especificidades, podem ser assim identificados por integrarem um movimento que tinha, como principal tarefa, a superação das formas feudais de punir e a formulação de novas estratégias para o Direito Penal. Entre os aspectos de maior relevância suscitados pela Escola, encontra-se a dicotomia entre liberdade individual e o poder de punir do Estado[5]
Desde já é importante destacar que a noção de Direito desses autores engendra-se na égide do jusnaturalismo. Para eles, o Direito está fora da história. Resulta da dedução lógica, fruto da razão. Nesse sentido, o Direito, em especial o Direito Penal, deveria seguir os ditames racionalistas e sistemáticos que objetivassem, ao máximo, as intervenções individuais.[6] O direito de punir desloca-se, assim, do soberano para o contrato social. E é só a partir dessa perspectiva que a usurpação da liberdade se torna legítima.
O problema da extensão da liberdade e de seu resguardo está, portanto, nas bases discursivas da Escola Clássica. Em Carrara, um dos principais nomes dessa tendência, há uma justaposição entre o direito e a liberdade, sendo impossível promover sua dissociação. Em suas palavras: “O direito é a liberdade. Bem entendida, a Ciência Penal é, pois, o código supremo da liberdade, que tem por escopo subtrair o homem à tirania dos demais e ajudá-lo a subtrair-se à sua própria, bem como a de suas paixões”.[7]
O discurso que promove a defesa da liberdade está colocado, dessa maneira, como alicerce de uma nova orientação do Direito, em especial o Penal, consolidando uma mudança na lógica punitiva. Oportuno assinalar que foi o debate sobre a extensão da liberdade que possibilitou a ruptura (sofisticação, atualização) com as tradições punitivas do antigo regime e a construção de uma outra orientada para a limitação do poder de punir. Beccaria afirma:
Assim sendo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício de poder que deste fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um poder legítimo[8]
Concretamente, o esforço dos autores clássicos na reelaboração do Direito Penal passa pela objetivação do delito e a construção da noção de livre arbítrio. Para esses teóricos, o autor do comportamento desviante não é um elemento objetivável, como para os positivistas futuramente. A tensão do debate entre os teóricos do período está no crime, na violação. Mas uma violação pautada na vontade livre e consciente do indivíduo que, sendo um signatário natural do contrato social, descumpre a norma de maneira arbitrária.
Observamos, portanto, que a nova configuração do poder punitivo promovida pela Escola Clássica passou pela valorização da liberdade individual, da liberdade de escolha. Eis uma noção fundamental herdada desse período pelo Direito Penal contemporâneo, que, associando essa categoria a outras posteriormente formuladas, sofisticou sobremaneira a Dogmática Penal.
Portanto, numa leitura crítica das formulações elaboradas pelos autores da Escola Clássica nos permite ver o duplo aspecto em que a liberdade pode ser considerada. Em primeiro lugar, na nova estruturação de mundo que propõem os jusnaturalistas. A liberdade, nesse modo de pensar, deve ser vista como a referência do Estado, o bem maior do indivíduo, em torno do qual se justifica a punição dos violadores do contrato social. Concomitantemente, essa mesma liberdade deve ser entendida como o elemento discursivo fundamental na consolidação de um Estado hegemonicamente burguês.
Dessa sorte, tomemos a liberdade em seu paradoxo. É tanto anunciadora de uma ruptura (dos modelos do Antigo Regime) como elemento de conservação no discurso então dominante (Modernidade). Dessa forma, a noção de liberdade anunciada pela Escola Clássica é elemento fundamental para a Dogmática Penal contemporânea. Aliada a essa primeira perspectiva, há ainda uma outra vertente que influencia sobremaneira o Direito Penal que deve ser tomada em conta, qual seja, a leitura da Escola Positiva sobre o sistema punitivo e a liberdade, de que trataremos a seguir.
3.2 A liberdade na Escola Positiva
Nas últimas décadas do século XVIII, começou a se consolidar movimento que se contrapunha aos ensinamentos da Escola Clássica e, em muitos aspectos, o combatia. Nesse período, surgiu a Escola Positiva, que dominou o saber penal até o início do século XIX e, até hoje, encontra reflexo nas legislações penais ocidentais.
Autores como Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Franz Von Liszt e Gabriel Tarde propunham novo método para o estudo do crime. Não mais, como os clássicos, deveria se estudar o crime sob enfoque racionalista e jusnaturalista. A tarefa seria estudar, por meio do método empírico, as causas do delito.
Assim, o objeto das pesquisas passou a ser o “homem criminoso”, com o objetivo de identificar os sinais antropológicos da criminalidade. Mediante a observação de indivíduos situados no universo dos cárceres e dos manicômios, características como altura, tamanho do crânio e do maxilar, textura do cabelo eram medidas para identificar o perfil do criminoso. Com Ferri, a investigação das causas ligadas à etiologia do crime fora ampliada, acrescentadas às antropológicas, causas físicas e sociais.
Essa forma de estudar o fenômeno crime partia do pressuposto de que o homem delinquente estava determinado a praticar delitos. A conduta criminosa não era resultado de escolha ou do exercício do livre arbítrio, como propunham os expoentes da Escola Clássica, mas consequência de causas naturais, sobre as quais a vontade do homem não interferia. Como afirmava Ferri: “Todo crime, do mais leve ao mais terrível, não é o fiat incondicionado da vontade humana, mas sim o resultante destas três ordens de causas naturais”[9]
A conduta criminosa não era, portanto, o resultado da escolha livre, mas consequência de causas externas à vontade do agente. Oportuno assinalar, ainda, que, ao mesmo tempo em que se entendia que o homem delinquente estava determinado à prática do crime, permitia-se que a sociedade agisse contra ele, em defesa dela.
Nesse contexto, a noção de liberdade negativa, ou de existência de direitos subjetivos em face do Estado, praticamente se esvaiu. Para defender a sociedade do homem diferente e perigoso, a sociedade poderia submetê-lo a diversas restrições, independentemente de sua aceitação.
A pena passou a ser vista, assim, como um mecanismo de prevenção da prática de delitos. A finalidade da pena já não era retribuir a prática de conduta contrária às normas, mas tratar, modificar o comportamento criminoso, agir nas suas causas. Como afirma Baratta, ao referir-se à Escola Positiva
Se não é possível imputar o delito ao ato livre e não-condicionado de uma vontade, contudo é possível referi-lo ao comportamento de um sujeito: isto explica a necessidade de reação da sociedade em face de quem cometeu o delito. Mas a afirmação da necessidade faz desaparecer todo caráter de retribuição jurídica ou de retribuição ética da pena[10]
Nesse contexto, o discurso clássico de proporcionalidade da pena e de ênfase a liberdade individual caiu por terra. Em nome da defesa da sociedade e do tratamento do delinquente, a intervenção do Estado era considerada positiva e útil. Assim, os teóricos não se preocupavam com os limites dessa intervenção.
E foi justamente nesse aspecto que a Escola Positiva mais foi combatida. Em face das consequências práticas dessa maneira de pensar, que conduziu a internações indeterminadas, ao afrouxamento dos limites para a aplicação da pena, foram diversas as reações contrárias aos seus ensinamentos. Nesse sentido, é emblemática crítica formulada por Bettiol
Por acentuarem características do agente em lugar de características da ação, transformam o Direito Penal de um direito que considera o fato objetivo como único título justificador da pena, num direito que encara o fato como mero índice de periculosidade. Eles ampliam indubitavelmente os poderes discricionários do Juiz, com graves danos para a liberdade individual. (...) Nota-se, assim, na esfera de influência das concepções positivistas, uma incerteza indiscutível acerca dos pressupostos da aplicação da medida de segurança, uma larga discricionariedade do juiz e uma indeterminação na duração da medida. A certeza, que, no Direito Penal, postula precisão dos fatos e subordinação do Juiz à vontade da Lei, fica, indubitavelmente, comprometida[11]
O estudo sobre a Escola Positiva demonstra como o debate sobre a liberdade permeou as discussões sobre a legitimidade da defesa da sociedade em face do autor de condutas criminosas. E, aqui, a noção de liberdade negativa ganhou força e se transformou no principal alicerce de combate às teorias da Escola Positiva.
A concepção determinista da conduta criminosa passou a ser combatida no período Pós-Guerra, em especial no tocante às causas antropológicas do crime, mas continuou influenciando os teóricos por diversas décadas. A mudança de enfoque do estudo criminológico das causas do delito para a reação da sociedade apenas surgiu no final da década de 60 do século XX, como será abordado a seguir.
3.3 A LIBERDADE NA DOGMÁTICA PENAL
A partir da década de 70 do século XIX, na Alemanha e, posteriormente, na Itália, com a Escola Técnico-Jurídica, a Ciência Penal consolida-se como Dogmática Jurídica. Essa consolidação foi fruto de um movimento de resgate, pelo juspositivismo, do caráter propriamente jurídico da Ciência Penal, que, na Escola Positiva, considerava apenas a Sociologia Criminal como sua verdadeira expressão.
A Dogmática Penal manteve, em seu bojo, tanto a intervenção sobre a criminalidade e o indivíduo delinquente – herança da Escola Positiva – como as estruturas garantidoras do Direito Penal liberal – herança da Escola Clássica –, ambiguidade que se viu presente nas legislações penais do século XX, incluindo-se, aí, o Código Penal brasileiro de 1940.
Convivem, pois, nas legislações penais do século XX,
[...] o discurso de garantia do indivíduo com o discurso da defesa social; o discurso do homem como limite do poder punitivo e o discurso do homem como objeto de intervenção positiva desse mesmo poder, em nome da sociedade.[12]
No tocante à garantia do indivíduo, o limite do poder punitivo, como preservação da liberdade individual, é tratado, pela Dogmática Penal, como segurança jurídica, e, nessa perspectiva, o Direito Penal tenta “[...] racionalizar, em concreto, o poder punitivo (violência física) face aos direitos individuais (segurança); [...] punir, em concreto, com segurança, no marco de uma luta racional contra o delito”.
Por outro lado, na perspectiva da sociedade, a identidade liberal da Dogmática Jurídico-Penal fica restrita pela “ideologia da defesa social”, desenvolvida pelas Escolas Penais e que se constitui na ideologia dominante sobre criminalidade e pena. Essa ideologia é constituída por princípios que informam máximas admitidas não só pela Ciência Penal, mas pelo senso comum, de que, por exemplo, o crime é a representação do mal, enquanto a sociedade é o bem a ser defendido; o fato punível é expressão de uma atitude reprovável e consciente do autor contra valores e normas existentes na sociedade; a reação punitiva estatal representa a legítima reação da sociedade a certos comportamentos; o Direito Penal é igual para todos, e a reação penal se aplica igualmente a todos os autores de delitos; os bens jurídicos protegidos pelas leis penais são de interesse de toda a sociedade; a pena tem função de retribuir e prevenir o delito e ressocializar o delinquente.
Trata-se, portanto, de uma dupla tutela das liberdades. A proteção da liberdade da “universalidade dos cidadãos”, ou seja, da “maioria não transgressora”, e a proteção da liberdade dos sujeitos à Justiça Penal, isto é, a “minoria transgressora”. O problema é que a Dogmática Penal, em sua trajetória, não conseguiu cumprir sua promessa garantidora de maximizar a proteção do imputado e minimizar o arbítrio punitivo. Tal constatação foi alcançada a partir de uma mudança de paradigma, verificada na Criminologia, que permitiu evidenciar a crise de legitimidade do sistema penal.
O Direito Penal moderno, que tinha em sua programação a proteção das duas dimensões da liberdade – a da sociedade e a do indivíduo criminalizado –, não consegue romper com sua herança positivista e utiliza o discurso da proteção da “maioria” não transgressora para cumprir seu papel seletivo em detrimento das garantias da liberdade individual contra o poder punitivo. E assim o faz, na verdade, por ser um instrumento de produção e reprodução de relações de desigualdade existentes nas sociedades tardo-capitalistas. A desconsideração daquela dimensão de liberdade que era tão cara à Escola Clássica é fortemente sentida, ainda, em tempos de globalização. O processo de globalização, vivenciado desde as últimas décadas do século XX, promoveu uma mudança no papel do Estado com sérios reflexos no controle penal.
E, na tentativa de recuperar essa perda de poder, as leis penais são os meios preferidos do que Zaffaroni chama do “Estado-espetáculo” e de seus “operadores showmen”. São elas um recurso que obtém alto crédito político com baixo custo. Nesse espetáculo, novas emergências são apresentadas como ameaçadoras para a humanidade (como a questão de tóxicos e terrorismo), reforçando a necessidade de proteção da dimensão sociedade da liberdade na perspectiva penal.
As novas emergências não impulsionam, entretanto, tentativas de resolver o problema, mas incentivam um controle social punitivo cada vez mais repressivo. Para realizar esse controle ultra repressivo, renuncia-se à racionalidade, incorporam-se componentes antiliberais, reduzem-se as garantias, potencializa-se o poder punitivo e, principalmente, eliminam-se suas limitações mais formais e elementares.[13] Uma manipulação do Direito Penal pelas forças políticas que, para conservação do sistema de poder, produz uma falsa representação de solidariedade que unifica todos os cidadãos na luta contra um “inimigo interno” comum [14].
O Direito Penal, portanto, falha em cumprir sua promessa de garantia de liberdade.
4 PRECEITOS DA ESCOLA DE FRANKFURT
Os membros da Escola penalista de Frankfurt, em particular Winfried Hassemer, propagam a ideia de que, em face dos novos riscos advindos da primeira e segunda modernidades, avultou o sentimento de medo da população e, consequentemente, a demanda por maior atuação do aparato criminal[15].
Em vista disso, os legisladores, por razões ou propósitos mesquinhos e oportunistas, lançam mão de instrumentos jurídicos, por vezes, teratológicos, simulando tutelar a sociedade. Daí novos tipos penais são criados, recrudescendo o tratamento conferido aos acusados em geral, incrementando as penas, restringindo direitos e garantias individuais, além de outras medidas denunciadas por Hassemer, sem que, substancialmente, signifiquem quaisquer perspectivas reais de mudanças no quadro social.[16]
Hodiernamente, a tendência internacional concentra-se na utilização de uma reação penal considerada simbólica, marcada por instrumentos inaptos a combater efetiva e eficazmente as novas formas de infrações. O que importa é manter um nível de tranquilidade na opinião pública, estribado apenas na impressão de que o legislador se acha preocupado com o delito. Produz-se a ilusão de que os problemas foram solucionados.
Adverte Hassemer que o aproveitamento do direito penal como meio de transformação social e de asseguramento do futuro da sociedade ofende, manifestamente, os axiomas garantistas a que se encontra inexoravelmente vinculado, máxime o princípio da subsidiariedade, já que sua utilização se dá como prima ratio, sempre que rentável politicamente.[17]
O direito penal deixa de exercer sua missão de tutela exclusiva de bens jurídicos concretos, para executar vagas e imprecisas funções promocionais ou simbólicas. Retomando as lições de Franz Von Listz, segundo o qual o direito penal constitui barreira infranqueável da política criminal, Hassemer afirma que, hoje, no direito penal do risco, ocorre o inverso, o direito penal aparece como instrumento da política criminal.[18]
Segundo o sobredito penalista, o direito penal deve restringir-se tão-somente a proibição de condutas individuais que provoquem lesão ou perigo concreto de lesão a um bem jurídico individualista, não lhe cabendo promover a segurança das futuras gerações ou a diminuição social dos riscos e do sentimento de medo incrustado na população. Sua missão, na realidade, é bem mais modesta[19]
Desta rígida linha de argumentação decorre a forte posição do autor contrária à extensão da tutela penal aos bens jurídicos supra-individuais e aos novos perigos decorrentes da sociedade de risco, para os quais cabe lançar mão de outro ramo jurídico, criado especialmente para tal desiderato, chamado “direito de intervenção”.
Neste ponto, cumpre transcrever excerto das lições do penalista alemão proferidas em uma conferência do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais aos 17/11/1993:
Acho que o Direito Penal tem que abrir mão dessas partes modernas que examinei. O Direito Penal deve voltar ao aspecto central, ao Direito Penal formal, a um campo no qual pode funcionar, que são os bens e direitos individuais, vida, liberdade, propriedade, integridade física, enfim, direitos que podem ser descritos com precisão, cuja lesão pode ser objeto de um processo penal normal. (...) Acredito que é necessário pensarmos em um novo campo do direito que não aplique as pesadas sanções do Direito Penal, sobretudo as sanções de privação de liberdade e que, ao mesmo tempo possa ter garantias menores. Eu vou chamá-lo de Direito de Intervenção[20].
Em consonância com as idéias da Escola de Frankfurt, o direito penal deve reduzir seus tentáculos, submetendo-se a um amplo processo de descriminalização de condutas. Compondo-se apenas por delitos de lesão, ou de perigo concreto, assim considerado na medida em que o perigo de ofensa, de especial gravidade, apresentar-se evidente em relação a bens jurídicos individuais, admitindo, excepcionalmente, a tutela de bens supra-individuais quando estritamente ligados ao indivíduo, a exemplo dos crimes contra a incolumidade pública. Tudo com observância de rígidas regras de imputação de responsabilidade pessoal e dos princípios político-criminais garantistas, como lesividade, subsidiariedade, fragmentariedade etc.
Por outro lado, a proteção aos bens jurídicos supra-individuais em face dos novos riscos tecnológicos incumbiria ao “direito de intervenção” – novo ramo jurídico – e, desta maneira, restaria definitivamente afastada a intervenção penal clássica, estribada na pena privativa de liberdade e nas garantias fundamentais[21].
Ao lado da descriminalização de condutas, imprescindível à redução do direito penal a um núcleo mínimo de proteção, despontaria um sistema de direito novo, aplicável pela Administração Pública – tribunais administrativos – e livre das rigorosas exigências principiológicas e das formalidades para atribuição de responsabilidade. Mais apto, portanto, a lidar com as situações e as necessidades da sociedade de risco[22]
O direito de intervenção seria uma alternativa no controle da criminalidade moderna. Situado entre o direito penal e o direito administrativo, com um rebaixado nível de garantias individuais e novas formas procedimentais abreviadas, mas sem a cominação das pesadas sanções do direito penal, sobretudo as penas privativas de liberdade. Orientado por uma intervenção precoce, ou seja, pelo perigo e não pelo dano, posto que, frente à neocriminalidade, a espera da ocorrência do dano, pode ser tarde demais para a tutela do bem jurídico, em razão de sua magnitude.[23]
No escólio de Hassemer, Herzog, Prittwitz e outros, um modelo de direito de intervenção assim configurado mostrar-se-ia, pragmaticamente, mais adequado para responder aos problemas específicos das sociedades pós-industriais. Desta forma, poder-se-ia liberar o direito penal das expectativas de prevenção dessa modalidade especial de infração, para cuja missão não se acha preparado e, segundo o autor, pode ser a causa primordial de sua ruína[24].
Não se trata, como bem se pode inferir, de abandono de bens jurídicos sociais ou supra-individuais por parte do ordenamento jurídico ou do direito penal, uma vez que estes bens permanecerão com o status de bem jurídico penalmente relevante. Apenas os tipos penais que os protegem serão “filtrados” e melhor selecionados.
Considerando, ademais, que os ilícitos de somenos importância – que não são dotados de dignidade penal – migrarão em direção a um outro ramo jurídico – que não lançará mão da pena de prisão – não haverá necessidade da manutenção de todas as garantias individuais, flexibilizando, inclusive, as regras de imputação de responsabilidade, resultando, inexoravelmente, num sancionamento de natureza não penal, com perspectivas otimistas em relação à sua agilidade e eficácia.
Deve-se ter em mente que o direito penal é apenas um dos meios de controle social, nem sempre necessário (dignidade penal), nem sempre eficaz (idoneidade e carência de tutela), mas, sem dúvida, sempre o mais grave.[25]
No Brasil, a teste frankfurniana encontra repercussão, principalmente no pensamento do Miguel Reale Júnior.
Na relação entre o controle administrativo e o direito penal, segundo Reale, deve haver uma relativa independência, através de um funcionamento alternativo. Donde, optar-se-ia pela seara administrativa no que concerne a assuntos afetos à área econômica de menor relevância – aquelas condutas que não disponham de dignidade penal, com a sua conseqüente descriminalização, ao passo que a atuação penal cingir-se-ia aos casos extremos em que a sanção administrativa não se afigurar suficiente.
Dispondo de uma finalidade repressora e, ao mesmo tempo, assecuratória de tutela dos novos bens jurídicos supra-individuais, o sistema misto de Reale propõe o julgamento por tribunais administrativos.[26]
A descriminalização de determinadas condutas e sua conseqüente administrativização já vem sendo adotada, paulatinamente, por diversos países, dentre eles Alemanha e Itália.
No Brasil, bem como se dá na França, existe dupla tipificação de contenda à infração econômica, havendo leis administrativas e penais no mesmo sentido.
A legislação administrativa de repressão ao abuso do poder econômico e ao aumento arbitrário de lucros existe desde a década de 60, quando a Lei 4.317 criou o CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica -, transformado em autarquia, ligado ao Ministério da Justiça, pela Lei 8.884/94, que lhe atribuiu as funções de instauração de processos administrativos, cominação de multas aos infratores, apuração e repressão administrativa às condutas atentatórias à ordem econômica etc.[27]
A grande vantagem no uso do mecanismo administrativo para a luta contra os ilícitos econômicos consiste na possibilidade de atuação preventiva, antecipando-se ao dano, através de tipos abertos, tipos de perigo abstrato e por acumulação, além da possibilidade de imputação de responsabilidade sem a necessidade de se comprovar a existência de dolo ou culpa, bastando a mera ocorrência fática da conduta descrita no tipo. No âmbito administrativo, destarte, a responsabilidade objetiva mostra-se de todo admissível, inclusive, com a inversão do ônus da prova para o acusado.
Nada obstante, o legislador insiste em utilizar o direito penal, hipertrofiando-o através de um processo de inflação legislativa, mesmo que às custas de serias distorções processuais e materiais. O efeito simbólico do lançamento da pena acaba por produzir efeito reverso do desejado. Causa inoperatividade e seletividade do sistema punitivo, desmoraliza os órgãos de persecução penal, gera sentimento de impunidade e acaba por prejudicar a atuação penal naquelas áreas em que ele se faz efetivamente necessário.
Demonstrada a tese da Escola de Frankfurt e demarcadas as raias do direito de intervenção, bem como sua ressonância na doutrina brasileira, calha, neste ponto, tecer uma crítica adaptativa ao pensamento frankfurniano, fundado na premissa de que toda política criminal deve adaptar-se à sociedade à qual pretende ser implementada.
5 CONCLUSÃO
Em um cenário de insegurança, proveniente da crise da modernidade, falência do Welfare State e a implantação da ideia de Sociedade de Risco, enxergou-se no Jus puniendi o principal (e único) instituto repressivo do Estado capaz de restaurar a paz e harmonia em um sistema contra os direitos e a liberdade do cidadão, configurando conjuntamente como o poder mais odioso e que se exerce de maneira mais violenta sobre o povo.
Nesse contexto, a Escola de Frankfurt, uma das mais importantes das denominadas escolas intermediárias, trouxe diversos avanços para o Direito Penal, criando pensamentos jurídicos inovadores que influenciaram a ciência do direito nos dias atuais.Verifica-se que seus principais defensores oferecem resistência às alterações de cunho legislativo e dogmático propostas pela tendência expancionista.
Para tanto, partem da premissa de que o Direito Penal deve ser limitado ao máximo, o que implica sua incidência apenas sobre aquelas condutas que violem, de maneira agressiva, os bens indispensáveis para a vida em comum, como a vida, a saúde, a propriedade etc.
Hassemer parte da constatação de que o Direito Penal que procura minimizar a insegurança oriunda de uma sociedade de riscos e dirigir processos e relações causais complexos, altera substancialmente seus conceitos dogmáticos e se afasta de sua missão original de apenas assegurar uma escala de valores indispensáveis à vida social, e se torna um instrumento em busca do controle de grandes problemas da sociedade atual, como a proteção do meio ambiente[28].
A crítica, de modo geral, é sobre a utilização do Direito Penal para as demandas da sociedade do risco, já que tal fato traz grandes sequelas, quer seja, a desmoralização e a flexibilização que, em última análise, produzem uma erosão do Direito Penal garantista do Estado de Direito, além de deslocá-lo de seu tradicional posto de atuação que é o da ultima ratio, porquanto parte da compreensão de que é impossível se conceber um sistema criminal que possa relativizar as garantias que prevê em favor do inculpado durante o processo, e do apenado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Não se pode negar que o fenômeno da expansão por diversas vezes se demonstra como espécie de perversidade estatal e que o recurso ao Direito Penal, por diversas vezes, constitui-se como fácil expediente ao qual os poderes públicos recorrem para fazer frente a problemas sociais de grande envergadura.
O Direito Penal não pode se converter em “porta-bandeira” das demandas sociais mais conjunturais, superficiais ou meramente verbalizadas.
Ao contrário, o Direito Penal funcional há de se fazer compatível com uma vocação mais restritiva possível da intervenção punitiva. Trata-se da proteção penal das expectativas essenciais cuja desproteção penal daria lugar a reações disfuncionais e, na medida em que exista o risco de que elas ocorram. Desse modo, é coerente a defesa do Direito Penal funcional[29].
Defendeu-se, também, que o devido processo legal substantivo é uma proteção dos Direitos Fundamentais contra as eventuais irracionalidades ou abusos do Poder Legislativo e também contra a aplicação desarrazoada e desproporcional da Lei Penal. Constitui, ainda, uma garantia contra o uso indevido do devido processo legal processual, pois ao prover substancialidade, evita-se a tomada de decisões arbitrárias e não condizentes com o bom senso. Alçado em nível constitucional, o devido processo legal substantivo abrange todos os ramos do Direito, especialmente o Direito Penal.
Direito Penal é, portanto, uma intervenção grave por incidir na esfera de liberdade do indivíduo. A sanção penal possui caráter ameaçador da existência humana. Por conseguinte, o Direito Penal enquanto sistema normativo de controle social deve-se reduzir à tutela dos bens jurídicos, ou seja, bens fundamentais para a sociedade sendo necessário um comportamento socialmente nocivo, uma lesão real ao bem jurídico para a imposição de pena, ainda mais num Estado Democrático de Direito em que a legitimidade do jus puniendi associa-se a necessidade de resguardar as condições de vida, bem como desenvolvimento e a paz, com vistas na liberdade e na dignidade da pessoa humana, isto remete ao pensamento frankfurtiniano que busca um Direito Penal Clássico, cujo objeto são as condutas atentatórias contra a vida, a saúde, a liberdade e a propriedade, ou seja, manifesta-se contrariamente ao uso excessivo da sanção penal, visando apenas a efetiva proteção de bens jurídicos.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Tradução por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 254 p.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. Vol. 1. 10ª ed. São Paulo (SP): Editora Saraiva, 2006
ADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
FERRAJOLI, Luigi. Diritti fondamentali. in Teoria política. II quadrimestre. setembro. 1998. sommario n. 2
GEUSS, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt.
HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Madrid: Trotta, 1998.
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otavio de Oliveira Rocha – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. – (Série as ciências criminais no século XXI; v. 11).
PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 11ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 75
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: da segurança nacional à urbana. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia, 1997. v. 4.
[1] FERRAJOLI, L. Diritti fondamentalli., p. 22.
[2] CADEMARTORI, Sérgio. op. cit., p. 86. Mais adiante este autor coloca que “Assim, o garantismo pode referir-se a uma organização jurídica ou a uma atitude dos vários tipos de operadores jurídicos em sua atividade voltada a aplicar ou modificar o direito. Uma organização jurídica pode-se dizer garantista quando inclui estruturas e institutos aptos a sustentar, oferecer reparo, defesa e tutela das liberdades individuais e aos direitos sociais e coletivos. Um operador jurídico dir-se-á garantista quando dedica a sua atividade a aumentar o número ou a eficácia das estruturas e instrumentos oferecidos pelo sistema jurídico para tutelar e promover aquelas liberdades e aqueles direitos. Por fim, é de se ressaltar que o leque de garantias parte de dois princípios básicos: a) princípio da legalidade, que já foi referido acima; e b) o princípio de jurisdicionalidade, ou seja, a possibilidade concreta de deduzir em juízo a pretensão emanada dos direitos sociais, por exemplo”. p. 86-87
[3] MORAIS, 1996, p. 67-70.
[4] PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. 11ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 75.
[5] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal, 2003, p. 47.
[6] ANDRADE, op. cit., p. 48.
[7] ANDRADE, op. cit., p. 54.
[8] BECCARIA apud ANDRADE, op. cit., p. 50.
[9] ANDRADE, op. cit., p. 66
[10] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal, 2002, p. 39
[11] ANDRADE, op. cit., p. 71
[12] ANDRADE, op. cit., p. 73
[13] ZAFFARONI, op. cit., p. 34.
[14] BARATTA, op. cit., 2002, p. 205
[15] Processo penal e direitos fundamentais. Revista Del Rey jurídica. Ano 8, n° 16, 1º semestre de 2006, p .73.
[16] Segurança pública no Estado de Direito. P. 63. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n° 05, p. 63, jan. 1994.
[17] HASSEMER, Winfried. Crisis y características del moderno derecho penal. Actualidad Penal. Madrid, n° 43/22 de 1993, p. 635-646.
[18] HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma política criminal. Três temas de direito penal. Porto Alegre: FESMP, 1993.
[19] Idem, Ibidem.
[20] HASSEMER, Winfried. Perspectivas de uma moderna política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT, n° 08, p. 49, out. 1994.
[21] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197.
[22] Idem, Ibidem.
[23] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197.
[24] MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal. São Paulo: IBCCRIM, 2005, p. 197.
[25] SICA, Leonardo. Caráter simbólico da intervenção penal na ordem econômica. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: RT, n° 02, jul./dez. de 1998, p. 16.
[26] REALE, Miguel. Legislação penal antitruste: Direito Penal Econômico e sua acepção constitucional. In www.realeadvogados.com.br, acesso aos 24 de janeiro de 2006 às 14:30, p. 42.
[27] SICA, Leonardo. Caráter simbólico da intervenção penal na ordem econômica. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo. São Paulo: RT, n° 02, jul./dez. de 1998, p. 21.
[28] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op cit., p. 98
[29] SILVA SANCHÉZ, Jesús-María. A expansão do direito penal. Aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais, p. 105.
MESTRANDA PELA PUC/SP. FORMADA PELA UNESP/FRANCA EM 2010. PROMOTORA DE JUSTIÇA NO ESTADO DE SÃO PAULO DESDE 2015.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: POMPEO, Monize Flávia. A Escola de Frankfurt e a liberdade como garantia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 mar 2020, 04:38. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54364/a-escola-de-frankfurt-e-a-liberdade-como-garantia. Acesso em: 23 dez 2024.
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