Como se sabe, de acordo com a OMS o mundo é acometido pela pandemia da doença alcunhada de COVID-19 causada pelo coronavírus / Sars-Cov-2. Malgrado não seja regra absoluta, febre, tosse e dificuldade de respirar, são os sintomas característicos. Epidemia ocorre quando uma doença de caráter transitório ataca simultaneamente grande número de indivíduos em determinada localidade. Já a pandemia acontece nas hipóteses em que essa epidemia atinge grande escala, geralmente em caráter continental. Segundo o Ministério da Saúde, o primeiro mês da circulação do coronavírus Sars-Cov-2 no Brasil deixou 77 mortes e 2.915 casos confirmados. Uma disseminação dessa magnitude, gera reflexos múltiplos em todos as searas sociais, inclusive no direito. Em nosso país, várias são as implicações jurídicas da pandemia. Relações trabalhistas sofrem impacto, relações de consumo igualmente. No direito econômico e no direito legislativo [criação de leis – Câmara de Deputados já tem quase 100 projetos para minimizar impacto de pandemia] há também sensíveis efeitos colaterais. O Ministério da Saúde, a fim de operacionalizar as disposições legais, editou regulamentação específica na Portaria 356/2020.
No campo do direito penal, crimes que têm pouca ocorrência no cotidiano em tempos de normalidade, passaram a ter maior visibilidade, a exemplo:
1) crime de desobediência (art. 330, CP);
2) crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268, CP);
3) crime de epidemia (art. 267, CP);
4) crime de perigo para a vida ou saúde de outrem (art. 132, CP);
5) crime de perigo de contágio de moléstia grave (art. 131, CP);
6) crime de usura pecuniária ou real, assim se considerando, por exemplo, a conduta de obter ou estipular, abusando da premente necessidade, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida (Lei nº 1.521/5, art. 4º, “b”).
Eventual punição varia e deve ser fixada de acordo com conduta do sujeito que transgrediu as determinações público-sanitárias. A resposta criminal será dada à luz do caso concreto. Fundamental, de logo, estabelecer que a função do direito penal é proteger determinados bens tidos como imprescindíveis para a vida em sociedade – como é o caso da saúde, em especial a saúde pública. Desta forma, o direito penal tem a incumbência de cuidar/proteger [seja prevenindo, seja punindo] daqueles direitos considerados mais importantes, permitindo aos indivíduos conviver conjunta e harmonicamente. Ilustrando, os crimes de homicídio e lesão corporal têm como função proteger a vida e integridade física das pessoas.
O art. 267/CP aduz que, causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos, constitui crime com pena altíssima de 10 a 15 anos [pena mínima maior que a vista em outros crimes, como roubo, furto, extorsão, etc]. Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro. Oportuno informar que, mesmo que o sujeito pratique a conduta apenas culposamente [isto é, sem a intenção deliberada de fazê-la ou alcançar um resultado específico previamente desejado], continuará havendo crime – atraindo, nesse caso, uma pena menor de 1 a 2 anos.
Por seu turno, o art. 268/CP pune com pena de 1 mês a 1 ano, acrescido de multa criminal, aquele que infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa [por exemplo, determinação de fechar determinados estabelecimentos comerciais, não frequentar alguns lugares ou abster-se de praticar certas condutas]. Em termos gerais, é uma espécie de desobediência a ordens legais do poder público.
Recentemente, a mídia veiculou que em SP “duas pessoas foram detidas por usar caminhão de som para pedir que população volte às ruas”. Nessa situação, entendeu o Delegado de Polícia, que os sujeitos devem ser indiciados justamente por esse delito previsto no art. 268/CP[1].
Rememore-se que, quanto ao médico, existe crime específico [art. 269/CP], cuidando das ocasiões onde ele deixa de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória – como é o caso da COVID-19.
Temos também previsão legal para as seguintes condutas: a) Fabricar álcool gel falsificado ou adulterado - Art. 273/CP [Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais] b) Subtrair máscaras, álcool gel, remédios e outros materiais de hospitais ou equipamentos de saúde - Art. 257/CP [Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento].
Saliente-se, embora agora não seja prioridade de modo algum a prisão desenfreada de pessoas [notadamente aquelas que sequer tem condições para suprir necessidades humanas básicas], a atuação do direito penal, além de representar significativo efeito simbólico, é um instrumento suplementar no combate a comportamentos que, nesse momento, possam ser lesivos à saúde de todos. A prevalência é da conscientização em primeiro lugar, reforçando o senso de cidadania e solidariedade voluntária de todos. Segundo pensadores como Beccari, Feuerbach, Durkheim e Jackbs, o direito penal é ferramenta capaz, aliada a outros meios, claro, de criar áureas de prevenção geral, visando desestimular pessoas a agirem de maneira desacertada. Em outras palavras, na esteira do que sustentam esses autores, cumulada à efetiva punição dos infratores [que, quando necessário,também deve ser levada a efeito de modo intransigível e exemplar], tem-se um mecanismo de atuação quase que pedagógico, objetivando ensinar uma construção da consciência de observância irrestrita de normas sanitárias socialmente impostas e, ao mesmo tempo, criar um espectro de intimidação naqueles que porventura estiverem com a intenção desse descumprimento, reforçando o respeito à validade e aplicação da norma. Aqui, essencial o reforço das políticas estatais de fiscalização difusa, como é o caso do policiamento ostensivo, permitindo que sejam identificados os cidadãos descumpridores. Logo, havendo constatação desses descumprimentos e necessidade diante do caso concreto, é possível prisão em flagrante, a polícia procederá a condução do indivíduo à delegacia, a denúncia será oferecida pelo Ministério Público, inaugurando-se o processo criminal para, ao final, haver possibilidade de aplicação da pena.
Registre-se, ademais, o artigo 41 da Lei de Contravenções Penais prevê que: provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto: Pena: prisão simples, de quinze dias a seis meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis. Notícia: Uma advogada, digital influencer e apresentadora de TV com mais de 80 mil seguidores foi denunciada pelo MP/PR. O motivo? Ela afirma ter tossido na maçaneta das vizinhas para elas "largarem mão de ser idiotas”. https://www.migalhas.com.br/arquivos/2020/3/C6C76D3E493307_mp-pr-representacao.pdf). Incidência desse art. 41 da LCP.
Gestores públicos [Prefeitos, por exemplo] também podem ser punidos. Ilustrativamente, se o Prefeito Municipal contrariar as medidas para enfrentamento da emergência em saúde pública estabelecidas na Lei Federal 13.979/2020, poderá sofrer as agruras do art. 1º, XIV, do Decreto-Lei nº 201/61 [negar execução a lei federal], que trata dos chamados crimes de responsabilidade.
No campo do direito do consumidor, interessante informar elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços é conduta abusiva, possibilitando a penalização administrativa [como multa, suspensão de fornecimento de produtos, suspensão temporária de atividade, cassação de licença do . estabelecimento, interdição, total ou parcial, do estabelecimento, etc]. No mesmo diapasão, a Lei nº 1.521/5, art. 4º, “b” [crimes contra a economia popular] define como crime punível com detenção de 6 meses a 2 anos a usura pecuniária ou real, assim se considerada, por exemplo, a conduta de obter ou estipular, abusando da premente necessidade, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo.
De mais a mais, cumpre esclarecer que as penas aqui tratadas podem ser aplicadas cumulativamente com eventuais multas administrativas estatais e indenizações de caráter civil [reparação de danos] em eventos, por exemplo, de desobediência à quarentenas, proibição de circulação de pessoas, etc – como ocorre na Itália atualmente.
Diante do exposto, pode-se concluir que as infrações envolvendo o COVID-19 podem ser assim resumidas:
Infração ao dever de fechamento de atividades não essenciais ou não autorizadas pelo poder público. |
Art. 268 do Código Penal - Infração de medida sanitária preventiva; |
Infração à determinação de isolamento ou quarentena. |
Art. 268 do Código Penal - Infração de medida sanitária preventiva; |
Agente que, após receber determinação de realização compulsória, deixar de realizar exame médico, testes laboratoriais ou coleta de amostras clínicas. |
Art. 268 do Código Penal - Infração de medida sanitária preventiva; |
Impedir agente de saúde de realizar as suas atividades e de tomar as providências necessárias e determinadas ao combate e prevenção da doença infecciosa. |
Art. 132 do Código Penal - Perigo para a vida ou saúde de outrem; |
Praticar ato capaz de produzir o contágio, sabendo estar contaminado com o COVID-19, com o fim de transmitir a outrem. |
Art. 131 do Código Penal - Perigo de contágio de moléstia grave; |
Determinada pessoa, sabendo estar contaminada por determinado vírus ou quando o deveria saber, causa epidemia, isto é, o contágio de uma doença infecciosa que atinge grande número de pessoas habitantes da mesma localidade ou região. |
Art. 267 do Código Penal - Epidemia; |
Deixar o médico de denunciar à autoridade pública caso de paciente diagnosticado com doença cuja notificação é compulsória. |
Art. 260 do Código Penal - Omissão de notificação de doença; |
Fabricar álcool gel falsificado ou adulterado. |
Art. 273 do Código Penal - Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; |
Subtrair máscaras, álcool gel, remédios e outros materiais de hospitais ou equipamentos de saúde. |
Art. 257 do Código Penal - Subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento |
Prefeito Municipal que agir propositalmente de forma contrária às determinações expedidas para evitar a propagação da COVID-19, tanto pela União, Estados e Municípios. |
Art. 268 do Código Penal - Infração de medida sanitária preventiva; |
A negligência do Chefe do Poder Executivo Municipal ao omitir-se no cumprimento das normas federais, estaduais ou municipais de prevenção de contágio da COVID-19, pode resultar em epidemia na forma culposa. |
Art. 267, §2º, do Código Penal - Epidemia culposa; |
Prefeito Municipal que contrariar as medidas para enfrentamento da emergência em saúde pública estabelecidas na Lei Federal n. 13.979/2020. |
Art. 1º, XIV, do Decreto-Lei nº 201/61 - Negar execução a lei federal; |
Chefe do Poder Executivo Municipal que desobedecer a ordem legal de funcionário público, a exemplo das autoridades sanitárias estadual e federal e das Polícias Civil e Militar, no exercício de seu poder de polícia, para assegurar a implementação das políticas de contenção da propagação da COVID-19 estabelecidas pela União e pelo Estado de Santa Catarina. |
Art. 330 do Código Penal - Desobediência; |
Aumento abusivo de preços em situação de calamidade pública. |
Art. 39, X, do Código de Defesa do Consumidor - |
Venda de produtos acima do valor justo aproveitando-se da pandemia |
Lei nº 1.521/5, art. 4º, “b” [crimes contra a economia popular] b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. |
Obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, lucro patrimonial abusivo e desproporcional. |
Alínea "b", do art. 4º da Lei nº 1.521/1951 |
Outras infrações contra a relação de consumo: Favorecer, sem justa causa, determinado comprador e freguês (por exemplo, estocar máscara para determinados consumidores que aceitem pagar preço acima do praticado normalmente); vender mercadorias em desacordo com as prescrições legais (por exemplo álcool gel de procedência duvidosa); Misturar gêneros e mercadorias de espécies diferentes, e vendê-los como puros; ou misturar gêneros e mercadorias de qualidades desiguais para vendê-los por preço estabelecido para os de mais alto custo. Fraudar preços, etc. |
Art. 7º e incisos da Lei 8.137/90 |
Provocar alarma, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto: |
Art. 41 da Lei de Contravenções Penais |
[1] Nessa situação em SP, em nossa opinião, além do crime do artigo 268/CP, haveria possibilidade alternativa de enquadramento nos ditames do art. 267/CP [epidemia], haja vista que, consoante art. 29/ CP, “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Portanto, no momento em que o sujeito inobserva a determinação pública restritiva para tentar evitar a rápida disseminação da doença, ele, ainda indiretamente, colabora e concorre para que a epidemia seja criada ou continue sendo propagada. Vale lembrar, como dito, que há previsão da punição do agente tanto na hipótese de agir intencionalmente [dolo] quanto na ocorrência de ação culposa [ou seja, sem intenção, popularmente conhecido como comportamento realizado “sem querer”]. Verificar a possibilidade de incidência do art. 267 [epidemia] ao invés do art. 268, nessas situações, é de importante discussão, na medida em que a pena para o primeiro é bem mais rigorosa, aplicando-se um maior juízo de reprovação da conduta em tempos onde a força coercitiva das orientações sanitárias assume singular prioridade.
Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Tocantins (2010). Atualmente é Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado do Maranhão. Ex-Defensor Público. Ex-Analista Judiciário. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Ciências Penais . Pós-Graduado em Direito Tributário. Endereço para acessar este lattes: http://lattes.cnpq.br/6143987446845968
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Marco Tulio Rodrigues. Direito Penal em tempo de pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2020, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54507/direito-penal-em-tempo-de-pandemia. Acesso em: 23 dez 2024.
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