JANAY GARCIA[1]
(Orientadora)
RESUMO: O Direito do Trabalho no Brasil nasceu com uma particularidade que não há em muitos países, a intervenção protetora do Estado, a fim de que se favoreça o elo hipossuficiente da relação trabalhista, o empregado. Para tanto, a legislação trabalhista erigiu um princípio que, inspirado nos fundamentos da dignidade da pessoa humana e do reconhecimento do valor social do trabalho, rege todo o direito do trabalho brasileiro, a saber, o princípio da proteção ao trabalhador. A Reforma Trabalhista, porém, veio de encontro a toda essa proteção ao trabalhador, flexibilizando e até eliminando direitos antes concedidos à referida classe, de forma que se passou a discutir a respeito de sua constitucionalidade e harmonia com os fundamentos deste ramo do Direito. Nesse sentido, a atual produção acadêmica visa compreender de que forma as alterações na legislação trabalhista fere o princípio da proteção ao trabalhador.
Palavras-Chave: direito do trabalho; reforma trabalhista; flexibilização; princípio da proteção.
ABSTRACT: Labor Law in Brazil was born with a particularity that there is not in many countries, the protective intervention of the State, in order to favor the low-sufficient link in the labor relationship, the employee. Therefore, labor legislation has erected a principle that, inspired by the foundations of the dignity of the human person and the recognition of the social value of work, rules all Brazilian labor law, namely, the principle of worker protection. The Labor Reform, however, came against all this worker protection, making it flexible and even eliminating rights granted to that class before, so that it was started a discussion about its constitutionality and harmony with the foundations of this branch of law. In this sense, the current academic production aims to understand how the changes in labor legislation violate the principle of worker protection.
Keywords: labor law; labor reform; flexibility; protection principle.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 FUNDAMENTOS DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL. 3 ARGUMENTOS UTILIZADOS PARA A APROVAÇÃO DA REFORMA TRABALHISTA. 4 PONTOS DA REFORMA QUE FLEXIBILIZAM DIREITOS TRABALHISTAS. 4.1 HORAS IN ITINERE. 4.2 INTERVALO INTRAJORNADA. 4.3. CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE. 4.4 O ACORDADO SE SOBREPÕE AO LEGISLADO. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6 REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Desde a revolução, a sociedade passou por transformações relevantes em seus seguimentos, sobretudo, no setor econômico. Nesse período, houve a necessidade de contratar mão de obra a fim de que se pudesse atender à demanda das grandes empresas e, inclusive, para o desenvolvimento da própria sociedade. Assim, homens, mulheres e até crianças eram submetidas a jornadas e condições de trabalho que feriam a própria dignidade do ser humano. Foi nesse contexto que o Brasil, seguindo a evolução jurídica de outros países nesse ramo novo do Direito, passou a legislar sobre o Direito do Trabalho, reconhecendo direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, com uma postura estatal interventiva e protetiva ao empregado.
Devido a todo esse viés interventivo do Estado na relação trabalhista e à necessidade de modernização da legislação, houve em 2016, a propositura do Projeto de Lei nº 6.787, de 2016, que dispôs sobre a Reforma Trabalhista. Ocorre que a referida Reforma mudou, em muito, as relações de trabalho no Brasil, flexibilizando direitos anteriormente consagrados e, até mesmo, retirando muitas normas que protegiam o trabalhador e o reconheciam como parte hipossuficiente da relação laboral, estabelecendo regras e até mesmo um novo princípio (não-intervenção do Estado).
Assim, esta pesquisa apresenta um estudo descritivo, no qual abrange estudos bibliográficos sobre os fundamentos do direito do trabalho, os argumentos que justificaram a reforma e, inclusive, pontos do referido projeto de lei que flexibilizam direitos trabalhistas, a fim de compreender se esse novo cenário jurídico trabalhista fere o princípio fundante do Direito do Trabalho no Brasil – o princípio da proteção ao trabalhador.
2 FUNDAMENTOS DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL
A revolução industrial promoveu mudanças na sociedade, influenciando o setor produtivo e dando origem à classe operária. Nesse momento, a relação trabalhista era regulada por um viés meramente autônomo, de forma que as grandes indústrias ditavam os termos da prestação de trabalho (BARROS, 2016). Promoveu-se, então, um liberalismo econômico sem qualquer ermo, com a exploração da mão de obra, jornadas de trabalho exaustivas, as quais foram estendidas inclusive às mulheres e até crianças, tornando evidente a opressão da classe de trabalhadores, aduz Alice de Barros Monteiro (2016).
Essa classe suportava, então, condições precárias e desumanas, a fim de que pudessem ter o mínimo que garantisse a própria subsistência. Foi nesse contexto que, influenciados pela visão de Marx e a doutrina social da Igreja, os trabalhadores entenderam que, apesar de serem frágeis em sua individualidade, poderiam, com sua consciência coletiva, promover mudanças nesse cenário, a fim de trazer o mínimo de dignidade aos trabalhadores (BARROS, 2016).
Diante desse conflito, conforme a doutrinadora Alice de Barros Monteiro (2016), o Estado assumia uma postura claramente passiva, optando pela não intervenção. Porém, o aumento do atrito entre as duas classes refletiu diretamente na impossibilidade de manutenção saudável da estrutura social, de modo que houve a necessidade de que o próprio Estado desenvolvesse um ordenamento jurídico que pudesse trazer mais igualdade e equilíbrio entre as partes. Dessa forma, o intervencionismo estatal, fruto das manifestações constantes dos trabalhadores que reivindicavam melhores condições, resultou no aparecimento do Direito do Trabalho em muitas nações, levando muitos países a tutelar as relações de trabalho (BARROS, 2016).
Foi nesse contexto, expõe Alice de Barros Monteiro (2016), que o Brasil passou a observar a necessidade da intervenção estatal nessa relação entre os particulares e a criar suas próprias normas jurídicas trabalhistas, inaugurando no ordenamento jurídico um ramo especializado do Direito. Por força de todas essas peculiaridades que marcaram a relação trabalhista, houve a necessidade de se desenvolver um Direito do Trabalho que, em um contexto marcado por desigualdades e exploração, se revestisse também de normas imperativas, obrigatórias e irrenunciáveis pelos próprios trabalhadores (BARROS, 2016).
Assim, o Direito do Trabalho foi desenvolvido, no Brasil, como uma área do direito que, embora tenha origens no direito privado, possui normas que são consideradas, também, de ordem pública. Aquelas, concedem uma liberdade às partes característica do direito privado, estas, por sua vez, tendo natureza claramente pública, são, portanto, normas cogentes (MARTINS, 2011).
Nesse sentido, o ordenamento jurídico brasileiro, ao criar o Direito do Trabalho, apesar deste possuir natureza de direito privado, consagrou normas e princípios que, tendo natureza de direito público, caracterizam-se por serem de observância compulsória, tanto quando da pactuação contratual, quanto da elaboração de novas normas jurídicas, aduz Alice de Barros Monteiro (2016).
Para Petrucci e Siqueira (2019), essas normas e princípios são as bases fundantes do Direito do Trabalho brasileiro, de modo que deve ser observada quando da elaboração de qualquer legislação superveniente, inclusive, ressalta-se, a atual reforma trabalhista, revestindo-se de elementos de proteção e intervenção do Estado na relação entre particulares.
Dentre essas normas, há o consagrado princípio da proteção ao trabalhador. Esse princípio, aduz Alice de Barros Monteiro (2016), tem como função inspirar o sentido da legislação trabalhista e se caracteriza como regulamentador de toda a relação de trabalho. Desse modo, ele orienta toda a ordem jurídica trabalhista no Brasil, com critérios e requisitos interpretativos específicos do Direito do Trabalho, se diferenciando, assim, de outros ramos do Direito.
O jurista Maurício Godinho Delgado (2017) expõe que o direito do trabalho é baseado em um sistema de princípios e normas que se traduz em uma teia de proteção da parte hipossuficiente da relação de emprego, a fim de diminuir o seu desequilíbrio fático, de modo que o princípio da proteção rege todo o direito trabalhista brasileiro. Assim, seu principal objetivo é garantir que o trabalhador, parte hipossuficiente desta relação jurídica, possa dispor, em equilíbrio de condições, de sua força de trabalho sem ser lesado em seus direitos fundamentais, a fim de que, havendo um equilíbrio entre as partes, o trabalhador viva dignamente.
De acordo com o notório jurista, sem essa noção de proteção ao elo frágil dessa relação, não se consegue compreender o direito do trabalho, nem mesmo como ciência jurídica, pois tal princípio constitui-se em norma fundante e essencial deste ramo especializado do direito. Nesse sentido, o princípio da proteção objetiva diminuir a disparidade jurídica existente entre o empregador e o trabalhador, concedendo uma superioridade a este, de modo que há um tratamento desigual conferido às partes, a fim de buscar um equilíbrio substancial nessa relação (MARTINS, 2011).
Logo, segundo o referido autor, ao contrário do direito comum, no qual busca-se em suas relações privadas a conceder e mantar uma igualdade às partes, por este ser um critério de justiça, no Direito do Trabalho, há a busca evidente de um tratamento desigual e que protege a parte mais frágil – o hipossuficiente trabalhador, diante de todo o poderio e hipersuficiência dos grandes empregadores.
Por conseguinte, desprovido de um dos princípios basilares do direito civil, qual seja a igualdade, por força do princípio da proteção ao trabalhador, as relações laborais, quando da elaboração contratual (e, reitera-se, inclusive a reforma trabalhista), sofrem limitação e encontram discricionariedade para pactuarem entre si até os termos em que se inicia o princípio da proteção e demais normas trabalhistas cogentes (BARROS, 2016), conforme se observa da leitura dos artigos 9º, 444 e 468, da Consolidação das Leis do Trabalho. Veja-se:
Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.
Art. 444 - As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.
Ademais, Sergio Pinto Martins (2011) informa que o princípio da proteção desdobra-se na criação de mais outros 3 princípios, a saber: o in dubio pro operario; o da aplicação da norma mais benéfica ao trabalhador e o da aplicação da condição mais benéfica. Conforme o referido jurista, em primeiro momento, em caso de dúvida quanto à norma que deve ser aplica ao caso concreto, prevalece a aquela que é mais favorável ao trabalhador, visando sempre melhorar as condições de trabalho do empregado e manter as condições favoráveis já concedidas.
No princípio da aplicação da norma mais benéfica informa que quando da criação de nova legislação trabalhista deve-se elaborar normas mais benéficas ao trabalhador, não havendo a possibilidade de retirá-las ou mesmo suprimir normas que depreciem ou piorem a situação do trabalhador. Esse princípio resulta, consequentemente, na observância do último, o da aplicação da condição mais benéfica, haja vista que, havendo criação e preservação de normas mais favoráveis ao trabalhador, há, também, a manutenção de uma condição mais benéfica, conforme esboça Sergio Pinto Martins (2016).
Nesse sentido, para Martins (2016), os dois últimos princípios referem-se à manutenção de direitos já conquistados dos trabalhadores e, portanto, adquiridos, os quais não devem, mesmo que por criação de uma nova legislação ou reforma legislativa, retroceder a condições anteriores que pioram as condições do trabalhador.
3 ARGUMENTOS UTILIZADOS PARA A APROVAÇÃO DA REFORMA TRABALHISTA
O Projeto de Lei nº 6.787, de 2016, elaborado pelo deputado relator Rogério Marinho, da Comissão Especial destinada a proferir parecer sobre as alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aduz os argumentos justificadores do projeto de Reforma Trabalhista.
Marinho (2016) expõe que as leis são criadas com a finalidade de atender as necessidades sociais do tempo em que foi elaborada. Nesse sentido, tendo em vista que a consolidação trabalhista foi criada em 1943, não consegue mais atender às demandas atuais da sociedade.
Isso se justifica pelo fato de que o tempo de sua criação, foi um tempo que havia a necessidade de uma intervenção e tutela maior do Estado na relação trabalhista, a fim de que pudesse garantir patamares mínimos de dignidade ao trabalhador (MARINHO, 2016).
Segundo o relator, não justificaria, atualmente, permanecer com toda a regulamentação imperativa constantes no texto da norma trabalhista, já que as relações de trabalho foram alteradas, não havendo a necessidade de um Estado interventivo.
Assim, o deputado Marinho (2016) informa que há a necessidade de se conceder maior liberdade às partes contratantes, visto que o que se apresenta nos dias de hoje é um equilíbrio entre as partes do pacto laboral, de modo que o Estado deve se isentar de decidir pelo trabalhador, tirando a rigidez protetora da legislação.
Ademais, todo o excesso de normas trabalhistas permite haver um alto grau de insegurança jurídica, de forma que torna difícil o empregador contratar a mão de obra, por conseguinte impede o Brasil crescer economicamente e superar atual crise que já perdura por três anos consecutivos (MARINHO, 2016).
O referido deputado aduz que conceder liberdade à relação trabalhista é, na verdade, fomentar o crescimento econômico do país, além de atrair grandes investimentos de outros países, o que geraria mais emprego e consequentemente diminuiria os expressivos índices de desemprego.
Desse modo, diminuiria o número de trabalhadores em situação de subemprego e que estão laborando na informalidade, pois em muitas situações a realidade de tais trabalhadores não se subsumem à rígida previsão da CLT, expõe Marinho (2016). Tudo isso, argumenta o deputado relator, sem infringir ou diminuir os direitos fundamentais do trabalhador insculpidos no artigo 7º da Constituição Federal.
Também, o deputado apresenta que a desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista diminuiria o número de ações e processos na Justiça do Trabalho, tendo em vista que o crescimento do ajuizamento de ações tem crescido anualmente. Esse crescimento se justifica tanto pelo descumprimento pelo empregador das rigorosas regras trabalhistas, quanto da árdua missão de cumprir as detalhadas e excessivas leis.
Marinho (2016) argumenta, finalmente, que aumento da quantidade de processos leva os tribunais do trabalho a decidirem e formarem jurisprudências diversas, não havendo, assim, uma uniformidade. Desse modo, o próprio TST age fora de seus limites, de forma que até mesmo dá entendimento contrário à norma trabalhista, com vistas tão somente a proteger o trabalhador (como é o caso da súmula 277, do TST).
Diante de todo o exposto, consegue-se extrair dos argumentos do deputado relator Rogério Marinho (2016) que há a necessidade de se conceder maior liberdade às partes envolvidas na relação trabalhista, de modo que até mesmo o que for acordado entre os envolvidos se sobreponha à previsão legislativa, a fim de que se modernize a norma e se atenda à premente necessidade econômica do país.
4 PONTOS DA REFORMA QUE FLEXIBILIZAM DIREITOS TRABALHISTAS
A descrição de pontos relevantes da Reforma Trabalhista que flexibilizaram os direitos dos trabalhadores ocorrerá de acordo com a ordem de alteração proposta pela lei 13.467/17 (Lei da Reforma).
4.1 HORAS IN ITINERE
A previsão legal da denominada horas “in itinere”, antes da Reforma trabalhista, foi incluída pela lei 10.243/01, constava no artigo 58, parágrafo 2º, da CLT, com a seguinte redação:
Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
(...)
§2º O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.
Ressalta-se que, anteriormente, o tempo de deslocamento de casa para o trabalho e do trabalho para a residência (horas in itinere) não era incluído no cômputo da jornada de trabalho, de modo que, além de o empregado laborar a jornada de trabalho, ainda gastava muito tempo em deslocamento, visto que as empresas se constituíam, muitas vezes, em local distante (SOUZA; SIEBRA, 2018).
No entanto, diante da dificuldade no translado e tempo despendido pelos empregados, que eram submetidos a extensas jornadas, reconheceu-se a necessidade de estabelecer uma exceção à essa regra, que veio prevista na segunda parte do §2º da CLT, o qual dispôs que, em se tratando de local difícil acesso ou não servido por transporte público, haveria a contagem desse tempo na jornada de trabalho (SOUZA; SIEBRA, 2018).
Essa ressalva legislativa prevista na segunda parte do parágrafo segundo nasceu da necessidade de proteger o trabalhador das imposições capitalistas dos empregadores. Pois aquele era submetido a jornadas exaustivas, que muitas vezes ultrapassavam as 12 horas diárias, de modo que os trabalhadores não dispunham de tempo livre para viver dignamente, dedicando-se às demais atividades da vida (SOUZA; SIEBRA, 2018).
Assim, segundo os referidos autores, a limitação de jornada se fez imprescindível para a garantia de uma vida minimamente digna àquele que labora.
Logo, foi reconhecido como um direito fundamental não só do trabalhador, mas intrínseco à própria noção de ser humano, de sorte que foi previsto no artigo 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe: Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Nesse sentido, com o intuito de diminuir a superioridade, inclusive socioeconômica, do empregador, diante da hipossuficiência do trabalhador o Estado brasileiro interveio dispondo e admitindo as horas “in itinere” como tempo computado na jornada de trabalho, a fim de garantir uma igualdade substancial na relação trabalhista, artigos 7º VIII, da Constituição e 58, §2º da CLT (SOUZA; SIEBRA, 2018).
Todavia, a partir da vigência da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17), houve a retirada dessa previsão legal dando à legislação trabalhista o seguinte teor:
Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite.
(...)
§2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.
Assim, consoante Souza e Siebra (2018), o tempo despendido pelo empregado de casa para o trabalho não é mais, em nenhuma hipótese, tempo à disposição do empregador, o que aumenta as horas que o empregado gasta com o trabalho, a fim de tornar mais favorável à atividade econômica desenvolvida pelas empresas.
Nesse sentido, conforme os mencionados autores expõem (2018), no caso de um empregado que permanece 12 horas por dia à disposição do empregador (o que ocorre principalmente em grandes cidades), considerando que um adulto deve dormir em média 7 horas por dia e que o dia tem 24 horas, resta para o trabalhador pouco menos de 4 horas por dia, impossibilitando-o totalmente de buscar objetivos de vida, de estudar, de fazer exercícios físicos ou de desfrutar momentos de lazer com a família.
Essa previsão, para Souza e Siebra (2018), é, em muito, prejudicial a trabalhador, vez que vida humana não se limita à provisão financeira, econômica ou cultural, mas também ao exercício dos direitos sociais e bem estar psicológico da pessoa humana, de modo ao trabalhador poder exercer o direito de escolha das atividades que dão sentido à vida.
Portanto, o que se observa é que o legislador impôs, nesse ponto, o ônus da atividade econômica à parte hipossuficiente da relação trabalhista, de sorte a sacrificar o tempo e energia suficientes às demais necessidades da vida, em detrimento da atividade econômica desenvolvida, infringindo, consequentemente, os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção ao trabalhador (SOUZA; SIEBRA, 2018).
4.2 INTERVALO INTRAJORNADA
O intervalo intrajornada compreende o tempo que intercalam uma jornada de trabalho, no qual o empregado permanece em período de descanso, alimentação e higiene, sem que esse tempo seja computado como jornada de trabalho (CARVALHO; FILHO, 2018).
Delgado, em sua definição sobre o tema diz que a jornada se apresenta dividida por períodos de descansos, os chamados intervalos intrajornadas, de modo que se separaram das jornadas fronteiriças por extensos períodos de descanso (DELGADO, 2013).
A sua previsão na legislação trabalhista consta no artigo 71 da CLT, o qual aduz que nos trabalhos cuja duração ultrapasse as 6 (seis) horas, é compulsória a concessão de um intervalo para repouso e alimentação, prescrevendo ainda que será de no mínimo 1 (uma) hora.
Assim, torna-se evidente que essa previsão legal não objetiva finalidades econômicas, pelo contrário, visa a proteção à saúde e segurança do trabalhador, conforme previsão no artigo 7º, XXII, da Constituição Federal (DELGADO, 2017).
(…) as normas jurídicas concernentes a intervalos intrajornadas também têm caráter de normas de saúde pública, não podendo, em princípio, ser suplantadas pela ação privada dos indivíduos e grupos sociais. É que, afora os princípios gerais trabalhistas da imperatividade das normas desse ramo jurídico especializado e da vedação a transações lesivas, tais regras de saúde pública estão imantadas de especial obrigatoriedade, por determinação expressa oriunda da Constituição da República. (DELGADO, 2013, p. 964)
Segundo Carvalho e Filho (2018), é imprescindível ressaltar que os intervalos intrajornadas são erigidos a normas de caráter de ordem pública, as quais não podem ser dispostas conforme vontade das partes (como fez a reforma), vez que se trata de garantia constitucional sobre a saúde e proteção do empregado.
Nesse sentido, a flexibilização do intervalo intrajornada representa uma exposição do trabalhador ao risco à sua própria saúde, segurança e bem estar, o que o torna mais passível a doenças e acidentes de trabalho (CARVALHO; FILHO, 2018).
Todavia, a Reforma trabalhista privilegiou os acordos realizados entre empregados e empregadores em detrimento de previsão legal e inclusive constitucional, ao dispor em seu artigo 611-A, inciso III, a possibilidade de redução desse intervalo, sem se atentar para o real objetivo da norma (CARVALHO; FILHO, 2018).
Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho, observados os incisos III e VI do caput do art. 8º da Constituição, têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:
(…)
III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;
Observa-se que anteriormente, o instrumento da negociação coletiva era visto como meio de aperfeiçoamento das relações trabalhistas, a fim de que se garantisse melhores condições aos empregados, todavia se verifica que a lei 13.467/17 (Reforma Trabalhista) privilegiou o referido instituto em detrimento do bem estar e saúde do trabalhador, rompendo, dessa forma, com a ideia de proteção (CARVALHO; FILHO, 2018).
Consequentemente, a Reforma Trabalhista concede à negociação coletiva a possibilidade de precarização das relações de trabalho, em detrimento da busca da proteção e melhores condições ao trabalhador. Então, a flexibilização de tal direito infringe inclusive direitos fundamentais e sociais - a “flexibilização inconstitucional de medidas de proteção à saúde e segurança do trabalhador, com afronta ao inciso XXII do art. 7º da Constituição e à Convenção 155 da OIT.” (DELGADO; DELGADO, 2017, p. 79).
Insistentemente, a Lei n. 1 3.467/201 7 desnatura o sentido constitucional de proteção ao trabalho. É que a Constituição se inspira no conceito de negociação coletiva trabalhista como instrumento de aperfeiçoamento das condições de trabalho (o princípio da norma mais favorável, aliás, é que abre o caput do art. 7º da Constituição Federal, em cujos incisos VI, XIII e XVI se insere a referência à negociação coletiva trabalhista). Não há, na Constituição e nas normas internacionais vigorantes no Brasil, a ideia de negociação coletiva trabalhista como veículo para a precarização de direitos individuais e sociais fundamentais trabalhistas. (DELGADO; DELGADO, 2017, p.79)
Portanto, as normas de duração da jornada de trabalho visam a proteção da integridade física e bem estar do trabalhador, restando evidente tratar-se de normas públicas que não podem ser flexibilizadas sem qualquer cuidado com a saúde do empregado (CARVALHO; FILHO, 2018). Logo, são normas imperativas e com previsão constitucional, de modo que o próprio Estado deve assegurá-las em benefício do empregado.
4.3. CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE
Essa nova forma de contratação nasceu da necessidade de modernização das relações de trabalho, com vistas a diminuição dos índices de desemprego e trabalho informal (OLIVEIRA, 2018).
Sua previsão legal encontra-se albergada no artigo 443, parágrafo 3º, da CLT, que preceitua conforme se observa a seguir:
Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.
(...)
§3º Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.
Nessa hipótese, o trabalhador fica esperando o chamado para o trabalho, de forma que pode aguardar dias, semanas e até mesmo mês sem receber nenhuma remuneração, nem mesmo pela espera, já que o parágrafo §5º, do artigo 452-A, da CLT, informa que esse tempo não constitui tempo à disposição do empregador (OLIVEIRA, 2018).
No entanto, observa-se que a previsão legal dessa modalidade de contratação, em muito, desprestigia alguns dos poucos direitos e garantias já conquistados pelos trabalhadores, criando subcategorias de trabalhadores com condições de trabalhos precárias (OLIVEIRA, 2018).
Por conseguinte, o contrato de trabalho intermitente ou “zero horas”, como quer alguns, gera uma insegurança a somente uma das partes que compõem a relação trabalhista, o hipossuficiente empregado (OLIVEIRA, 2018).
Assim, em que pese a garantia do salário mínimo e de um trabalho que satisfaça as necessidades básicas do ser humano ser uma garantia constitucional (art. 7º, CRFB), a referida previsão celetista submete o empregado a uma situação de total vulnerabilidade, de modo que, além de lhe usurpar condições vitais para a subsistência, partilha com o empregado o risco da atividade econômica exercida pelo empregador (OLIVEIRA, 2018).
Ademais, segundo Ailsi Costa De Oliveira (2018), o empregado é o único atingido com tal forma de contratação, arcando sozinho com o ônus da relação, de modo que há uma apropriação do tempo do empregado.
Portanto, o trabalhador não poderá assumir compromissos em determinados horários, visto que a recusa para o chamado do empregador poderá impedir uma nova convocação. Nesse sentido, o empregado sofrerá mais limitações para dispor de seu tempo para outras atividades da vida (lazer, tempo com a família, etc.), sem qualquer garantia de ser convocado para o trabalho (OLIVEIRA, 2018).
4.4 O ACORDADO SE SOBREPÕE AO LEGISLADO
O artigo 611-A, da CLT, incluído pela Reforma Trabalhista, inova o Direito do Trabalho no Brasil ao trazer um rol exemplificativo das situações em que for acordado entre empregado e empregador prevalecerá sobre o que estiver disposto em lei.
Sabe-se que a instituição dessa previsão legal (art. 611-A, da CLT) não veio de forma isolada, pois conquanto a Lei de Reforma privilegiou a atuação dos sindicatos nos acordos coletivos, a mesma Reforma enfraqueceu o sindicato dos trabalhadores (AZEVEDO, 2017).
O motivo de seu enfraquecimento foi o fim da contribuição obrigatória do imposto sindical. Uma vez que o órgão representativo da classe trabalhadora se apresenta impotente por escassez de recursos, fragiliza a sua capacidade de negociação e, inclusive, de se manter, o que resulta em maiores flexibilizações de direitos trabalhistas, estabelecendo condições de trabalho mais precárias (ALVÃO; SILVA, 2018).
Ora, quem representa os interesses dos trabalhadores, em situações de negociação coletiva, é o próprio sindicato da categoria, em virtude, inclusive, de constar na própria Constituição Federal, em seu artigo 8º, incisos III e VI, que dispõe:
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
[...]
III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas;
[...]
VI - é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho;
Até a Lei da Reforma, as entidades sindicais eram patrocinadas pelas duas mais importantes fontes: a contribuição sindical obrigatória (artigo 8º, inciso IV, da Constituição), que foi extinta atualmente pela reforma, e a contribuição associativa (artigo 548, b, da CLT).
Assim, de acordo com Alvão e Silva (2018), cominando com a referida inovação legislativa do artigo 611-A, houve também disposições na Lei de Reforma que objetivaram à perda do poder de representação sindical, o que implica em maior liberdade às grandes empresas e maiores restrições aos empregados, com o permissivo, agora legal, de o que for negociado sobrepor-se ao legislado, piorando e precarizando as condições de vida e trabalho do elo hipossuficiente desta relação, em detrimento da situação econômica do país.
Alvão e Silva (2018) observam que a constituição prevê algumas hipóteses que é possível a flexibilização, mediando acordo ou convenção coletiva, de algumas garantias trabalhistas, porém, informa, em contrapartida, que a Reforma Trabalhista é eivada de vícios de inconstitucionalidade ao estabelecer-se como superior até mesmo às hipóteses e limites impostos pelo texto constitucional.
Desse modo, não se pode permitir, em nosso sistema jurídico, que a reforma trabalhista, tratando-se de uma lei ordinária, tenha supremacia em relação aos parâmetros estabelecidos na constituição da república, principalmente porque a proteção à pessoa humana não foi colocada como objetivo central da reforma, antes, porém, o interesse econômico e de sua classe empresária correspondente, conforme aduz Alvão e Silva (2018).
Ademais, estabelecer que o acordado se sobrepõe ao legislado privilegia e prioriza muito mais os interesses do capital, criando uma legislação que agrava, em muito, as condições de trabalho da classe trabalhadora e, inclusive, contribui para o desequilíbrio de ambas partes da relação trabalhista. Nesse sentido, enfraquece ainda mais o empregado em sua relação com o empregador, que agora poderá estabelecer, por meio de acordo individual, condições precárias, conforme os próprios interesses (ALVÃO; SILVA, 2018).
Consequentemente, as alterações na legislação trabalhista concede um viés muito mais civilista, isto é, próximo ao Direito Civil, o qual prega a igualdade e isonomia entre as partes, do que trabalhista, que assegura uma rede de proteções ao empregado, ao considerar sua hipossuficiência (ALVÃO; SILVA, 2018.
Portanto, para Alvão e Silva (2018), ao privilegiar o princípio da autonomia da vontade, oriundo do Direito Civil, estabelecendo a possibilidade de ambas partes acordarem livremente, o legislador fechou os olhos para os princípios e fundamentos do Direito do Trabalho brasileiro e também para a real ausência de igualdade de condições entre empregado e empregador.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, é imprescindível ressaltar que a presente pesquisa não visa tecer juízo valorativo quanto as alterações promovidas pela Reforma, nem tampouco esgotar os argumentos e discussões que a permeiam. Pelo contrário, almeja, tão somente, compreender de que modo as novas (des) regulamentações infringem o seu princípio fundador, o da proteção ao trabalhador.
Desse modo, com a atual produção acadêmica, pode-se compreender os alicerces do Direito do Trabalho no Brasil, que tem como fundamento principal a proteção da parte hipossuficiente da relação de emprego (o trabalhador), buscando diminuir o desequilíbrio fático nessa relação, de modo que esse princípio regulamenta e inspira toda a ordem jurídica trabalhista no país.
Também, foi possível compreender, considerando as alterações na legislação trabalhista, de que modo as flexibilizações e supressões de direitos trabalhistas infringem o princípio fundamentar desse ramo do Direito, a saber, o princípio da proteção ao trabalhador.
Nesse sentido, observou-se que muitas das alterações promovidas pela Reforma suprimem e flexionam direitos, de modo a precarizar as relações de trabalho, retirando, muitas vezes, a proteção antes concedida ao trabalhador, sob o argumento da necessidade de desenvolvimento econômico e modernização das relações trabalhistas.
Portanto, partindo desses pressupostos, é possível entender que, conquanto a Reforma trabalhista possa ser benéfica ou constitucional em todos seus termos (circunstância não visada nesta pesquisa), ela, em algumas de suas alterações, vai de encontro aos fundamentos basilares do Direito do Trabalho brasileiro, vez que consagra institutos que retiram a teia de proteção ao trabalhador, em detrimento dos interesses de econômicos.
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[1] Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília, Brasil (2017). Professora de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins. Advogada. E-mail: [email protected]
Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, WESLEY LUCENA DE. A flexibilização na legislação trabalhista diante do princípio da proteção ao Direito do Trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 maio 2020, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54519/a-flexibilizao-na-legislao-trabalhista-diante-do-princpio-da-proteo-ao-direito-do-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
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