LARA LYANA FEITOSA SOARES [1]
(coautora)
JULIANO OLIVEIRA LEONEL [2]
(orientador)
RESUMO: O presente estudo visa analisar e particularizar o cenário do Tribunal do Júri, tendo como essência incrementar um reconhecimento crítico diante da decisão de pronúncia em decorrência do conflito existente na aplicação de institutos para o embasamento do ato. Com isso, ressalta-se, havendo objeção quanto aos indícios probatórios da autoria de um delito seria coerente a aplicação do princípio in dubio pro societate na decisão de pronúncia à luz do ordenamento jurídico brasileiro? Sendo assim, faz-se necessário elencar o objetivo crucial de tal questionamento, qual seja, análise crítica do surgimento e consequências na aplicação do brocardo in dubio pro societate, o qual não resguarda qualquer alicerce na legislação vigente. Para tanto, o estudo fora desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica com abordagem dialética entre os princípios in dúbio pro reo e in dúbio pro societate. Portanto, o enfrentamento de ideias resume-se a definir se tal entendimento fere o texto constitucional, bem como, o tangenciamento evidente do princípio in dubio pro reo, caminhando-se a uma inaplicabilidade de um processo penal garantista, em face dos direitos e garantias do acusado. Toma-se por base a doutrina e jurisprudência do ordenamento jurídico brasileiro para sustentar a tese.
Palavras-chave: Processo Penal. Pronúncia. Princípios.
ABSTRACT: This study aims to analyze and particularize the scenario of the Jury Court, having its essence of to increase critical recognition in the face of the decision to pronounce as a result of the conflict existing in the application of institutes to support the act. With this, it is emphasized, if there is an objection to the evidence of the authorship of a crime, would the application of the principle in dubio pro societate in the decision of pronunciation in the light of the Brazilian legal system be consistent? Therefore, it is necessary to list the crucial objective of such questioning, namely, critical analysis of the emergence and consequences in the application of brocardo in dubio pro societate, which does not protect any foundation in the current legislation. To this end, the study was developed through bibliographic research with a dialectical approach between the principles in dúbio pro reo and in dúbio pro societate. Therefore, the confrontation of ideas boils down to defining whether such an understanding hurts the constitutional text, as well as the evident tangent of the principle in dubio pro reo, leading to the inapplicability of a guaranteeing criminal process, in the face of rights and guarantees of the accused. The doctrine and jurisprudence of the Brazilian legal system is based on supporting the thesis.
Keywords: Criminal Proceedings. Pronunciation. Principles.
Sumário: 1 Introdução; 2 Sistemas processuais e a busca da verdade; 3 A instrumentalidade garantista do processo pena: 3.1 O processo penal como situação jurídica; 3.2 O princípio da presunção de inocência e in dúbio pro reo; 4 Ponderações acerca da criação e repercussão prática do “in dubio pro societate” e standards: 4.1 Standards probatórios; 4.2 Panprincipiologismo no processo penal; 4.3 Aplicação do in dubio pro societate em caso concreto; 5 Conclusão; Referências.
O artigo 5°, XXXVIII da Constituição Federal (1988), resguarda o Tribunal do Júri como uma garantia constitucional. Com o estudo em questão busca pormenorizar o amplo cenário que é o tribunal e esmiúça-lo ao princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Leva- se em consideração a incoerência da aplicação do mencionado brocardo, tendo em vista que a Carta Magna resguarda o princípio da presunção de inocência como garantia constitucional, sendo tais princípios totalmente antagônicos.
A motivação do presente estudo é acarretar uma bagagem de conhecimento e senso crítico, tendo em vista que o debate de temas polêmicos, além de nos fazer analisar os diversos ângulos existentes, ocasionam o aferimento de sabedoria ao indivíduo. Assim, o estudo aprofundado de qualquer que seja o tema proporciona o crescimento pessoal, além de acarretar uma contribuição para o meio acadêmico. É evidente que, existe aqui uma justificativa que vai além, sendo esta a contribuição social para o levantamento de uma sociedade com juízo de valor acerca das normas e princípios que os regem.
O objetivo primordial fora realizar uma análise crítica com a criação de um princípio por meio de uma jurisprudência, que não resguarda qualquer alicerce na legislação vigente, contudo, o objetivo vai além da crítica, já que se busca a garantia de um processo penal justo, o qual deverá resguardar todas as garantias à luz da Constituição Federal.
Dada a relevância da aplicação de uma pena em relação a um indivíduo acusado de ter cometido algum delito contra a vida de outrem, deve-se ser respeitada todas as garantias trazidas pela Carta Magna. Atualmente, em diversas decisões de pronúncia os Magistrados fundamentam sua decisão com base no princípio do in dubio pro societate, alegando dúvida quanto a autoria de um delito, em que a dúvida irá favorecer a sociedade. Diante disso, nasce a problemática do estudo, onde, havendo dúvida quanto a autoria de um delito a aplicação do princípio in dubio pro societate na decisão de pronúncia caracteriza-se como coerente à luz do ordenamento jurídico brasileiro?
O presente estudo se desenvolve através de pesquisa bibliográfica com abordagem dialética entre os princípios in dúbio pro reo e in dúbio pro societate. Conforme Engels (1979), a dialética é uma grande ideia fundamental, segundo a qual, o mundo não deve ser considerado como um complexo de coisas acabadas. Tal entendimento se justifica pelo autor tendo em vista que, as ideias estão em constante processo de mudança, consequentemente o entendimento sobre alguma tese poderá ser sempre discutido, tornando assim como mutável. Concomitantemente, Stalin (2000), refere-se que o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido, quando encarado isoladamente, fora dos fenômenos circundantes, com isso, entende-se que um fato não deve ser observado embasado apenas em uma única vertente, o mesmo deverá ser analisado à luz de todas as circunstancias que o norteiam, possibilitando um enfrentamento de ideias tuteladas pelo método dialético.
Ao longo do estudo será apresentado de forma dinâmica referente aos sistemas processuais e a busca da verdade, além de discorrer categoricamente a instrumentalidade garantista no processo penal, o processo como situação jurídica, o princípio da presunção de inocência, standards probatórios, panprincipiologismo no processo penal, e por final a aplicação do in dubio pro societate em caso concreto. Toda essa construção sistemática viabilizará a elaboração de uma construção de raciocínio crítico sobre a temática em análise.
Por fim, visa-se delinear a inadmissibilidade da aplicação do in dubio pro societate na decisão de pronúncia, quando não se tem provas suficientes quanto a autoria do crime que sane qualquer dúvida, além do mais, tal instrumento afronta totalmente o atual estado de direito, ou seja, é intolerável que juízes togados pactuem com um princípio que se quer resguarda amparo na Constituição, logo, a atitude mais pacífica e certeira seria aplicação do in dubio pro reo.
A presente pesquisa tem como escopo a crítica em relação a utilização do princípio do in dubio pro societate na decisão de pronúncia. Nessa ótica, faz-se necessário de início a abordagem teórica dos sistemas processuais penais presentes no ordenamento jurídico brasileiro, pois conforme tutela Lopes (2018), inexiste a paz conceitual a respeito da matéria elencada, destacando o tratamento ora reducionista, ora punitivista dado, por segmentos da doutrina, à temática.
Em que se pese, a abordagem sobre os sistemas processuais penais está englobada em uma grande divergência doutrinária, tanto no âmbito doméstico, quanto internacional, consequentemente observam-se várias correntes a fim de definir o sistema processual de forma una. Parte defende como sistema inquisitivo, outra como acusatório e por fim, como um sistema misto, o qual apresenta um termo autoexplicativo, caracterizando como a detentor de aspectos dos dois sistemas anteriores. Ademais, ressalta-se que o direito brasileiro, não só em relação ao âmbito penal é oriundo de diversas outras culturas, com isso, tornam-se claro a ausência de uma identidade própria em decorrência de sua formação.
Dito isso, inicia-se a abordagem sobre os sistemas. Primeiramente, elenca-se o sistema inquisitivo, o qual caracteriza-se como uma das formas inquisitoriais em relação a aplicação do direito, tendo como marco inicial no século XII a partir dos tribunais eclesiásticos servindo como persecução criminal. Tem como principal peculiaridade a concentração do poder do Estado-juiz, ou seja, um sistema resumido em que o responsável pela acusação também detém a função de julgador. Posteriormente, demonstra-se ser um sistema desequilibrado, haja vista que, o acusador certamente busca a condenação do indivíduo, concentrando assim o réu, como mero objeto de investigação processual.
Certamente, neste sistema processual observa-se traços do princípio elencado acima, qual seja, in dubio pro societate, onde, na existência ou não da dúvida sobre a culpabilidade do indivíduo em relação ao fato, este teria grande possibilidade de ser condenado e receber uma sanção. Porém, não se resume ao desejo de não aplicar uma pena ou até uma discussão geral da inimputabilidade, e sim, uma preocupação a respeito de uma sanção aplicada de forma devida, justa, a fim de evitar futuros problemas individuais, os quais posteriormente podem gerar dissídios coletivos, tendo em vista que, mesmo uma aplicação gerando de imediato consequências para uma única pessoa, essa, está inserida em um meio social.
Com o avanço social a respeito da luta visando assegurar direitos e garantias individuais e em decorrência das inúmeras consequências negativas geradas pelo sistema inquisitorial, o meio social obrigou uma solução estatal. Sendo esta, o afastamento do magistrado, em relação a persecução penal, visando assegurar as garantias individuais, além da imparcialidade do julgador, pisa-se que o processo penal era concentrado nas mãos apenas de um único indivíduo, este não tinha por obrigação respeitar a publicidade dos atos. E consequentemente, inúmeras situações indesejáveis decorriam, sendo assim, buscou-se a implementação de outro sistema processual.
Diante do exposto, desenvolveu-se o sistema acusatório, o qual apresenta como principal objetivo a separação de uma atividade acusatória exercida por um órgão e a função julgadora por outro órgão. Estrutura-se por um protagonismo das partes, distinguindo-se do inquisitório, o qual observava apenas a figura do magistrado, elas teriam as funções da iniciativa, bem como pela gestão probatória. O modelo caracteriza-se ainda pela oralidade, por assegurar as garantias individuais, como o contraditório e a ampla defesa, pela publicidade dos atos, tendo em vista a não concentração una do processo, sendo assim, o juiz perde a condição de investigador da demanda judicial e assume uma função de árbitro da mesma.
Torna-se inegável garantir que o sistema processual vigente no país apresenta características singulares de cada mecanismo anteriormente apresentado, contudo, não se discute principalmente a possibilidade de total superação ou rompimento com o sistema inquisitivo. Parte da doutrina brasileira defende a ideia de que o sistema processual penal brasileiro pode ser definido como “(neo) inquisitorial”, considerando como um novo ou aperfeiçoado sistema inquisitivo, haja vista a insistência na gestão de prova destinado a figura do juiz[3].
Concomitantemente, discute-se o fato de que o desejo de garantir o respeito aos direitos fundamentais do ora acusado seja capaz de refletir o estado de impunidade tantas vezes elencado como plano de fundo para a implementação de medidas em discordância com princípios como da dignidade da pessoa humana, apresentando-se de forma clarividente ligação com o sistema inquisitivo (MORO; BOCHENEK, 2015).
Em suma, dado os pontos elencados por ambos os sistemas desenvolvidos, cada qual buscando garantir sua finalidade, parte da doutrina defende a existência de um sistema misto, detentor de características presentes nos dois sistemas anteriores. Observa-se o fato que, a figura do magistrado ainda apresenta função inquisitiva, tratando-se por exemplo a respeito das provas judicializadas, bem como, nota-se a busca da separação e autonomia das partes para a solução do dissídio, além do respeito as garantias individuais e coletivas, observando por exemplo a possibilidade do magistrado em decidir de forma contrária ao posicionamento do órgão acusatório, muita das vezes sendo o Ministério Público.
É relevante o entendimento de Winter (2018), referente ao tema, pois observa-se a incoerência da discussão a respeito da polarização entre os sistemas acusatório e inquisitório, por entender como superada ou até mesmo irrelevante, além do mais aperfeiçoar o sistema processual penal, tendo em vista que, apresenta-se de forma mais relevante ao invés de simplesmente tentar encontrar um termo capaz de defini-lo[4].
Paralelo a isto, se tratando da verdade no processo penal, inexiste na doutrina um consentimento a respeito da temática, nítido até uma comparação em relação a atuação do processo penal em paralelo ao processo civil. Observa-se a discussão a respeito da função de cada um em relação a busca da verdade. Em se tratando do processo penal, parte da doutrina leciona que o mesmo apresenta como finalidade o encontro da verdade material, real ou substancial, paralelo a isso, o processo civil destina-se a busca da verdade de forma instrumental, compactuando com esse entendimento partilha os autores Demercian e Maluly (2014)[5].
À luz do que tutela o Supremo Tribunal Federal a respeito da matéria, observa-se que em um julgado não tão distante, a figura do processo penal está intimamente amparada na apuração exaustiva e ampla dos fatos, a fim de lograr êxito na busca incessante da verdade real (BRASIL, 2003). De forma harmônica, o Superior Tribunal de Justiça, diante da colheita das provas testemunhais, requerida de ofício, a consonância com o entendimento da busca sobre a verdade real (BRASIL, 2011).
Com base no que leciona Lima (2016, p. 234), “a verdade absoluta é sempre inatingível pelo juiz, sempre teremos, de qualquer modo, uma mera verdade relativa”, diante disso, a discussão em momento algum deveria estar intimamente ligada sobre verdade material ou formal, bem como, o tema abordado anteriormente a respeito da definição processual, em se tratando de acusatório, inquisitório ou misto, toda e qualquer estudo doutrinário ou entendimento jurisprudência deveria destina-se ao (des)respeito para obtenção da verdade, a qual seria, o resultado conquistado após os trâmites processuais[6].
Diante das possibilidades atribuídas ao juiz em relação a solução da demanda, em contraponto com a busca da verdade, destaca-se uma missão audaciosa, haja vista que o magistrado, tentará através de atividades probatórias a reconstrução de um fato pretérito. Consequentemente, dotado do conhecimento de que possui tanto “poder”, o juiz afasta-se da capacidade arbitrária, pois aproxima-se diretamente com a causa penal em análise. Nota-se então um juiz inquisidor:
“O método cartesiano inspira a dogmática do processo penal no sentido de pensar a possibilidade de, a partir da fragmentação e do estudo microscópio do caso penal, recriar o fato passado, não mais passível de experimentação e alcançar a verdades. Assim, após decompor e estudar minunciosamente os elementos probatórios incorporados nos autos, a verdade seria atingida pelo juiz através da livre apreciação da prova (CARVALHO, 2013, p. 162).”
Ante ao entendimento de Salo de Carvalho (2013), o processo penal tornaria então um laboratório em que, todos os meios processuais, como os meios de prova e a realidade histórica, iriam se adequar a sentença final.
Segundo Tutela Lopes (2014, p. 590):
“Em suma, o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas produzidas em contraditório, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado. As partes buscam sua captura psíquica (para mantê-lo em crença), sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na sentença. Ou seja, o poder do juiz não precisa da verdade para se legitimar, até porque, sendo ela contingencial, caso a sentença não corresponda à verdade, o poder seria ilegítimo. E isso não ocorre, por quê? Porque a legitimidade da decisão é dada pela estrita observância do contraditório e das regras do devido processo penal ao longo do ritual judiciário, e não em nome de uma (pseudo) verdade nem sempre possível de ser obtida.”
A problemática não gira em torno da definição da verdade, caracterizando-a como material ou formal, destinando então a discussão a respeito da verdade em si, tendo em vista que, o processo destina-se ao convencimento do magistrado, o qual não é detentor de todo o conhecimento fático de cada caso, haja vista que, nem todos os elementos são carregados aos autos processuais.
Portanto, nota-se a importância do pensamento anteriormente exposto, em relação a observância do respeito as normas processuais vigentes, tendo em vista que, notadamente, torna-se inequívoca a busca de uma “verdade absoluta” em relação a algum fato, além do mais que, a verdade em si não funda o processo penal, consequentemente o processo não depende da mesma para torna-lo legitimo, bem como justifica-lo, além do que se a verdade propriamente dita a respeito de um fato não é alcançada na íntegra, a dúvida não deveria ser parâmetro para prosseguir um processo penal e buscar aplicação de uma medida punitiva.
Ao longo dos anos é evidente a evolução do Estado de Direto, o qual de forma efetiva eleva a outro nível o processo penal, que se tornou fielmente ligado a evolução da pena. Esta é uma sanção imposta pelo Estado, pelo seu poder jus puniendi, ou seja, o poder que o Estado tem de punir, uma manifestação da justiça aos cometedores dos delitos. Concomitantemente, o processo penal é uma conquista fundamental da humanidade, como efetivo instrumento para a proteção dos indivíduos contra os abusos do poder punitivo estatal. Portanto, é clarividente que o processo penal é um estágio de evolução da pena, o qual tenta neutralizar o monopólio dado ao Estado, seja o pode de perseguir e punir (LOPES, 2014).
De acordo com Aroca (1997), podem ser repartirdos em três o poder monopolista estatal, quais sejam: Exclusividade do Direito Penal; Exclusividade pelos Tribunais e Exclusividade Processual.
A exlusividade do Direito Penal está literalmente ligado ao fato de retirar dos cometedores dos delitos o poder de praticarem a autotutela, já a exclusividade dos tribuniais deve ser analisada juntamente com a exclusividade processual, pois os tribunais definem o delito e cominam a pena, porém, para isso ocorrer de forme eficaz e garantidora dos direitos do réu, obrigatoriamente observará o papel desempenhado pelo processo penal, que anteceda a imposição de qualquer punição.
Ante ao exposto, chega-se a um efetivo indagamento: qual seria a verdadeira função do processo penal?
Com os fatos demonstrados, clonclui-se que o processo penal é um verdadeiro instrumento a fim de aplicar uma pena justa e correspondente as garantias fundamentais do réu. Nestes termos, evidencia-se que o processo seria um meio para a obtenção de um fim coerente com o ordenamento jurídico vigente. Dinamarco (1990), pontua que, ao afirmar que o processo serve como um meio de tutela do indivíduo frente aos possíveis abusos ou desvio de poder dos agentes estatais: é o equilíbrio entre os valores poder do estado e liberdade do indivíduo.
É de caráter essencial destacar além da instrumentalidade do processo penal, a sua função garantista, como bem afirma Ferrajoli (1997), é possível extrair um imperativo básico: o Direito existe para tutelar os direitos fundamentais. Portanto, em um Estado Democrártico de Direito, a função jurisdicional não se limita meramente a aplicação de uma pena, mas sim com a preocupação constitucional, a qual fora instituída visando a proteção dos direitos e garantias dos indivíduos.
Entretanto, Goldschmit (1935) estabelece que esta necessidade de proteção dos indivíduos contra os abusos do poder estatal é uma “construção técnica artifical” que não merece prosperar, além do mais, o processo penal iria se resumir como uma trilha para a aplicação da pena. Paralelo a isso, não há questionamento quanto a função garantista que o processo penal oferece face ao monopólio estatal. Como já mencionado anteriormente, o processo serve como instrumento garantista dos direitos e garantias fundamentais, desempenhando um papel de barreira eficaz, vedando diretamente a possibilidade de supostos abusos do poder Estatal.
Ademais, Goldschmit (1986) aduz que os direitos fundamentais, caracterizam-se como ferramentas contra o Estado, sendo uma segurança constitucional individual em desfavor do poder Estatal. A quantidade de normas dispondo sobre o processo penal, é prova irrefutável de que o processo tem a finalidade primordial de garantir a plena eficácia dos direitos do réu enquanto estiver na fase processual.
Categoricamente aduz Lopes (2014, p. 1) revela, “é possível justificar que instrumentalidade e garantismo não são fundamentos antagônicos, senão que se complementam, de modo que da fusão de ambos encontramos o verdadeiro fundamento da existência do processo penal: a instrumentalidade garantista”. Com base no que fora apresentado, conclui-se que o processo penal não se apresenta apenas como instrumento para aplicação da pena, mais do mesmo modo, como garantidor dos direitos e garantias individuais, consequentemente este pode ser classificado como instrumentalista e garantidor de forma simultânea, por desempenhar as duas funções de forma conjunta.
De acordo com Goldschmit (1936), o processo deve ser encarado como um conjunto de atos processuais, os quais as partes devem “dialogar” entre si afim de tomada de decisão, apresenta que:
(...) quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis se convertem em expectativas, possibilidades e obrigações, e todo direito pode se aniquilar como consequência de não ter aproveitado uma ocasião ou descuidado de uma obrigação; como, pelo contrário, a guerra pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que não lhe corresponde (GOLDSCHMIT, 1936, p. 49).
Portanto, Goldschmit encara o processo baseado na epistemologia da incerteza, ou seja, o analisa como uma guerra, a qual não existe segurança e estática durante a relação processual. Diante disso, o processo seria de fato uma situação jurídica, onde os diversos atos realizados durante a relação processual vão gerando chances aos “jogadores”, a qual vencerá quem melhor aproveitá-las.
Quanto ao fato do processo penal não ser estático, quer dizer que ele está sempre em movimento, o que enseja de forma direta expectativas, chances, cargas e liberação de cargas (LOPES; SILVA, 2009). Com isso, a busca por uma sentença favorável poderá se efetivar de fato para quem melhor aproveitar as chances oferecidas durante este movimento processual.
Contudo, como aduz Calamandrei (1999) para poder aproveitar as chances que irão surgir, os participantes deverão saber em sua totalidade como funcionam as regras do jogo. O ponto ao qual se deseja chegar nesse momento é o fato de que, para se desfrutar da justiça não é necessário somente que se tenha o direito, mas, que, além de tudo saiba jogar o jogo e se apresentar extremante maleável durante o processo. Diante disso, evidencia-se uma insegurança jurídica a respeito do resultado final, onde nenhuma das partes sabe qual será o resultado de sentença.
Além do mais, afirma o autor que esta decisão favorável não irá depender somente das partes da relação processual, mas também da figura do juiz, que tem função essencial nesse jogo da epistemologia da incerteza. Portanto, os polos do processo devem aproveitar todas as chances possíveis para que desta forma consigam convencer o juiz, árbitro, sobre seus respectivos direitos. Transcrevendo Calamandrei (1999, p. 223): “O êxito depende, por conseguinte, da interferência destas psicologias individuais e da força de convicção com que as razões feitas pelo demandante consigam fazer suscitar ressonâncias e simpatias na consciência do julgador”. Situação, em que o juiz deverá decidir com base nas provas apresentadas, ou seja, não deverá tomar decisões baseadas em seu foro íntimo.
É evidente que o processo ainda é visto como algo seguro, todavia, é de extrema urgência deixar de lado tal pensamento, e encarar o processo como uma verdadeira relação jurídica de incerteza, além de encará-lo com toda sua dinamicidade, perigos e incertezas.
Portanto, a busca das garantias fundamentais que em meio a epistemologia da incerteza, o processo como um jogo e uma guerra, foram diretamente comprometidos. É necessário efetivar que a procura é por um devido processo legal juntamente com suas garantias constitucionais. Deve-se encarar a realidade de frente, deixando de lado a ingênua crença na bondade dos bons, isto fará com que “se duvide da bondade (do juiz, do promotor e do próprio ritual), e que se questione a própria legitimidade do poder” (LOPES; SILVA, 2009).
Diante dos fatos mencionados, pode-se concluir que a epistemologia da incerteza é uma atual característica do processo penal, o qual diante do que fora elencado pode ser visto como um jogo/guerra, que vencerá aquele que melhor aproveitar as chances que surgirem diante da dinamicidade que apresenta. Contudo, é algo que deve ser integralmente mudado, para que desta forma se tenha um mínimo possível de garantias constitucionais, uma consequente segurança jurídica quanto ao resultado que se espera.
Diante do cenário de insegurança jurídica em que nos encontramos é de extrema importância o questionamento acerca da origem do princípio da presunção de inocência e qual sua importância nos dias atuais. Tal princípio tem como base a época em que a Europa vivia tempos de revolução, período em que os juristas se dedicaram em fazer estudos em relação a temática.
Posteriormente, incluiu-se na Declaração do Homem e do Cidadão (1789), em seu art. 9°, o qual revelava que, todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei. Contudo, a ideia principal é entender o contexto social que levou o surgimento do princípio em questão. Este tem como sustentação a extinção de qualquer arbitrariedade existente no processo penal, tendo em vista que antes do seu surgimento, o processo penal era usado pelos soberanos com objetivo de obter do réu uma confissão forçada.
Com isso, é evidente que tal princípio é um dos alicerces do processo penal, o qual prevê que inexistindo a comprovação da autoria do imputado, ou seja, na presença da dúvida, esta deverá ser avocada em favor do acusado, prosperando a presunção de inocência. Consequentemente, tem como função essencial garantir a proteção do indivíduo com relação ao poder de punir dado ao Estado.
Elencado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (1988), “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, bem como, no artigo 11 da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. Observa-se que a finalidade de especificar nessas legislações é demonstrar a necessidade e relevância da temática, buscando o respeito a essa prerrogativa em todos os processos que obedeçam às legislações mencionadas, tornando-se como indiscutíveis a validade e admissibilidade dessa garantia.
Vejamos o artigo 386, inciso “IV” do Código de Processo Penal (1941), o qual aduz expressamente tal princípio, “O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência”.
Senão vejamos, a descrição realizada por Lima (2017, p. 478):
(...) na dúvida, a decisão tem de favorecer o imputado, pois não tem ele a obrigação de provar que não praticou o delito. Antes, cabe à parte acusadora (Ministério Público ou querelante) afastar a presunção de não culpabilidade que recai sobre o imputado, provocando além de uma dúvida razoável que o acusado praticou a conduta delituosa cuja prática lhe é atribuída.
or conseguinte, o réu deverá ser presumido inocente, até a existência da comprovação a respeito da sua culpabilidade, bem como o trânsito em julgado da ação condenatória, como assevera o artigo 5°, LVII da Constituição Federal (1988). Já que os princípios da Presunção de Inocência e o In dubio pro reo, são verdadeiras normas instituídas pelo legislador como alicerce no ordenamento jurídico vigente.
Em acordo com a legislação, a título de exemplificação, observa-se o voto do ministro Celso de Mello, quanto ao julgamento da AP 858/DF (2014):
A absoluta insuficiência da prova penal existente nos autos não pode legitimar a formulação de um juízo de certeza quanto à culpabilidade do réu. Na realidade, em nosso sistema jurídico, como ninguém o desconhece, a situação de dúvida razoável só pode beneficiar o réu, jamais prejudicá-lo, pois esse é um princípio básico que deve sempre prevalecer nos modelos constitucionais que consagram o Estado democrático de Direito. O exame dos elementos constantes destes autos evidencia que o Ministério Público deixou de produzir prova penal lícita que corroborasse o conteúdo da imputação penal deduzida contra o réu, não sendo capaz de cumprir, por isso mesmo, a norma inscrita no art. 156, “caput”, do CPP, que atribui ao órgão estatal da acusação penal o encargo de provar, para além de qualquer dúvida razoável, a autoria e a materialidade do fato delituoso. Como sabemos, nenhuma acusação penal se presume provada.
É nítido sua defesa quando a matéria da dúvida em relação ao acusado, além de corroborar que a função do ônus da prova (responsável para sustentar uma afirmação ou conceito) destina-se ao órgão ou a quem tenha proferido acusação, de forma que, não sendo devidamente comprovada, acarretará na impossibilidade de prejudicar o réu. Por fim, destaca-se ainda a confirmação do princípio como sustentação básica do ordenamento atual.
O texto constitucional garante que qualquer indivíduo não será destinado uma imputação de culpa pelo simples fato da existência de uma denúncia, devendo, necessariamente para acarretar na culpa de alguém ser respeitado toda a realização processual. Ademais, observa-se que o texto constitucional (1988) reza, ainda em seu art. 5º inciso LV que “todos os litigantes em processos, bem como os acusados em geral são assegurados ao contraditório e a ampla defesa”.
Corroborando com esse dispositivo, segue o entendimento de Nicollit (2010) acerca do tratamento dado as pessoas durante o processo penal: “Embora recaiam sobre o imputado suspeitas de prática criminosa, no curso do processo deve ele ser tratado como inocente, não podendo vê-se diminuído social, moral nem fisicamente diante de outros cidadãos não sujeitos a um processo”. Dadas as legislações pertinentes ao tema, como as defesas teóricas em consonância com a lei, o réu deverá ser visto e tratado pelo Estado como inocente, bem como pela sociedade.
Portanto, para uma devida condenação do indivíduo, e por conseguinte uma proteção frente ao Estado, não deverá existir qualquer objeção quanto a culpabilidade da parte ré. Logo, a colocação da dúvida perante a realização do processo leva ao julgador, além das partes, a busca incessante pela realidade fática.
Da forma como fora abortado o tema com as apresentações dos dispositivos legais, assim como dos doutrinadores, torna-se de forma incontestável que a presunção de inocência, como também, o princípio do in dubio pro reo, foram elencados na legislação visando a redução das medidas penais de forma abusiva por parte do Estado, embasados em uma preponderância histórica, a qual desencadeou inúmeras circunstâncias humanamente desleais, isto posto, qualquer decisão em desacordo com esse arcabouço iria totalmente de encontro com o que garante o ordenamento jurídico vigente.
É indiscutível que mesmo havendo institutos constitucionais acerca de uma matéria, sendo essa in dubio pro reo, não é capaz de garantir o êxito da presunção de inocência no processo penal brasileiro. Com isso, necessário se faz a implementação de outros parâmetros jurídicos a fim de buscar-se uma maior assertividade nas decisões.
Ante ao exposto, inobstante se observa que, os standards probatórios desempenham tal função, caracterizando como mecanismo norteadores de critérios e/ou diretrizes, os quais possibilitam auxiliar o julgador em relação a assertividade de obter a prova de um fato, ou seja, além de ratificar a pretensão punitiva ocorre a justificação por meio deste instituto. São oriundos da tradição do direito anglo-americano, aplicável nas esferas cíveis e penais.
Com efeito, assevera-se a ausência desse auxiliador, bem como de um similar, na legislação brasileira ao que tange o processo penal, reforçando com isso o pressuposto de que o magistrado se encontra carente de um procedimento comprobatório, figurando como refém de sua convicção moral para proferir a decisão.
Concomitantemente, como explanado pelo estudo, a presunção de inocência e seus princípios norteadores como in dubio pro reo, apresentam-se vulneráveis de acordo com as reintegradas atuações dos magistérios, do mesmo modo, se encontra a função garantista do processo penal. Nesse cenário, é indiscutível a necessidade de uma tutela suficiente para as lacunas anteriormente elencadas.
Torna-se fundamental elencar que os standards probatórios não se confundem com o princípio in dubio pro reo, eis que tal método não apresenta a capacidade de oferecer ao acusado solidez exigida para suportar uma condenação. Pela alusão desenvolvida, em relação a dúvida em face a condenação de um indivíduo não permite a extração suficiente consistência probatória para condená-lo do que absolvê-lo. Observando nas situações em que o magistrado não detém da dúvida, entretanto, tenha convicção da culpa do acusado, inexiste preceito capaz de auferir a veracidade deste convencimento, de forma que o entendimento formulado esteja intimamente ligado com a subjetividade.
Nesse cenário, é coerente a sustentação de que a falta de uma previsão em relação aos standards mais rigorosos parar legitimar as decisões em si, abre um leque de possibilidades das existências de decisões fundadas em aspectos escassos, deixando o julgador livre para a interpretação a respeito do nível elevado de prova para uma decisão. Desse modo, a definição encontra abarcada tanto pela subjetividade da concepção do juiz, como sua moral, de forma que não obedeça a qualquer método válido de raciocínio.
Com base nos entendimentos abordados, um standard, além de solidificar a decisão de acatar a aplicação do jus puniendi por parte do Estado, deverá ter uma compreensão racional no ato proferido pelo magistrado. Corroborando com essa tese, observam-se as palavras de Roberts e Zuckerman (2010, p.258), em que o standard criminal atua como procedimento para o raciocínio acerca da prova.
Com esse panorama, necessita-se da atuação ativa por parte estatal a fim de normatizar os posicionamentos dos standards, apresentando uma lógica de tolerância dos erros, havendo a ponderação de absolvições indevidas em meio a uma condenação de um inocente. Bem como, capaz de delinear a triagem comprobatória, cabendo portando, a definição legal, afastando-se da convicção de cada juiz, buscando um padrão desejado.
Destarte, aduz Beltrán (2007, p. 147) acerca da temática[7]:
1. A hipótese deve ser capaz de explicar os dados disponíveis, integrando-os de forma coerente, e as previsões de novos dados que a hipótese permita formular devem ter sido confirmadas. 2. Devem ter sido refutadas todas as demais hipóteses plausíveis capazes de explicar os mesmos dados que sejam compatíveis com a inocência do acusado, excluídas as meras hipóteses ad hoc.
O magistrado dotado apenas da presunção da inocência apresenta-se diretamente interligado com o pressuposto de inocência do indivíduo, devendo formular sua atuação diante da valoração da prova, a fim de diagnosticar uma explicação mais coerente para uma das hipóteses. Com a presença dos standards não se resumirá na hipótese de maior grau de confirmação dos elementos probatórios, devendo necessariamente o distanciamento da dúvida razoável em relação ao acusado.
Evidentemente, com base no que fora explanado, a fim de alcançar uma maior efetividade da garantia da presunção do indivíduo, instituto taxado na Carta Maior do ordenamento jurídico, depende da previsão de um standard probatório eficaz, possibilitando ao julgador um auxílio, de forma a constatar ideia, evitando assim decisões infundadas, bem como, o distanciamento de um juízo refém do ânimo de quem está desempenhando o papel de julgador, consequentemente a aproximação de um padrão certo e determinado de constatação, desempenhada através da atuação dos standards, possibilitando ainda o aprimoramento das decisões.
Observa-se o desenvolvimento do mecanismo elencado, qual seja, o panprincipiologismo, quando há criação de normativos com ausência de normatividade, na maioria das vezes buscando fundamentar decisões ou até mesmo caracterizando como um instrumento utilizado para deturpar a aplicação de normativas já existentes.
No estudo destinou-se a abordagem da criação e atuação do princípio do in dubio pro societate, onde, havendo dúvida quanto a autoria de um fato, o juiz embasado nesse fundamento pronunciará o acusado para julgamento em fase plenária – Tribunal do Júri – órgão competente para o julgamento de crimes contra a vida, dando assim prosseguimento a ação penal mesmo com a existência da dúvida. Paralelo a isso, torna-se indiscutível a aplicação deste mecanismo quanto a materialidade do fato, pois o convencimento do magistrado deve ser absoluto quanto ao aspecto do acontecimento do delito.
Ademais, sua aplicação pode ser observada em dois momentos, no primeiro refere-se no ato do magistrado ao receber a denúncia e o segundo caracteriza-se na decisão de pronúncia. O estudo, destina a análise crítica da aplicação desse princípio no segundo momento apresentado.
A doutrina majoritária tutela que a pronúncia do acusado para o julgamento no Tribunal do Júri não necessita a existência de prova consubstancial em face a autoria do delito, uma vez que nessa fase processual, o simples fato de haver indícios de autoria e a materialidade comprovada do delito seria coerente a aplicação de tal princípio, com o fundamento de que sua atuação estaria em harmonia com o ordenamento tendo em vista que o acusado seria exposto a um novo cenário de julgamento, respeitando assim a presunção de inocência.
Destaca-se nesse ponto um entendimento ao qual tutela essa aplicação, proferido por Ministra Laurita Vaz (2018), existindo defesa da atuação desse princípio com base no argumento de ir ao encontro da usurpação de competência, ou seja, tendo em vista que, a Constituição Federal da Republica destinou competência ao Tribunal do Júri aos crimes contra a vida, esse raciocínio aduz que a destinação do julgamento a um órgão distinto ou o prosseguimento da ação penal não irá ferir o ordenamento jurídico mesmo havendo dúvida.
A etapa atinente à pronúncia é regida pelo princípio in dubio pro societate e, por via de consequência, estando presentes indícios de materialidade e autoria do delito - no caso, homicídio tentado - o feito deve ser submetido ao Tribunal do Júri, sob pena de usurpação de competência (BRASIL, 2018).
Concomitantemente, em desacordo com esse entendimento acima proferido, observa a compreensão a respeito da matéria pelo Ministro Gilmar Mendes (2019), veja-se:
Para a pronúncia, não se exige uma certeza além da dúvida razoável, necessária para a condenação. Contudo, a submissão de um acusado ao julgamento pelo Tribunal do Júri pressupõe a existência de um lastro probatório consistente no sentido da tese acusatória. Ou seja, requer-se um standard probatório um pouco inferior, mas ainda assim dependente de uma preponderância de provas incriminatórias.
Ante ao exposto, nota-se que existe uma demasiada crítica a respeito da aplicação do princípio in dubio pro societate na decisão de pronúncia, haja visto que tal instituto não encontra amparo constitucional ou até mesmo legal, além de acarretar divergências em relação as premissas acerca da valoração da prova. Simultaneamente a este contexto, esse princípio desvirtua do procedimento bifásico do Tribunal do Júri, asseverando que não deve prosperar tendo em vista sua omissão legal, bem como a existência expressa da presunção de inocência pela Carta Magna, fazendo-se necessário a atuação do in dubio pro reo, antagônico ao princípio anteriormente abordado.
Em face do conteúdo discutido acerca do in dubio pro societate, é evidente que tal princípio estar em total desacordo com o atual Estado de Direito, sendo que, por tal motivo este não poderá interferir em nenhuma condenação. Simultaneamente, sua aplicação além de traduzir uma discordância com a legislação vigente, poderá acarretar em consequências drásticas, de início para o acusado do processo e posteriormente para toda a sociedade.
Elenca-se o pensamento de Neto (1999, p. 83) acerca do tema:
Na dúvida, arquiva-se, tranca-se a Ação Penal ou absolve-se (in dubio pro reo), e nunca se processa, pronuncia-se ou condena-se (in dubio pro societate). As garantias individuais são direitos concretos que prevalecem ante as abstrações (in dubio pro societate), estas servem ao direito autoritário, aos regimes antidemocráticos ou aos governos ditatoriais. Não se pode permitir que nos regimes democráticos as abstrações ‘em nome da sociedade’ venham destruir o sistema jurídico humanitário positivo, para dar lugar a um odioso direito repressivo, onde o Estado condena e acusa sem provas concretas.
Na história jurídica brasileira, são incontáveis os números de pessoas que foram julgadas injustamente, pelo simples fato de não haver a absolvição nos casos em que era evidente a falta de materialidade do crime, e que por consequência tiveram que passar todas suas vidas com marcas desse erro. Um grande exemplo de tais circunstâncias é o caso dos irmãos naves, observa-se trecho da decisão de pronúncia:
A decisão de pronúncia, de 21 de março de 1938, aponta: O crime de que se ocupa esse processo é da espécie daqueles que exigem do julgador inteligência aguda, atenção permanente, cuidado extraordinário no exame das provas, pois, no Juízo Penal, onde estão em perigo à honra e liberdade alheias, deve o julgador preocupar-se com a possibilidade de um tremendo erro judiciário. (...) No caso em apreço, em que o cadáver da vítima não apareceu, como não apareceu também o dinheiro furtado, a prova gira em quase que exclusivamente em torno das confissões prestadas pelos indiciados à autoridade policial, sendo notar que o patrono dos acusados, nas razões de fls. 143, informa ao juiz que tais confissões foram extorquidas e são produto da truculência, dos maus tratos e da desumanidade de que fez uso e abuso o delegado nas investigações primárias do delito (SILVA, 2010).
Diante disso, é indubitável que o juiz togado, em caso de dúvidas opte em delegar tal decisão a um juízo de leigos, qual seja, o conselho de sentença do tribunal do júri, com argumento de que é apenas um juízo de admissibilidade e que a ele não cabe analisar o mérito. Portanto, o fato de optar pela impronúncia não estaria tirando a competência do colegiado, mas sim compreendendo que é garantia constitucional o benefício da dúvida, além do mais delegar a função de julgamento a leigos diante de um cenário em que se predomina a dúvida seria uma total injustiça.
Compreende ainda, no mesmo sentindo, Tourinho Filho (2008) que, para a pronúncia, é essencial a existência de existir indícios inequívocos, não sendo suficiente uma simples suspeita. Nessa fase, é competência exclusiva do juiz, e somente a ele, a atribuição de apontar os indícios suficientes do crime. Assim, “se ele entender que os indícios não o convenceram, a impronúncia é de rigor”.
Portanto, ante ao exposto, é clarividente que processo penal liberal tem como base o princípio da presunção de inocência, diante disso seria impossível encaixar um brocardo como o in dubio pro societate, que contradiz em sua totalidade as garantias aduzidas pelo texto constitucional, consequentemente, seria um aforismo o uso de tal princípio para justificar a decisão de pronúncia, o julgador deverá se abster desse princípio e atuar de forma harmônica a legislação constitucional, respeitando-a. Ademais, evidente se torna, que a pronúncia além de um juízo de admissibilidade, apresenta outra fundamental função, qual seja, a real garantia do processo penal.
Diante do exposto durante todo o estudo, é indiscutível que o princípio in dubio pro societate figura como um obstáculo no que se refere a liberdade dos indiciados, já que este funciona como uma “barreira” que impede diretamente que o acusado tenha a oportunidade de receber um processo penal garantista. Além do mais, é totalmente divergente com o atual Estado Democrático de Direito que perdura no Brasil, o qual tem como objetivo primordial o respeito das liberdades civis, o que consequentemente leva a busca incessante pelas garantias fundamentais, ou seja, uma proteção jurídica.
A aplicação do brocardo in dubio pro societate fora analisada especificamente durante a decisão de pronúncia, é certo que o tribunal do júri é um rito utilizado quando tem-se a existência de crime contra a vida, ou seja, um crime mais gravoso, com penas mais elevadas, por este motivo é que faz-se necessário aprofundar a análise de todas as provas dispostas, tendo em vista que, uma simples dúvida poderá causar danos irreparáveis a figura do indiciado, bem como de sua família.
Além do mais, é essencial destacar que tal aforismo jurídico afronta diretamente o princípio do in dubio pro reo, elencado expressamente na Carta Maior do ordenamento jurídico brasileiro, contudo, como fora discutido durante o presente estudo, ele sozinho não é capaz de garantir um processo penal garantista à figura do acusado, devendo, portanto, juntar-se a outros parâmetros com a finalidade de existir uma segurança maior nas decisões judiciais. Evidentemente, o in dubio pro societate se resume a mais um panprincipiologismo, já que é utilizado erroneamente pelos operadores do direito para fundamentar decisões que podem acarretar drásticas consequências a seus receptores.
Por isso tudo, chega-se a efetiva conclusão da importância da aplicação dos direitos e garantias dispostos nas legislações vigentes, com o único fim de um processo penal garantista para o réu, já que é essencial não ter dúvidas quanto a decisão que fora tomada, pois esta poderá implicar em consequências irreversíveis na vida do indiciado, bem como, atuação em harmonia com o que é garantido pela Constituição Federal.
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[1] Graduanda de Bacharel em Direito, pelo Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: [email protected].
[2] Mestre em Direito, pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected].
[3] LOPES. J. A. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
[4] Autora defende a discussão acerca do respeito das garantias processuais, quais sejam: “1) como funciona a divisão entre as funções de investigar, acusar e julgar; 2) como se equilibram os poderes de cada uma das partes que intervêm no processo penal; 3) a quem é atribuída a responsabilidade de decidir sobre o início da investigação e, sendo o caso, da abertura da instrução processual; ou 4) como são canalizadas e controladas as soluções negociadas ou de consenso no processo penal; 5) como se cumprem as garantias de defesa do acusado, dentro de um marco de proteção à vítima.”
[5] “No processo civil vige o princípio da verdade formal, no qual o juiz se satisfaz com as alegações deduzidas pelas partes, máxime porque, em regra, elas, as partes, podem dispor da ação de acordo com seus interesses. O magistrado, portanto, deverá quedar-se inerte, por exemplo, diante da negligência de uma ou ambas as partes, julgando antecipadamente a lide. Ressalve-se, contudo, aquelas ações que cuidam de direitos indisponíveis, em que o tratamento a ser dispensado é bastante diverso. Na Justiça Penal, ao reverso, o juiz não é mero espectador das provas produzidas pelas partes. Tem o dever de investigar a fundo a realidade do fato. Tão largo é o alcance desse princípio que até mesmo a confissão, no processo penal, tem valor relativo (art. 197) e deve ser valorada de acordo com as demais provas coligidas, enquanto, no processo civil, esse mesmo ato, quando não se cuidar de direitos indisponíveis, tem importância definitiva e absoluta (art. 351, CPC), autorizado, desde logo, o julgamento da lide”.
[6] “Portanto, trata-se de formas diversas, em graus e limites diversos, para se atingir a verdade, mas como a verdade absoluta é sempre inatingível pelo juiz, sempre teremos, de qualquer modo, uma merda verdade relativa. A dicotomia entre verdade real ou material e formal, também não é útil, por este motivo, para distinguir o processo acusatório do inquisitório”.
[7] FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoración... cit., p. 147. Por hipóteses ad-hoc o autor se refere às estratégias probatórias que se configuram a posteriori, as quais normalmente são insuscetíveis de contrastação porque insensíveis à experiência. Beltrán exemplifica com a hipótese de complô contra o acusado, argumento genérico que pode ser utilizado para rebater todo o tipo de prova apresentada pela acusação. (p. 149).
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Gustavo Nahmias Vaz. “In dubio pro reo” e “in dubio pro societate”: análise dos institutos na decisão de pronúncia à luz do ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 maio 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54541/in-dubio-pro-reo-e-in-dubio-pro-societate-anlise-dos-institutos-na-deciso-de-pronncia-luz-do-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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