ISABELLA MARIA CARVALHO PORTELA SILVA [1]
(coautora)
GUSTAVO LUÍS MENDES TUPINAMBÁ RODRIGUES [2]
(orientador)
RESUMO: O presente artigo tem como escopo analisar se há ou não violação ao princípio constitucional da presunção de inocência quando ao réu, ao alegar ter agido em legítima defesa, é imputado o dever de provar tal circunstância. Inegavelmente, é cediço que o processo penal é um instrumento de efetivação das garantias constitucionais, que o ônus da prova no processo penal é inteiramente da acusação e que caso pairar dúvida sobre autoria ou materialidade deverá ser interpretado em favor do réu. O trabalho foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica com abordagem dedutiva visando a coleta de informações necessárias à reflexão e construção textual. Dessa maneira, foram conceituados e analisados os institutos da presunção de inocência, legítima defesa e ônus da prova todos sob a óptica dos direitos e garantias fundamentais com vistas a mostrar que sendo presumidamente inocente o réu não deverá provar ter agido sob o manto de excludente de legítima defesa. Ademais, foram coletados e discutidos dados de jurisprudência que evidenciaram que a presunção de inocência vem sendo violada constantemente e que há uma errônea distribuição do ônus da prova, gerando um crescente senso de injustiça e desrespeito ao que preceitua a constituição federal.
Palavras-chave: Processo Penal, Instrumentalidade Constitucional, Ônus da Prova, Legítima Defesa, Garantismo Penal.
Sumário: 1 Introdução. 2 Presunção de Inocência versus Ônus da Prova. 2.1 Instrumentalidade Constitucional do Processo. 2.2 O Processo Penal como Situação Jurídica. 2.3 Carga Probatória no Processo Penal. 3 Análise do Instituto da Legítima Defesa. 3.1 Legítima Defesa em Confronto com o Ônus da Prova. 4 Posicionamento dos Tribunais. 4.1 Posição Majoritária. 4.2 Posição Minoritária. 4.3 Eficácia do Instituto da Legítima Defesa. 5 Conclusão. 6 Referências
O presente trabalho traz à reflexão o processo penal e sua relação com os direitos e garantias fundamentais, no tocante mais precisamente a presunção de inocência, ônus da prova e legítima defesa. Um dos princípios mais relevantes em matéria penal trazido por nossa carta magna de 1988 é o da presunção de inocência, que preconiza que ninguém será considerado culpado de algum delito antes que transite em julgado a sentença penal condenatória. Nessa vereda, o código de processo penal ao consagrar o sistema acusatório, determina que todo o ônus da prova está concentrado nas mãos da acusação, uma vez que, presumidamente inocente nada há que provar o réu. Em sendo assim, a acusação deverá provar autoria e materialidade, ou seja, a existência de um delito (fato típico, ilícito e culpável). Ocorre que, mesmo sendo cristalino que a acusação deve provar a existência de um ilícito diversas decisões cometem erro crasso ao fazerem manifesta inversão do ônus da prova, no sentido de que o réu seja compelido a provar a existência de legítima defesa, causa excludente de ilicitude e, portanto, provarem sua inocência, o que viola frontalmente a constituição federal de 1988 (MOMOLI; ULGUIM, 2014).
No segundo capítulo do presente artigo mostrará o porquê da importância de se olhar o processo penal sob a óptica constitucional, a relevância de não o trata-lo como o processo civil, visto que, deve em âmbito processo penal não há relação jurídica e sim uma situação jurídica do qual brotam chances, o que traduz o direito (não dever) do réu produzir provas e obter a perspectiva de uma sentença favorável. Por seu turno, o terceiro capítulo traz o conceito, as características, os requisitos e qual o sentido normativo do instituto da legítima defesa onde veremos que consiste em uma permissão dada pelo Estado a alguém injustamente agredido, defender seu bem mais precioso, a vida.
Por derradeiro o quarto capítulo explorará a seara jurisprudencial, mostrando que o que ocorre corriqueira e majoritariamente nos fóruns brasileiros é um processo penal punitivista enraizado em um sistema inquisitório, que a contrário senso consagra uma deturpada presunção de culpa e que não raras são as decisões fundamentadas na falta de provas da tese defensiva, o que muitos destes órgãos julgadores não se atentam é que que as garantias fundamentais são o corolário do devido processo legal. Se não há uma efetiva observância as garantias constitucionais não se faz presente o devido processo legal e um processo sem respeito à legalidade muito provavelmente recairá em discricionariedade, em subjetivismos e se distancia do ideal de justiça.
Face à pranteada inconstitucionalidade, fez-se necessário discutir, analisar e revisar o porquê do referido princípio estar sendo mitigado, relativizado em sentenças, acórdãos em nosso país, haja vista, que o processo penal não guarda respeito apenas à constituição federal mas também a tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos do qual o Brasil é signatário, ou seja, deverá ser pautado em uma dupla conformidade, uma visão sob a óptica da constitucionalidade e outra sob a convencionalidade.
O processo é o meio pelo qual o Direito se efetiva e deve ter como principal fonte de seu desenrolar célere e justo a Constituição Federal, a Carta Magna de 1988. Ao se pensar a seara Processual Penal surge o questionamento sobre qual sua serventia e para que precisamos dele. Ao tentar definir a aplicabilidade do Processo Penal, juristas de todo Brasil defendem posicionamentos diferentes, no entanto, se o parâmetro-mor for a Constituição, ou seja, o diploma legal do qual todos os outros retiram seu fundamento de existência, tal definição começa a emergir, eis o que se denomina de “processo penal garantista”. Ao seguir essa linha de pensamento, tem-se a denominada “instrumentalidade constitucional”, pois tal ramo do Direito deve ser entendido como a garantia que as partes possuem de que o processo penal será justo e constitucional e, sendo assim, servirá como um instrumento de proteção as garantias fundamentais do réu, primando pela defesa deste frente aos arbítrios do poder estatal.
O que deve ficar cristalino na mente de todos os que estão envoltos em um processo penal, desde a sua pré-existência na fase de inquérito policial até a fase decisória, é que somente um processo com o intuito de concretizar todas as garantias fundamentais, sobretudo do débil, consegue minimizar a discricionariedade latente em âmbito processual penal, pode ser tido como justo, afinal esta palavra polissêmica é o que todos buscam ao estar diante de um processo.
Importante salientar, que estamos perante a privação, cerceamento da liberdade de alguém, a qual é um dos direitos mais importantes inerentes à pessoa humana. Dessa forma, o denominado garantismo não deve se confundir com o mero legalismo, formalismo ou processualismo, mas sim uma efetiva prevenção a qualquer ato que viole o status de inocência do débil antes de aferida tal presunção, uma vez que, subsiste até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Outro aspecto que merece ser evidenciado no que tange a instrumentalidade constitucional no processo penal é que à defesa assiste o direito de contradizer hipóteses e provas, e não um dever propriamente dito (FERRAJOLI, 2006), vez que no processo penal não há distribuição de cargas probatórias estando estas, por sua vez, inteiramente sob responsabilidade do acusador. Por essa razão, o dever de elucidar hipóteses e produzir provas está nas mãos da acusação, que se personifica pela figura do querelante ou do promotor, isto é, ação penal privada e pública respectivamente.
Na prática forense percebe-se tal erro de forma absurda, são inúmeras decisões entre acórdãos e sentenças distribuindo o ônus da prova. Algumas chegam a cometer erro mais crasso ainda, ao fundamentar a condenação do réu na falta de provas, ora, como se o réu presumidamente inocente tivesse que provar não ser ele o autor do delito ou ter agido abarcado por uma excludente de ilicitude. Assim, não há que se falar em falta de provas da tese defensiva, pois como já falado anteriormente o réu está abarcado por uma garantia constitucional que o exime do dever de produzir provas.
A ironia reside no fato de se fazer uma fase de instrução tal qual o Processo Civil, ou seja, aplica-se ao Processo Penal distribuição do ônus da prova equivalente ao disposto pelo Código de Processo Civil, de tal modo que o ônus de provar as alegações referentes ao fato constitutivo da pretensão punitiva é de quem acusa e as referentes a fatos impeditivos ou extintivos devem ser provados pelo acusado. Porém, o mais acertado seria não haver inversão desse ônus no momento que o réu alegasse excludentes de ilicitude ou de culpabilidade.
Convém pôr em relevo, que no atual cenário da sistemática processualista penal, temos uma errônea valoração normativa de leis ordinárias em detrimento da lei máxima vigente no país que é a Constituição Federal, sendo que a esse fenômeno dá-se o nome de crise das fontes. Partindo desse entendimento, vê-se como o mais acertado que caso o Código de Processo Penal, ao disciplinar, por exemplo, sobre carga probatória, deixe lacunas que podem prejudicar as garantias do imputado, automaticamente, deve-se recorrer a Carta Magna, por ser este diploma legal a base de todo ordenamento jurídico brasileiro.
Outro ponto que merece igualmente destaque é a distinção entre impunidade e respeito às garantias constitucionais, ou seja, as regras do jogo, responsáveis pelo cumprimento do devido processo legal, vez que o processo penal garantista visa o real cumprimento dos direitos pertencentes a todos os indivíduos, e não os eximir de qualquer responsabilidade. Tais garantias desempenham um papel limitador do poder punitivo do Estado, tendo em vista que não possuindo limites recairia em uma mera discricionariedade. Confirmando esse entendimento está o posicionamento do autor Lopes Jr (2018), o qual ao considerar que o processo é um caminho, uma sequência de atos, defende que durante todo este percurso devem ser rigorosamente observadas as regras do devido processo legal, ou seja, as garantias constitucionais.
A partir disso reforça-se a relevância da Constituição Federal de 1988 para com a garantia do cumprimento do devido processo legal, posto que anteriormente à atual Carta tínhamos uma legislação que fazia completamente o inverso, sendo o imputado considerado presumidamente culpado e presumidamente perigoso. A mudança com o atual texto constitucional foi extrema, tendo o processo a partir de tal ponto passado a ser um instrumento a serviço do débil (imputado) e não mais um mero aplicador, ou mero caminho para se chegar até a aplicação de uma sanção. Este devido processo constitucional deve concretizar uma igualdade efetiva entre as partes, haja vista que durante a persecução criminal há uma desigualdade material dada a carga do Estado de exercer funções investigatórias e acusatórias.
O processo penal deve ser enxergado como um complexo conjunto de situações jurídicas, conjunto este formado por uma sucessão de atos, sendo que em cada ato existem situações jurídicas. De cada situação jurídica nascem chances de produzir provas, sejam elas documentais, testemunhais ou até mesmo chance de se manifestar no processo e esclarecer pontos obscuros, que caso sejam bem aproveitadas podem levar ao convencimento ou captura psíquica do juiz.
Importante frisar que caso o imputado aproveite bem tais chances se libertará de cargas e, que a liberação ou não dessas cargas é o que define a perspectiva do resultado da sentença, ou seja, se favorável ou desfavorável, fato este que traduz o abandono da equivocada ideia de segurança jurídica dentro da sistemática do processo penal ao considerar que a segurança se estabelece conforme a dinâmica de liberação de cargas e o respeito as regras do jogo.
Essa inserção do processo na ideia da epistemologia da incerteza surge a partir do posicionamento do jurista alemão James Paul Goldschmidt em seu livro Prozess als Rechtslage, publicado em 1925. Além disso, convém ressaltar que embora ambas as partes possam se libertar das cargas probatórias, estamos diante de perspectivas, uma vez que ao réu não incumbe o ônus de provar nada. (LOPES JR; DA SILVA, 2009).
Em consonância com essa percepção está o posicionamento de Mirabete (2001) ao entender que, conforme assegura o Princípio da Presunção de Inocência, o réu não tem a obrigação de provar sua inocência, pois cabe ao órgão acusador comprovar a culpabilidade do débil. Além disso, para condenar o réu o Magistrado não poderá ter qualquer dúvida de que aquele é o responsável pelo delito, uma vez que para que haja a absolvição basta a dúvida a respeito da conduta do acusado, em respeito ao in dubio pro reo. Sendo assim, a carga da prova terá que estar inteiramente nas mãos do acusador, para que seja garantida a presunção de inocência ao réu.
Posto isso, percebe-se nitidamente o porquê da expressão perspectiva, haja vista a proteção do imputado por meio da presunção de inocência. Reitera-se que caso o imputado não aproveite as chances há uma assunção de riscos, ou seja, o risco de potencializar a captura psíquica do juiz por parte do autor. No entanto, ressalta-se que tal assunção de risco não se confunde como uma carga processual para defesa, pois como citado anteriormente o ônus da prova incumbe a acusação. Dentro desse contexto, analisa-se o nemur tenetur si detegere, (Direito de Silêncio), por exemplo, o qual não gera um prejuízo processual para o imputado, porém potencializa o risco deste ser condenado.
O que se deve perceber é que ao réu deve-se dar o direito, não dever de produzir provas que o ajudem a ter uma sentença favorável. Ora, a partir do momento que o imputado ao invés de assumir riscos recebe prejuízos há que se notar que houve uma distribuição do ônus da prova e, que ao ocorrer isso evidencia-se uma verdadeira mitigação a presunção de inocência. Em suma, temos que assunção de riscos seria respeito as regras do jogo, visto que evidencia-se a interdependência entre a presunção de inocência e o devido processo legal ao se ter um processo penal alinhado com os ideais de justiça e equidade, com paridade de armas entre o poder repressivo do Estado e o direito à liberdade.
Enquanto que por outro lado, prejuízos de fato ao imputado seria como se ele tivesse o ônus de provar algo, e destarte, violação frontal a inteligência dos direitos e garantias assistidos ao débil, sobretudo até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória até onde o imputado deve ser visto como presumidamente inocente. Importante ainda salientar que foi com o advento da Constituição Federal de 1988 que o Princípio da Presunção de Inocência foi erigido à categoria de norma constitucional. Porém, não só o texto constitucional faz menção expressa a tal princípio (art. 5°, LVII, CF/88), como também diversos dispositivos internacionais a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. XI), Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 9º), Organização das Nações Unidas (art. 11), e do Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, inciso I).
Prova nada mais é do que o meio instrumental apto a comprovar os fatos delineados na peça inicial e no decorrer do processo, tanto pela acusação quanto pela defesa, tendo como finalidade a captura psíquica do juiz (RANGEL, 2019). Todo este aparato instrutório tem como principal interessado o juiz e, inegavelmente, as partes também. Interessante dizer que como mencionado anteriormente, num processo penal ideal, legal ou ainda constitucional, não há que se falar em dever probatório do réu, estando este todo nas mãos da acusação, devendo assim o membro do Ministério Público ou querelante provar a existência do fato alegado na denúncia ou queixa, respectivamente, bem como a autoria delitiva e o elemento subjetivo, ou seja, se o crime foi cometido de forma dolosa ou culposa.
Partindo do entendimento de que atualmente o ônus é todo da acusação, percebe-se que não mais compete ao réu provar sua inocência. Ratificando essa percepção, o art. 156 do Código de Processo Penal preconiza que o ônus da prova caberá a quem fizer a alegação, e deve ser lido conforme o Princípio da Presunção de Inocência, ou seja, sendo o imputado presumidamente inocente não há que se falar em produção de provas. Portanto, se quem faz a primeira alegação é o Ministério Público ou querelante por meio da peça de denúncia ou queixa, estes deverão provar o fato atribuído ao réu, o qual está assegurado pelo princípio em comento e pelo dispositivo legal acima mencionado.
Entretanto, a doutrina de forma majoritária não entende que a carga está toda nas mãos de quem acusa, pois em desconformidade com a Carta Magna de 1988 faz uma leitura a risca do que preconiza o art. 156, CPP. Porém, se é o titular da ação penal quem faz alegações narrando um fato criminoso, o ônus de provar é dele. Caso o imputado alegue ter agido em legítima defesa tal alegação deve ser lida à luz do que preconiza a Constituição Federal, uma vez que a pretensão acusatória é do parquet e ele que deve obter o livre convencimento motivado do juiz.
Ademais, há uma equivocada noção de que a carga probatória é passível de distribuição, quando na verdade é atribuída unilateralmente ao acusador, de tal forma que no processo penal a defesa não deveria ter o dever, mas a faculdade de se libertar das cargas processuais objetivando o bom aproveitamento das chances processuais. Somado a isso, é de suma importância destacar que não cabe ao Magistrado atrair para si o ônus da prova, ao auxiliar a parte acusadora a liberar-se da carga probatória, em uma busca desenfreada pela verdade real.
No entanto, o artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal contraria esse pensamento ao permitir que o juiz determine as provas, mesmo antes de iniciada a ação penal, ou seja, o julgador possui poder instrutório por lhe ser facultado agir de ofício. A redação deste artigo deve ser considerada como equivocada a partir do momento que se percebe que fere o processo penal democrático e imparcial que tanto se pretende alcançar.
Por falta de provas o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de absolvição do réu, como será visto adiante. Portanto, se a corte máxima decide nesse sentido, existindo tantas outras decisões com o mesmo direcionamento, qual o motivo de existirem diversas sentenças e acórdãos de instâncias inferiores em sentido contrário, sendo que vivemos uma época em que possuímos um sistema acusatório e não mais inquisitivo? É essa e outras controvérsias que se pretende analisar e revisar no presente artigo. Uma gama enorme de conhecimento para a academia, no entanto um problema seríssimo para os sensos de justiça, igualdade e liberdade emanados pela Constituição Federal de 1988.
O Estado não pode estar em todas as situações de perigo existentes, por ser logicamente impossível. Diante disso, resolveu buscar uma maneira de prever a possibilidade de que em determinadas situações e desde que preenchidos os requisitos, o cidadão possa agir em prol da defesa de si próprio ou de terceiro, na proteção de seu bem jurídico mais precioso, a vida. Eis o fundamento de existência das excludentes de ilicitude e mais precisamente, no presente artigo, a excludente de legítima defesa. (GRECO, 2020).
É imperioso saber, que essa permissão concedida pelo Estado não é ilimitada, uma vez que, se assim o fosse estaríamos diante de uma vingança privada. Ademais, aquele que age em sua própria defesa ou de terceiro, daí a expressão “legítima”, deve estar em uma total impossibilidade de recorrer ao Estado motivo pelo qual não agindo no momento oportuno pode acabar tendo sua vida ceifada. O instituto da legítima defesa está previsto no Código Penal por meio do art. 23, II no rol das causas excludentes de ilicitude e posteriormente no art.25.
Prefacialmente, faz-se necessário a exposição de alguns conceitos que serão relevantes para o entendimento do instituto da legítima defesa. Deste modo mister se faz inicialmente conceituar o que é crime, apesar de surgirem diversos conceitos na seara doutrinária, tais como a visão sob o aspecto material e formal analisaremos tal instituto sob o enfoque analítico, sob essa perspectiva forma-se um prisma jurídico do qual brotam os seguintes elementos estruturais: fato típico, ilícito (portanto antijurídico) e culpável. Fato típico, inicialmente analisa-se se tal conduta encontra-se no rol de delitos e contravenções constantes do Código Penal, pois para que uma conduta seja tida como um crime deve haver previsão legal e somente restando positivada a conduta cuida-se de verificar o segundo elemento estrutural; ilícito pois deve ser uma conduta que vai contra o Direito, contra aquilo que é jurídico e culpável pois deve haver previsão de sanção penal para tal conduta. Contudo, tal conceito é doutrinário, uma vez que, não existe um conceito de crime fornecido pelo legislador.
Neste diapasão, já sabendo o que é crime e tendo por um de seus requisitos a antijuridicidade percebemos que nas excludentes de ilicitude há um fato típico, culpável, mas não há a antijuridicidade, portanto não há aplicação de pena. Em assim sendo, será analisado aqui o instituto da legítima. Cumpre salientar, que conforme anteriormente dito tal permissão do Estado é limitada, de sorte que para que alguém seja abarcado por tal instituto ao cometer um ato ilícito previsto no código o penal, deverá preencher os requisitos constantes do art. 25 do código penal. A saber: moderação na conduta; meio necessário e injusta agressão atual ou iminente a direito seu ou de outrem. Senão vejamos, o ideal da legítima defesa deve ser primar por justiça, uma vez que, aquele que comete ato ilícito a priori é visto como culpado, à margem da lei, dessa forma ficando evidenciados os requisitos acima transcritos afasta-se a errônea presunção de culpa que se alastra pelo judiciário atualmente.
A moderação na conduta está intrinsecamente relacionada com o requisito da injusta agressão pois a partir do momento que o imputado consegue repelir a injusta agressão deve cessar sua defesa, ou seja, entende-se como moderação na conduta a necessária para se repelir a injusta agressão, o que, no entanto, será analisada em cada caso, uma vez que, existe uma linha tênue entre a moderação e a imoderação e caso afastada a moderação da conduta deve-se analisar se houve excesso, o que veremos adiante.
O meio necessário deve ser entendido como aquele capaz de gerar uma repulsa eficaz e que deve ser o único disponível para o agente, ademais o a gente deve se utilizar do meio menos lesivo disponível, caso seja possível no caso concreto, por exemplo se o a gente no momento da conduta tem disponível um pedaço de pau e este objeto é eficaz para conter a agressão o emprego de arma de fogo revela-se manifestamente desnecessário, há aqui também uma linha tênue entre meio necessário e desnecessidade do meio, quando houver manifesta desnecessidade do meio podem emergir as figuras do excesso doloso, culposo ou exculpante.
Por derradeiro, a injusta agressão deve ser atual ou iminente, isto é, podendo o agressor já ter iniciado a agressão e neste caso diz-se atual, pois a lesão ao bem jurídico está ocorrendo ou seus atos, gestos, fazerem presumir estar prestes a iniciar a agressão, e neste caso diz-se que a agressão está prestes a ocorrer e dado o fato que ninguém é obrigado a esperar ser agredido, daí a expressão em latim nemo expectare tenetur donec percutietur, podendo quem sofreu a injusta agressão repeli-la, podendo outrem que vê a agressão também a repelir. Cumpre salientar, que se a agressão é futura não há que se falar em legítima defesa, sendo assim alguém que mata outrem porque esta ameaçou-lhe não estará abarcado por tal instituto (CAPEZ, 2019).
Já se sabe que a ilicitude da conduta ocorre quando, há contrariedade entre sua prática e o ordenamento jurídico. Em sendo assim, temos que no caso de legítima defesa o ilícito ocorreu, no entanto é excluído, bem como nas outras hipóteses em que se exclui o ilícito penal, a saber: estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito. Cumpre esclarecer, que a contrário do que se pode pensar a legítima defesa não pode ocorrer de modo excessivo, razão pela qual em caso de excesso há previsão de punibilidade.
O excesso punível dito acima se configura quando o agente que até então estava agindo sob o manto de uma excludente de ilicitude, não se atenta ao requisito da moderação da conduta e acaba tornando sua prática de fato ilícita, talvez seja por essa linha tênue entre o lícito e o ilícito que tal requisito é o mais importante na configuração da legítima defesa. O excesso pode ser doloso ou culposo. Há que se falar ainda, que a doutrina tem firmado o entendimento de que o excesso punível pode decorrer não só da falta de moderação na conduta, mas também da utilização de meios desnecessários.
Vale ressaltar que conforme o art. 23, parágrafo único do código penal o agente responderá quando agir dolosamente ou culposamente. Como exemplo temos, alguém que após cessar uma agressão disparando um tiro com uma arma de fogo continua na repulsa e dispara outros dois tiros, dessa forma será punido pelo excesso em sua conduta. Sabendo que caso o ato praticado ocorra permeado por tais requisitos incorrerá o agente em legítima defesa cuida-se de analisar no presente artigo o dever do imputado de provar ter agido com os meios necessários, que a agressão sofrida ocorreu de forma injusta e que sobretudo agiu de forma moderada (GONÇALVES, 2019).
Após a análise do ônus da prova, do respeito ao Princípio Constitucional da Presunção de Inocência, passou-se depois a conceituar e entender o instituto da legítima defesa e face às considerações aduzidas restou cristalino de quem de fato deve ser o dever de provar ter existido ou não tal excludente de ilicitude. Porém, em tempo hábil surge um questionamento: Se a legítima defesa é um instituto que visa beneficiar aquele imputado que de forma injusta sofre agressão ou está na iminência de sofrê-la e utilizando de forma moderada de um meio necessário a repele com vistas a defender seu direito ou de outrem, esta incoerente distribuição do ônus da prova prejudicaria a eficácia de tal benefício?
Partindo do pressuposto de que o imputado não tem o ônus de provar nada, obviamente. Se formos pensar a legítima defesa de acordo com o supratranscrito temos que o fato de o imputado provar estarem presentes os requisitos da excludente configura mero aproveitamento de uma chance que brotou da situação jurídica criminosa, ou seja, liberando-se de uma carga e gerando para si a perspectiva de uma sentença favorável. Do contrário, apenas perderia a oportunidade de obter a captura psíquica do juiz. Entretanto, não é o que se verifica na prática razão pela qual existe tal artigo.
Em apertada síntese, tomando como base as regras do jogo e os direitos e garantias constitucionais, parece que essa inversão traz ao imputado uma perspectiva de obter uma sentença desfavorável, haja vista, que frente ao poder estatal e sua soberania o imputado revela-se hipossuficiente. Ademais, o fundamento de existência do processo penal é que este existe como um instrumento de defesa dos direitos e garantias do débil, leia-se acusado, frente aos arbítrios do poder estatal. Inegavelmente, colocar a carga de provar ter sofrido a injusta agressão mitiga e cerceia quase que totalmente as chances do réu de se ver livre de uma condenação injusta.
O que parece emergir desta discussão, é o velho, porém atual debate a respeito do Direito Penal do cidadão, leia-se garantismo penal, e o Direito Penal do inimigo, onde seus destinatários são considerados fontes de perigo, e que na grande maioria das vezes são privados de seus direitos e garantias individuais, acabam sofrendo antecipação de punibilidade com o escopo policialesco de combater perigos, o que nos remete, apenas por amor ao debate, ao fenômeno do Panprincipiologismo, que se traduz por uma criação de princípios sem efeito normativo, e dentre eles o do in dúbio pro societate o que representa manifesta violação ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Essa concepção de Direito Penal do inimigo (PRADO, 2009) se alastra pelo judiciário, e a convém trazê-lo à baila no presente artigo, uma vez que, através desta concepção e de outras há uma deliberada distribuição do ônus da prova, uma presunção de culpa ao invés de inocência. E o indivíduo, que sem poder se amparar ao Estado para defender seus bens jurídicos, com a permissão deste apenas repele uma injusta agressão sofrida terá de se desincumbir de um ônus que não é seu? Terá seus Direitos e garantias violados por defender o seu Direito constitucional à vida?
A resposta que parece exsurgir para as proposições acima listadas é que apenas respeitando as regras do jogo, respeitando a Constituição Federal, os tratados e convenções relativas aos Direitos Humanos, emergirá uma eficácia no instituto da legítima no sentido de que sirva como um instrumento de garantia dos Direitos fundamentais da pessoa humana. Imprescindível é o garantismo penal, processual penal ou jurídico ainda, para a criação deste ideal humanitário que deve permear o judiciário brasileiro mediante sentenças e acórdãos, de sorte que articulando mecanismos que freiem o poder do Estado soberano, no presente artigo a correta carga probatória nas mãos do Ministério Público e a presunção de que o imputado agiu em legítima defesa, possam tornar eficaz e devidamente cumprido o sentido do instituto da Legitima Defesa (MORAIS DA ROSA, 2011).
O entendimento majoritário dos Tribunais Superiores brasileiros é no sentido de que quando tratar-se de legítima defesa atribui-se o ônus da prova ao imputado, o qual terá que demonstrar cabalmente a incidência da causa de excludente de ilicitude, sem que tal inversão da carga probatória importe ofensa aos princípios constitucionais de Presunção de Inocência e In Dubio Pro Reo. Confirmando o exposto, está a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Decisão: A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso de apelação interposto pelo recorrente, mediante acórdão (eDOC 6, p. 41-57) assim ementado: “Apelação criminal defensiva. Condenação por lesão corporal no âmbito da violência doméstica (art. 129, § 2º, IV, c/c 10º, do Código Penal, n/f da Lei 11.340/06) [...] Tese subsidiária de legítima defesa que não reúne condições de acolhimento. Firme orientação pretoriana no sentido de atribuir à Defesa o ônus de comprovar a incidência de qualquer excludente de tipicidade, tipo permissivo ou causa de exculpação (CPP, art. 156) [...] No mais, a presente irresignação recursal não merece prosperar, porquanto a ofensa à Constituição, se existente, seria reflexa ou indireta, de índole infraconstitucional, o que inviabiliza o processamento do presente recurso. Além disso, divergir do entendimento firmado pelo Tribunal de origem demandaria o revolvimento do acervo fático-probatório, providência inviável no âmbito do recurso extraordinário. Dessa forma, incide, no caso, a Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido é a jurisprudência desta Suprema Corte: Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Penal e Processo Penal. 3. Crime contra a liberdade sexual (art. 213 c/c art. 214 do Código Penal). 4. Ausência de prequestionamento, incidência das súmulas 282 e 356. 5. Suposta violação aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa e da presunção de inocência. A ofensa aos dispositivos apontados, caso existente, ocorreria de forma reflexa [...] Ante o exposto, nego seguimento ao recurso (art. 21, § 1º, do RI/STF). Intime-se, via DJe. Brasília, 11 de março de 2020. Ministro Gilmar Mendes Relator Documento assinado digitalmente
(STF - ARE: 1259854 RJ - RIO DE JANEIRO 0008772-61.2011.8.19.0001, Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 11/03/2020, Data de Publicação: DJe-058 16/03/2020)
A recente decisão acima exposta impõe ao réu a obrigação de provar ter agido em legítima defesa, quando na verdade a este deveria ser dado o direito e não o dever de provar o alegado, visto que constitucionalmente já é presumidamente inocente e caberia então a acusação afastar a tese abarcada pela excludente de ilicitude. Desse modo, cumpre observar o equívoco ao considerar que a violação aos princípios constitucionais seria, caso existente, reflexa, pois há uma direta ofensa à presunção de inocência do débil.
O Superior Tribunal de Justiça acaba por cometer o mesmo erro, senão vejamos:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.625.634 - AL (2019/0352035-2) RELATOR: MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ AGRAVANTE : CLÁUDIO JOSÉ DA SILVA VIEIRA (PRESO) ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE ALAGOAS AGRAVADO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE ALAGOAS DECISÃO CLÁUDIO JOSÉ DA SILVA VIEIRA [...] A legítima defesa para que possa ser acolhida, precisa ficar provada, e a prova é ônus do réu, sendo insuficiente a simples alegação (TACRIM-SP - AC - Rel. Hélio de Freitas - RT 671/346) [...]10 - Em suas razões recursais, o apelante levantou que teria agido em legítima defesa putativa, imaginando estar na iminência de ser agredido, uma vez que a vítima insinuava portar arma de fogo, momento em que sacou sua arma para repelir aquela agressão supostamente iminente. Requereu a aplicação do princípio da presunção de inocência e in dubio pro réu. 11 - Entretanto, conforme cediço, na fase de formação da culpa no o procedimento do Tribunal do Júri o que prevalece é o princípio do in dubio pro societate, devendo o acusado ser pronunciado se o juiz estiver "convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação" (art. 413 do CPP), sem que isso configure violação ao princípio da presunção da inocência. [...]Dispositivo À vista do exposto, com fundamento no art. 932, VIII, do CPC, c/c o art. 253, parágrafo único, II, b, parte final, do RISTJ, conheço do agravo para negar provimento ao recurso especial. Publique-se e intimem-se. Brasília (DF), 13 de fevereiro de 2020. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ Relator
(STJ - AREsp: 1625634 AL 2019/0352035-2, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Publicação: DJ 17/02/2020)
É evidente que podendo o réu aproveitar-se de chances processuais com o intuito de liberar-se das cargas probatórias, ele fará para aumentar a possibilidade de uma sentença favorável. No entanto, tal prerrogativa não deve ser usada como justificativa de inversão ou divisão do ônus da prova com o acusador, visto que o acusado está protegido pela presunção de inocência, assim como pelo fato da parte contrária ter feito a primeira afirmação na peça acusatória, ou seja, se o ônus é de quem alega, caberia a acusação provar que o réu não agiu abarcado pelo Instituto da Legítima Defesa.
Ademais, o Ministro, se distanciando da posição de guardião dos direitos fundamentais, alegou prevalecer o Princípio do In Dubio Pro Societate na fase de formação de culpa no procedimento do Tribunal do Júri, princípio este que não encontra qualquer amparo na Constituição Federal, tampouco no Código de Processo Penal e, que consequentemente vai contra o Estado Democrático de Direito, a Dignidade da Pessoa Humana e as garantias fundamentais do réu. Dito isto, o que deve prevalecer é o In Dubio Pro Reo, pois havendo dúvidas o julgamento será a favor do acusado.
Seguindo o entendimento da inversão do ônus da prova para que se possa reconhecer a legítima defesa, o Tribunal Regional Federal decidiu que:
PENAL - TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES - AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVA - COMPROVAÇÃO - INTERNACIONALIDADE COMPROVADA - CAUSAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE E CULPABILIDADE NÃO CARACTERIZADAS - REPRIMENDAS QUE DEVEM SER REDUZIDAS - RECONHECIMENTO DA ATENUANTE DE CONFISSÃO ESPONTÂNEA - PATAMAR DE APLICAÇÃO DA MAJORANTE PREVISTA PELO ART. 40, INC. I, DA LEI Nº 11.343/06 REDUZIDO PARA 1/6 (UM SEXTO) - CAUSA DE DIMINUIÇÃO PREVISTA NO ART. 44, §3º, DA LEI Nº 11.343/2006 - APLICAÇÃO - SUBSTITUÇÃO DA PENA POR REPRIMENDAS ALTERNATIVAS E DIREITO A APELAR EM LIBERDADE - AFASTAMENTO - APELAÇÃO DA DEFESA PARCIALMENTE PROVIDA [...]
6. É cediço que o ordenamento jurídico pátrio permite, excepcionalmente, a prática de condutas típicas em razão de situações especiais, como aquele que age em legítima defesa ou em estado de necessidade justificante ou exculpante. 7. Porém, para que se possa reconhecer tais excludentes é imprescindível que aquele que as alega comprove as suas razões sem qualquer sombra de dúvida, sob pena de desqualificação do próprio instituto, cuja finalidade é a de garantir, excepcionalmente, a tutela de um bem jurídico ao mesmo tempo em que outro é preterido, mas desde que presente uma causa justificante, sendo certo que a defesa não se desincumbiu desse ônus, nos termos do que determina o artigo 156 do CPP. [...] 16. Apelação parcialmente provida.
(TRF-3 – ACR:8192 SP 0008192-87.2011.4.03.6119, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL LUIZ STEFANINI, Data de Julgamento: 14/04/2014, QUINTA TURMA)
Mais uma vez, a jurisprudência brasileira peca por transferir ao acusado um dever do Estado, o qual ao demonstrar a existência de um fato típico, ilícito e culpável descaracterizaria toda e qualquer alegação de excludente, tal como a legítima defesa, não cabendo ao réu a responsabilidade de demonstrar a ilicitude de sua conduta. Ou seja, cabe a parte acusadora provar a ocorrência do fato alegado e ao mesmo tempo afastar a incidência de excludentes de ilicitude ou de culpabilidade.
Além disso, importa observar que também existem decisões jurisprudenciais no sentido de que compete a defesa comprovar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão acusatória, fato este que igualmente merece ser refutado frente a total incoerência e relativização do Princípio da Presunção de Inocência, visto que a dúvida sobre a existência da legítima defesa determinaria a condenação do réu, quando na verdade deveria ser absolvido por considerar a aplicação do in dubio pro reo. Portanto, compete a parte que acusa romper com a presunção de inocência garantida constitucionalmente ao débil ao provar a autoria e materialidade do delito, assim como deixar claro que o réu não agiu imbuído de qualquer causa excludente.
Em outras palavras, ainda que a defesa invoque existência de excludente de ilicitude, o ônus probatório continua sendo exclusivo da acusação, a qual deve demonstrar ao magistrado a fragilidade, inocorrência ou inconsistência da excludente, isso porque se o réu já é presumidamente inocente, não se faz mister que ele prove ser inocente (NUCCI, 2015). Posto isso, não há o que se falar em inversão de ônus da prova.
Por último, temos o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina ratificando o inviável acolhimento da excludente de ilicitude quando da ausência de provas arguidas pela defesa, bem como negando que isso acarrete afronta a princípios reconhecidos constitucionalmente, in verbis:
ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apelação Criminal n. 0033470-22.2014.8.24.0023, da Capital ESTADO DE SANTA CATARINA TRIBUNAL DE JUSTIÇA Apelação Criminal n. 0033470-22.2014.8.24.0023, da Capital Relator: Des. Carlos Alberto Civinski PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME DE LESÃO CORPORAL EM ÂMBITO DOMÉSTICO (CP, ART. 129, §9º, E LEI 11.340/2006). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. ALEGADA EXCLUDENTE DE ILICITUDE DA LEGÍTIMA DEFESA. TESE CARENTE DE COMPROVAÇÃO. AUSÊNCIA DE INJUSTA AGRESSÃO. ÔNUS QUE COMPETE À DEFESA (CPP, ART. 156). PALAVRAS FIRMES E COERENTES DA VÍTIMA, CORROBORADAS POR LAUDO TÉCNICO PERICIAL. CONDENAÇÃO MANTIDA. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA. CONDENAÇÃO CONFIRMADA POR ESTE TRIBUNAL. PRINCÍPIO DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. REEXAME SOBRE A MATÉRIA FÁTICA E ELEMENTOS DE PROVA ESGOTADO. CASO EM QUE SE AMOLDA À NOVA ORIENTAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (HC 126.292/SP), RATIFICADA POR OCASIÃO DO INDEFERIMENTO DAS MEDIDAS CAUTELARES OBJETO DAS AÇÕES DECLARATÓRIAS DE CONSTITUCIONALIDADE 43 E 44 – Inviável o acolhimento da excludente de ilicitude consistente na legítima defesa quando inexistente nos autos provas de que as agressões praticadas contra a vítima ocorreram nos moldes ado art. 25 do Código Penal – A simples alegação do agressor de que agiu em legítima defesa não autoriza que se reconheça a excludente de ilicitude, por força da parte inicial do art. 156 do Código de Processo Penal – Confirmada ou decretada a condenação neste Juízo ad quem, admite-se a execução provisória da pena, tendo em vista o esgotamento do revolvimento da matéria fática e dos elementos de prova, à luz do princípio do duplo grau de jurisdição, sem que se possa falar em afronta ao princípio da presunção de inocência, seguindo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, nos autos do HC 126.292/SP, ratificando quando o indeferimento das medidas cautelares objeto das ADCs 43 e 44 – Parecer da PGJ pelo conhecimento e desprovimento do recurso – Recurso conhecido e desprovido.
(TJ-SC APR: 0033470-22.2014.8.24.0023 Capital 0033470-22.2014.8.24.0023, Relator: Carlos Alberto Civinski, Data de Julgamento: 21/06/2018, Primeira Câmara Criminal)
O entendimento do Tribunal é de que a simples alegação do imputado de que agiu em legítima defesa não autoriza que seja reconhecida a excludente de ilicitude com base no disposto no artigo 156 do Código de Processo Penal. No entanto, esquece-se o Relator que, como demonstrado anteriormente, é quem acusa que se torna encarregado de afastar a hipótese da legítima defesa e não o acusado de comprovar a existência de tal excludente, de forma que assim como este, os demais entendimentos acima mencionados não merecem prosperar.
A exposição jurisprudencial do tópico anterior corrobora o erro crasso apresentado no decorrer do presente artigo, são decisões de cunho autoritário, inquisitorial, policialesco que além de fazerem uma distribuição cristalina das cargas probatórias materializa o desrespeito às normas fundamentais trazidas por nossa carta magna vigente. É oportuno consignar, que assim como qualquer pensamento, há posicionamentos contrários e em razão disso os preceitos constitucionais ainda que minoritariamente são respeitados.
Neste diapasão, a seleção jurisprudencial a seguir evidencia a correta aplicação do ônus da prova, o respeito a presunção de inocência e consagra o princípio do in dúbio pro reo quando ao pairar dúvida sobre a materialidade de um delito absolvido foi o acusado. Assim como no tópico anterior em que foram dissecadas decisões de Tribunais de Justiça, de Tribunais Regionais Federais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal aqui também o será, com o objetivo de demonstrar que em todos os graus de jurisdição e órgãos do poder judiciário podemos encontrar os posicionamentos contrários.
Ao analisar a seara jurisprudencial, percebe-se que em diversos julgados de diferentes tipos penais há efetiva proteção do débil frente aos arbítrios do poder estatal, uma vez que, há uma gama extensa de decisões neste sentido. O que a contrário senso não ocorre em decisões que versem sobre excludentes de ilicitude, mais precisamente em decisões que versem sobre alegação de legítima defesa. O que parece exsurgir no campo jurisprudencial é um “respeito seletivo”, ora, em determinados delitos aplicam-se os princípios acima mencionados e em outros não? Senão vejamos.
De início, temos o seguinte julgado do TJ- SC:
APELAÇÃO CRIMINAL. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO E MUNIÇÕES DE USO PERMITIDO (ART. 14 DA LEI N. 10.826/03). SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. RECURSO DA ACUSAÇÃO. PLEITO CONDENATÓRIO. NÃO ACOLHIMENTO. FUNDADAS DÚVIDAS SOBRE A EXISTÊNCIA DA CAUSA EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE RECONHECIDA PELO TOGADO SINGULAR. EXEGESE DO ART. 386, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, IN FINE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. "Diante da Lei n. 11.690/08, que alterou o art. 386, VI, do Código de Processo Penal, a 'fundada dúvida' sobre a existência de 'circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena' impõe o seu reconhecimento, com fulcro nos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo"
(TJ-SC - APR: 00124067120158240038 Joinville 0012406-71.2015.8.24.0038, Relator: Sidney Eloy Dalabrida, Data de Julgamento: 17/10/2019, Quarta Câmara Criminal)
Trata-se, da suposta prática do delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido e munições de uso permitido, tese sustentada pelo MP em que a acusada alegou ter agido sob o manto da excludente de culpabilidade de coação moral irresistível. O juiz singular acolheu a tese da acusada no sentido de que a despeito de estarem comprovadas autoria e materialidade a acusada estaria amparada por excludente de culpabilidade. O interessante neste julgado é que o MP parece desconhecer o sistema acusatório, uma vez que, em sede de apelação sustentou que a defesa não logrou demonstrar de forma efetiva a presença da excludente de culpabilidade.
Ora, o ônus de provar algo é daquele que alega, se o MP alegou a prática de um delito ele que utilize de todos os mecanismos processuais possíveis para destruir a tese defensiva, uma vez que, presumidamente inocente a acusada nada há de provar, apenas assumindo o risco de ter uma sentença desfavorável pela perda da chance de se liberar de uma carga, leia-se direito e não dever.
Apesar de ser manifestamente inquisitorial, o código de processo penal possui dispositivos que freiam os arbítrios do poder estatal, senão vejamos. Fundado no art. 386, VI do CPP o recurso de apelação teve seu provimento negado por maioria dos votos, pois o juiz deve absolver o réu caso provada causa que exclua o crime por meio da ilicitude ou da culpabilidade. Ainda assim, havendo dúvida razoável esta resolve-se em benefício do acusado. Ou seja, é causa de absolvição tanto a prova certa da presença de uma excludente quanto sua dúvida razoável (STRECK, 2017). Sob mesmo entendimento está o TRF-4:
PENAL. PROCESSO PENAL. DANO QUALIFICADO. ARTIGO 163, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO III, DO CÓDIGO PENAL. CONJUNTO PROBATÓRIO. AUSÊNCIA DE DOLO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. 1. A teor do que dispõe o art. 156 do CPP, é do órgão acusatório o ônus de provar a responsabilidade penal do réu, não sendo admitida a sua inversão, tendo em vista o postulado constitucional da presunção de inocência. 2. Da prova judicializada não emerge a necessária certeza para autenticar o agir doloso do réu com relação ao crime de dano qualificado, de sorte que o inconformismo da acusação não reclama trânsito. 3. Mantida a absolvição do réu, forte no que preceitua o artigo 386, incisos III, do Código de Processo Penal.
(TRF-4 - ACR: 50079869120124047002 PR 5007986-91.2012.4.04.7002, Relator: LUIZ CARLOS CANALLI, Data de Julgamento: 17/03/2020, SÉTIMA TURMA)
Apenas por amor ao debate, explana-se o julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª região, com vistas a mostrar o entendimento uniformizado que vem se consolidando sobre a força da presunção de inocência no ônus probatório. No entanto, assevera-se que as decisões em sede de excludente de ilicitude continuam sob a égide errônea de um processo penal punitivista, que consagra uma presunção de culpa pautado em panprincipiologismos.
No mesmo sentido inclina-se a decisão monocrática exarada pelo STJ:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.080.471 - MG (2017/0085248-2) RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA AGRAVANTE: ADRIANO RAMOS DE SOUZA ADVOGADO: DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 156 DO CPP. INDEVIDA INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. DECISÃO RECORRIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE DO STJ. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 568/STJ. DEMAIS TEMAS PREJUDICADOS. AGRAVO CONHECIDO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. DECISÃO. Assevera, ainda, negativa de vigência ao artigo 156 do Código de Processo Penal, ao fundamento de que "o ônus da prova a respeito da imputação do crime é atribuído, exclusivamente, ao órgão da acusação". Acrescenta que "o simples fato do réu negar a autoria do ilícito em seu interrogatório ou, como in casu, assumir postura diversa da que lhe foi imputada na denúncia, não traz para si a responsabilidade exclusiva de ter que provar sua inocência ou a condição que alega ser verdadeira".
(STJ - AREsp: 1080471 MG 2017/0085248-2, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Publicação: DJ 17/05/2017)
Em suma, este julgado versa sobre a suposta prática do delito de tráfico de drogas. No entanto, o que merece destaque aqui é a correta aplicação do art. 156 do CPP. Senão vejamos, em muitas decisões de caráter inquisitorial e punitivista, tais quais as do tópico anterior tal dispositivo recebe uma interpretação errônea e diversa da que lhe deve ser dada, no sentido de que se o ônus da prova de um fato é de quem alega, então o réu deveria provar sua inocência. Ocorre que, como já discutido, no processo penal não há distribuição de cargas probatórias razão pela qual o dever de produzir provas está todo nas mãos do parquet.
Ora, quem faz a primeira alegação é o MP, seja por meio da denúncia ou da queixa então é aquele que incumbe provar suas alegações. E caso o réu faça alegações em sua defesa, não teria de provar já que alegou? Não, uma vez que, já é presumidamente inocente. Contudo, reitera-se que tal entendimento em sede de alegação de excludente de ilicitude não parece emergir.
Dado o explanado até aqui já se sabe que a carga do acusador é de provar o alegado, logo, deve provar que alguém (autoria) praticou um crime previsto no código penal (materialidade) e um dos requisitos para a configuração de um crime é justamente a ilicitude, ou seja, deve provar inclusive a não existência de causa excludente de ilicitude. Diante do exposto, indaga-se novamente: O respeito às normas no processo penal é seletivo? Leia-se, há mitigação da presunção de inocência? Há incorreta distribuição do ônus da prova? (MIRZA, 2010)
Filiado ao mesmo entendimento está o STF:
PENAL E PROCESSO PENAL. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO FUNDADA SOMENTE EM ELEMENTOS INFORMATIVOS OBTIDOS NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL NÃO CORROBORADOS EM JUÍZO. OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL, CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. AÇÃO PENAL IMPROCEDENTE. 1. A presunção de inocência exige, para ser afastada, um mínimo necessário de provas produzidas por meio de um devido processo legal. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sendo imprescindíveis provas efetivas do alegado, produzidas sob o manto do contraditório e da ampla defesa, para a atribuição definitiva ao réu, de qualquer prática de conduta delitiva, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova. 2. Inexistência de provas produzidas pelo Ministério Público na instrução processual ou de confirmação em juízo de elemento seguro obtido na fase inquisitorial e apto a afastar dúvida razoável no tocante à culpabilidade do réu. 3. Improcedência da ação penal. (AP 883, Relator (a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 20/03/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 11-05-2018 PUBLIC 14-05-2018)
(STF - AP: 883 DF - DISTRITO FEDERAL 9998517-79.2014.1.00.0000, Relator: Min. ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 20/03/2018, Primeira Turma)
Impende destacar mais um julgado recente sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, o interessante aqui é a observância a dupla conformidade que ocorre quando há uma análise à luz da constituição e à luz de convenções internacionais que versam sobre os Direitos do homem, no julgado em tela fora utilizada a Declaração do Homem e do Cidadão.
Por derradeiro após a análise de julgados em diferentes graus de jurisdição, mister se faz analisar o cerne da questão, qual seja: o ônus da prova na legítima defesa. Bom, o entendimento sedimentado e majoritário como visto no tópico anterior é no sentido de que o réu tem de provar sua inocência, deve fazer estarem presentes os requisitos da legítima defesa de forma inequívoca, caso contrário será condenado. Foram analisados diversos julgados, mas o julgado a seguir deverá servir como modelo para os que movimentam o maquinário judicial, senão vejamos:
RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL – DELITOS DE AMEAÇA E LESÃO CORPORAL EM ÂMBITO DOMÉSTICO – ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO COM LASTRO NA INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA E LEGÍTIMA DEFESA – INCONFORMISMO DO PARQUET – ALMEJADA CONDENAÇÃO – SUPOSTA EXISTÊNCIA DE PROVAS A INDICAR A AUTORIA E MATERIALIDADE DELITIVAS – APONTADA AUSÊNCIA DOS ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA EXCLUDENTE DE ILICITUDE – IMPROCEDÊNCIA – AGRESSÃO PREDECESSORA DA VÍTIMA MEDIANTE USO DE ARMA BRANCA – ACUSADO QUE EMPREGA MODERADAMENTE MEIO NECESSÁRIO À SUA DEFESA – PALAVRA DA VÍTIMA NÃO DOTADA DE VEROSSIMILHANÇA E COESÃO – CARACTERIZAÇÃO DA LEGÍTIMA DEFESA – ART. 25, CP – AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS A CERTIFICAR A AMEAÇA – NÃO AFERIÇÃO DO EFETIVO TEMOR EXIGÍVEL À CARACTERIZAÇÃO DO CRIME – RELATO PRIMEVO DA VÍTIMA NÃO REPISADO EM JUÍZO – ART. 155, CPP – “IN DUBIO PRO REO” – RECURSO DESPROVIDO. 1. Aflorando dos autos que a conduta do acusado encontra cerne na existência de uma injusta agressão, vindo este a empregar o meio posto à sua disposição, moderadamente, com o fito de repreender a ação ilegítima da ofendida e fazer cessar o embate entre eles, descabe excogitar de sua antijuridicidade, mercê da caracterização da legítima defesa [art. 25 do Estatuto Repressor]. 2. Não repisadas sob o crivo do contraditório as provas produzidas durante a fase inquisitiva, milita em favor do réu a presunção de inocência [art. 155, CPP], máxime quando ausentes elementos a certificar o efetivo temor incutido à vítima, dada a não reiteração de seu depoimento em juízo, a impor, à luz do sistema acusatório, a mantença do decreto de absolvição quanto ao delito de ameaça, em vassalagem ao “in dubio pro reo”. (Ap 154512/2016, DES. ALBERTO FERREIRA DE SOUZA, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Julgado em 08/02/2017, Publicado no DJE 16/02/2017)
A recente decisão foi exarada pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso e possui diversos pontos importantes. Em primeiro grau a magistrada reconheceu a presença de excludente de ilicitude de legítima defesa, inconformado o MP interpôs apelação no sentido de que a magistrada teria se equivocado ao proferir a decisão, no entanto o recurso foi desprovido, uma vez que, o réu sofreu injusta agressão sendo atingido com golpes de arma branca, para repeli-la usou-se de meio necessário.
O MP não conseguiu lograr êxito em sua pretensão punitiva, da produção de provas não restou configurado o ilícito por parte do acusado e por insuficiência probatória foi aplicado o in dúbio pro reo. Esta decisão materializa o sistema acusatório, haja vista, que foram respeitadas as regras do jogo e cada órgão cumpriu sua função jurisdicional, a presunção de inocência se fez presente. Infelizmente, raras são as decisões neste sentido e o que se alastra por nosso judiciário é cada vez mais a crença em um direito penal do inimigo.
Diante do cenário acima explanado, em tempo hábil e por derradeiro indaga-se: há eficácia em tal instituto? Bom, a palavra eficácia é um substantivo feminino que significa a qualidade daquilo que alcança os resultados planejados ou a característica do que produz os efeitos esperados. Ora, dito isso, se lembrarmos do intuito da criação de tal instituto pelo código penal, qual seja, a de fazer com que alguém que sofreu uma injusta agressão não seja penalizado por apenas ter protegido seu bem jurídico mais precioso, a vida, percebemos que a eficácia do instituto seria que a acusação provasse ter o réu não agido sob o manto de excludente de ilicitude, e portanto surgindo uma perspectiva de condenação ou em não conseguindo provar tal condição, surgindo uma perspectiva de absolvição.
Então, a resposta que melhor se encaixa para o questionamento é não. Não há como haver eficácia em algo que não produz os efeitos esperados. Conforme exposto nos tópicos acima, distribui-se um ônus que não deveria ser distribuído, relativiza-se uma presunção que não deveria ser relativizada, presume-se culpado àquele que deveria ser presumidamente inocente até o trânsito em julgado e o resultado deste emaranhado de deturpações é uma palavra polissêmica, injustiça. São tempos difíceis, a melhor definição para o cenário do processo penal atual é lobo em pele de cordeiro.
Por baixo da pele do sistema acusatório sobrevive um lobo feroz, conforme Lopes Jr (2015) chamado sistema inquisitório, este lobo possui enraizado em si um vírus, de alto nível de contaminação, que se alastra sorrateira e silenciosamente e que possui por grupo de risco aqueles que ainda veem o processo penal como instrumento de punição, que veem o réu como um inimigo da sociedade, fazendo com que in dúbio pro societate seja considerado princípio.
Ao fim da trajetória do presente trabalho, ressalta-se a necessidade do Poder Judiciário primar pelo que consta na Carta Magna deste país, especialmente no tocante ao respeito das garantias fundamentais. Para isso, o primeiro passo é que o processo penal seja entendido como um mecanismo de proteção aos direitos do réu frente aos arbítrios do poder estatal, tendo em vista que não se deve mais prevalecer o regime autoritário no qual cabe a defesa a obrigação de provar a inocência do acusado, quando na verdade cabe ao imputado, de forma facultativa e não obrigatória, apenas o aproveitamento de chances processuais em busca de uma absolvição.
Baseada nessa percepção, a compreensão é no sentido de que no sistema acusatório vigente no Brasil o ônus da prova deve ser exclusivo da parte que acusa, a qual de forma imperiosa, para afastar a Presunção de Inocência garantida constitucionalmente ao débil, deverá produzir provas efetivas do que alegar na denúncia ou queixa, atribuindo de forma inequívoca ao réu a pratica de determinado delito e demonstrando a inexistência de qualquer excludente. Caso não seja esta a atuação do acusador e paire a mínima dúvida quanto a conduta do agente, o Magistrado deverá proferir seu julgamento resguardando o que aduz o Princípio do In Dubio Pro Reo.
No entanto, após breve análise doutrinária e jurisprudencial, o que resta comprovado é que corriqueiramente as garantias constitucionais são violadas, fato este que não merece prosperar, mas sim ser superado de forma gradativa pelos Tribunais Superiores brasileiros, os quais são os principais responsáveis e deveriam ser os primeiros interessados em resguardar o que prevê a Constituição Federal, lei suprema vigente no pais, da qual decorre todo o ordenamento jurídico do Brasil.
Ou seja, diante de tal equívoco, se faz necessária uma interpretação do artigo 156 do Código de Processo Penal à luz do que prevê a Carta Magna, de tal modo que se torna imprescindível que haja uma retificação do que a doutrina processual penal, em sua maioria, defende sobre o ônus da prova, assim como é de suma importância que os operadores do direito também participem desse processo de renovação na medida em que consigam consagrar jurisprudencialmente o entendimento de que não há que se impor à defesa a inversão ou divisão da carga probatória.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código de Processo Penal-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Vade mecum. São Paulo: Rideel, 2020.
______. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade mecum. São Paulo: Rideel, 2020.
______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1625634 - AL – Alagoas. Agravo em recurso especial nº 1.625.634 - al (2019/0352035-2) Agravante: Cláudio José da Silva Vieira. Advogado: Defensoria Pública do Estado de Alagoas. Agravado: Ministério Público do Estado de Alagoas. Relator: Min. Rogerio Schietti Cruz, 14 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://https://www.jusbrasil.com.br/diarios/284008637/stj-14-02-2020-pg7271?ref=serp. Acesso em: 16 mar. 2020.
______. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial 1080471-MG – Minas Gerais. O ônus da prova a respeito da imputação do crime é atribuído, exclusivamente, ao órgão da acusação. Relatora: Maria Thereza de Assis Moura, 09 de maio de 2017. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/459411439/agravo-em-recurso-especial-aresp-1080471-mg-2017-0085248-2?ref=serp. Acesso em: 20 mar. 2020.
______. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Ação Penal 883/DF. No sistema acusatório brasileiro, o ônus da prova é do Ministério Público, sob pena de simulada e inconstitucional inversão do ônus da prova. Inexistência de provas produzidas pelo Ministério Público na instrução processual ou de confirmação em juízo de elemento seguro obtido na fase inquisitorial e apto a afastar dúvida razoável no tocante à culpabilidade do réu. Improcedência da ação penal. Autor: Ministério Público Federal. Réu: Izalci Lucas Ferreira. Relator: Min. Alexandre de Moraes, 20 de março de 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/768148902/acao-penal-ap-883-df-distrito-federal-9998517-7920141000000/inteiro-teor-768148912?ref=juris-tabs. Acesso em: 20 mar. 2020.
______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo 1259854 RJ – Rio de Janeiro. Tese subsidiária de legítima defesa que não reúne condições de acolhimento. Firme orientação pretoriana no sentido de atribuir à Defesa o ônus de comprovar a incidência de qualquer excludente de tipicidade, tipo permissivo ou causa de exculpação. Relator: Min. Gilmar Mendes, 11 de março de 2020. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/825629437/recurso-extraordinario-com-agravo-are-1259854-rj-rio-de-janeiro-0008772-6120118190001?ref=serp. Acesso em: 27 mar. 2020.
______. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Criminal 0033470 – SC – Santa Catarina. Primeira Câmara Criminal. Relator: Carlos Alberto Civinski, 21 de junho de 2018. Disponível em: https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/593108117/apelacaocriminalapr334702220148240023-capital-0033470-2220148240023?ref=serp. Acesso em: 20 mar. 2020.
______. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Criminal 0012406-SC – Santa Catarina. A fundada dúvida' sobre a existência de 'circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena' impõe o seu reconhecimento, com fulcro nos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo. Quarta Câmara Criminal. Relator: Sidney Eloy Dalabrida, 17 de outubro de 2019. Disponível em: https://tj-sc.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/773755160/apelacaocriminala124067120158240038joinville-0012406-7120158240038?ref=juris-tabs. Acesso em: 20 mar. 2020.
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______. Tribunal Regional Federal da 3ª Região (5. Turma). Apelação Criminal 8192 - SP – São Paulo. Penal - tráfico internacional de entorpecentes - autoria e materialidade delitiva - comprovação - internacionalidade comprovada - causas excludentes de ilicitude e culpabilidade não caracterizadas. Relator: Des. Luiz Stefanini, 14 de abril de 2014. Disponível em: https://trf 3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25156888/apelacao-criminal-acr-8192-sp-0008192 8720114036119-trf3?ref=serp . Acesso em: 18 mar. 2020.
______. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (7. Turma). Apelação Criminal 5007986-PR – Paraná. É do órgão acusatório o ônus de provar a responsabilidade penal do réu, não sendo admitida a sua inversão, tendo em vista o postulado constitucional da presunção de inocência. Mantida a absolvição do réu. Relator: Luiz Carlos Canalli, 17 de março de 2020. Disponível em: https://trf-4.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/822764125/apelacao-criminal-acr-50079869120124047002-pr-5007986-9120124047002?ref=serp. Acesso em: 27 mar. 2020.
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[1] Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. E-mail:
[2] Orientador, Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Mestre em Direito pela Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul- PUCRS E-mail: [email protected].
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Danilo de Oliveira. Ônus da prova na legítima defesa: uma análise à luz da presunção de inocência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 maio 2020, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54544/nus-da-prova-na-legtima-defesa-uma-anlise-luz-da-presuno-de-inocncia. Acesso em: 23 dez 2024.
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