Resumo: As mortes violentas passaram a ser veiculadas na mídia com maior frequência, essa massificação da violência em sentido amplo, tem deixado uma lacuna aberta entre justiça e sociedade, que transmite para a coletividade uma sensação de impunidade. A descrença no poder judiciário por uma grande parcela da população, aflora o sentimento de impotência e aumenta a intolerância, com isso, cresce o desejo de “justiça com as próprias mãos”. O linchamento que é uma prática coletiva de execução sumária, tem se tornado praxe nas ruas de Manaus, entre os anos de 2015 a 2018 foram 69 casos, que culminaram com óbito. Nessas práticas coletivas, os envolvidos agem como juízes da vida, sem qualquer respaldo legal, sem qualquer apuração, cujo objetivo é a de “fazer justiça com as próprias mãos” com o intuito de punir exemplarmente. Portanto, buscar a consumação da justiça com as próprias mãos, é um retrocesso em um Estado Democrático de Direito, onde a Constituição Federal assegura aos acusados o contraditório e a ampla defesa.
Palavras-chave: Linchamento - Violência - Impunidade.
1.Introdução
As mortes violentas passaram a ser exploradas na mídia com maior frequência, essa exposição da violência nos meios de comunicação vem sendo o carro chefe dos noticiários que são divulgados com ênfase no dia a dia. A banalização da violência deixa uma lacuna aberta, transmitindo para a população a sensação de impunidade, tal sentimento tem feito com que uma grande parcela da população desacredite na justiça.
Para Lopes (2016) os atos de violência, linchamentos e mortes cometidos pela população vem crescendo assustadoramente. Em meio a esse cenário, o fenômeno do linchamento tem se tornado praxe na região metropolitana de Manaus conforme noticiaram os principais jornais da capital amazonense. Martins (2015) salienta que o justiçamento popular, que nada mais é que a “justiça com as próprias mãos” é um retrocesso em um estado democrático de direito.
A ausência de punição nos vários tipos de crimes gera um descontentamento com a justiça, tal sentimento nutre a vontade de se fazer “justiça com as próprias mãos”. ICJBrasil (2017) que pesquisa o Índice Confiança de Justiça no Brasil, mostrou que cerca de 24% confiam no judiciário, de 2013 para 2017, a confiança no judiciário caiu 10 pontos percentuais, esses números refletem o descrédito que os cidadãos têm perante ao poder judiciário.
Implicitamente, é nítido a perda de confiança que a população tem na justiça, a desconfiança no poder judiciário pode ser um dos fatores que tem levado as pessoas a agirem nas vias públicas como “juízes” sem respaldo legal, com objetivo de “fazer justiça”, cuja finalidade é o de punir exemplarmente .
Neste artigo, aborda as questões de linchamento que culminaram com óbito. Acredita-se que a quantidade de agressões coletivas sejam bastante elevadas, pois o “acerto de conta” no crime organizado se encaixa no perfil de “justiça com as próprias mãos”, mas não é objeto deste estudo.
O sentimento impunidade por grande parte da população, é uma premissa das possíveis causas que desencadeiam esse fenômeno de agressão em Manaus. Ressalta-se que não se sabe ao certo, se as pessoas envolvidas nesse tipo de crime são punidos a rigor da lei, uma vez que, a mídia não dá enfoque nos casos, dos 69 casos, apenas em um deles, foi noticiado que os envolvidos foram identificados e denunciados pelo Ministério Público do Amazonas - MPAM.
Este trabalho tem como objetivo averiguar se as pessoas que participam direta ou indiretamente dos linchamentos são punidas pela justiça e qual a forma encontrada pelo estado para coibir esse tipo de crime e punir os agressores que participam dos linchamentos.
Esta pesquisa visa mostrar como ocorre o ato de linchamento, e quais são as características desse tipo de agressão. Também o que leva as pessoas a se juntarem em grupos e por um curto período de tempo se instituírem “juízes” sem que o contraditório e a ampla defesa sejam aplicados. E por fim, além dessa seção introdutória, este artigo está estruturado em: seção 2 apresenta o embasamento teórico, seção 3 mostra a análise, seção 4 considerações finais.
2. Justiça com as próprias mãos
Uma das possíveis causas para "justificar" esse tipo de crime é a sensação de impunidade vivida pela população, porém há uma variação no que tange o motivo, mas a prática são as mesmas. Martins (1996) aponta que o que leva a multidão à prática do linchamento é a motivação conservadora, pois acredita-se que aplicando castigo coletivo, está se aplicando um castigo exemplar.
Segundo Sinhoretto (2009) "os linchamentos são práticas coletivas de execução sumária de pessoas consideradas criminosas" para exemplificar esse conceito, grupos de pessoas rodeiam a vítima e praticam múltiplas agressões, logo após o ato, o grupo se dissolve.
Benevides (1982) salienta que há duas formas de linchamento, anônimos e comunitários, nesse projeto será dado enfoque apenas no linchamento anônimo. Ainda Benevides (1982) os linchamentos anônimos visariam a execução de um suposto delinquente por pessoas não necessariamente por ele atingidas.
O linchamento anônimo é característico dos centros urbanos, onde um simples eco de "pega-ladrão" é o suficiente para chamar a atenção das pessoas, que na grande maioria das vezes, não foram atingidas pelas ações do delinquente, porém, se sentem no dever de agredir o indivíduo que praticou um delito isolado, Sinhoretto (2009).
Esse envolvimento individual que forma um grupo e culmina com o linchamento, chama-se a atenção da espontaneidade para a formação e dissolução logo após a prática da agressão coletiva. Martins (1996) afirma que nesses casos "o linchamento tem caráter espontâneo e o típico linchamento se configura em decisão súbita, difusa, irresponsável e irracional da multidão".
Ainda Martins (1996) os linchamentos são constituídos por reunião ocasional de grande número de pessoas e a consequente formação de multidão. Nesse caso a razão é deixada de lado e sobre o impulso coletivo os integrantes do grupo tornam-se agressores orquestrados pelo sentimento de justiça.
Esse sentimento de justiça praticada pela coletividade com o intuito de punir, é relatada por Foucault (2006).
No caso de uma justiça popular, não há três elementos; há as massas e os seus inimigos. Em seguida, as massas, quando reconhecem em alguém um inimigo, quando decidem castigar esse inimigo – ou reeducá−lo − não se referem a uma ideia universal abstrata de justiça, referem−se somente à sua própria experiência, à dos danos que sofreram, da maneira como foram lesadas, como foram oprimidas. Enfim, a decisão delas não é uma decisão de autoridade, quer dizer, elas não se apoiam em um aparelho de Estado que tem a capacidade de impor decisões. Elas as executam pura e simplesmente.
O sinônimo da justiça relatada por Foucault, é a agressão coletiva, popularmente denominado de linchamento, que pode ser caracterizada como um meio de julgamento e condenação sem a anuência do estado de direito, logo sem chances de defesa por parte do real, quando culmina com o óbito do agredido(a).
2.1 Realidade dos linchamentos ocorridos em Manaus ocorridos entre os anos de 2015 a 2018
Em relação aos linchamentos ocorridos nos últimos 4 anos que compreendem aos anos de 2015 a 2018, foi feito uma pesquisa no sítio da secretaria de Segurança Pública do Amazonas, mas não foi encontrado informações sobre crimes de linchamento.
Entretanto foi analisado as principais mídias que veiculam notícias em Manaus, dentro do período de realização dessa pesquisa foram constatadas as seguintes ocorrências: O Jornal D24AM (2017) publicou que em 2015 de acordo com fontes da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Amazonas (SSP-AM) registrou dois casos de linchamento em Manau. Em 2016, segundo o Jornal Emtempo (2017) ocorreram 26 casos de pessoas assassinadas por espancamento da população. O jornal A Crítica (2018) relatou que em 2015, 2016 e 2017 ocorreram 56 casos de mortes oriundas de linchamentos. Em 2018 foram 13 casos conforme noticiou a página do G1 AMAZONAS (2019). Vide tabela 1.
Tabela 1 - Número de linchamentos em Manaus (anos 2015, 2016,2017,2018)
Cidade |
Ano |
Linchamentos consumados |
Manaus |
2015 |
2 |
2016 |
26 |
|
2017 |
28 |
|
2018 |
13 |
Fonte: Guia de midia
Ressalta-se que esse números são referentes aos linchamentos que culminaram com óbito, outros tipos de “justiça com as próprias mãos” que terminaram com lesões e/ou vítimas de acerto de contas oriundas do tráfico de drogas não foram incluídos neste estudo.
Em dos casos ocorrido em 2018, onde um jovem de 16 anos das iniciais K.C.O, quando o mesmo retornava da escola e foi confundido com um “ladrão”, o mesmo foi espancado até a morte, esse caso ainda não foi julgado, mas o Ministério Público conseguiu identificar os envolvidos que tiveram participação direta e indireta, e acrescentou que a morte foi ocasionada por:
“Conforme a denúncia do MP-AM, Kayube foi morto em via pública a pauladas, chutes, socos, pedradas e facadas, pelos denunciados e por outros indivíduos ainda não qualificados no processo. A ação violenta causou à vítima traumatismo craniano encefálico, múltiplas lesões na cabeça e agressão física” Acritica.com (2018) .
Nesses casos os agressores agem como juízes, movidos pelo sentimento de fazer “fazer justiça”. O promotor de justiça que atua no caso destacou:
“O promotor destacou que os réus agiram de forma arbitrária, como juízes da vida, sem qualquer respaldo legal, sob o pretexto de, sumariamente, sem qualquer apuração, estar reprimindo práticas delituosas” Acritica.com (2018) .
De acordo com o relato da promotoria, o linchamento é uma prática arbitrária, cuja os envolvidos agem como juízes, sem qualquer respaldo, encurralam a vítima que não tem nenhuma chance de defesa perante ao tribunal dos justiceiros. Sinhoretto (2009), alega que tais práticas tem como objetivo de dar uma punição exemplar, pois acreditam que a repercussão do ocorrido intimidará novos indeliquentes a cometerem crimes.
A C.F. em seu art. 5º inciso XXXIX, assim como no código penal art. 1º, dispõe que “Não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988). Esse princípio que é o da legalidade, vai de encontro com a execução primária, no qual os “linchadores” acreditam que ao agredir alguém que cometeu algum delito, suas ações serão isentas ou absorvidas perante a justiça.
Entretanto, a vontade do povo não é plena e/ou soberana, logo, não cabe a grupos de indivíduos julgar e punir aqueles que de alguma forma transgrediram a lei. Segundo o Superior Tribunal de Justiça - STJ (2020) “se a vontade do povo fosse plena e soberana, deveríamos permitir linchamentos públicos”.
Contudo, uma das premissas do linchamento é a descrença por parte da população na justiça comum, por isso, recorrem a tais atos. Costa (2014) salienta que os populares não acreditam que os criminosos serão serão punidos decidem julgá-los sumariamente, impondo pena de morte como sanção. Ainda Costa (2014), os cidadãos revoltados com a justiça resolvem impor sua vontade ao estado, pois demonstram sua insatisfação com o judiciário conforme pesquisa realizada pelo ICJBrasil (2017).
Essa descrença na justiça, leva a população a utilizar a seguinte frase “lei não pune bandidos”, esta frase tem se multiplicado junto a população. Costa (2014) salienta que “o que é comum em todos os casos é a fúria com que a população executa ou tenta executar o indivíduo, não questionando os motivos que levam a cometer a atrocidade contra seu semelhante, amigo ou vizinho”. Desta feita, os participantes, na maioria das vezes, se juntam para fazer justiça sem nenhuma justificativa
3. Análise do crime de linchamento
Como foi abordado nos itens 2 e 2.1, o linchamento é um crime cuja finalidade é punir exemplarmente, ou seja, a busca da consumação da justiça com as próprias mãos, Fretias (2015) salienta:
Um linchamento é um assassinato (ou uma tentativa) cometido por um grupo grande de pessoas, cujas motivações conjugam a ideia de execução sumária, justiça social e vingança. Os contextos podem variar, mas o caráter coletivo da ação, a ideia de justiça com as próprias mãos e os preconceitos que geralmente orientam esse tipo de comportamento são elementos comuns na maioria dos episódios.
Entretanto, nesse contexto, fica a seguinte pergunta. Qual é a pena aplicada as pessoas que participam de linchamento? Costa (2015) salienta que o que se tem de concreto é a impunidade dos linchadores, a aceitação pela sociedade de justiça ou crime.
Nas mídias pesquisadas não se fala em prisão dos envolvidos nos casos de linchamento, exceto os envolvidos no caso K.C.O, citado no item 2.1. A ausência de prisão in locu do crime, faz com que muitos indivíduos que participam das agressões coletivas fiquem impunes.
Nesses casos, como o que vitimou o menor K.C.O, não se pode alegar legítima defesa, pois percebe-se que há forças desproporcionais empregadas contra uma pessoa. Sobre legítima defesa o Art. 25 “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Do total de linchamentos ocorrido em Manaus no período de 2015 a 2019, o caso K.C.O foi o único que ganhou notoriedade na mídia local. Quanto aos demais casos, não se sabe o curso do processo, também não se sabe o número de pessoas que participaram direta e/ou indiretamente e se os mesmos foram denunciados pelo MPE/AM.
Então, com base nas pesquisas realizadas, a pergunta: Qual é a pena aplicada as pessoas que participaram de linchamento? Não momento, ficará sem resposta, prevalecendo o que fora colocado por Costa (2014), prevalecendo a impunidade dos linchadores.
4. Considerações finais
Viver em sociedade nos faz abdicar de direitos em função de um bem maior, em um estado de direito, a vontade individual ou coletiva, mesmo que soberana são limitadas pelas Leis, Costa (2014). Tal limitação, impõe restrições individuais aos cidadãos, mesmo estes dotados de livre arbítrio e vontade própria. A CF garante aos cidadãos brasileiros e estrangeiros a inviolabilidade do direito à vida.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
O cidadão, independente da gravidade do delito, tem a seu favor o direito ao contraditório e a ampla defesa. Nos julgamentos rápidos ocorridos nas vias públicas, os acusados não dispõe dessa prerrogativa, pois os “‘juízes” agem de forma arbitrária e sem respaldo legal, às vezes sem mesmo conhecer o motivo pelo qual estão participando.
No caso K.C.O, ocorreu uma série de agressões sem nenhum pretexto, ou seja, sem qualquer apuração para averiguar se a vítima tinha ou não cometido algum crime. Percebe-se que o único objetivo é “fazer justiça com as próprias mãos” cujo intuito é punir exemplarmente alguém, pois acredita-se que servirá de lição.
Como já discorrido, essa reunião se dá pelo simples eco de “pega ladrão”, que reúne ocasionalmente uma certa quantidade de pessoas com a mesma finalidade e culmina no linchamento e consequentemente termina em óbito. Após a ocorrência, o movimento é desfeito rapidamente, geralmente a vítima fica estendida ao chão, pois geralmente está morta. Nota-se que a mesma mídia que explora os casos de violência, para esses casos é dado pouca ênfase, na maioria das vezes, os envolvidos diretamente não são identificados.
Como já fora mencionado neste trabalho, não foram encontrados relatos de prisões de linchadores. São 69 casos que estão ficaram no esquecimento, exceto exceto o caso K.C.O. Costa (2014), salienta que torna-se difícil de tipificar o linchamento em homicídio qualificado, lesão corporal grave, exercicio arbitrario das proprias razões ou crime de bando ou quadrilha.
Esses crimes denunciam a omissão do estado. A ausência de políticas efetivas de combate ao crime e a falta de confiança da população na justiça são fatores que podem ter contribuído para o aumento de números de linchamento. Lincha-se muito, isso mostra que o pensamento da sociedade vão de encontro com os ideais de um estado democrático de direito.
O linchamento é somente um dos problemas de violência urbana que escancara a fragilidade do estado, nesse cenário prevalece a vontade individual sedenta por justiça. Tal prática é arbitrária, pois a vontade de terceiros ultrapassa os limites da lei. É um tema importante e que precisa ser debatido, pois tais práticas são frutos da insegurança e do descrédito na justiça. Portanto, o estado precisa com urgência coibir esse tipo de violência, pois em um estado de direito as leis devem limitar a vontade individual.
4. Referências
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Sinhoretto, Jacqueline. Linchamentos: insegurança e revolta popular, Revista Brasileira de Segurança Pública | Ano 3 Edição 4 Fev/Mar 2009
Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus CEULM/ULBRA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CONCEICAO, FERNANDA DA MACENA. O Linchamento como Forma de Justiça Coletiva na Cidade de Manaus Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 maio 2020, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54545/o-linchamento-como-forma-de-justia-coletiva-na-cidade-de-manaus. Acesso em: 23 dez 2024.
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