Resumo: O presente trabalho pontua o surgimento do pacote Anticrime como uma forma de minimizar a incidência do crime organizado, seus aspectos peculiares frente ao cenário brasileiro incorporando a figura do juiz de garantias, como forma de resguardar a efetividade das garantias fundamentais do indivíduo frente a sistemática processual penal.
Palavras-Chave: Pacote Anticrime. Juiz de Garantias. Imparcialidade. Efetividade.
Abstract: The present work points out the emergence of the Anticrime package as a way to minimize the incidence of organized crime, its peculiar aspects in the Brazilian scenario, incorporating the figure of the guarantees judge, as a way to safeguard the effectiveness of the individual's fundamental guarantees in view of the procedural system penal.
Sumário: Introdução. 1. 1. Pacote Anticrime e sistema acusatório. 1.2. Reflexos do pacote Anticrime no art. 28 do CPP. 1.3. Outros reflexos do pacote Anticrime. Conclusão. Referências Bibliográficas.
Introdução
O pacote Anticrime encampado pela Lei 13.964/19 foi vetado em alguns artigos, mas foram vetos de menor monta. Logo, a sua essência restou preservada. Registre-se que a Lei 13.964/19 foi sancionada, como “presente” de papai noel, na véspera de Natal, em 24 de dezembro de 2019, e, tido como a grande novidade natalina, entrou em vigor após o lapso temporal de trinta dias, depois de sua publicação oficial. Já está nas ruas, bancos, praças e tribunais brasileiros!
O juiz de garantias, conhecido como juiz imparcial que irá atuar antes da instrução probatória, já era uma realidade discutida pelo ordenamento jurídico em tempos pretéritos. Muito embora seja considerado uma novidade no pacote Anticrime, de novidade pouco se tem. Isso porque o instituto já era previsto no projeto do Código de Processo Penal, já tendo sido aprovado (até a presente data!) no Senado Federal. O tema veio a lume com o projeto do Código de Processo Penal por constituir-se em realidade fática no cenário nacional. Surge para suprir uma demanda e prevenção à parcialidade do magistrado. Não vamos muito longe: Não houve mesas paralelas e o olhar superior do juiz, mas cadeiras laterais entre juízes e promotores de justiça no caso da operação lava jato, em que tais personagens seguiram, trocando, entre si, “figurinhas” dentro e fora do recinto. Para banir tais práticas tornou-se premente a figura do juiz de garantias. Garantidor do quê? Ora, garantidor de um processo adequado, isonômico e justo, presidido por um juiz imparcial.
1.1.Pacote Anticrime e o sistema acusatório.
O nosso sistema processual penal, em função do disposto no art. 129, I da CR, é um sistema acusatório. Sofreu críticas acirradas acerca disso, haja vista que o Código de Processo Penal, fruto da ditadura, do Estado Novo sofreu reformas parciais que afetaram alguns dispositivos, esquecendo-se de outros. O Código de Processo Penal sempre fora visto como um edifício em ruínas, despido de unidade sistêmica. Cobria-se um santo e despia-se outro. Logo, as figuras do impedimento e da suspeição, por si sós, não foram suficientes para se resguardar a total imparcialidade do magistrado, já que o próprio CPP permitia que o órgão julgador buscasse as provas que entendesse necessárias para a instrução da causa.
A visão garantista de Luigi Ferrajoli muito já criticava a produção de provas de ofício pelo magistrado, insculpida no art. 156 do CPP, rotulando, dessa forma, o sistema acusatório de impuro. Falavam em caráter suplementar de produção de provas de ofício, para que tal dispositivo fosse salvo no sistema. Mas o Código, já uma colcha de retalhos, pedia socorro e pouco gente ouvia.
De igual modo criticou-se bastante a sistemática da remessa do inquérito para as mãos do magistrado, com Estados da federação criando a figura das centrais de inquérito, retirando-se, desse modo, das mãos iniciais do juízo os inquéritos que tinham como protagonistas indiciados soltos. O grande problema é que as centrais de inquérito, elaboradas por resoluções, não contavam com a reserva legal, até que inseridas, em momento posterior, na Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio Janeiro. A conversa foi a seguinte: Declarada a inconstitucionalidade formal da Lei orgânica do Ministério Público do Rio de Janeiro pelo Supremo Tribunal Federal, quando chamado à apreciar o tema, as centrais de inquérito cariocas foram copiadas por vários estados brasileiros. Era água de cachoeira após um período de chuva. O barro quase tomando conta da água, na aguçada visão do observador. Muito de barro, mas a força da água pujante!
A fim de resgatar água limpa, o objetivo maior do pacote Anticrimes foi banir a figura do juiz paternalista. Se a parte não produziu a prova, com menos razão deverá produzi-la quem irá julgá-la. Se a prova não chegou aos autos pelas mãos das partes (os protagonistas da cena do crime) compete ao juiz absolver o réu por insuficiência de provas, sob pena de violação a um pressuposto processual de validade do processo, qual seja, a imparcialidade do magistrado.
1.2.Reflexos do pacote Anticrime no art. 28 do CPP.
O artigo “bola da vez” do pacote anticrimes é o art. 28 do CPP, objeto de grandes modificações. Pela sistemática anterior, se o promotor de justiça requeria o arquivamento por falta de justa causa, a título de exemplo, e o juiz não concordasse, haveria a remessa dos autos pelo juiz para que o chefe da instituição (Procurador Geral de Justiça) decidisse sobre o caso, atuando o juiz como fiscal do princípio da obrigatoriedade, função anômala do juiz, por ser uma função administrativa. Essa busca desenfreada pelo interesse na reforma do arquivamento pelo juiz implicava em juízo negativo de arquivamento, internalizado pela mente do magistrado.
O pacote Anticrimes retirou o juízo do papel de fiscal do principio da obrigatoriedade. Em outras palavras: juiz, não meta o bedelho aonde não foi chamado. Agora a obrigatoriedade do juízo é ficar inerte e deixar que os membros do Ministério Público resolvam o deslinde, no que toca ao arquivamento de inquérito policial. Em vislumbrando a necessidade do arquivamento, o promotor de justiça remeterá os autos ao Conselho Superior do Ministério Público, um colegiado, para que se decida acerca da reanalise da opinio delicti. Um órgão plural reduz as chances de erros, afinal, já nos ensina o ditado popular: “ duas cabeças pensam melhor do que uma!”.
Observe o leitor a nova redação do art. 28 do CPP, com a redação fornecida pelo pacote anticrime:
Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019).
§ 1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial.
Agora o Ministério Público não requer mais o arquivamento. Ele remete o arquivamento à Instância Revisora, para que o Conselho Superior do Ministério Público ou a Câmara Revisora deliberem sobre o arquivamento.
A título de exemplo, no que concerne ao tipo do art. 28 § 2º vislumbre o leitor o seguinte caso concreto da vida como ela é: Amarildo Barriga, servidor público da prefeitura de Deus me Livre do Oeste foi tido como suspeito do crime de peculato pela subtração de três computadores da prefeitura da cidade. O promotor de justiça local entendeu que não havia o lastro probatório mínimo para a deflagração da ação da ação penal, já que o indiciado possuía álibi e, para tanto, remeteu os autos do inquérito para a chefia da instituição, ao argumento de falta de justa causa para a propositura da ação penal. O prefeito, indignado, foi bater as portas do Conselho Superior do Ministério Público, a fim de que tal arquivamento fosse revisto. Tal proceder do prefeito encontra consonância com o atual artigo 28 do CPP. Isso porque sendo o Município vítima (sujeito passivo) do crime de furto, em não possuindo o município procurador, a representação pelo prefeito se deu de maneira escorreita.
Note o leitor a pedra de toque do art. 28 § 2º do CPP: Agora quem faz as vezes de fiscal do princípio da obrigatoriedade no caso de arquivamento do inquérito policial não é mais o juiz, mas os prefeitos e procuradores dos entes federativos. O juiz cedeu a toga ao prefeito, em verdadeira desjudicialização.
1.3.Outros reflexos do pacote Anticrime.
O pacote Anticrime traz um juízo novo para atuar na fase do inquérito. Uma verdadeira peneira para filtrar a água do barro. O juiz de garantias é o primeiro a ser chamado para decidir sobre as medidas cautelares, não se contaminando o juízo da instrução criminal com medidas cautelares pleiteadas no momento da fase inquisitiva. Assim asseguram-se as garantias fundamentais do cidadão. Por isso, o nome, juiz de garantias.
Outra inovação é que o inquérito não acompanha os autos para fins de ação penal. O inquérito ficará resguardado no cartório do juízo de garantias. Vejamos alguns dispositivos:
Art. 3, A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
O Legislador enviou ao aplicador da lei o seguinte recado: A verdade real não se dá a qualquer preço!
Art. 3, B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XI - decidir sobre os requerimentos de: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
c) busca e apreensão domiciliar; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
d) acesso a informações sigilosas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
O juiz de garantias vai ser o presidente da audiência de custódia. Tudo aquilo que era feito na fase inquisitorial veio para as mãos do juiz de garantias. O juiz de garantias vai atuar até a fase de apresentação de resposta à acusação. Quem rejeita ou recebe a denúncia é o juiz de garantias, determinando a citação do réu e resposta a acusação, verificando se é o caso de absolvição sumária ou não. É dele e somente dele tal juízo de admissibilidade. Confirmado o recebimento da denúncia, os autos seguem para o juízo de instrução. E lá seguirá o seu curso com a figura de um juízo descontaminado dos elementos informativos obtidos na fase inquisitorial. Agora sim fez sentido a frase bíblica: Dai a César o que é de César!
Conclusão
Se por um lado o pacote Anticrime buscou a aumentar a eficácia de um juiz imparcial na luta contra o crime organizado, por outro lado irá flexibilizar o princípio da verdade real com a figura do juiz de garantias, impondo-se a absolvição do acusado no caso de ausência de provas, ante o impedimento de colheita de provas pelo juízo que irá julgá-las.
Fato é que o princípio da imparcialidade do julgador é a mola propulsora do juiz de garantias. Também não é menos certo de que o juiz da instrução não procura provas. Tal premissa faz jus a assertiva de que antes um bandido nas ruas a um inocente na cadeia.
Isto posto, a verdade a qualquer preço não se coaduna com os Estado Democrático de Direito. Instituiu-se o juiz de garantias para que o sistema processual penal não sucumbisse frente as reformas parciais e cada vez menos eficazes e coerentes. Se isso é bom ou ruim o tempo é quem irá nos dizer. Esperamos que o pacote Anticrime não seja um mero reflexo do direito penal simbólico - e que as garantias fundamentais do indivíduo não façam da Lei Maior mera folha de papel, nas palavras de Lassalle. Que seja eterno enquanto dure! E que dure o suficiente para garantir efetividade ao sistema.
Referências Bibliográficas.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de: Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa: Processo Penal. Vol. 1 a 4. São Paulo: Saraiva, 2007.
FERRAJOLI, Luigi: Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002
Ex Tabeliã pelo TJMG. Especialista em Compliance Contratual, pela Faculdade Pitágoras. Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa – Montevideo – UY. Escritora. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAULA NAVES BRIGAGãO, . Pacote Anticrime e o Juiz de Garantias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 maio 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54571/pacote-anticrime-e-o-juiz-de-garantias. Acesso em: 22 nov 2024.
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