RESUMO: O presente estudo visa traçar um panorama a respeito da aplicabilidade das ações coletivas passivas no ordenamento jurídico pátrio, especialmente diante da divergência instaurada doutrinariamente a respeito da possibilidade da coletividade ser demandada em ações coletivas quando causadora de lesões.
PALAVRAS-CHAVE: ação coletiva, legitimidade extraordinária passiva, defand class actions, demandas múltiplas, acesso à justiça.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA PASSIVA NAS AÇÕES COLETIVAS. 2.1. A TUTELA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS. 2.2 LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA PASSIVA NA TUTELA COLETIVA. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS.
Com o advento do Neoconstitucionalismo, criou-se a ideologia de uma nova dogmática jurídica, atrelando o texto constitucional à limitação de poder e à busca pela eficácia da Constituição. Esse novo modelo normativo visou assegurar a pacificação social diante dos novos conflitos de interesse advindos com a evolução da sociedade, de modo a tornar mais efetiva a garantia de concretização dos direitos fundamentais, sejam eles difusos, coletivos ou individuais homogêneos
Assim é que de modo a viabilizar o efetivo acesso à justiça dos titulares de direitos transindividuais e a universalidade da jurisdição, o processo coletivo trata conjuntamente e de modo equânime demandas que, por motivos afetos à relação jurídica ou fática adjacente, à titularidade do direito e à divisibilidade do objeto, restariam pulverizadas numa infinidade de ações individuais com possíveis decisões contraditórias.
Nesse caminhar, a ação coletiva passiva se mostra como um mecanismo invertido a fim de evitar múltiplas demandas, nas quais a coletividade seria responsável por ocasionar lesões de massa.
A relevância do tema é inquestionável, especialmente em virtude da celeuma doutrinária existente a respeito da aplicabilidade da ação coletiva passiva no direito pátrio, tanto mais diante do possível impacto na realidade social subjacente em virtude de sua admissibilidade.
2. LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA PASSIVA NAS AÇÕES COLETIVAS
A conflituosidade de massa e a complexidade social enfrentada com o Pós Segunda-Guerra Mundial geraram a percepção de que o direito processual civil individual havia se tornado inadequado para a tutela de situações envolvendo interesses metaindividuais.
O processo coletivo nasce com um imperativo de duas ordens: primeiro para a tutela dos bens de terceira dimensão, ou seja, de titularidade indeterminada, sem que estejam estabelecidos claramente os legitimados para sua defesa; segundo, pra permitir que alguém tutele os interesses que, do ponto de vista individual, são economicamente inviáveis.
Destarte, constata-se que o processo coletivo tem o condão de tutelar o interesse público primário, ou seja, qualquer interesse público que se relacione diretamente com a realização de direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstas.
Busca-se, desse modo, a pacificação social dos conflitos de massa pela potencialização da solução dos imbróglios. O processo coletivo permite, portanto, o acesso à justiça e a molecularização dos conflitos, evitando decisões contraditórias e garantindo a economia processual.
O conceito de cada um dos interesses que integra o interesse coletivo transindividual é questão bastante turbulenta na doutrina pátria. A primeira distinção, encontra-se na relação jurídica em litígio, bem como nos destinatários do interesse em jogo e, finalmente, na divisibilidade ou não do bem da vida tutelado. Atualmente a matéria encontra respaldo no Código de Defesa do Consumidor.
Assim, conceitua o diploma consumerista que os interesses difusos são aqueles em que uma parcela indeterminada de pessoas, ligadas por uma mesma circunstância de fato, estão sendo atingidas nos seus direitos de natureza indivisível (art. 81, §único, I, CDC). São interesses indivisíveis, isto é, apenas admitem uma fruição, um aproveitamento coletivo, sendo seus interessados absolutamente dispersos, ou seja, não se exige entre eles nenhuma condição especial ou relação jurídica própria. A indivisibilidade e a dispersão alcançam proporções extremas, sendo impossível identificar quantos ou quais sejam os interessados. Os interessados são, portanto, indetermináveis. Como aplicação dos direitos difusos, pode-se citar a defesa do meio-ambiente ecologicamente equilibrado ou do patrimônio histórico e artístico de uma comunidade.
Nota-se que o conceito de direito transindividual é residual, aplicando-se a todo direito material que não seja de titularidade de um indivíduo, seja ele pessoa humana ou jurídica, de direito privado ou público. No caso específico do direito difuso, o titular é a coletividade, representada por sujeitos indeterminados e indetermináveis. São direitos que não têm por titular um só sujeito nem mesmo um grupo determinado de sujeitos, referindo-se a um grupo social, a toda a coletividade, ou mesmo a parcela significativa dela. O segundo elemento é a natureza indivisível, voltado para a incindibilidade do direito, ou seja, o direito difuso é um direito que não pode ser fracionado entre os membros que compõem a coletividade. Dessa forma, havendo uma violação ao direito difuso, todos suportarão por igual tal violação, o mesmo ocorrendo com a tutela jurisdicional, que, uma vez obtida, aproveitará a todos, indistintamente.” TARTUCE e NEVES, 2018, p. 1272)
Por sua vez, os interesses coletivos também são indivisíveis, mas, ao contrário dos difusos, possuem destinatários determináveis, identificados por uma relação jurídica-base (art. 81, §único, II, CDC). Trata-se de interesse com dimensões metaindividuais, mas plenamente possível identificar-se a coletividade ou grupo de pessoas que são particularmente interessados. A lesão afeta — indivisivelmente — uma categoria, um grupo ou uma determinada classe de pessoas, não sendo extensiva a toda a comunidade. Ressalve-se que os interessados, diferentemente dos interesses difusos, não estão unidos por circunstância fática, mas por um vínculo comum de natureza jurídica.
Cabe ressalvar que a relação-base necessita ser anterior à lesão (caráter de anterioridade). [...] O elemento diferenciador entre o direito difuso e o direito coletivo é, portanto, a determinabilidade e a decorrente coesão como grupo, categoria ou classe anterior à lesão, fenômeno que se verifica nos direitos coletivos stricto sensu e não ocorre nos direitos difusos. Portanto, para fins de tutela jurisdicional, o que importa é a possibilidade de identificar um grupo, categoria ou classe, vez que a tutela revela -se indivisível, e a ação coletiva não está disponível aos indivíduos que serão beneficiados. (DIDIER e ZANETI, 2017, p. 77)
Diversamente dos interesses referidos anteriormente, os direitos individuais homogêneos são interesses divisíveis, que podem ser atribuíveis aos seus titulares. São interesses plenamente quantificáveis, sendo, portanto, seus titulares identificados e identificáveis. São em suma, interesses individuais, que possuem, uma característica peculiar, derivam de uma origem comum (art. 81, § único, III do CDC).
(...) os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não altera nem pode desvirtuar essa sua natureza. O qualificativo é destinado a identificar um conjunto de direitos subjetivos individuais ligados entre si por uma relação de afinidade, de semelhança, de homogeneidade, o que propicia, embora não imponha, a defesa coletiva de todos eles. Para fins de tutela jurisdicional coletiva, não faz sentido, portanto, sua versão singular (um único direito homogêneo), já que a marca da homogeneidade supõe, necessariamente, uma relação de referência com outros direitos individuais assemelhados. Há, é certo, nessa compreensão, uma pluralidade de titulares, como ocorre nos direitos transindividuais; porém, diferentemente destes (que são indivisíveis e seus titulares são indeterminados), a pluralidade, nos direitos individuais homogêneos, não é somente dos sujeitos (que são indivíduos determinados ou pelo menos determináveis), mas também do objeto material, que é divisível e pode ser decomposto em unidades autônomas, com titularidade própria (e, por isso, suscetíveis também de tutela individual). (ZAVASCKI, 2017, p. 40)
Percebe-se que esses direitos possuem pontos comuns e divergentes entre si. Os interesses difusos e os interesses coletivos têm natureza indivisível, diferem pela origem da lesão e pela abrangência do grupo. Os direitos coletivos e os individuais homogêneos, por sua vez, se igualam no que diz respeito ao grupo lesado, sendo ambos determináveis, porém, diferem quanto à divisibilidade do interesse e pela origem da lesão.
Quando o resultado do processo é igual para todos, para todo um grupo, sem distinção em relação ao outro, fala-se em direito coletivo. A título exemplificativo tem-se que, na medida em que um determinado percentual de uma mensalidade escolar é estabelecido, este percentual se aplica a todos os alunos, sem qualquer diferença de um para outro. Caso a discussão verse sobre a devolução do dinheiro pago atinge-se o campo do direito individual, em que cada um irá pleitear o seu nos limites de seus próprios valores. Assim, na defesa dos direitos individuais homogêneos há uma diferenciação, que é justamente a identificação, em cada caso, do valor ou da lesão, enquanto no direito coletivo a situação jurídica é genérica e, portanto, indivisível.
Afere-se, nesse diapasão, que a classificação do interesse lesado dependerá de uma análise dos fatos concretos e do pedido que foi formulado na ação coletiva, o qual poderá fragmentar uma série de interesses atingidos pela mesma situação fática.
E, diante da diferenciação do ponto de vista material entre as espécies de direitos coletivos, convencionou-se identificar três fases evolutivas da tutela coletiva. A primeira, reconhecida como a fase da absoluta predominância individualista da tutela jurídica, os interesses da coletividade eram visualizados apenas no direito penal e no direito administrativo. Na segunda fase, os direitos coletivos passaram a ser tutelados de forma taxativa e fragmentária, de modo que apenas algumas espécies de direitos coletivos recebiam proteção legislativa, como o patrimônio público e o meio ambiente. Na atual fase, vivencia-se uma era de tutela jurídica integral, irrestrita e ampla, em que se pode verificar uma tutela jurídica coletiva holística, havendo a possibilidade de defesa de qualquer interesse ou direito transindividual processualmente.
É nesse linear histórico que impende destacar que as ações coletivas ingressaram no sistema processual brasileiro com a promulgação da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65), tendo sido o primeiro instrumento sistemático voltado à tutela de alguns interesses coletivos em Juízo.
Com o advento da Lei da Ação Popular, observou-se duas importantes alterações no sistema processual de tutela coletiva. A primeira foi a legitimação ativa, em que o cidadão passou a defender, em nome próprio, os direitos de toda coletividade, por meio de substituição processual. A segunda, por sua vez, está relacionada à coisa julgada, a qual permitiu a ampliação da tutela ao atribuir efeito erga omnes à decisão de procedência e possibilitar uma nova demanda em caso de improcedência por deficiência ou insuficiência de provas.
Posteriormente, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente trouxe a previsão de responsabilidade civil dos agentes poluidores do meio ambiente, atribuindo ao Ministério Público a legitimidade para a defesa do meio ambiente (art. 14 § 1, Lei 6.938/81).
Todavia, apenas com o advento da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85), inspirada nas Class Actions do direito estadunidense, é que a tutela dos direitos coletivos lato sensu passou a ser difundida e ter sua importância reconhecida, incorporando ao ordenamento jurídico institutos processuais coletivos, que começaram a propiciar uma tutela efetiva, dentre eles a legitimação concorrente e disjuntiva. Sob esse viés, a propositura das demandas coletivas ficou a cargo do Ministério Público, da Defensoria Pública, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das Autarquias, das Empresas Públicas, das fundações ou das sociedade de economia mista, bem como das associações que, concomitantemente estejam constituída há pelo menos um ano nos termos da lei civil e que inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, ao incorporar os preceitos do neoconstitucionalismo ao ordenamento jurídico, serviu de substrato para a criação de um microssistema de tutela coletiva, que veio a se solidificar com o Código de Defesa do Consumidor. Esse diploma trouxe novas regras, específicas e inovadoras para a tramitação dos processos coletivos, alterando profundamente a Lei de Ação Civil Pública e o panorama para a efetiva tutela coletiva de direitos, tal como é vista hodiernamente.
Pela digressão acima esposada, é observável que nada obstante a legislação pátria tenha expressamente previsto a pertinência subjetiva para a propositura das ações coletivas, deixou o legislador de mencionar acerca da possibilidade de um processo coletivo passivo, ou seja, de um dever jurídico ser cobrado de uma coletividade.
Conforme os ensinamentos de Flávio Tartuce e Daniel Amorim, o processo coletivo passivo deriva da relação jurídica de direito material, estando presente quando há um agrupamento humano sendo demandado em uma ação judicial:
“O processo coletivo passivo, portanto, é o processo no qual se discute esse dever ou estado de sujeição coletivo. A conceituação é importante porque afasta do âmbito do processo coletivo passivo pretensões meramente declaratórias que têm como objeto um direito coletivo, ainda que se possa imaginar nesse caso uma coletividade ou comunidade representadas – ou substituídas processualmente – no polo passivo. Definir-se quem será autor ou réu, ainda mais numa ação dúplice como é o caso da ação meramente declaratória, não é o suficiente para se determinar a espécie de processo coletivo – ativo ou passivo. O que interessa é a situação jurídica de direito material que forma o objeto do processo.” (TARTUCE e NEVES, 2018, p. 1432)
Infere-se das lições de Didier e Zanati que a ação coletiva passiva ocorre:
(...) quando um agrupamento humano for colocado como sujeito passivo de uma relação jurídica afirmada na petição inicial. Formula-se demanda contra uma dada coletividade. Os direito afirmados pelo autor da demanda coletiva podem ser individuais ou coletivos (lato sensu) – nessa última hipótese, há uma relação duplamente coletiva, pois os conflitos de interesses envolvem duas comunidades distintas. (DIDIER JÚNIOR e ZANETI JÚNIOR, 2017, 491-492)
No ordenamento jurídico pátrio estabeleceu-se uma certa celeuma a respeito da admissibilidade da ação coletiva passiva (defand class actions), mormente quando em cotejo a própria natureza transindividual dos interesses jurídicos, a legitimidade passiva da demanda, a competência da ação e o alcance da coisa julgada.
Assim, parcela da doutrina refuta a existência de ações coletivas passivas no direito pátrio, ventilando que, diferentemente das defend class actions estadunidentes, no sistema brasileiro inexiste um rígido controle da representação adequada no caso (ope judicis), de modo que a coisa julgada estaria sujeita ao resultado da demanda. Segundo afirma Antônio Gidi:
Nas class actions norte-americanas a legitimidade para condução de um processo coletivo é outorgada tanto do lado ativo como do lado passivo da ação. Dessa forma, o “representante” do grupo tanto pode ser autor como réu numa class action. Nas ações coletivas do direito brasileiro, todavia, somente se confere legitimidade “ad causam” ativa aos entes elencados no art. 5º da LACP e no art. 82 do CDC. Arruda Alvim observa que embora o art. 81 do CDC se refira à “defesa” dos direitos dos consumidores, essa expressão tem o significado de agir ativamente em juízo, e não a possibilidade de os entes do art. 82 serem réus em uma ação coletiva (ou individual). (GIDI, 1995. p. 51)
Os doutrinadores Cândido Dinamarco e Hugo Mazzilli coadunam do mesmo entendimento, levantando problemas como a ausência de lei autorizadora, a dificuldade de se determinar a representatividade da coletividade-ré, bem como o regramento da coisa julgada.
Vimos que, em princípio, qualquer pessoa pode ser ré em ação civil pública ou coletiva. Mas, em regra, a própria coletividade lesada, transindividualmente considerada, não está legitimada passivamente para essas ações. Pelo sistema hoje vigente em nosso Direito, os legitimados do art. 5 da LACP ou do art. 82 do CDC só substituem processualmente a coletividade de lesados no polo ativo, o que afasta a possibilidade de aqueles legitimados figurarem como réus, mesmo em reconvenção. (MAZZILLI, 2019, p. 453).
Consoante Leonel (2017, p. 248), essa posição restritiva em relação à possibilidade de aplicação das ações coletivas passivas no direito pátrio possui como premissa maior a preocupação de decisões judiciais prejudiciais à coletividade que não participou da ação. Sob o mesmo prisma Mazzilli (2019, p. 457) ressalta que “ainda que se institua uma ação coletiva passiva, não se pode chegar ao ponto de admitir a responsabilização de todo um grupo indeterminado pelos danos que alguns tenham causado à coletividade”.
Além disso, Rodolfo Mancuso ainda ressalta que:
Técnicas como a ampliação ope legis do objeto litigioso, ou a expensão subjetiva do julgado, permitem que por vezes o comando judicial venha a se distanciar do que fora estritamente pedido – na busca pela otimização da eficácia da resposta judiciária -, o que tem encontrado resistência em setores da doutrina nacional, dada a prevalência do chamado “princípio da demanda” ou da adstringência do julgado aos limites do pedido (CPC, arts. 2, 141, 492, caput). É que, nas class actions, prioriza-se a eficácia da reparação do bem coletivo lesado, antes que o mero “acolhimento” do pedido do autor, até porque o interesse não concerne somente a esse agente (que atua como um ideological plaintiff), e sim a um número mais ou menos indefinido de indivíduos (MANCUSO, 2019, p. 238).
Adriano Andrade, Cleber Masson e Landolfo Andrade (2019, p. 113) acrescentam que os argumentos desfavoráveis levantados pela doutrina referem-se também ao fato de que a substituição processual é instituto excepcional e que as normas que regem a ação coletiva autorizam a legitimação extraordinária somente no polo ativo, sendo incompatível o regime da coisa julgada coletiva por violar os postulados constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Nesse cenário, os autores afirmar que excetuam-se, apenas, as hipóteses de embargos à execução, embargos de terceiro, ação rescisória, ação anulatória de compromisso de ajustamento de conduta e os dissídios coletivos de trabalho e as ações propostas contra sindicatos procurando restringir o exercício abusivo do direito de greve.
De outro norte, a favor da possibilidade de ação coletiva passiva estão Rodolfo Carmargo Mancuso, Ada Pelegrini Grinover, Pedro Lenza, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti, que defendem o instituto com base na experiência estadunidente e na possibilidade de se garantir a efetiva prestação judicial e o acesso à justiça.
O que torna a ação coletiva passiva digna de um tratamento diferenciado é a circunstância de a situação jurídica litularizada pela coletividade encontrar-se no pólo passivo do processo. A demanda é dirigida contra uma coletividade, sujeita de uma situação jurídica passiva (um dever ou um estado de sujeição, por exemplo). Da mesma forma que a coletividade pode ser titular de direitos (situação jurídica ativa), ela também pode ser titular de um dever ou um estado de sujeição (situações jmídicas passivas). (DIDIER E ZANETI, 2017, p. 436)
Para Rodolfo Mancuso, a expansão da legitimação passiva seria capaz de evitar demandas múltiplas, em que a coletividade é responsável por lesões de massa:
A excessiva amplitude da legitimação passiva nas ações voltadas à tutela de interesses metaindividuais (que pode chegar a uma não-fixação apriorística dos demandados) não é casual, mas antes leva em conta fatores diversos, como as peculiaridades do caso concreto, as responsabilidades diversas, diretas e indiretas, emergentes segundo a natureza do dano produzido, o grau de informação das pessoas concernentes, a hierarquia entre os órgãos públicos envolvidos, a conveniência da extensão subjetiva da coisa julgada. (MANCUSO, 2019, p. 236).
Sob essa perspectiva, seria desnecessário uma previsão expressa específica a respeito do tema, devendo que se realizar uma interpretação sistemática do ordenamento.
Ademais, com fulcro nos arts. 39-A e 39-B do Estatuto do Torcedor, mencionados autores demonstram que a coletividade pode figurar no polo passivo de uma ação civil pública, já que a torcida organizada é considerada representante dos interesses de seus membros, os quais podem ser responsabilizados por eventuais transgressões cometidas por deus associados. In verbis:
Art. 39-A. A torcida organizada que, em evento esportivo, promover tumulto, praticar ou incitar a violência ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 5 (cinco) anos.
Art. 39-B. A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento.
Consoante os ensinamentos de Adriano Andrade, Cleber Masson e Landolfo Andrade (2019, p. 113), a corrente favorável acerca da legitimidade extraordinária passiva no direito brasileiro sustenta, em suma, que o art. 5º, § 2º, da Lei da Ação Civil Pública faculta ao Poder Público e a outras associações legitimadas habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes e que os arts. 81 e 82 do CDC não restringem a defesa dos interesses transindividuais ao polo ativo, cabendo ao juiz controlar a representatividade adequada dos réus.
Impende ressaltar que a sistemática trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 também corrobora para que a coletividade possa participar do litígio no polo passivo, como se pode perceber nas demandas possessórias movidas em face de grupo indeterminado ou indetermináveis de pessoas:
Art. 554. A propositura de uma ação possessória em vez de outra não obstará a que o juiz conheça do pedido e outorgue a proteção legal correspondente àquela cujos pressupostos estejam provados.
§ 1º No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.
Nessa linha, Fredie Didier e Zaneti (2017) dispõe que acaso não fosse admitida a demanda coletiva passiva, não seria possível o ajuizamento de ação rescisória da ação coletiva originária, os embargos à execução coletiva, o mandado de segurança impetrado pelo réu da ação coletiva contra ato judicial.
Por fim, questionamentos quanto à admissibilidade das ações coletivas perpassam em relação ao tratamento dado à coisa julgada, esclarecendo Fredie Didier e Zaneti (2017) que em se tratando de direitos difusos esta deve ser pro et contra e erga omnes, ou seja, independentemente do resultado do processo coletivo e vinculante a todos os membros do grupo dada a indivisibilidade da situação jurídica passiva. Aduzem os autores que este entendimento também deve ser aplicado à coisa julgada envolvendo os deveres coletivos stricto sensu, diferenciando-se apenas quanto à abrangência que deve ser ultra partes, restrita ao grupo de sujeitos envolvidos na lide.
Já nos casos de ações coletivas passivas propostas contra deveres individuais homogêneos, vozes doutrinárias entendem que a coisa julgada deve ser pro et contra e erga omnes no plano coletivo, inadmitindo discussão futura em ação coletiva. Nada obstante, essa decisão não teria extensão no plano individual caso fosse desfavorável aos interesses dos membros, podendo estes ingressar com ação própria para afastar seus efeitos. Nesse sentido, Ricardo de Barros Leonel propõe a admissibilidade das ações coletivas desde que não provoquem prejuízos às posições individuais, ressalvada autorização estatutária:
Admitindo que em certos casos há conflitos entre interesses coletivos (meio ambiente contra desenvolvimento urbanístico; saúde pública contra meio ambiente; empregadores agropecuários contra grupo social buscando estimular a reforma agrária através de ocupações ilícitas de imóveis, com danos ao meio ambiente; etc), não haverá dificuldade em reconhecer a possibilidade de obtenção de tutela declaratória contra o grupo, a categoria, classe (no caso dos interesses coletivos ou individuais homogêneos) ou mesmo contra a coletividade em sentido amplo (na hipótese de direitos difusos) [...] Essas imposições (condenações) que configuram a tutela jurisdicional serão possíveis só enquanto fixadas – frise-se, no plano coletivo, não sendo viável, ao menos no atual estado da ciência e do plano normativo, imaginar sua imposição individualmente aos sujeitos (pessoas) que integram aquela coletividade, que não participaram pessoalmente do feito. (LEONEL, 2017, p. 248-249).
Pelo exposto, infere-se que a ação coletiva passiva tem superado a resistência doutrinária existente, uma vez que, ainda que parcela dos juristas não reconheçam sua existência, admitem exceções para sua aplicabilidade no direito pátrio, de modo a tornar esse instituto um importante mecanismo na resolução de contendas na seara do processo coletivo.
Consoante exposto alhures, com o fito de viabilizar o efetivo acesso à justiça dos titulares de direitos transindividuais, bem como a universalidade da jurisdição, o processo coletivo potencializa o alcance de uma pacificação social dos conflitos de massa ao tratar conjuntamente e de modo equânime demandas que, por motivos afetos à relação jurídica ou fática adjacente, à titularidade do direito e à divisibilidade do objeto, restariam pulverizadas numa infinidade de ações individuais com possíveis decisões contraditórias.
As denominadas ações coletivas passivas - inspiradas nas defand class actions do direito estadunidente - são hipótese de legitimação extraordinária passiva, na qual a ação seria proposta contra ente que defenderia em nome próprio interesse de uma classe, grupo ou categoria de pessoas.
O processo coletivo passivo no ordenamento pátrio sofre argumentos contrários à sua aplicabilidade, sob a justificativa de que não há previsão legal regulamentando o emprego da legitimação extraordinária no polo passivo da demanda, sob pena de afrontar o regime da coisa julgada coletiva e os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
Nada obstante, com alicerce no princípio do acesso à justiça e efetividade das decisões judiciais, esse instituto jurídico tem sido reconhecido pela doutrina majoritária a fim de que o uso de ações coletivas passivas viabilize que a coletividade não apenas seja titular de direitos como também de deveres jurídicos.
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Pós-Graduada em Direito Ambiental – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Constitucional – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Penal – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Sanitário – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito da Criança e do Adolescente – Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduado em Direito Difuso e Coletivo– Faculdade Cidade Verde. Pós-Graduada em Direito Público – Anhanguera Uniderp. Pós-Graduada em Direito Processual Penal – Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Pós-Graduada em Direito Processual Civil – Damásio Educacional. Bacharel em Direito – Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SIMONI, Lanna Gabriela Bruning. A possibilidade de substituição processual nas ações coletivas passivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 maio 2020, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54608/a-possibilidade-de-substituio-processual-nas-aes-coletivas-passivas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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