1.Introdução
Em tempos de pandemia relacionada ao novo Coronavírus, doravante denominado Covid-19, muitos problemas têm ocorrido no âmbito dos Tribunais brasileiros.
Um desses desafios é o ato de citação, haja vista que, tradicionalmente, exige-se o contato físico do Oficial de Justiça com o destinatário da ordem judicial, o que, à toda evidência, poderá causar contaminação com o Covid-19 para ambos os envolvidos. Noutras palavras, um grande problema de saúde pública na medida em que os esforços do Poder Público têm sido, em sua maioria, pela política de isolamento social.
De acordo com o Código de Processo Penal (CPP):
Art. 351. A citação inicial far-se-á por mandado, quando o réu estiver no território sujeito à jurisdição do juiz que a houver ordenado.
Art. 357. São requisitos da citação por mandado:
I - leitura do mandado ao citando pelo oficial e entrega da contrafé, na qual se mencionarão dia e hora da citação;
II - declaração do oficial, na certidão, da entrega da contrafé, e sua aceitação ou recusa.
No mesmo norte, a Lei Federal nº 9.099/1995 aduz o seguinte:
I - por correspondência, com aviso de recebimento em mão própria;
II - tratando-se de pessoa jurídica ou firma individual, mediante entrega ao encarregado da recepção, que será obrigatoriamente identificado;
III - sendo necessário, por oficial de justiça, independentemente de mandado ou carta precatória.
A par desse cenário processual, é de se questionar: seria possível a realização do ato de citação criminal através do aplicativo denominado WhatsApp?
É esta a reflexão que se pretende realizar.
2.A experiência inovadora do Tribunal de Justiça de Alagoas
Em notícia veiculada no site do Tribunal de Justiça de Alagoas, em 22/05/2020, constou a seguinte informação:
300 anos - 22/05/2020 - 16:01:07
Justiça de Alagoas realiza primeira citação criminal por Whatsapp
“Provavelmente é a primeira citação criminal via Whatsapp do País”, afirma o diretor da Central de Mandados da Capital
O Judiciário de Alagoas pode ter realizado a primeira citação virtual do Brasil na área criminal, nessa quarta-feira (20). A 3ª Vara Criminal de Maceió determinou, e o mandado foi cumprido pelo Núcleo de Inteligência dos Oficiais de Justiça, da Central de Mandados da Capital, utilizando o aplicativo Whatsapp.
A citação criminal é o ato pelo qual um cidadão fica sabendo da existência de um processo criminal contra sua pessoa. É diferente das intimações, que são comunicações feitas às partes durante o andamento do processo, como explica Gustavo Macedo, diretor da Central de Mandados da Capital.
“Provavelmente é a primeira citação criminal via Whatsapp do País. A citação é o principal ato de comunicação porque é o primeiro ato, no qual o juiz determina o chamamento da parte para ela se defender. Os atos por Whatsapp tem acontecido aos muitos, mas para fins de intimação de processos, que não contam prazos?”, esclarece Gustavo.
Com a citação, começa a correr o prazo para que o acusado conteste as acusações. Dessa forma, o processo não fica parado durante a pandemia de Covid-19 e o regime de teletrabalho da Justiça. O procedimento está amparado pelo Ato Normativo Conjunto nº 11, da Presidência e da Corregedoria do Tribunal de Justiça de Alagoas, de 15 de maio de 2020.
“Acho que é uma medida renovadora e necessária à atuação do Poder Judiciário, sempre compromissado com as boas práticas. Após a pandemia, o uso vai ser mais restrito, mas tenho certeza de que o novo normal vai trazer boas novidades para impulsionar o Poder Judiciário”, ressalta Gustavo Macedo.
Desde início do isolamento social, foram XX atos cumpridos pela Central. De acordo com diretor, o órgão está atuando com um volume menor de mandados, notadamente os mais urgentes, já que a orientação é evitar o contato presencial. No entanto, a ampliação das atividades de forma virtual minimizará o acúmulo de trabalho previsto para o pós-pandemia.
Núcleo
O Núcleo de Inteligência dos Oficiais de Justiça é coordenado por Mauro Faião e composto ainda por Daniele Torres, Dirlene Cavalcante Ramos e Gustavo Macedo, todos oficiais.
A função do setor é fazer o levantamento de dados para facilitar o cumprimento de ordens judiciais. Ele auxilia no cumprimento das determinações na área criminal e cível, e fornece apoio logístico para o cumprimento de mandados com maior periculosidade ou dificuldade, como reintegração de posse, prisões civis e afastamento do lar”. [1]
Transcrito isto é possível observar que, diante da pandemia acima narrada, tornou-se necessário desenvolver um olhar diferenciado acerca dos atos processuais, inclusive aqueles oriundos da seara criminal.
Pode parecer recente, mas, na realidade, a questão do uso do WhatsApp como ferramenta para a prática de atos do Poder Judiciário já foi enfrentada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no bojo do Procedimento de Controle Administrativo nº 0003251-94.2016.2.00.0000, consoante acórdão abaixo lavrado ainda em 2017:
PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E CRIMINAL. INTIMAÇÃO DAS PARTES VIA APLICATIVO WHATSAPP. REGRAS ESTABELECIDAS EM PORTARIA. ADESÃO FACULTATIVA. ARTIGO 19 DA LEI N. 9.099/1995. CRITÉRIOS ORIENTADORES DOS JUIZADOS ESPECIAIS. INFORMALIDADE E CONSENSUALIDADE. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
1. O artigo 2º da Lei n. 9.099/1995 estabelece que o processo dos Juizados será orientado pelos “critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”.
2. O artigo 19 da Lei n. 9.099/1995 prevê a realização de intimações na forma prevista para a citação ou por “qualquer outro meio idôneo de comunicação”.
3. A utilização do aplicativo WhatsApp como ferramenta para a realização de intimações das partes que assim optarem não apresenta mácula.
4. Manutenção dos meios convencionais de comunicação às partes que não se manifestarem ou que descumprirem as regras previamente estabelecidas.
5. Procedência do pedido para restabelecer os termos da Portaria que regulamentou o uso do aplicativo WhatsApp como ferramenta hábil à realização de intimações no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Comarca de Piracanjuba/GO. (CNJ - PCA - Procedimento de Controle Administrativo - 0003251-94.2016.2.00.0000 - Rel. DALDICE SANTANA - 23ª Sessão - j. 23/06/2017)[2]
Essa tendência de flexibilização dos atos processuais em busca da efetividade do processo também encontra guarida no próprio CPP, à luz dos dispositivos abaixo que garantem a ausência de nulidade da citação se não houver prejuízo à acusação ou à defesa, admitindo-se tal alegação de nulidade como hipótese meramente argumentativa, haja vista que não se vê nulidade alguma no uso da ferramenta WhatsApp na seara criminal:
Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa.
Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
e) a citação do réu para ver-se processar, o seu interrogatório, quando presente, e os prazos concedidos à acusação e à defesa;
Art. 565. Nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido, ou referente a formalidade cuja observância só à parte contrária interesse.
Art. 566. Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.
Art. 570. A falta ou a nulidade da citação, da intimação ou notificação estará sanada, desde que o interessado compareça, antes de o ato consumar-se, embora declare que o faz para o único fim de argui-la. O juiz ordenará, todavia, a suspensão ou o adiamento do ato, quando reconhecer que a irregularidade poderá prejudicar direito da parte.
Art. 572. As nulidades previstas no art. 564, Ill, d e e, segunda parte, g e h, e IV, considerar-se-ão sanadas:
II - se, praticado por outra forma, o ato tiver atingido o seu fim;
III - se a parte, ainda que tacitamente, tiver aceito os seus efeitos.
No mesmo sentido, a Lei Federal nº 9.099/1995:
Art. 19. As intimações serão feitas na forma prevista para citação, ou por qualquer outro meio idôneo de comunicação.
Art. 92. Aplicam-se subsidiariamente as disposições dos Códigos Penal e de Processo Penal, no que não forem incompatíveis com esta Lei.
A par disso, é importante registrar que a experiência narrada pelo Tribunal de Justiça de Alagoas se ajusta como uma luva às disposições normativas acima, pois vão ao encontro da prestação jurisdicional efetiva e em tempo razoável (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal), evitando, aliás, impunidades decorrentes da morosidade judicial, a exemplo da prescrição.
Aqui vale observar que, apesar do instituto da prescrição, como causa extintiva da punibilidade, possa ser entendido como legítimo no Estado de Direito, a impedir o exercício do poder punitivo de forma ilimitada por amplo lapso temporal, seu uso desmesurado como estratégia processual, a partir do recurso a nítidas medidas protelatórias da persecução penal, é apto a levar à impunidade dos eventuais responsáveis pela prática de crimes e delitos, gerando questionamento social sobre o próprio conceito de justiça.
Na doutrina, Fábio Guaragni já esclareceu o prejuízo da impunidade para a sociedade:
As razões pelas quais se apresenta a prescrição penal como verdadeiro fator de impunidade, apartando-se de sua original missão de atuar em níveis razoáveis - em termo de política criminal - como causa extintiva de punibilidade, encontram-se tanto na própria sistemática em que está vazado, no Código Penal brasileiro, o instituto, quanto no excessivo liberalismo que caracteriza a jurisprudência nacional em temas de direito penal.[3]
Volvendo os olhos para o caso em comento, paradigma na Corte Estadual de Alagoas, constou o seguinte texto na certidão disponibilizada no seu site:
Certidão
Certifico que, em análise dos autos, verifica-se que o réu não foi encontrado no endereço do mandado de fls. 43. Realizadas diligências complementares, o NIOJ localizou o número de telefone da ré. Considerando as orientações das autoridades de saúde e os atos normativos conjuntos 04/2020 e 11/2020 do Poder Judiciário Alagoano, em decorrência da pandemia Covid-19 e, uma vez confirmada a identidade da ré, CITEI (apagado pela notícia) através de seu telefone e aplicativo WhatsApp às 15:00 do dia 20/05/20. Por telefone, efetuei a leitura da ordem e, ato contínuo, enviei cópia do mandado, da decisão e da denúncia pelo aplicativo, havendo a imediata confirmação do recebimento. Finda a citação, a ré declarou não possuir condições financeiras para constituir advogado, bem como esclareceu que voltou a residir com seu pai no endereço do mandado. O referido é verdade e dou fé.
Endereço: (apagado pela notícia) Maceió/AL, próximo ao Mercadinho (apagado pela notícia)
Telefone e WhatsApp: (apagado pela notícia) [4]
Da leitura da certidão acima, por evidente, verifica-se que houve um diálogo efetivo entre as autoridades do Poder Judiciário e a ré, com total respeito aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal). A parte citada, aliás, já informou a impossibilidade de constituição de advogado particular, sendo bastante provável que a Defensoria Pública Estadual assuma a sua causa, demonstrando, cabalmente, a ausência de prejuízos à acusação e à defesa, bem como quaisquer nulidades processuais. E se não há prejuízo, inexiste nulidade, de acordo com o princípio da pas de nullité sans grief.
3.Conclusão
Fica evidente que o uso de ferramentas tecnológicas, a exemplo do WhatsApp, ainda que na seara criminal, possui plenas condições de uso e adaptação, de modo a resguardar o direito constitucional ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório.
De outro lado, com isso garante-se a efetividade da jurisdição ao se contribuir com a redução do cenário de impunidade na persecução criminal, trazendo à sociedade a segurança jurídica de que o Estado não será conivente com a prática de crimes e delitos, tanto no período da pandemia do Covid-19, quanto após este.
A experiência do Tribunal de Justiça de Alagoas com o uso do WhatsApp não só deve ser aperfeiçoada, mas também ampliada para outros feitos cíveis – além de adotada por outros ramos do Poder Judiciário – sem prejuízo do uso de novas ferramentas tecnológicas em prol da mesma ideia de modernidade nas relações entre o Poder Judiciário, as Funções Essenciais à Justiça e os jurisdicionados.
4.Referências bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 25 mai. 2020.
_____. CP. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em: 25 mai. 2020.
_____. CPP. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 25 mai. 2020.
_____. Lei Federal nº 9.099/1995. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 25 mai. 2020.
_____. TJAL. Disponível em: < https://www.tjal.jus.br/comunicacao2.php?pag=verNoticia¬=16853>. Acesso em: 25 mai. 2020.
_____. CNJ. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/InfojurisI2/JurisprudenciaSearch.seam>. Acesso em: 25 mai. 2020.
GUARAGNI, Fabio. Prescrição penal e impunidade. Curitiba: Juruá, 2008.
[1] TJAL. Disponível em: < https://www.tjal.jus.br/comunicacao2.php?pag=verNoticia¬=16853>. Acesso em: 25 mai. 2020.
[2] CNJ. Disponível em: < https://www.cnj.jus.br/InfojurisI2/JurisprudenciaSearch.seam>. Acesso em: 25 mai. 2020.
[3] In Prescrição penal e impunidade. Curitiba: Juruá, 2008, p. 17.
[4] TJAL. Disponível em: < https://www.tjal.jus.br/comunicacao2.php?pag=verNoticia¬=16853>. Acesso em: 25 mai. 2020.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. Citação criminal via whatsapp: experiência inovadora no âmbito do Tribunal de Justiça de Alagoas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2020, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54624/citao-criminal-via-whatsapp-experincia-inovadora-no-mbito-do-tribunal-de-justia-de-alagoas. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
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