FRANCISCA MICHELLE DUARTE DA SILVA CAMPOS[1]
(coautora)
ROSÁLIA MARIA CARVALHO MOURÃO[2]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo tem como escopo analisar a (in)constitucionalidade das normas que restringem a doação de sangue por homens que fazem sexo com homens (HSH) no Brasil, a Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde e a RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, abordando todo o contexto histórico da normatização da restrição e fazendo um paralelo com a eminente violação de princípios inerentes ao ser humano, como o da dignidade da pessoa humana, igualdade, não discriminação e proporcionalidade, ambos assegurados pela Constituição Federal. Intentou-se ainda, pontuar a discussão a cerca do tema por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543, que questiona justamente a constitucionalidade destas normas. Para alcançar o objetivo proposto, fez-se uso de uma abordagem dialética, por meio de pesquisas bibliográficas, doutrinarias e jurisprudenciais.
Palavras-chave: Doação de sangue. Inconstitucionalidade. HSH.
ABSTRACT: This article aims to analyze the (in)constitutionality of the rules that restrict blood donation by men who have sex with men (MSM) in Brazil, Ordinance nº 158/2016 of the Ministry of Health and RDC nº 34/2014 of the National Health Surveillance Agency, addressing the entire historical context of the regulation of restriction and making a parallel with the eminent violation of principles inherent to human beings, such as the dignity of the human person, equality, non-discrimination and proportionality, both ensured by the Federal Constitution. It was also attempted to punctuate the discussion on the topic through Direct Action of Unconstitutionality 5543, which precisely questions the constitutionality of these rules. To achieve the proposed objective, a dialectical approach was used, through bibliographic, doctrinal and jurisprudential research.
Keywords: Blood donation. Unconstitutionality. MSM.
Sumário: 1. Introdução. 2. Contexto histórico e a normatização da restrição à doação de por homens que fazem sexo com homens no Brasil: 2.1 O perfil do doador brasileiro e a importância da doação de sangue; 2.2 Homens que fazem sexo com homens (HSH); 2.3 Regulamentações da restrição à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens. 3. A (in)constitucionalidade da restrição face aos princípios constitucionais. 4. Sangue seguro e constitucional: 4.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543. 5. Considerações Finais. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro transporta por meio da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34/2014 da ANVISA, no seu artigo 25, e da Portaria n° 158/2016 do Ministério da Saúde, no seu artigo 64, as causas de inaptidão dos candidatos que se voluntariem à doação de sangue. Dentre as diversas hipóteses de suspensão da aptidão do candidato para a doação de sangue, o presente artigo tratará do constante nos incisos XXX, alínea “d” e IV, respectivamente, dos mencionados dispositivos, no que tange à restrição à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens.
Ademais, a Constituição Federal traz ao longo de todo o seu texto, os chamados princípios constitucionais, considerados institutos basilares do Estado Democrático de Direito e irradiadores dos seus efeitos por todo o ordenamento jurídico. Portanto, é razoável o entendimento de que as normas infralegais deverão estar adstritas a esses princípios, tal qual é o caso das portarias ministeriais em geral.
Ante o exposto, analisando tal restrição e fazendo um paralelo com os princípios consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, com ênfase nos princípios da dignidade da pessoa humana, igualdade, não discriminação e proporcionalidade, deparamo-nos com o seguinte questionamento: a restrição de doação de sangue com base em hábitos sexuais do doador afronta princípios constitucionais, portanto, pode-se concluir que as normas supracitadas sejam inconstitucionais?
Assim, visando questionar os dispositivos das normas supracitadas, o Partido Socialista Brasileiro, PSB, acionou o Supremo Tribunal Federal, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543. Ante o exposto, o motivo deste estudo está na possível afronta à Constituição promovida pelos referidos dispositivos da Portaria do Ministério da Saúde e da RDC da ANVISA, no que concerne à restrição de doação de sangue por homens que fazem sexo com homens.
Portanto, o presente artigo tem como objetivo verificar se a “restrição” à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens caracteriza-se como uma discriminação e, em caso positivo, se essa discriminação estaria sendo feita pela administração pública dentro de uma justificativa razoável, de forma a atender os princípios constitucionais que regem nosso ordenamento, caso contrário, resultando na eminente inconstitucionalidade das referidas normas.
2 CONTEXTO HISTÓRICO E A NORMATIZAÇÃO DA RESTRIÇÃO À DOAÇÃO DE SANGUE POR HOMENS QUE FAZEM SEXO COM HOMENS NO BRASIL
É de conhecimento geral que, doação de sangue, trata-se de um gesto solidário de doar uma quantidade do próprio sangue para salvar a vida de pessoas que se submetem a tratamentos e intervenções médicas de grande complexidade, além de ser indispensável para os pacientes com doenças crônicas, para que possam viver por mais tempo e com mais qualidade de vida. E com isso, uma única doação pode salvar até quatro vidas.
De acordo com Hamerschlak, Junqueira e Rosenblit (2005), a transfusão de sangue possui dois momentos na cronologia histórica, são eles: período empírico ou era pré-científica, até 1900, e o período científico ou era científica, de 1900 em diante.
No primeiro período, ocorreu a descoberta da circulação sanguínea e as transfusões eram quase sempre feitas com sangue de animais, com resultados que quase sempre eram infrutíferos. Já no segundo período, foi realizada a descoberta do grupo sanguíneo ABO, pelo austríaco Karl Landsteiner, transfusões eram feitas por cirurgiões onde desenvolveram uma solução anticoagulante, que permitiu a criação de bancos de sangue, como são conhecidos atualmente.
Assim, no Brasil, os cirurgiões foram pioneiros nessa prática, fazendo com que a doação de sangue fosse vista como uma especialidade médica, e vários “bancos de sangue” surgissem por todo o território nacional. Inicialmente a doação de sangue era uma prática remunerada, ou seja, os doadores recebiam um pagamento ao realizá-la, o que acabava por ocasionar o recrutamento de pessoas inabilitadas para a realização da doação. Para João Carlos Pina Saraiva, a doação de sangue passou a ser vista como um empreendimento, em suas palavras:
Assim é que foi inevitável o aparecimento dos chamados “banqueiros”, profissionais médicos e não-médicos e mesmo de fora da área da saúde que enxergavam aquela fluorescente atividade como um empreendimento que não deveria ser regido pela ética e mesmo pelo direito (SARAIVA, 2005, p.156).
Porém, em outubro de 1964, por determinação do então Presidente da República, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, instituiu-se no Ministério da Saúde a Comissão Nacional de Hemoterapia (CNH), que tinha como objetivo: organizar a distribuição do sangue, a doação voluntária, a proteção ao doador e ao receptor, o disciplinamento da atividade industrial, o incentivo à pesquisa e o estímulo à formação de recursos humanos.
Entretanto, a função não foi bem executada e após a visita de especialistas enviados pela Organização Mundial de Saúde - OMS, para avaliar o quadro nacional, constatou-se uma realidade extremamente caótica quanto à doação de sangue no país, resultando na extinção da CNH:
O sistema era desorganizado, com serviços públicos e privado de altíssimo nível técnico e científico convivendo com outros de péssima qualidade, alguns com interesses prioritariamente comerciais. As indústrias de hemoderivados, em geral, estimulavam a obtenção de matéria prima através de doadores remunerados e da prática da plasmaférese. Nem sempre os cuidados com a saúde dos doadores eram prioritários. (HAMERSCHLAK; JUNQUEIRA; ROSENBLIT, 2005, p.205).
Com isso, criou-se o Programa Nacional de Sangue e Hemocomponentes (Pró-Sangue), que se manteve ativo durante quase toda a década de 80, norteando a presença do Estado como executor de uma política centralizada, que pôs fim a doação remunerada e regularizou a hemoterapia brasileira, encaminhando-se para os moldes adotados atualmente.
2.1 O perfil do doador brasileiro e a importância da doação de sangue
No tocante ao perfil do doador, a Portaria nº 1.353 de 13 de julho de 2011 do Ministério da Saúde, traz os requisitos essenciais para a realização da doação de sangue, dentre eles “que a coleta se dê de forma voluntária, anônima, altruísta, sem remuneração, direta ou indireta, e sigilosa” (BRASIL, 2011, p. 11).
Ademais, sabe-se que a voluntariedade norteia de maneira geral a realização da doação, possuindo uma posição de destaque frente aos outros requisitos, visto que é vedada qualquer maneira de coação que faça com que o doador se sinta obrigado a realizá-la, ou seja, em hipótese alguma é permitida a doação de sangue de forma compulsória.
No Brasil, o Ministério da Saúde, por meio da portaria supracitada, estabelece ainda, critérios para a seleção do doador e medidas que visam à proteção do mesmo, variando de idade até a freqüência permitida, que se encontram previstas no artigo 33 e seguintes da norma (BRASIL, 2011).
No que diz respeito à importância da doação de sangue, é notório que se trata de uma atitude que contribuirá para salvar vidas, em casos emergenciais, e ajudar no tratamento de tantas outras, uma vez que o ato visa à realização de um bem a terceiros e não próprio. Assim, apregoa Edson Fachin, “o sangue que circula nas veias representa a possibilidade de construção e reconstrução diária da existência, o palpitar de uma história vivida” (BRASIL, 2016a, p.3).
2.2 Homens que fazem sexo com homens (HSH)
De acordo com Foucault (2015 apud FIGUEIROA, 2017), o termo sexualidade teve seu surgimento no século XIX com amplas conotações que envolviam tanto as mudanças nas representações e valorações atribuídas pelos indivíduos aos seus desejos, sensações, sonhos, prazeres como a relação íntima com as normas religiosas, médicas, pedagógicas e judiciárias da época.
A sexualidade também aborda as representações humanas sobre afeto, erotismo, emoções, fantasias, condutas e proibições que repercutirão nas ações relacionadas à saúde através de suas políticas. É um tema de caráter dinâmico e complexo que sofre alterações ao longo do tempo conforme o contexto social, econômico e político de cada sociedade. Portanto, requer em seu estudo uma abordagem com a análise de múltiplos fatores relacionados à subjetividade humana e a contextos específicos.
Segundo Toneli (2012 apud FIGUEIROA, 2017) a temática da sexualidade humana foi um assunto marginalizado até meados da década de 60 do século XX, só então adquirindo status de relevância e tornando-se atualmente objeto de destaque no meio científico brasileiro.
Os vários mitos e tabus relacionados à sexualidade têm sua gênese nas barreiras encontradas para as discussões da temática de forma livre tendo como conseqüências posições discriminatórias por parte da sociedade. Diante dessas exposições não causa estranhamento a marginalização dos indivíduos e grupos que vivenciam e manifestam suas diversidades em relação à sexualidade, orientação sexual, identidade e expressões de gênero, com o enfrentamento dos preconceitos na busca por empoderamento e garantia dos seus direitos fundamentais.
Nesse contexto, destaca-se a terminologia HSH (homens que fazem sexo com homens) que segundo UNAIDS (2009 apud DA FONTE, 2017, p. 69) explicita, “abrange uma variedade de identidades sexuais, inclusive aquelas pessoas que não se identificam sexualmente como gays ou homossexuais.” E ainda de acordo com Albuquerque (2018, p. 3): “O termo homem que faz sexo com homem (HSH) compreende a população que se identifica como gay como também os que têm práticas sexuais com homens, mas não se identificam como gays”.
O Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Saúde LGBTI+ (NUDHES) no Brasil corrobora que o termo HSH abrange o maior número de homens possíveis: gays, bissexuais e heterossexuais que já fizeram ou fazem sexo com outros homens ou pessoas com outras orientações sexuais.
Pereira & Monteiro (2015 apud FIGUEIROA, 2017) destacam que a sexualidade ocupa o cerne da intimidade humana e participa da nossa identidade global enquanto espécie. É um assunto de interesse público em razão do comportamento da sociedade e sua relação com a saúde pública e a continuidade da espécie bem como a produtividade, riquezas e, portanto, a força de um grupo social.
No cenário da saúde pública mundial, destaca-se que havia, até o fim de 2018, cerca de 37,9 milhões (32,7 milhões - 44,0 milhões) de pessoas em todo o mundo vivendo com o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), segundo o relatório informativo do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS - UNAIDS (2019). No Brasil, de acordo com o boletim epidemiológico anual do HIV/AIDS, no ano de 2018 foram diagnosticados 43.941 novos casos de HIV e 37.161 casos de AIDS perfazendo um total de 966.058 casos de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) no país até junho de 2019 (BRASIL, 2019a).
Com relação ao cenário brasileiro das políticas de prevenção e enfrentamento da epidemia causada pelo HIV, o UNAIDS (2017a) em relatório regional destacou os chamados grupos com maior vulnerabilidade ou populações-chave: os profissionais do sexo, pessoas que usam drogas injetáveis, homens gays, outros homens que fazem sexo com homens, pessoas trans e pessoas privadas de liberdade.
Dentre essas populações-chave, UNAIDS (2019) ressalta que as de maior destaque para o risco de infecção por HIV são os homens que fazem sexo com homens (com risco 22 vezes maior), e as pessoas que usam drogas injetáveis (com risco 22 vezes maior), em terceiro lugar as trabalhadoras do sexo (com risco 21 vezes maior) e em quarto lugar as pessoas transexuais (com risco 12 vezes maior).
Essas estatísticas traduzem a realidade desses grupos que enfrentam barreiras de cunho moral e religioso, como os estigmas sociais, a vulnerabilidade e as situações de violência, que finalizam obstaculizando o acesso aos serviços de saúde. Outra situação a ser destacada é a diminuição de investimentos em políticas públicas de prevenção ao HIV nesses grupos vulneráveis. O descaso político em nosso país tem dificultado o combate à discriminação em relação à sexualidade e a garantia de direitos nesse contexto.
UNAIDS (2017b) ressalta que em diversas vezes as populações-chaves estão subordinadas a leis e políticas discriminatórias e por isso acabam se expondo mais ao HIV, portanto sua participação ativa em políticas e ações preventivas é fundamental para o controle da epidemia do HIV/AIDS, devendo os países considerar os fatores epidemiológicos e sociais para determinar populações específicas que são “chave” para a epidemia e para a resposta a ela.
2.3 Regulamentação da restrição à doação sangue por homens que fazem sexo com homens
Segundo Ferreira (2014), a história constrói padrões sociais que, apesar de mutáveis, gera conceitos, preconceitos e discriminações àqueles que se recusam ou estão impossibilitados de segui-los, por características físicas, socioeconômicas ou por sua essência, trazendo uma resistência quanto à aceitação dessas pessoas na sociedade.
Portanto, preliminarmente, é necessário citar o estigma criado em torno da relação entre a “explosão”, na década de 80, da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e os HSH. Esse que perpetua até hoje e está diretamente ligado a doação de sangue, ou melhor, à sua vedação.
Como explica Júlia Santos e Danielle Bartelli:
No ano de 1980 e seguintes foi identificado e dado conhecimento do HIV/aids, tendo sido detectado e associado aos homossexuais, dependentes químicos, hemofílicos e profissionais do sexo, os meios de comunicação rotularam a aids de “doença gay”, dessa maneira linhas conservadoras da sociedade viram a oportunidade de darem ênfase ao posicionamento contra o movimento homossexual que se expressava socialmente, [...] dando explicações absurdas e implacáveis para relacionar a condição homossexual ao HIV/aids (SANTOS, BARTELLI, 2018, p. 22).
Segundo Santos e Bartelli (2018), surgiu então, a chamada “população-chave”, resultando em um atraso significativo às medidas preventivas e no processo de conscientização da população no que diz respeito à transmissão do vírus, visto que, as pessoas que não se encaixavam nos grupos, consideravam-se “imunes”.
Em contrapartida, “o movimento homossexual na década de 80 discutia o tema do HIV/aids e a necessidade de prevenção e não discriminação, [...] enfrentando os estigmas que associaram a homossexualidade a essas doenças” (SANTOS, BARTELLI, 2018, p. 23).
Com a confirmação dos primeiros casos de contaminação por meio de transfusão de sangue, o eixo normativo brasileiro reuniu todos os esforços possíveis para controlar a difusão do vírus e uma das medidas foi proibir a conhecida “população chave” de realizar doação de sangue, nos moldes dos atos normativos.
No que tange à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens, mesmo com sucessivas alterações no decorrer dos anos, o ordenamento jurídico brasileiro mantém a inaptidão “temporária” (por 12 meses) a esse grupo, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada nº 34 de 11 de junho de 2014 em seu artigo 25 inciso XXX alínea “d” da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA. Onde, dentre os diversos lances de suspender a aptidão do candidato para a doação de sangue, o dispositivo discrimina, in verbis:
Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos: [...] XXX - os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se: [...] d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes; (BRASIL, 2014, p. 14).
Em consonância com a RDC supracitada, o Ministério da Saúde, através da Portaria n° 158 de 04 de fevereiro de 2016, em seu artigo 64 inciso IV, reafirma a restrição à doação de sangue, in verbis: “Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo: [...] IV - homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes;” (BRASIL, 2016b).
A priori, entende-se que basta uma única relação sexual com pessoa do mesmo sexo para que a partir de então o indivíduo seja impedido de doar sangue por 12 meses. A restrição parece temporária, todavia quando se tratar de homem com vida sexual ativa com outro homem, a temporariedade da vedação à doação de sangue passará, obviamente, a ser definitiva.
Com uma breve narrativa exemplificativa, o entendimento se torna ainda mais simples, imagine a seguinte situação hipotética: Antônio, homossexual, tem vida sexual ativa, mas possui um relacionamento sério com Augusto há dois anos, sendo que nesse período só manteve relação sexual com o seu parceiro. Nesse caso, a restrição temporária passa a ser definitiva, visto que cada relação sexual de Antônio com Augusto inicia-se novamente a contagem de 12 meses, de acordo com as normas dispostas pelo Ministério da Saúde e pela ANVISA.
Assim, conforme preceitua a Constituição Federal (1988), o impedimento que os dispositivos citados norteiam choca-se frontalmente com os princípios constitucionais que norteiam o ordenamento brasileiro, e com os objetivos da República de construir uma sociedade justa e solidária, reduzir desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de sexo e outras formas de discriminação. Neste sentido, em 2016, o Partido Socialista brasileiro ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543, que questiona a constitucionalidade das normas supracitadas, responsáveis por restringir a doação de sangue por parte dos HSH’s.
3 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA RESTRIÇÃO FACE AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
O princípio, inicialmente, deve ser considerado como uma espécie de norma jurídica, dotada de dimensão ética e política, entendida como um valor fundante do ordenamento jurídico. Nas palavras de Guerra Filho (2002, p. 17):
Os princípios devem ser entendidos como indicadores de uma opção pelo favorecimento de determinado valor, a ser levada em conta na apreciação jurídica de uma infinidade de fatos e situações possíveis. [...] Os princípios jurídicos fundamentais, dotados também de dimensão ética e política, apontam a direção que se deve seguir para tratar de qualquer ocorrência de acordo com o direito em vigor.
Sendo assim, todas as normas infraconstitucionais devem estar em conformidade com a Constituição Federal, e paralelamente com seus princípios, sob pena de serem consideradas inconstitucionais, anulando seus efeitos. Buscando analisar a (in)constitucionalidade das normas que restringem a doação de sangue por HSH, faz-se necessário questionar a sua legalidade nos moldes dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da não discriminação e da proporcionalidade.
O princípio da dignidade da pessoa humana é considerado um dos mais importantes princípios consagrados pela nossa Constituição Federal, encontrando-se previsto, expressamente, no artigo 1º, inciso III da mesma e, constituindo-se como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente a todos. Seu objetivo, como princípio fundamental, é garantir ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pelo poder público e pela sociedade, de modo a preservar uma vida digna até a morte, tanto quanto possível.
Sobre o tema, Fiorillo (2015) ressalta que o cerne do direito positivado em nosso país se concentra na pessoa humana e para haver a preservação da dignidade, os direitos sociais descritos no artigo 6º da Carta Maior precisam ser garantidos, dentre eles, a educação, a saúde, a segurança, a previdência social, o lazer e o trabalho.
Assim, na ADI 5543 está bem explicitado que “a dignidade do ser humano revela-se, entre outras perspectivas, na capacidade de autodeterminação da vontade, a qual é componente da liberdade humana [...] é o próprio fundamento ético do direito [...]”. (BRASIL, 2016a, p.6). Nesse viés, quaisquer condutas que contrariem a liberdade sexual se constituem de forma discriminatória e violadora da dignidade da pessoa humana.
Ao restringir a doação de sangue por parte dos homens que fazem sexo com homens (HSH) pelo período de 12 (doze) meses, conforme disposto na RDC nº 34/2014 da ANVISA e na portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, o Estado assume uma postura que reforça o estigma enraizado em relação aos HSH, desde os primeiros casos de AIDS divulgados no mundo por volta da década de 80, de que estas pessoas são mais propensas a portar a doença, seja por uma predisposição genética, seja por sua identidade ou orientação sexual. Desta forma o Estado perpetua, na prática, a tradução da terminologia “grupo de risco” tão obsoleta e já ultrapassada pelo termo “comportamento de risco”, renegando a condição de dignidade essencial a todos os humanos.
O princípio da igualdade prefacia o capítulo dos direitos individuais no caput do artigo 5° da Constituição Federal de 1988, ao afirmar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Tal princípio é reforçado em vários pontos da Constituição, por exemplo, ao declarar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, condenando desta forma quaisquer formas de discriminação.
A igualdade em seu sentido puramente formal, também denominada igualdade perante a lei ou igualdade jurídica, consiste no tratamento equânime conferido pela lei aos indivíduos, visando subordinar todos ao crivo da legislação, independentemente de raça, cor, sexo, credo ou etnia. Nesse sentido, percebe-se que a igualdade assegurada em nossa Constituição, visa cercear discriminações e equiparações entre os indivíduos.
Fazendo um paralelo entre este princípio e o problema de pesquisa abordado nesse projeto, qual seja a restrição da doação de sangue por HSH, à luz da teoria da proibição do arbítrio, que consiste em tratar os iguais de maneira igual e os diferentes de forma diferente, sem que a distinção feita seja de forma arbitrária. “O princípio da igualdade está associado à proibição do arbítrio; o arbítrio da desigualdade é condição necessária e suficiente para a violação do princípio da igualdade”. (CANOTILHO, 2000, p. 419)
Ademais, é importante esclarecer que, embora em momento algum a Portaria nº 158/2016 e a RDC nº 34/2014 restrinja de forma direta a doação de sangue com base na orientação sexual do doador, ela acaba o fazendo ao restringir a doação de sangue por HSH, automaticamente restringe a doação a todos os homens homossexuais e bissexuais que estão, por óbvio, incluídos neste grupo. Portanto, embora o critério técnico empregado seja outro, recai praticamente em sua totalidade nestes grupos de indivíduos, e tal diferenciação estaria sendo aplicada ferindo o princípio da igualdade, quando da discriminação por orientação sexual.
Dando continuidade ao raciocínio iniciado, vejamos o princípio da não discriminação, que é nada mais que um desdobramento do princípio da igualdade. Sendo considerada uma manifestação direta da igualdade, que normatiza o ordenamento jurídico brasileiro em seu conjunto. Assim, o princípio em questão funciona como uma espécie de base geral que proíbe tratamento diferenciado à pessoa em virtude de fatos injustamente desqualificantes.
Ciente da importância de tal princípio, a Portaria nº 158 (BRASIL, 2016b, p. 2), traz referência expressa a ele, em seu artigo segundo:
Art. 2º. § 3º. Os serviços de hemoterapia promoverão a melhoria da atenção e acolhimento aos candidatos à doação, realizando a triagem clínica com vistas à segurança do receptor, porém com isenção de manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero, hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor.
Entretanto, ao separar os doadores entre heterossexuais e HSH’s com mínima atividade sexual (ao menos uma nos últimos 12 meses), nos encontramos diante de uma norma nitidamente discriminatória de fato, posto que seja direcionada a um grupo específico de pessoas, não a um comportamento sexual em si.
Por fim e, diferentemente dos princípios aqui já tratados, o princípio da proporcionalidade não tem previsão expressa na Constituição Federal, embora lá esteja de forma implícita, espalhado em diversos artigos. Assim, ficando cristalina a existência de um limite imposto, especialmente ao legislador, que tem o dever de obedecer a certos critérios na criação das normas, para que estas possam estar em conformidade com a nossa Carta Maior. E, como já tratado, um desses critérios é o da proporcionalidade, sobretudo diante de uma restrição de direitos, servindo como uma espécie de barreira, que busca priorizar as normas eleitas pela Carta Magna, sem que sejam desrespeitadas ou até suprimidas, atingindo os direitos fundamentais.
No caso em comento, de um lado temos o direito à saúde dos indivíduos que recebem a doação de sangue, e do outro, o direito a um tratamento igualitário, digno e proporcional dos candidatos à doação, incluídos no grupo dos HSH. Sabemos que o direito à saúde é um direito fundamental, que regulamenta um dever do Estado de promover a saúde de todos incluindo a implantação de políticas públicas que tenham por objetivo reduzir o risco de doenças.
Sendo assim, a Administração Pública, no tocante à restrição aplicada aos HSH, tem como argumento, para garantir o direito à saúde, sem que sejam submetidos a riscos, reforçando a responsabilização do estado pelas eventuais falhas neste processo de transfusão sanguínea. Dessa forma, é considerada proporcional a grave discriminação aplicada aos HSH.
Diante do exposto, é imprescindível relembrar que em momento algum se pretende descartar a importância das medidas de segurança em relação à doação de sangue, mas reafirmar o compromisso com a eliminação de quaisquer formas de preconceitos e condutas discriminatórias no universo das políticas de saúde que acabam estigmatizando grupos específicos e não enfatizam as medidas fundamentais de prevenção à contaminação por HIV ou por outros agentes das Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs).
4 SANGUE SEGURO E CONSTITUCIONAL
A vedação imposta pela administração pública, através da Portaria nº 158/2016 e da RDC nº 34/2014, possui um caráter discriminatório e não há o que se questionar. Diante disso, é válido ressaltar, que o STF iniciou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543, que foi proposta pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB, tendo como finalidade declarar inconstitucionais os dispositivos constantes na Portaria nº 158/2016, do Ministério da Saúde e Resolução Diretoria Colegiada nº 34/2014 da ANVISA, que restringem a doação de sangue por homens que fazem sexo com homens.
4.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543
A votação da ADI 5543 iniciou com o Relator Ministro Edson Fachin, que votou pela procedência da ação. Para ele, "os dispositivos em questão instituem um tratamento desigual e desrespeitoso [...] a conduta é que deve definir a inaptidão para a doação de sangue, e não a orientação sexual ou o gênero da pessoa com a qual se pratica tal conduta" (BRASIL, 2016a, p. 20).
Ao longo do texto do seu voto, Edson Fachin apregoa que:
O estabelecimento de grupos – e não condutas – de risco incorre em discriminação, pois lança mão de uma interpretação consequencialista desmedida que concebe especialmente que homens homossexuais e bissexuais são, apenas em razão de orientação sexual que vivenciam possíveis, vetores de transmissão de variadas enfermidades, como a AIDS (BRASIL, 2016a. p.5).
Seguindo com o julgamento, os ministros Luis Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux acompanharam o relator da ação, votando pela procedência da ação. Ambos apontaram a desproporcionalidade presente na restrição, a violação dos direitos fundamentais e o foco em um grupo de pessoas (os HSH) e não na conduta de fato.
Em contrapartida, o ministro Alexandre de Moraes julgou parcialmente procedente a ação, alegando que as limitações impostas pela legislação foram fixadas a partir de estudos técnicos e científicos, não sendo editadas por questões de identidade sexual, e que possuem o objetivo de evitar maiores riscos de contaminação aos receptores de sangue, garantindo um efetivo direito à proteção à saúde. Assim, o ministro justificou que é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens, desde que o sangue somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser realizado depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde.
No dia 26 de outubro de 2017, o ministro Gilmar Mendes pediu vista dos autos e com isso o julgamento foi suspenso. Todavia, é válido ressaltar que a ADI 5543 não busca diminuir as cautelas necessárias para a concretização da doação de sangue, que são voltadas para a segurança do sistema de hemoterapia, livre de qualquer contaminação. Assim, as normas consideradas inconstitucionais pela ADI supracitada retiram o foco do risco, para estereótipos que tratam sobre identidade sexual e estilo de vida, que acabam estigmatizando grupos que já são alvo de violência e preconceito.
Neste sentido, e contrariando os julgados acerca do tema, os desembargadores que integram o pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, decidiram que restringir a doação de sangue de homens homossexuais é inconstitucional. Assim, o Desembargador Relator Cornélio Alves (BRASIL, 2019b), destacou em seu voto que “não há grupo de risco, o que existe são comportamentos de risco, como uso de drogas, vários parceiros. E qualquer pessoa pode oferecer riscos no ato da doação. Não é por ser homossexual que isso vai ocorrer”.
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL EM AÇÃO ORDINÁRIA. PEDIDOS DE OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER E DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REQUERENTE DO SEXO MASCULINO QUE FOI IMPEDIDO DE REALIZAR DOAÇÃO DE SANGUE POR TER INFORMADO, EM ENTREVISTA RESERVADA, SER HOMOSSEXUAL E TER SE RELACIONADO SEXUALMENTE COM PESSOA DO MESMO SEXO, NOS ÚLTIMOS DOZE MESES ANTERIORES À ENTREVISTA. NEGATIVA BASEADA NO ITEM B.5.2.7.2, LETRA D, DO ANEXO I DA RESOLUÇÃO RDC Nº 153/2004 DA ANVISA, VIGENTE À ÉPOCA. NORMA RECONHECIDA COMO INCONSTITUCIONAL EM SEDE DE CONTROLE DIFUSO POR ESTA CORTE. MODIFICAÇÃO POSTERIOR. IRRELEVÂNCIA. NOVOS ATOS REGULATÓRIOS QUE POSSUEM OS MESMOS REFLEXOS PRÁTICOS. ART. 497, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CPC. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO DE TUTELA INIBITÓRIA. EFEITO APENAS INTER PARTES. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REPARAÇÃO CIVIL POR ATO ADMINISTRATIVO DECORRENTE DE NORMA INCONSTITUCIONAL. NORMA VÁLIDA À ÉPOCA DO EVENTO SUPOSTAMENTE DANOSO. ESTADO E SEUS PREPOSTOS QUE AGIRAM NO ESTRITO CUMPRIMENTO DA NORMA VIGENTE. AUSÊNCIA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA NESTE PARTICULAR. APELAÇÃO CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA.
(TJ-RN - AC: 20140024371 RN, Relator: Desembargador Cornélio Alves, Data de Julgamento: 23/07/2019, 1ª Câmara Cível).
Entretanto, durante a produção do presente artigo, o país que vive um cenário de pandemia decorrente do Coronavírus (COVID - 19), viu o ritmo de doações de sangue diminuir de uma maneira significativa e, com isso, os hemocentros espalhados por todo o território nacional iniciaram campanhas que incentivam a doação de sangue, fazendo com que a discussão acerca do tema voltasse à tona. Em consonância com isso, a Defensoria Pública da União (DPU), enviou um posicionamento pedindo agilidade no julgamento da ADI 5543 diante da situação, em contrapartida, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu que o STF rejeitasse a ação, sem sequer analisar o tema.
Ainda assim, no dia 01 de maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento da ação, em plenário virtual, após a devolução do ministro Gilmar Mendes, que acompanhou o relator, Edson Fachin, e votou pela procedência da ação, sendo ainda, seguido pelos ministros Cármem Lúcia e Dias Toffoli. Em seu voto, o ministro do STF, destacou que, em decorrência do atual cenário do país, a anulação de impedimentos inconstitucionais tem o potencial de salvar vidas.
Pondo fim ao julgamento, no dia 08 de maio de 2020, os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello acompanharam o voto do ministro Alexandre de Moraes, optando pela procedência parcial da ação sob a justificativa de que o STF deve adotar uma postura autocontida diante de determinações das autoridades sanitárias quando estas forem embasadas em dados técnicos e científicos devidamente demonstrados.
Diante disso, o Supremo Tribunal Federal, com a maioria dos votos (sete a quatro), declarou a inconstitucionalidade das normas que restringem a doação de sangue por homens que fazem sexo com homens. Entretanto, é válido ressaltar que, em nota publicada no dia 14 de maio de 2020, a ANVISA (2020) enfatizou que ainda aguarda a publicação do acórdão do STF sobre o julgamento para analisar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, inclusive eventual apresentação de recurso sobre o tema. Ao que parece esse imbróglio não chegou ao seu desfecho de fato, mas já deu um enorme e importante passo rumo à desconstrução desse estigma discriminatório.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo foi realizado com o objetivo de analisar criticamente a (in)constitucionalidade das normas já citadas e objetos da ADI 5543. Toda a análise foi realizada no período em que estava concomitantemente ocorrendo o andamento do processo. Em 11 de março de 2020 ela foi incluída para julgamento em 19 de março de 2020, embora tenha sido excluída do calendário de julgamento pelo presidente em 17 de março de 2020. No entanto, em 09 de abril de 2020 foi solicitada prioridade na tramitação do feito e os autos seguiram conclusos ao relator em 13 de abril de 2020 com o início do seu julgamento virtual em 01 de maio de 2020 e finalização em 08 de maio. Em 11 de maio de 2020 foi então proferida a seguinte decisão em sede do STF por maioria de sete votos a quatro:
Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade do art. 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, e do art. 25, XXX, "d", da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e, parcialmente, o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, Sessão Virtual de 1.5.2020 a 8.5.2020.
Esta decisão corroborou os objetivos e argumentos explanados no corpo deste artigo e enalteceu mais uma vez a importância do respeito aos princípios fundamentais e inerentes aos seres humanos em um Estado Democrático de Direito. Mostrou-se associada a um compromisso da Corte Suprema com as atuais condições de saúde pública em que está inserida a nação, que diante de uma pandemia como o COVID-19 com proporções ainda incalculáveis, padece com seus bancos de sangue com número deficitário de bolsas para doação neste período de calamidade.
O desfecho não desmereceu o compromisso do Estado com a oportunização de sangue seguro para a população, pelo contrário, salientou a importância da complementaridade e interdependência dos princípios e dos direitos para a construção de uma sociedade verdadeiramente justa e solidária que atenda à realidade das diversidades e pluraridades nos mais variados contextos sociais, como na interface da saúde pública, sexualidade e direitos humanos. Em relação às políticas de saúde e doação de sangue seguro, as ações para proporcionar informação adequada, acesso aos serviços e os meios de proteção à contaminação por HIV e por infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) devem ser mais importantes do que as discriminações com relação às identificações e preferências no contexto da sexualidade.
REFERÊNCIAS
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[1] Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. Email: [email protected].
[2] Orientadora, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA, Mestre em Letras pela Universidade Federal do Piauí - UFPI, Doutoranda em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Email: [email protected].
Bacharelanda do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Maria Catarina Melo. A (in)constitucionalidade da restrição à doação de sangue por homens que fazem sexo com homens Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54627/a-in-constitucionalidade-da-restrio-doao-de-sangue-por-homens-que-fazem-sexo-com-homens. Acesso em: 23 dez 2024.
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