RESUMO: O presente artigo busca tratar dos aspectos iniciais do Direito Financeiro e correlacioná-lo a uma temática bastante debatida nos tempos atuais, a saber: judicialização de políticas públicas. Nesse sentido, após trazer as premissas da judicialização de políticas públicas, estudou-se as balizadas conferidas pelo Supremo Tribunal Federal relacionadas, especificamente, ao direito à saúde.
Palavras-chave: Direito Financeiro. Judicialização. Políticas públicas. Saúde.
ABSTRACT: This article seeks to deal with the initial aspects of Financial Law and correlate it with a topic that has been widely debated at the present time, namely: judicialization of public policies. In this sense, after bringing the premises of the judicialization of public policies, we studied the guidelines provided by the Federal Supreme Court related, specifically, to the right to health.
Keywords: Financial Law. Judicialization. Public policy. Cheers.
1. Aspectos introdutórios do Direito Financeiro
O Direito Financeiro no Brasil foi objeto de sistematização em 1964, mediante a edição da Lei nº 4.320/64, que delimitou o objeto desse ramo do direito, trazendo as primeiras normas gerais da matéria.
Quais os debates anteriores?
Constituição de 1824: questões atinentes à discriminação de rendas e à divisão da arrecadação tributária entre o Governo Geral e as Províncias;
Temas centrais: relacionado com a necessidade de garantir receitas aos entes da Federação;
Melhor obtenção de receitas por parte do Estado: meio de viabilizar e assegurar a autonomia política administrativa dos Entes políticos.
Qual o quadro antes da Lei nº 4.320/64?
Ausência de separação clara e didática entre Direito Financeiro e Direito Tributário. Dois anos depois, o Código Tributário Nacional (CTN) foi publicado, deixando-se clara a distinção entre:
Exercício da tributação: Direito Tributário;
Finanças públicas: Direito Financeiro.
Seguindo essa linha de garantir autonomia ao Direito Financeiro em relação ao Direito Tributário, a CRFB/88 dispôs, em seu artigo 24, I que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I – direito tributário, financeiro (...)”.
Quais as fontes do Direito Financeiro?
Dividem-se em “primárias” (legislação e diplomas normativos que têm vigor de lei – inovam no Ordenamento Jurídico) e “secundárias” (demais estatutos regradores da conduta humana, porém com normatividade submetida à observância das disposições legais, podendo conter preceitos gerais e abstratos ou individuais e concretos – não inovam na ordem jurídica).
1.1 FONTES PRIMÁRIAS
a) CRFB/88: há inúmeras previsões constitucionais sobre Direito Financeiro (arts. 70 a 75; 157 a 162; 163; 164; 165 a 169).
b) Leis Complementares: a própria CRFB dispõe que, em determinados casos sobre Direito Financeiro (arts. 163 e 165, § 9º), a matéria submete-se à reserva de lei complementar. Com o advento da CRFB/88, tanto o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) quanto a Lei 4.320/64 foram recepcionados com status de Lei Complementar (ADI 1726). Já com a LRF (LC nº 101/2000), a disciplina das finanças públicas passou a ter maior controle e transparência.
c) Leis Ordinárias: os seus principais exemplos são a Lei do Plano Plurianual (PPA), Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), Lei Orçamentária Anual (LOA).
d) Leis Delegadas: tais instrumentos normativos são de pouca valia e incidência na atividade financeira do Estado, tendo em vista as seguintes vedações constitucionais:
Art. 68, § 1º, caput: proíbe a edição de leis delegadas sobre matérias reservadas à lei complementar;
Art. 68, § 1º, inciso III: veda a delegação alusiva aos planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos;
Logo, considerando que substancial parcela do Direito Financeiro é reservada à lei complementar e gira em torno de PPA, LDO e LOA, tem-se que as poucas matérias restantes podem, em tese, ser objeto de leis delegadas, desde que, por óbvio, observados os impedimentos constitucionais supracitados.
e) Medida Provisória: a leitura associada do preceito normativo inserido no art. 62, § 1º, inciso II c/c (combinado com) o art. 62, § 1º, alínea “d”, ambos da CRFB/88, resulta na proibição de medidas provisórias sobre matérias reservadas à lei complementar e sobre matérias atinentes a PPA, LDO, LOA, créditos adicionais e suplementares, salvo nas hipóteses previstas no art. 167 § 3º (para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública).
Em assim sendo, é forçoso concluir que, por via de regra, não se admite medida provisória em sede de Direito Financeiro, exceto em relação ao conteúdo normativo do art. 167, § 3º da CRFB/88, dantes mencionado, o qual, aliás, traz situações inerentes à edição de “crédito extraordinário”.
1.2 FONTES SECUNDÁRIAS
a) Decretos: como cediço, são atos de competência exclusiva da lavra do chefe do Poder Executivo, insuscetíveis de delegação e vocacionados a emprestar fiel execução às leis despidas de autoexecutoriedade. Em outras palavras, representam-se por atos decorrentes do Poder Regulamentar da Administração Pública, uma vez que tendentes a regulamentar uma lei, característica que os posicionam abaixo da lei, portanto, têm natureza jurídica de atos infralegais e inaptos a inovar na ordem jurídica.
b) Resoluções: são deliberações advenientes do Congresso Nacional ou, isoladamente, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados, que não observam o devido processo legislativo (rito para a elaboração de leis), desse modo, por evidente, não ostentam natureza jurídica de lei, tampouco são submetidas à sanção presidencial, cuja promulgação promana (tem origem) da Mesa da Casa legislativa que as expedir.
Tais particularidades, no entanto, não retiram a sua importância para o Direito Financeiro, notadamente no que tange às Resoluções do Senado Federal, mediante o exercício de sua competência privativa para tratar das matérias pormenorizadas no art. 52, incisos V, VI, VII, VIII, IX da CRFB. Sublinhe-se, ainda, as Resoluções 42 e 43/Senado Federal sobre a regulamentação do limite de endividamento dos Estados e Municípios.
Para parte da doutrina, as resoluções do Senado Federal são atos normativos primários, pois têm fundamento direto na CF/88, não se limitando a regular um outro ato normativo primário. No caso das resoluções em matéria de Direito Financeiro, tratam de forma direta sobre matérias que a própria CF/88 lhes reservou, em especial referente a dívida pública dos entes. Desta forma, seriam formalmente primárias, por estarem inclusas no art. 59 da CF/88 e materialmente primárias, por inovarem no ordenamento jurídico.
c) Atos normativos: são atos infralegais exarados por autoridades administrativas para o fito de complementar a lei ou o decreto, conferindo eficácia e adequação para as suas unidades administrativas. Não se pode perder de vista, por pertinente, a relevância das resoluções dos Tribunais de Contas, já que indicam, dentre outros, boas práticas de gestão administrativa, eficiência e transparência dos gastos públicos.
d) Decisões administrativas: referem-se às decisões dos órgãos de controle interno (Controladorias, Procuradorias e afins) e externo (vide a expressiva atuação dos Tribunais de Contas neste particular) da Administração Pública. Todas elas servem de fontes orientadoras da atuação administrativa.
e) Decisões judiciais – Judicialização das políticas públicas: é digna de nota a afirmação, no sentido de que cresce a cada dia, de forma vertiginosa, o fenômeno da “judicialização das políticas públicas”, daí decorrendo verdadeira transmutação do orçamento aprovado pelo Poder Legislativo, este o qual, repise-se, detém natureza jurídica de lei.
Insta elucidar, no ponto, que a temática subjacente é tratada rotineiramente no dia a dia dos Advogados Públicos de todas as esferas (federal, estadual, distrital e municipal). Não há réstia de dúvida de que o tema é palpitante e merece um preciso aprofundamento.
2. Judicialização de políticas públicas
Quais os pressupostos da judicialização das políticas públicas?
Nos termos do art. 2º da CF/88, são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Cuida-se, portanto, do princípio da separação dos poderes, que, diga-se de passagem, ostenta índole de cláusula pétrea, a teor da regra insculpida no art. 60, § 4º, III da CRFB.
Remonta a Montesquieu a lição de que cabe ao Legislativo legislar, ao Executivo executar e ao Judiciário julgar. Logo, não se pode perder de vista que, tomando como exemplo a política pública da saúde, o art. 196 da CRFB prevê que a sua garantida de prestação pelo Estado será realizada mediante políticas sociais e econômicas. Desse comando normativo, verificam-se duas atuações: (i) a do Legislativo (mediante lei, regulamentar a política e emitir autorização orçamentária) (ii) e a do Executivo (implementar a política pública de saúde).
Consequentemente, não se vislumbra uma atuação direta e imediata do Poder Judiciário neste particular. No entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) admite, excepcionalmente, a judicialização de políticas públicas, desde que observados os seguintes requisitos (RE 440028/SP): (a) natureza constitucional da política reclamada; (b) manifesta omissão estatal ou prestação deficiente (vedação à proteção insuficiente), desde que não haja justificativa objetiva e razoável para o inadimplemento; (c) a política pública reclamada deve se revestir em direito fundamental.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por seu turno, também acolhe a “judicialização” e acrescenta um requisito: não houver comprovação objetiva (fática e não meramente jurídica) da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.
“ADMINISTRATIVO. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS - DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. MANIFESTA NECESSIDADE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA DE TODOS OS ENTES DO PODER PÚBLICO. NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. NÃO HÁ OFENSA À SÚMULA 126/STJ. 1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente importantes. 2. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.” (STJ - AgRg no REsp: 1107511 RS 2008/0265338-9, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 21/11/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 06/12/2013)
Noutro vértice, porém, a orientação institucional dos órgãos de representação judicial dos entes estatais (Procuradorias) é de que a “judicialização das políticas públicas” implica grave ofensa ao princípio da harmonia e independência dos poderes (sinônimo do princípio da separação dos poderes).
A propósito disso, segundo o STF, não há direito, valor ou princípio absoluto, notadamente em razão do princípio da unidade da constituição (inexistência de hierarquia entre princípios constitucionais). Com base nisso, caberá ao Estado formular as “escolhas trágicas” fundamentadas no princípio da reserva do possível.
Aliás, já se disse com acerto que o reconhecimento de que todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos empresta especial relevo ao tema da reserva do possível, pois a escassez dos recursos faz com que o Poder Público leve a cabo “escolhas alocativas”, é dizer: aferindo-se as necessidades públicas, consulta ao interesse público, que a formulação de políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais devem ser escolhas de quais demandas serão prestadas pelo Estado. Nesse viés é que surgem as “escolhas trágicas”, tendo em vista que a escolha da destinação de recursos para uma política e não para a outra leva em consideração o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.
Doutrinariamente, importa consignar que CANOTILHO questiona a validade do princípio da universalidade para os direitos sociais (p. ex., saúde e educação), porquanto as necessidades são infinitas ao passo que os recursos são escassos.
Quais os conceitos-chave sobre a judicialização das políticas públicas?
Alguns conceitos foram tratados pela primeira vez (de forma mais aprofundada) pelo STF na Suspensão de Tutela Antecipada 175 e pela doutrina nacional na consubstancial obra de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (in Curso de Direito constitucional). Aliás, é nelas que se podem consultar os significados de “macrojustiça”, “microjustiça”, “minimum core approach” e “metodologia fuzzy”. Vejamos um a um:
· Macrojustiça: realizada pelo Poder Executivo com fulcro na “justiça distributiva”, consiste em típicas opções políticas em vista do bem comum, tomando por base a amplitude global da política pública e os seus potenciais destinatários.
· Microjustiça: realizada pelo Poder Judiciário, que está vocacionado apenas a solucionar o caso concreto (em regra, individual) a partir de sua visão míope da realidade lato sensu da política reclamada e à míngua (despida) de aferição acerca do prejuízo à política pública como um todo, resultante da efetivação dos provimentos judiciais.
· Minimum core approach: é o mínimo existencial ou abordagem do núcleo mínimo, é dizer, trata-se do núcleo essencial (portanto, mínimo) que é intangível, devendo-se manter incólume (ileso) quando em contraste com a reserva do possível (ratio decidendi da ADPF 45). Sem a garantia desse núcleo essencial, esvazia-se o conteúdo normativo do direito e há inadimplemento do Poder Público no que toca ao respectivo mandamento constitucional.
· Metodologia fuzzy: também conhecida como “fuzzismo”. Cuida-se de expressão cunhada por José Joaquim Gomes CANOTILHO para criticar o avanço desmedido do ativismo judicial, que se imiscuindo (substituindo) ao Poder Executivo, promove a seu talante (arbítrio) e de forma míope, a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Entretanto, tal atuação é marcada pela nota da “imprecisão metodológica”, uma vez que os juristas não sabem o que fazem e desconhecem os impactos de suas decisões no que tange à universalidade da política pública, máxime (especialmente) quando abordam complexos problemas dos direitos econômicos, sociais e culturais (cf. Metodología ‘Fuzzy’ y ‘Camaleones Normativos’ en la Problemática Actual de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales).
Quais as premissas do Direito Financeiro?
Segundo o famoso conceito de orçamento público talhado por Ricardo Lobo Torres, sobrelevam-se 2 (dois) pressupostos do Direito Financeiro:
a) RECURSOS LIMITADOS: ressabido que as necessidades públicas são infinitas, mas os recursos financeiros são escassos. Paralelamente a isso, não se pode negar que a satisfação daquelas passam pelo gerenciamento destes, visto que toda política social tem um custo. A partir dessa constatação, a doutrina germânica engendrou (produziu) a teoria da “reserva do possível”. Inicialmente, a referida teoria foi importada para o Brasil, sem os necessários temperamentos, de modo a conformá-la à realidade social brasileira.
Hodiernamente, um pouco mais amadurecida, a “reserva do possível” continua sendo aplicada pelos Tribunais brasileiros, mas, essencialmente, desde que atendidas algumas condicionantes impostas pelo STF e pelo STJ, já tratadas em linhas anteriores. Relembre-se:
Ø diante de manifesta omissão estatal ou prestação deficiente, deve haver justificativa objetiva e razoável para o inadimplemento (STF, RE 440028/SP);
Ø não esvazie o núcleo intangível do direito fundamental, ou seja, desde que reste assegurado o mínimo existencial (STF, ADPF 45);
Ø houver comprovação objetiva (fática e não meramente jurídica) da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal. (STJ, AgRg no REsp: 1107511-RS, 2ª Turma).
b) Escolhas trágicas: já suficientemente abordado acima nos pressupostos da judicialização das políticas públicas.
Quais as recentes conclusões do STF na temática “judicialização da saúde”?
Inicialmente, devemos partir da premissa de que o STF trouxe à colação 2 (duas) conclusões alusivas à matéria ao concluir os julgamentos do (i) RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 22.5.2019. (RE-657718) e do (ii) RE 855178 ED/SE, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento em 23.5.2019. (RE-855178). Ademais, mais recentemente (11.3.2020), o STF julgou o (iii) RE 566471, mas que ainda pende de fixação da tese de repercussão geral (tema 6: dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo).
Por apreço à didática, vejamos, separadamente, cada decisum, com o enfrentamento das respectivas partículas de alicerce:
(i) RE 657718/MG
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.
“1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.”
Lei do SUS (Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990)
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
(...)
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente: (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso; (Incluído pela Lei nº 12.401, de 2011)
Como se vê, é de clareza meridiana que a Lei do SUS fundamenta-se na tese das evidências científicas, para o fim de direcionar os processos de incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, logo, nos estritos termos legais, o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais, tendo em vista que a ausência de “evidências científicas” obsta a sua disponibilização pelo Poder Público.
Demais disso, o próprio STF ponderou que o registro é meio para garantir proteção à saúde pública, atestado de eficácia, segurança e qualidade dos fármacos comercializados no País, além de assegurar o devido controle de preços.
Entendeu-se, portanto, que no caso de medicamentos experimentais, sem comprovação científica de eficácia e segurança e ainda em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los. Isso não interfere, porém, com a dispensação desses fármacos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável.
“2. A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.”
Consoante descrito em linhas anteriores, a regra geral emana da norma insculpida no art. 19-Q, § 2º, inciso I da Lei do SUS, segundo a qual, repita-se, adota a tese das evidências científicas.
Ocorre que não se pode perder de vista que inexiste regra, direito ou princípio absoluto, razão pela qual – muito embora se admita que a citada regra abrange a maioria das situações – tem-se, por certo, que existem algumas situações-limite, que dada a sua excepcionalidade intrínseca, a aplicação da encimada regra legal resultaria em verdadeira extirpação do direito à saúde e, quiçá, à vida do indivíduo. Assim, para tais situações excepcionais, a jurisprudência do STF, ancorada no “ativismo judicial”, construiu uma nova conformação jurídica, nos moldes a seguir delineados.
“3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.”
Neste particular, impende revolver à premissa de que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. Doutra sorte, há situações em que a Anvisa demora em demasia para concluir o procedimento de registro de medicamentos com eficácia e segurança comprovadas e testes concluídos.
Nesse sentido, há um critério objetivo para apurar essa mora irrazoável da Anvisa pertinente ao registro, a saber: são os prazos previstos no art. 2º da Lei 13.411/2016.
De tal sorte, conclui-se que é possível, excepcionalmente, a concessão judicial alusiva a medicamento sem registro sanitário – desde que não seja em relação a medicamentos experimentais – e em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido, quando preenchidos três requisitos:
(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
“4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.”
Partindo-se do pressuposto básico de que exsurge a obrigação estatal com o advento da mora da agência, as ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente, ou seja, obrigatoriamente, e não exclusivamente, propostas em face da União.
(ii) RE 855178 ED/SE
1. Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde. 2. Diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
“1. Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde.”
A referida competência comum advém do art. 23, II da CRFB, que assim prescreve:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(omissis)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;”
Logo, em face dessa competência comum, o STF entendeu que daí ressoa a solidariedade dos entes federados no que atine às demandas prestacionais na área da saúde.
Desse modo, por via de regra, o autor de uma demanda prestacional no âmbito da saúde poderá propor a sua ação indicando, a seu critério, as subjacentes hipóteses de sujeitos passivos:
(i) União;
(ii) Estado;
(iii) Município;
(iv) União e Estado;
(v) União e Município;
(vi) Estado e Município;
(vii) União, Estado e Município.
Assim, percebe-se que a conclusão também se coaduna com a premissa de que a União, obrigatoriamente, deverá compor o polo passivo das “ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa” (RE 657718/MG), uma vez que, especificamente nesse tipo de demanda na área da saúde, tem-se a “obrigatoriedade”, e não “exclusividade” de incluir a União no polo passivo da demanda. Em bom vernáculo, portanto, em sede de demandas que requeiram o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa o autor pode incluir os seguintes sujeitos passivos em sua petição inicial:
(i) União, Estado e Município;
(ii) União e Estado;
(iii) União e Município;
(iv) União.
Assim, em todos esses cenários, a União estará, “obrigatoriamente”, no polo passivo da demanda.
“2. Diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.”
Nesse tocante, a Lei do SUS traz a divisão de atribuições de cada ente federado, nos artigos 16 a 19.
Pois bem, diante da divisão de atribuições, legalmente prevista, mediante a qual cada ente federado possui o seu âmbito preestabelecido de competência para o cumprimento de uma obrigação sanitária, o juiz deverá direcionar a determinação de cumprimento da decisão, conforme a repartição de competências prevista na Lei do SUS. Nesse vértice, caso um ente estatal cumpra a obrigação que, nos termos da Lei do SUS, seja incumbência de outro ente, o juiz da causa deverá determinar o correlativo ressarcimento.
Por conseguinte, o exemplo acima deixa claro o que o STF entendeu como adequado, o que, diga-se de passo, perfilha-se, mutatis mutandis, ao Enunciado 60 da II Jornada de Direito da Saúde:
“Enunciado 60: A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento.”
De mais a mais, por derradeiro, o STF, em 11.3.2020, julgou o RE 566471, cuja quaestio juris discutia a pretensão autoral (in casu, uma senhora idosa e carente) de obter tutela jurisdicional, no sentido de obrigar o Estado do Rio Grande do Norte a fornecer o citrato de sildenafila para o tratamento de cardiomiopatia isquêmica e hipertensão arterial pulmonar, com fulcro no alto custo do medicamento, bem assim na ausência de previsão de fornecimento no programa estatal de dispensação de medicamentos.
(iii) RE 566471
1. O Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS). 2. As situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral (Tema 6).
“1. O Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS).”
Nesse trilhar, em linha de harmonia com o fundamento central dessa conclusão, tem-se que o Direito é arrimado e principiado em situações regulares, ou seja, primeiro cuida-se da regra e, após, de eventuais exceções. Assim sendo, a regra é que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo requestado judicialmente, à mingua de previsão na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do SUS.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se compreende a judicialização das políticas públicas, sem antes termos em mente as premissas do Direito Financeiro. Portanto, o presente estudo trouxe os aspectos introdutórias dessa matéria e, na sequência, analisou-se as questões teóricas e, especialmente, as jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
Optou-se por tratar especificamente da judicialização da saúde, tendo em vista que se trata de uma das políticas públicas que mais se fazem presentes em processos judiciais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ABRAHAM, Marcus. Curso de Direito Financeiro Brasileiro. 4. ed. rev. atuali. e ampl. Rio de Janeiro, Forense, 2017.
ALMEIDA, Ricardo Damasceno de; LISBOA, Marcelo Jucá. Direito Financeiro (Leis especiais para concursos, v. 13). Salvador: Juspodivm, 2017.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Julgados resumidos Dizer o direito 2012/2015. Manaus: Dizer o direito editora, 2016.
LEITE, Harrison. Manual de Direito Financeiro. Salvador: Editora Juspodivm, 2019.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2016.
PISCITELLI, Tathiane. Direito Financeiro Esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2018.
Advogado da União. Pós-graduado em Direito Constitucional e em Direito do Estado. Mestre em Políticas Anticorrupção pela Universidad de Salamanca (Espanha).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé DAVID PINHEIRO SILVéRIO, . Aspectos do direito financeiro e a judicialização de políticas públicas da saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2020, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54685/aspectos-do-direito-financeiro-e-a-judicializao-de-polticas-pblicas-da-sade. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.