RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo buscar a reflexão sobre a aplicação do princípio da adequação social para afastar punibilidade daqueles que exploram e/ou realizam o jogo do bicho, apresentando ao leitor, inicialmente a sua origem, e posteriormente, o contexto histórico das normas que tipificaram positivaram a punição, a evolução histórica e a relação que tem a sociedade com o jogo, sendo o último o fator prepoderante para o tema do artigo em questão.
Palavras-chave: Jogo; Bicho; Adequação; Social; Extinção; Punibilidade.
ABSTRACT: The present work aims to reflect on the application of the principle of social adequacy to remove punishment from those who exploit and / or play the animal game, presenting the reader, initially, its origin, and later, the historical context of the norms that they typified the punishment, the historical evolution and the relationship that society has with the game, the latter being the preponderant factor for the theme of the article in question.
Keywords: Game; Animal; Adequacy; Social; Extinction; Punishment.
A ORIGEM DO JOGO DO BICHO
Em uma entrevista de emprego, Sílvio Satos certa vez disse que jamais quisera ser dono de emissora de televisão. Sua única intenção seria publicizar seus produtos, especialmente o famoso baú da felicidade.
No entanto, quando os donos das emissoras de televisão começaram a colocar impercílio para o referido Empresário vender seus produtos, o mesmo se vendo diante da citada impossibilidade, como alternativa para alcançar seus objetivos, o mesmo comprou sua própria emissora de televisão e construiu um império, denominado de grupo SBT.
Alguns acham que foi sorte. Outros diriam que foi o acaso. Outros falam em genialidade. Mas como se percebe acima, primeiramente, tudo surgiu porque houve a necessidade. Necessidade de continuar seguindo com os negócios. Notadamente percebe-se que a necessidade e os negócios sempre andam entrelaçados.
Curiosamente, o jogo do Bicho foi criado com uma idéia completamente diferente do que ele é atualmente. Assim como Sílvio Santos, O Barão, João Batista Vianna Drummond, só queria atrair mais público, para arcar com os custos de manutenção de seu Jardim Zoológico.
Em 1892, o barão resolvera criar tal jogo das flores, tendo um fim diferente do que é hoje, o jogo nascera com um meio para se obtiver outro fim. O Mestre e Professor da UEFS, Jair Nascimento Santos, com seu brilhantismo de sempre, descreveu a origem do jogo do bicho da seguinte maneira:
Assim, na iminência de fechar o Jardim por falta de fundos para a manutenção, o Barão aceita a idéia de um mexicano chamado Manuel Ismael Zevada, seu axiliar, "que bancava por conta própria um tal Jogo das Flores na Rua do Ouvidor" ( Vianna, 1990), no qual cada uma das flores recebia um número de acordo com uma tabela; assim transpô-se o jogo da seguinte forma: Ao adquirir um ingresso de mil de réis para o Zôo, o comprador concorreria ao pr^meio de vinte mil réis caso o animal desenhado no bilhete concidisse com o mesmo que seria exibido em um quadro algumas horas depois do interior do zoológico. para tanto, o Barão mandara desenhar vinte e cinco animais diferentes e a cada tarde um quadro diferente ou repetido era exibido a partir das três horas da tarde.
O jogo agradou tanto que logo se espalhou pela comunidade, escapando ao controle - monopólio - do Barão, então a polícia, acreditando ser a idéia de caracterísitcas de vício, proibiu o jogo, mas já estava tão popular que centenas de pessoas - banqueiros - vendiam as poules com os números referentes aos bichos, escolhidos pelo Barão de Drummond, atrelados ao sorteio da Loteria Federal, em face de isto, os números tiveram que aumentar e como o número de bichos eram vinte-cinco, fez-se a divisão dos cem números da loteria, cabendo assim quatro números para cada bicho. [1]
A necessidade do barão de achar uma alternativa para continuar com o jardim zoológico aberto, se transformou em uma grande oportunidade de negócio e, posteriormente, em um delito.
DA “GUERRA” CONTRA O JOGO DO BICHO E DA TIPIFICAÇÃO COMO CONTRAVENÇÃO
Conforme já mencionado, o jogo do bicho logo se transformou numa grande oportunidade de negócio, tendo se expandido para outros Estados, conforme bem relatou DAMATTA, “o sucesso do jogo do bicho não se limitou ao Rio de Janeiro. Em 1894 já existiam variantes do jogo em outras partes do país: Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Minas Gerais e Santa Catarina” [2].
O Mestre Carlos Eduardo Martins Torcato, escrevendo sobre o poder público e o jogo do Bicho escreveu:
O primeiro relatório policial encontrado sobre o tema data de meados de 1899. Nele, o Delegado de Polícia do 1º Distrito de Porto Alegre João Leite Pereira da Cunha lamentava-se sobre os males que o jogo do bicho trazia para a cidade de Porto Alegre. Uma das mais repugnantes orgias das pueris ambições da ingenuidade do publico assentou desde certo tempo nesta Capital os tendões de sua ignomínia, avassalando com a sua acção perversora e fatal exercida por uma cáfila de exploradores sem escrúpulos sem honra e sem fé o espirito de uma enorme parte desse mesmo publico inclusive grande numero de famílias pobres que tem sido as mais assinaladas vitimas na decapitação dos seus poucos haveres. Essa ignóbil exploração denominada jogo do bicho (...) (sublinhado no original) 3 Essa “escandalosa e detestável rifa” desvirtuava. Os “moços empregados no comercio, artistas, operários, etc., tem abandonado espontaneamente as suas profissões honrosas, para á vadiagem de vendedores de bichos[3]
Segundo o Mestre Carlos Eduardo, naquela época foi declarada uma guerra sem trégua, contra o jogo do bicho, especialmente pelo então Delegado de Polícia Pereira da Cunha veja o relatório escrito pelo então Delegado:
Alastrando-se como se vê, desenfreadamente o vício por esse conducto nefasto na sociedade portoa legrense, e sendo assaz freqüentes as denuncias escriptas e vocaes que quase diariamente chegam ao vosso e ao meu conhecimento, julguei opportuno agir, mas agir de modo enérgico e mesmo se fosse necessário, no sentido de por uma guerra sem trégua debelar essa desastrosa orgia de fraudes que ameaçava contaminar tudo, e onde o que mais se pendia eram as noções do brio e da moral7····.
Como podemos perceber, o Delegado certamente não ganhou a guerra, pelo menos, não conseguiu atingi a seu objetivo, pois o jogo do bicho continuou crescendo e se expandido, mesmo após 100 anos.
Há de se registrar, no entanto, que não foram apenas as autoridades policiais que buscaram travar uma guerra contra o jogo do bicho. Alguns políticos resolveram travá-la, também.
Em 1890, o jogo do bicho sofreu um grande golpe, capitaneado pela classe política, sendo classificado pelo Código Penal de 1890, em seu art. 8º, como contravenção.
O referido código, regulamentava o jogo de azar em 8(oito) artigos, vindo a sofrer diversas alterações ao longo do tempo.
Carolina Malagoli Krelling destaca que a doutrina na época classificava o jogo de azar da seguinte maneira:
“O termo “jogo de azar” aparece pela primeira vez no Brasil Republicano no Código Penal de 1890, o qual caracterizava como jogo de azar todo aquele em que o ganho e a perda dependem exclusivamente da sorte”.[4]
Para o azar dos bicheiros, o jogo do bicho era movido à sorte e obviamente o jogo do bicho passou a ser caracterizado como contravenção penal.
Nucci em seu Manual de Direito Penal explica a diferença entre crime e contravenção, vejamos: “o direito penal estabeleceu diferença entre crime (ou delito) e contravenção penal, espécies de infração penal. Entretanto, essa diferença não é ontológica ou essencial, situando-se, tão somente, no campo da pena” [5]. A doutrina aponta, ainda, outras diferenças - as quais deverão ser tratadas em outra oportunidade-.
A Mestra Caroline Malagoli, explicitando o posicionamento da época, transcreveu:
Oscar de Macedo Soares tece críticas aos jogos de azar, bem como lamenta a necessidade do Estado em manter o “monopólio imoral” das loterias federais ou públicas. Para o autor, “ninguém ignora que o jogo favorece a ociosidade, separando a ideia do ganho da do trabalho”, nem “desconhece as revoluções súbitas que ele produz no patrimônio das famílias 27 particulares em detrimento da moral pública e da sociedade em geral”. Sustenta ainda que por vezes, na administração de um grande Estado, a tolerância ao jogo é um ato necessário quando a autoridade não pode sufocar as paixões – então ao menos vigia os que a ela se entregam. Impossibilitada de impedir os vícios, cabe à polícia prevenir os crimes; entretanto, tolerar o jogo não significa autorizá-lo. Bem sabem os legisladores que os vícios são as maiores chagas sociais, uma vez não podendo extirpar esse mal, busca atenuar seus efeitos nocivos por meio da lei (SOARES, 2004, p. 737) Soares afirma ainda que o jogo criminoso (proibido) é o jogo de azar, porque é o que maior prejuízo pode causar ao patrimônio da pessoa, à tranquilidade familiar, e ao interesse da sociedade. Sendo assim, na opinião do autor o Código brasileiro foi bastante claro ao defini-lo e excetuou as corridas a pé ou a cavalo (ou outras semelhantes) pelo fato de que estas configuram uma mistura entre o que se chama jogo de azar e o jogo de destreza ou exercício; o que significa que nessas corridas podem predominar tanto o azar quanto à destreza, ou estes podem equilibrar-se (SOARES, 2004, p. 738) [6]
Infelizmente, em 1941, o jogo do bicho ganhou ainda mais relevância dentro do direito penal ao se tornar uma modalidade própria de contravenção penal, levando em consideração que o Decreto Lei 3.688/41, em seu art. 58, fez a seguinte tipificação:
Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:
Pena - prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.
Pena - prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, aquele que participa da loteria, visando à obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.
Apesar da insistência do legislador em buscar combater o jogo do bicho por meio de punição do Estado, no entanto, o jogo do bicho continuou a se fortalecer, vez que exercia cada vez mais importância social dentro das comunidades e das cidades.
No próximo capítulo, abordaremos a influência dessa importância do jogo do bicho para o direito penal.
DA EXCLUDENTE DE TIPICIDADE DO JOGO DO BICHO PELA ADEQUAÇÃO SOCIAL
Notadamente, o contexto axiológico da época em que surgiu o então jogo das flores e do surgimento do Código Penal, era completamente diferente dos dias atuais. Os valores que se buscavam através da norma positivada, naquele tempo, não são os mesmos valores de agora.
Diante daquele contexto histórico é possível compreender a forte rejeição aos jogos de azar pela doutrina e por alguns políticos brasileiros. Há de destacar, no entanto, que ao longo do tempo, parte da doutrina e dos políticos começou a entender e até defender a legalização do jogo do bicho, entendo a importância do valor axiológico do referido jogo dentro das comunidades e das cidades, socialmente e economicamente.
Tanto é verdade, que por volta de 1911, foi publicado o Decreto 8.598, alterando substancialmente a lei 2.321, ampliando o conceito de loteria e permitindo que Pessoas Jurídicas pudessem executar operações similares ao jogo do bicho, mediante autorização do Ministro da Fazenda.
Há um ditado muito popular que traduz a respeitabilidade e a confiança que a sociedade tem nos bicheiros, qual seja, “palavra de bicheiro é lei”. Certamente, o referido ditado bem demonstra dois fatores importantes – primeiro que a sociedade aceita o jogo do bicho; segundo que ela confia-.
De fato, o jogo do bicho tem exercido forte e importante influência nas cidades, sobretudo, nas cidades pequenas e nas comunidades, onde há bastante desemprego e pouca geração de renda. Diante desse cenário, o jogo do bicho tem sido a agua no sertão, a luz na escuridão, o pão na mesa do pobre.
É comum que numa região onde há aproximadamente 30 mil habitantes, o jogo do bicho gera renda para mais de 100 pessoas diretamente e mais de 500 indiretamente.
Conforme já citado, a sociedade além de aceitar, tem com o jogo do bicho a confiança. É bem verdade que a maioria dos bicheiros são pessoas cativantes e generosos, buscando quase que sempre apoiar as suas comunidades por meio de ações sociais, e por vezes, suprindo a própria ausência estatal.
Essa relação de apoio e confiança recíproca de povo e jogo do bicho, talvez seja o grande ingrediente que fez jogo do bicho prosperar, apesar do Estado tipificar tal negócio como ilícito.
Diante deste cenário, o jogo do bicho atualmente é considerado como ato cujo fato é adequado socialmente, pois conforme se rememora, goza da aceitação e da confiança popular, devendo ser afastada a tipicidade da conduta, nos termos do princípio da adequação social, conforme ensina Rogério Sanches
“o princípio da adequação social foi idealizado por Hanz Welzel, definindo que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada”.[7]
A mestra, buscando explicar o princípio da adequação social, cita Hanz Welzel, no sentido de ele “exprime o pensamento de que ações realizadas no contexto de ordem social histórica da vida são ações socialmente adequadas – e, portanto, atípicas, ainda que correspondam à descrição do tipo legal”. [8]
Sendo assim, apesar de a ação aparentemente ser típica (isto é, prevista em lei como delito), sendo esta socialmente aceita pela comunidade, exclui a criminalidade do ato.
CONCLUSÃO
Pelas lições acima, resta cristalina que o vivenciamos em ambiente completamente diferente daquele em que a norma foi positivada para punir aqueles que executam e/ou exploram o jogo do bicho.
Naquela época, Assim como a exploração do jogo do bicho, o adultério e o rapto consensual era punido pelo estado. Certamente, a norma surgiu como objeto de defender alguns valores que se entendiam essenciais pela própria sociedade.
Ocorre que aqueles valores defendidos já não são o mesmo, sendo que com a mudança de valores, deve ocorrer a mudança da própria pretensão punitiva do Estado, pois não há razoabilidade em buscar punir um fato defendido e amplamente aceitado pela própria sociedade, como é o jogo do bicho.
Portanto não restam dúvidas de que o principio da adequação social deve ser aplicação nas ações cujo Estado pretenda punir alguém por ter executado ou explorado o jogo do bicho, devendo, imperiosamente ser afastada a punição pela contravenção penal.
[1] SANTOS, Jair Nascimento. PARATODOS BAHIA: UMA ORGANIZAÇÃO NO JOGO DO BICHO. 1996
[2] (DAMATTA, 1999: 79-80)
[3] TORCATO, Carlos Eduardo Martins. O poder público e o jogo do bicho: o caso de Porto Alegre.
[4] KRELLING, Caroline Malagoli. A noção de jogo de azar entre o direito brasileiro e o direito italiano: Aspectos penais e civis dos jogos de azar nos séculos XIX – XX. 2014
[5]NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 7. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 177.
[6] KRELLING, Caroline Malagoli. A noção de jogo de azar entre o direito brasileiro e o direito italiano: Aspectos penais e civis dos jogos de azar nos séculos XIX – XX. 2014
[7] CUNHA, Rogério Sanches. Op. Cit. p. 80.
[8] KRELLING, Caroline Malagoli. A noção de jogo de azar entre o direito brasileiro e o direito italiano: Aspectos penais e civis dos jogos de azar nos séculos XIX – XX. 2014
Advogado inscrito na OAB/SE 8369, Assessor Jurídico do Munícipio de Itabaianinha, Conselheiro Municipal de Educação, Conselheiro Fundeb, especialista em Direito Tributário, tendo sido articulador UNICEF.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Ruan dos Santos. Da aplicação do princípio da adequação social e a consequente extinção da punibilidade ao agente do jogo do bicho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2020, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54782/da-aplicao-do-princpio-da-adequao-social-e-a-consequente-extino-da-punibilidade-ao-agente-do-jogo-do-bicho. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: LUIZ ANTONIO DE SOUZA SARAIVA
Por: Thiago Filipe Consolação
Por: Michel Lima Sleiman Amud
Por: Helena Vaz de Figueiredo
Precisa estar logado para fazer comentários.