RESUMO: O presente artigo científico tem como escopo analisar e discutir sobre as nuances da liberdade de expressão, com especial atenção aos limites do referido direito e garantia constitucional, assim como discutir sobre o discurso de ódio, denominado hate speech, e o caso dos Irmãos Piologo, mediante discussão do posicionamento Doutrinário e da Jurisprudência. Para tanto, adota-se a metodologia dedutiva e bibliográfica com o olhar crítico sobre o tema proposto na busca de melhor entendimento dos limites da liberdade de expressão, bem como definir o discurso de ódio e por meio da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) referente ao caso Ellwanger, relacionar com a decisão do Juiz Estadual acerca do caso dos Irmãos Piologo. Da análise aguarda-se obter um quadro significativo sobre as divergências com relação de como é interpretado o discurso de ódio, de modo a esclarecer sobre a eventual problemática face à liberdade de expressão e de pensamento.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Discurso de ódio. Liberdade de expressão.
ABSTRACT: This scientific article aims to analyze and discuss the nuances of freedom of expression, with special attention to the limits of that right and constitutional guarantee, as well as to discuss hate speech, called hate speech, and the case of the Piologo Brothers, through discussion of the Doctrinal positioning and the Legislation in force. To this end, the deductive and bibliographic methodology is adopted with a critical eye on the proposed theme in the search for a better understanding of the limits of freedom of expression, as well as defining hate speech and through the decision of the Supreme Court (STF) referring to the Ellwanger case, relate to the decision of the State Judge on the Piologo Brothers case. The analysis is expected to obtain a significant picture of possible divergences in relation to how hate speech is interpreted, in order to clarify about the possible problems in the face of freedom of expression and thought.
KEYWORDS: Constitutional Law. Hate speech. Freedom of expression.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE PENSAMENTO E SEUS LIMITES; 2.1. O DISCURSO DE ÓDIO E O CASO SIEGFRIED ELLWANGER; 2.2. O CASO DOS IRMÃOS RODRIGO E RICARDO PIOLOGO. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
Indubitavelmente, um dos temas mais relevantes do Direito Constitucional versa sobre liberdade de expressão e de pensamento e seus limites. Trata-se a liberdade de expressão como um dos valores centrais das democracias, bem como do Estado democrático de direito e da dignidade da pessoa humana. Entretanto, ocorre que devido tal complexidade do homem político, social e, mormente das relações intransigentes, impõem-se alguns limites constitucionais diante de tais direitos e garantias como se observará em relação à liberdade de expressão e de pensamento.
A referida abordagem ocupa-se acerca da eventual possibilidade de limitação à liberdade de expressão e de pensamento, conceituando sobre o discurso de ódio, denominados hate speech e suas consequências, sob a ótica do Supremo Tribunal Federal, da Doutrina e da Jurisprudência. Além disso, discutir os fundamentos da sentença do Juízo Aquo sobre o notável caso dos Irmãos Rodrigo e Ricardo Piologo que versa sobre a liberdade de expressão artística, fazendo um comparativo com do paradigma decisão do Supremo Tribunal Federal, referente ao caso de Siegfried Ellwanger e decisões afins.
Sabe-se que as formas de abuso e violação à liberdade de expressão derivam-se do discurso eivados de ódio, abusivo, intolerante, preconceituoso, mormente racista e etc., que no decorrer do desenvolvimento da sociedade ganharam propagação, devido aos mais diversos meios. A título de exemplo, um deles advindo da modernidade é o mundo virtual que deu voz aos que não tinham, todavia, de tal ferramenta equipou-se ambos os tipos de usuários, com intenções genuínas e más.
Para tanto, verificou-se a necessidade por parte do constituinte, configurar determinadas praticas em ilícitas, a fim de que tais condutas delitivas fossem a partir de uma perspectiva legal, rechaçadas. Isso porque, prevê a Constituição Federal de 1988, a vedação de toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística (Art. 220, §2º). Ou seja, não compete ao Poder Público e nem outro poder, obstar de maneira prévia o livre exercício do pensamento por ato supostamente de cunho ofensivo. Todavia, por não se tratar de um direito fundamental absoluto, estará passivo de restrições quando exercido de maneira abusiva ou violenta em face de outros direitos e garantias salvaguardados pela Constituição Federal.
2. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE PENSAMENTO E SEUS LIMITES
À liberdade de expressão e de pensamento é um dos pilares das democracias, assim como é assegurada em diversos instrumentos internacionais que a proclamam. Dentre os dispositivos destacam-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu artigo XIX, in verbis: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”, da mesma forma o Pacto de Internacional sobre Direito Civis e Políticos em seu Art. 19, ipsis verbis: “ninguém poderá ser molestado por suas opiniões. 2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha. 3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para: a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas”. A República Federativa do Brasil é signatária destes tratados.
No Brasil, a Carta Magna de 1988 ratificou o supracitado dispositivo em seu Artigo 5º, inciso IV, que dispõe: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vendado o anonimato”. Segundo o entendimento doutrinário hodierno: “Estamos diante de um direito e de uma garantia fundamental, previstos ambos na primeira e na segunda parte do inciso, respectivamente. A primeira parte (“é livre a manifestação do pensamento”) é um direito individual, ou liberdade pública ou direito negativo, ou seja, o Estado não poderá, em regra, interferir na nossa liberdade de expressão. Trata-se de um direito de primeira dimensão) na clássica nomenclatura criada por Karel Vasak) ou status negativo (na classificação de George Jellinek). A segunda parte do dispositivo constitucional (“sendo vedado o anonimato”) é uma garantia constitucional destinada a proteger uma série de outros direitos fundamentais, como honra e intimidade.” (NUNES JR, Flavio Martins Alves. Curso de direito constitucional. Saraiva Educação SA, 2017. Pág. 851).
No mesmo passo, atesta Nuno e Sousa: “A liberdade de expressão consiste no direito à livre comunicação espiritual, no direito de fazer conhecer aos outros o próprio pensamento (na fórmula do art. 11° da Declaração francesa dos direitos do homem de 1989: a livre comunicação de pensamentos e opiniões). Não se trata de proteger o homem isolado, mas as relações interindividuais (‘divulgar’). Abrange-se todas as expressões que influenciam a formação de opiniões: não só a própria opinião, de caráter mais ou menos crítico, referida ou não a aspectos de verdade, mas também a comunicação de factos (informações).” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Saraiva, 2008, Pág. 360.).
Seguindo nas palavras do Doutor em Direito Constitucional, Flávio Martins: “o direito constitucional à liberdade de manifestação do pensamento compreende a comunicação entre: a) presentes (numa conversa, numa aula, numa palestra, num discurso); b) entre ausentes conhecidos (numa carta, num e-mail, numa mensagem eletrônica enviada pelo celular); c) entre ausentes desconhecidos (num artigo de jornal, numa mensagem postada em uma rede social, ou blog ou qualquer outro sítio da internet)”.
Ressalta-se a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que:
“[...] a proibição do anonimato tem um só propósito, qual seja, o de permitir que o autor do escrito ou publicação possa expor-se às consequências jurídicas derivadas de seu comportamento abusivo. Quem manifesta o seu pensamento através da imprensa escrita ou falada, deve começar pela sua identificação. Se não o faz, a responsável por ele é a direção da empresa que o publicou ou transmitiu”.
(STF – MS 24.369/DF, Rel. Celso de Mello).
Entretanto, a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como a do Superior Tribunal de Justiça (STJ), admitem uma exceção que é denominada de denúncia anônima. Segundo as cortes, ela pode ser aceita, com reservas. Visto que, se de um lado a denúncia anônima auxilia na descoberta e investigação de muitas infrações penais, de outro lado poder-se-á ocultar a prática de crimes durante a persecução penal. O agente responsável pela investigação, depois de obter uma informação (ainda que verdadeira) através de determinada prova considerada ilícita, conseguiria uma possível legitimação, escondendo sua verdadeira origem, por intermédio de uma denúncia anônima. (NUNES JR, Flavio Martins Alves. Curso de direito constitucional. Saraiva Educação SA, 2017).
Destarte explicita Miguel Reale Jr acerca dos limites da liberdade de expressão e de pensamento que: “Segundo a compreensão da existência de limites imanentes, no conjunto dos valores constitucionais, procura-se estabelecer uma hierarquia material, com a concepção, por exemplo, de sobreprincípios, na expressão de Humberto Avila, como o da dignidade humana, que é de tal importância ‘[...] na ordem constitucional que repercute até mesmo na atividade hermenêutica: a interpretação de qualquer norma deverá colocar o homem no centro de importância e de valoração.’ Na antinomia interna ou em abstrato tem-se a solução independentemente de se aplicar a um determinado caso concreto, o que indica que não se chega, efetivamente, a ter uma colisão, apenas admissível se considerar encontrarem-se os valores ou princípios em situação de igualdade e o grau de cumprimento de um princípio dependerá, então, das circunstâncias do caso concreto e dos princípios em confronto, a ser resolvido pelo processo de ponderação [...] Haveria “valores elementares” sem os quais a comunidade não pode subsistir, e que não poderiam ser perturbados diante do exercício de um outro direito fundamental, ante o qual a proteção constitucional não quer ir tão longe a ponto de permitir que valores básicos comunitários viessem a ser atingidos pelo exercício de um desses direitos fundamentais. Haveria, então, maior intensidade valorativa de um núcleo fundamental que seria intocável. Como se ressalta, o ‘coração do direito’, que não pode ser afetado, consiste na dignidade da pessoa humana, do homem concreto, que constitui, segundo Vieira de Andrade, “[...] a base dos direitos fundamentais e o princípio de sua unidade material”, que, por vezes, tem sua projeção tão intensa que não pode se admitir violação em nenhum caso, pois em qualquer caso o conteúdo essencial da dignidade humana será atingido. Nessa hipótese não haverá conflito de valores a serem ponderados diante do caso concreto, mas limites imanentes. Já a solução de conflitos pressupõe uma igualdade entre direitos ou valores em jogo, que não pode ser resolvida por meio de uma preferência abstrata, pois a hierarquia somente poderá ser estabelecida por via da consideração dos casos concretos, procurando-se harmonizar direitos divergentes em vista das circunstâncias específicas da questão real posta a exame. Pondera-se que se pode incorrer em uma ‘tirania do valor’ ao se pretender estabelecer em abstrato uma hierarquia, independente do caso concreto, pois se deve partir de uma igualdade abstrata de valores e apenas diante das circunstâncias específicas do fato em exame escolher qual valor deve ter, na hipótese, maior peso diante dos perigos advindos aos valores em jogo, dada a situação concreta. Se é certo que no sopesamento dos valores se buscam no caso concreto, as razões suficientes para a escolha, sempre angustiosa e fatalmente condicionada por posições de ordem ideológica, por outro lado, pode-se colher, na própria constituição, uma indicação de quais são os valores mais ou menos essenciais, ou seja, que possuam maior intensidade. Não há dúvida, contudo, de que qualquer tentativa de hierarquização material de valores, a partir da própria constituição, não deixa de estar condicionada por uma perspectiva de cunho ideológico.” (REALE JR, Miguel, limites à liberdade de expressão, 2011).
2.1. O DISCURSO DE ÓDIO E O CASO SIEGFRIED ELLWANGER
Nunes Jr. em sua obra de Direito Constitucional, tece comentários relevantes sobre discurso de ódio e o caso Ellwanger (HC82.424), que: “[...] Vários artigos da Constituição Federal protegem a liberdade de expressão, a começar pelo artigo 5º, IV, ora em comento. Além dele, temos o artigo 5º, IX (que trata da liberdade intelectual e artística), o artigo 220, "caput" ("a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição"). Não obstante, como mencionamos em item anterior, o direito à liberdade de manifestação do pensamento não é absoluto (assim como todos os demais direitos). A Constituição Federal estabelece uma série de valores que igualmente devem ser tutelados: a fraternidade (prevista no Preambulo), a solidariedade (do art. 3º,1,CF) a busca pelo fim do preconceito de qualquer espécie (art. 3°, IV), dentre outros. Outrossim, o próprio art. 5°, da Constituição Federal estabelece outras determinações que, nas palavras de Canotilho, seriam limites imanentes à liberdade de expresso: a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (inciso XLI), "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei" (inciso XLII) etc. O caso mais emblemático julgado pelo Supremo Tribunal Federal foi HC82.424 ('Caso Ellwanger). Trata-se de ação penal por crime de racismo tendo como réu Siegfried Ellwanger, que escreveu, editou e publicou diversos livros de conteúdo antissemita, negando a ocorrência do Holocausto e atribuindo inúmeras características negativas ao caráter dos judeus. O STF, além de examinar o conceito de "raça", para fins da Lei 7.716/89, entendeu que o direito a liberdade de manifestação do pensamento não é um direito absoluto e, por isso, um livro antissemita pode configurar o crime de racismo (art. 20, Lei 7.716/89). Segundo o STF: "A edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, que buscam resgatar dar credibilidades à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o Holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrimen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas consequências históricas dos atos em que se baseiam. Explicita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseado na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, art. 5°. parágrafo 2°, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o direito a incitação ao racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os crimes contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica". No nosso entender, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no caso Ellwanger" serve de parâmetro para todas as questões envolvendo no Brasil o hate speech (discurso de ódio). Nenhum direito é absoluto. Sempre que um ordenamento jurídico ou sistema judiciário afirma que um direito é absoluto, os detentores desse direito costumam dele abusar, violando outros direitos constitucionais tutelados. Ora, quando a Suprema Corte americana decidiu que o free speech era absoluto (e, por lá, para muitos, ainda é), um discurso da Ku Klux Klan foi transmitido pela TV e uma passeata antissemita foi realizada em Chicago. No Brasil, ao afirmarem que a presunção de inocência era absoluta, um ex-senador condenado opôs 37 (trinta e sete) embargos de declaração, com o único intuito de procrastinar o trânsito em julgado. Malgrado não seja um direito absoluto, a liberdade de manifestação do pensamento é muito importante, umbilicalmente ligada à dignidade da pessoa humana e ao Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, a relativização deve ser feira apenas em casos extremos, excepcionais. Não pode ser coibido o discurso apenas porque o conteúdo desagrada os detentores do poder, num determinado momento histórico. Todavia, o discurso não pode, impunemente, disseminar o ódio, o racismo, o preconceito.” (NUNES JR, Flavio Martins Alves. Curso de direito constitucional. Saraiva Educação SA, 2017. Pág. 843).
Faz-se impreterível colacionar a ementa da decisão do caso Ellwanger em que o STF julgou:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada. (HC 82424/RS - RIO GRANDE DO SUL, Relator Min. MOREIRA ALVES, Relator p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, j. 17/09/2003).
2.2. O CASO DOS IRMÃOS RODRIGO E RICARDO PIOLOGO
Trata-se de Ação Civil Pública sob o N.º 1059191-91.2016.8.26.0100, julgada na 44ª Vara Cível de São Paulo, pelo Magistrado titular, Guilherme Madeira Dezem, proposta pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face de Rodrigo e Ricardo Piologo sobre a possível pratica de discurso de ódio em razão de um vídeo propagado nas redes sociais onde exibe cenas pejorativas da população LGBT e de mulheres.
Em análise dos autos, o Magistrado entendeu antes de adentrar no mérito, que:
“[...] é de se ter em mente que, no caso dos autos, discutem-se os limites da liberdade artística, espécie de maior proteção do gênero liberdade de expressão.
Dentro da liberdade artística, debate-se o humor, uma forma específica de comunicação a qual, por definição, manifesta-se de forma equívoca e polissêmica. Dessa forma, pelas próprias peculiaridades apresentadas pela manifestação de pensamento que se propõe humorística, reputa-se imprescindível que se assista aos vídeos produzidos pelos réus para formação de qualquer juízo a respeito.
Não se desconhece, é claro, os conceitos de discriminação direta e indireta que foram entre nós brilhantemente apresentados por Adilson José Moreira em O que é discriminação? Belo horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito: Justificando, 2017.
A questão toda é que o conteúdo objeto deste litígio se encontra em linha limítrofe: não há o claro cometimento de crime por parte dos réus, nem mesmo na questionável figura jurídica da “apologia ao crime”.
Neste quadro, não pode o Estado-juiz impedir a sua livre circulação. É de se notar que, por mais desprezíveis que as mensagens veiculadas pelos réus possam parecer (e a meu juízo são desprezíveis), não se tem a caracterização de ilícito penal a justificar a intervenção estatal.
Com efeito, nas publicações, não há ofensa a pessoa(s) determinada(s), o que afasta a ocorrência de delitos contra a honra. De igual modo, o crime de racismo, tal como tipificado na Lei 7.716/89, não leva em consideração discriminações por questões de gênero e de orientação sexual.
Vi o conteúdo por mais de uma vez: representam, quando muito, uma versão piorada e sem talento daquele famoso desenho ‘South Park’. No entanto, este juízo estético é unicamente meu e pode ser que haja quem goste dos desenhos dos réus ou veja neles talento.”
Ademais, afirmou que não é cabe ao Estado limitar a liberdade de expressão se não houver ilícito civil ou penal praticado pelos acusados. Tendo feito a devida ponderação, entedende-se por prevalecer à liberdade de expressão aos réus.
Todavia, ressaltou que os valores representados pelos vídeos e imagem produzidos e divulgados pelos réus contam com veemente repúdio por parte do Magistrado. A estigmatização e a marginalização de grupos sociais historicamente desfavorecidos (no caso: mulheres e população LGBT) são totalmente contrárias às crenças do supracitado julgador.
A posteriori, o direito não é pautado por juízos estéticos baseados em opiniões, sentimentos e emoções. Em síntese, julgou que os réus têm o direito de se manisfestar artisticamente em que se pese o desconforto e a repugnância gerados pelo conteúdo em comento.
Nesse diapasão, o Decano da Corte do Supremo Tribnual Federal, Ministro Celso de Mello, afirmou que o “exercício de jurisdição cautelar por magistrados e Tribunais não pode converter-se em prática judicial inibitória, muito menos censória, da liberdade constitucional de expressão e de comunicação, sob pena de o poder geral de cautela atribuído ao Judiciário qualificar-se, perigosamente, como um novo nome de uma inaceitável censura estatal em nosso País”. (Rcl 18.566 MC, DJe de 17/9/2014).
Outrossim, declarou o Magistrado que trata-se a liberdade de pensamento e de expressão: liberdade para as ideias que eu não concordo, sob pena do outro também querer limitar as minhas ideias com as quais ele não concorda.
Neste contexto, o Ministro do STF, Alexandre de Moraes menciona que: "A Constituição protege a liberdade de expressão no seu duplo aspecto: o positivo, que é exatamente "o cidadão pode se manifestar como bem entender", e o negativo, que proíbe a ilegítima intervenção do Estado, por meio de censura prévia. A liberdade de expressão, em seu aspecto positivo, permite posterior responsabilidade civil e criminal pelo conteúdo difundido, além da previsão do direito de resposta. No entanto, não há permissivo constitucional para restringir a liberdade de expressão no seu sentido negativo, ou seja, para limitar preventivamente o conteúdo do debate público em razão de uma conjectura sobre o efeito que certos conteúdos possam vir a ter junto ao público. [...] O direito fundamental à liberdade de expressão, portanto, não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias (Kingsley Pictures Corp. v. Regents, 360 U.S 684, 688-89, 1959). Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional." (STF. Reclamação nº 38.201/ SP. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Julgado em 18/12/2019. Reclamante: U.C.C. Reclamado: Juíza de Direito da Unidade Regional de Departamento Estadual de Execução Criminal DEECRIM 9ª RAJ da Comarca de São José dos Campos).
Neste sentido, insta mencionar que a Jurisprudência pondera que:
"Agravo de Instrumento nº 1553837-5, Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba-PR Vara: 24ª Vara Cível Agravante: Conselho de Ministros Evangélicos do Estado do Paraná Agravados: Mariana Zanette e Outros Relator: Juiz Hamilton Rafael Marins Schwartz AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DE CRENÇA E RELIGIÃO. PEDIDO PARA OBSTAR A APRESENTAÇÃO DA PEÇA TEATRAL DENOMINADA "PORNÔ GOSPEL". SUPOSTA VINCULAÇÃO DA IGREJA EVANGÉLICA A COMPORTAMENTOS REPROVADOS PELA INSTITUIÇÃO. INDEFERIMENTO DA LIMINAR PELO JUÍZO A QUO. IRRESIGNAÇÃO DO AGRAVANTE. CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. SOPESAMENTO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA (ARTIGO 5º, IX, 220, §2º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) E LIBERDADE DE CULTO RELIGIOSO (ARTIGO 5º, VI, VII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL). APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM ANÁLISE SUMÁRIA DOS AUTOS. MITIGAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE SOMENTE É POSSÍVEL EM CASO EXCEPCIONAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES A JUSTIFICAR O DEFERIMENTO DA MEDIDA NO CASO CONCRETO. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA PARA COMPROVAR O DIREITO ALEGADO. DECISÃO MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO".
(TJPR - 4ª C.Cível - AI - 1553837-5 - Curitiba - Rel.: Hamilton Rafael Marins Schwartz - Unânime - - J. 10.02.2017).
Portanto, foi julgado improcedente o pedido de condenação ora pleiteados pela DPE/SP, uma vez que o Juízo não ficou convencido sobre a prática de atos ilícitos ou delitivos, afastando-se a tese que a Defensoria Pública trouxera na exordial, assim como do parecer do Ministério Público. Isso porque, estariam abarcados os réus pelo manto da liberdade de expressão ao se expressarem por intermédio do vídeo e imagens, mormente pela liberdade artística prevista no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, in verbis: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação”.
Feitas tais ponderações, observa-se que a sentença de primeira instância atendeu aos requisitos de proporcionalidade e razoabilidade conforme do paradigma decisão do Supremo Tribunal Federal referente ao caso Ellwanger e decisões correlatas que estabeleceram vetores para as demais decisões acerca da liberdade de expressão e discurso de ódio.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante o exposto, a liberdade de expressão e de pensamento, bem como os demais seguimentos de liberdades, artística, religiosa etc., não abarcam ou protegem manifestações no sentido de violar da dignidade da pessoa humana, assim como a honra, a imagem ou que possam inflamar ou incitar os discursos de ódio.
Dessa maneira, faz-se necessário seguir os determinados limites externos e internos consagrados pelo ordenamento jurídico acerca da liberdade de expressão, adotando como viés de julgamento para os casos de limites internos a decisão do caso Ellwanger como o Supremo Tribunal Federal e a Jurisprudência as ponderou para definir o que é de fato, abrangido pela liberdade de expressão e o que é classificado como discurso de ódio.
É cediço que devem os mais diversos aspectos do caso em que envolvam hipóteses de discurso de ódio passar pelo crivo da proporcionalidade e razoabilidade quando não houver lei que regularmente conforme foi supracitado. Observou-se que determinadas classes detém foros em relação à liberdade de expressão sendo amplo e restrito como a titulo de exemplo um político, um artista ou de um líder de confissão religiosa, onde via de regra, sua liberdade de expressão é ampla e irrestrita; diversamente, um civil não poderia usar de tais atributos para se valer sob a alegação de estar na cobertura da liberdade de expressão para que determinados atos que configurem discurso de ódio ou firam a honra ou a imagem de seus pares. Ressalta-se sua condição mais restritiva quanto à liberdade de expressão e de pensamento como cidadão.
Levando-se tais considerações, a proscrição e a valoração de determinadas alegações sob o argumento de que seja tipificados ou inseridos como discurso de ódio não deve ser vulgarizado, pois, tão somente as manifestações explícitas e que estejam descritas de maneira ilícitas não estarão sob a proteção da garantia da liberdade de expressão.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Graduando em Bacharel em Direito pela Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ORDINOLA, Matheus Martins. Liberdade de expressão, limites e o discurso de ódio: o caso dos Irmãos Piologo. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 jun 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54788/liberdade-de-expresso-limites-e-o-discurso-de-dio-o-caso-dos-irmos-piologo. Acesso em: 23 dez 2024.
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