RESUMO: O presente artigo tem por escopo demonstrar a ilegalidade da recusa de atendimento de pacientes por unidades da Federação oriundos de outra localidade, em razão do disposto no artigo 196 da Constituição Federal.
Palavras-chave: Sistema Único de Saúde. Acesso Universal. Dignidade da Pessoa Humana.
No último dia 14 de maio de 2020, o Governador Ibaneis Rocha anunciou que recusaria o atendimento de pacientes oriundos do Entorno nas unidades de saúde do Distrito Federal.
A sua justificativa, dada à imprensa, foi retratada pelo Portal G1:
O governador Ibaneis Rocha (MDB) afirmou à TV Globo, na manhã desta quinta-feira (14), que vai proibir hospitais públicos do Distrito Federal de aceitarem a entrada de pacientes com Covid-19 vindos da região do Entorno. A norma deve ser formalizada em decreto, que ainda não foi publicado.
Questionado sobre a legalidade da proibição, Ibaneis citou a situação de calamidade pública decretada no DF como uma das justificativas.
"Estamos em pandemia, com decreto de calamidade e tudo mais", disse o governador.
Até a noite desta quarta-feira (13), o Distrito Federal contava com 3.192 casos confirmados de coronavírus. Destes, 188 são de pessoas com residência no Goiás. A capital federal registrou 49 mortes por Covid-19. Destas, um paciente era do estado goiano.[1]
Ao que parece, o Governador do Distrito Federal olvida-se do que dispõe a Constituição Federal, a Lei Orgânica do Distrito Federal e a Lei do Sistema Único de Saúde. Ademais, demonstra ausência de humanidade com eventuais pacientes que residam no entorno, mas que trabalham no Distrito Federal e aqui geram riquezas e pagam seus tributos.
Com efeito, cumpre destacar que a saúde é um direito fundamental, inserto no artigo 6º, na qualidade de direito social. Veja o que diz o texto da Carta Magna:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Nesse particular, Ingo Sarlet evoca o caráter subjetivo do direito à saúde:
Consagrado no art. 6.º de nossa Constituição, é no art. 196 e ss. que o direito à saúde encontrou sua maior concretização em nível normativo-constitucional, para além de uma significativa e abrangente regulamentação normativa na esfera infraconstitucional, com destaque para as leis que dispõem sobre a organização e os benefícios do SUS e o fornecimento de medicamentos.
Mesmo assim, basta uma leitura superficial dos dispositivos pertinentes (arts. 196 a 200) para que se perceba que nos encontramos, em verdade, no que diz com a forma de positivação, tanto em face de uma norma definidora de direito (direito à saúde como direito subjetivo, de todos, portanto de titularidade universal), quanto diante de normas de cunho impositivo de deveres e tarefas, pois o art. 196 enuncia que a saúde é direito de todos e dever do Estado, além de impor aos poderes públicos uma série de tarefas nesta seara (como a de promover políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, além de estabelecer o acesso universal e igualitário às ações e prestações nesta esfera).[2]
Para além disso, veja-se que a doutrina vai além, reforçando o caráter universal do direito à saúde, consubstanciado pelo caput do artigo 196 da Constituição Federal, ora em destaque:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A premissa constitucional revela que a saúde é um direito do cidadão e dever do Estado. Aqui é preciso entender Estado em ampla acepção, qual seja, responsabilidade de todos os entes federativos (União, Estados e Municípios). Além disso, entre os deveres do Estado está a determinação de assegurar o acesso universal às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde.
Assim, a simples leitura deste artigo já refutaria a validade de eventual intenção do Governador, porquanto absolutamente refratário ao seu conteúdo, notadamente ao núcleo essencial do direito à saúde e o acesso universal.
Porém não é só. O artigo 198 da Constituição Federal dispõe sobre o sistema único de saúde e dá diretrizes:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
Nota-se que uma das diretrizes é o atendimento integral. A descentralização, com direção única em cada esfera de poder, não pressupõe a existência de prerrogativa de recusa de atendimento. Ao contrário, o que se tem é direção local que atue no sentido de garantir o atendimento integral à população.
Assim, norma editada nesse sentido é absurda, desumana e viola a dignidade de cada cidadão brasileiro que venha a ser atendido no Distrito Federal, de modo que sua ação viola sobremaneira o disposto no artigo 1º, III, da Constituição Federal.
Em tempo, o Distrito Federal é a capital da República, local aonde estão os poderes constituídos. A população do entorno gera riquezas para o Distrito Federal. E ainda que não fosse assim, é dever do Estado prestar o atendimento. Ainda mais em tempos de pandemia, uma vez que o vírus não escolhe localidade para infecção e nem sabe quais são os limites territoriais entre o Distrito Federal, Goiás e Minas Gerais.
Para além do que determina a Constituição Federal, é preciso destacar o que dispõe a Lei Orgânica do Distrito Federal sobre o tema. Destaque, pois, para o artigo 205 de nossa Lei:
Art. 205. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede única e hierarquizada, constituindo o Sistema Único de Saúde - SUS, no âmbito do Distrito Federal, organizado nos termos da lei federal, obedecidas as seguintes diretrizes:
I - atendimento integral ao indivíduo, com prioridade para atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
II - descentralização administrativo-financeira dos serviços de saúde para as regiões administrativas;
III - participação da comunidade;
IV - direito do indivíduo à informação sobre sua saúde e a da coletividade, as formas de tratamento, os riscos a que está exposto e os métodos de controle existentes;
V - gratuidade da assistência à saúde no âmbito do SUS;
VI - integração dos serviços que executem ações preventivas e curativas adequadas às realidades epidemiológicas.
A Lei Orgânica dispõe sobre o atendimento integrado, gratuito em rede hierarquizada e que compõe o sistema único. A Lei Orgânica, ainda que fale no âmbito do Distrito Federal, faz expressa menção à rede única, ou seja, universal, de modo que não é possível, ao Chefe do Poder Executivo, limitar o atendimento de pessoas no Distrito Federal.
A Lei Federal nº 8.080/90 também não dispõe de modo diverso. Ao regulamentar o sistema único de Saúde (SUS), a lei estabelece quais são as diretrizes e os princípios aplicáveis ao sistema, consoante se extrai do artigo 7º do referido diploma legal, com destaque para os incisos I, II e IV:
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
(...)
IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;
(...)
É indene de dúvidas que o sistema não admite tratamento desigual ou que encontre fronteiras para o exercício do direito à saúde. Assim, o Decreto editado está em descompasso com a Constituição Federal, a Lei Orgânica do Distrito Federal e a Lei Federal nº 8.080/90.
Vale dizer que o Poder Judiciário também já decidiu que não é possível estabelecer limite territorial para atendimento de saúde, sobretudo em razão da organização do sistema de saúde em âmbito nacional. Veja-se, a propósito, as decisões a seguir, todas do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:
CONSUMIDOR. DIREITO INTERTEMPORAL. RECURSO. REQUISITOS MARCO. PUBLICAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. POSTERIOR À VIGÊNCIA DA LEI 13.105/15. REGÊNCIA PELO CPC/15. INTERNAÇÃO DOMICILIAR (HOME CARE). RECOMENDAÇÃO MÉDICA. DIREITO À SAÚDE. ILEGITIMIDADE PASSIVA NÃO CARACTERIZADA. PACIENTE RESIDENTE NO ENTORNO.
(...)
3. O Distrito Federal possui legitimidade para figurar no pólo passivo da demanda, pois embora os serviços de saúde realizados pelo SUS sigam uma organização de forma regionalizada, não pode ser negado atendimento a pessoa residente fora do Distrito Federal, atendo ao direito universal à vida e à saúde, garantidos na Constituição Federal. Notadamente quando o atendimento teve início em hospital da rede pública do Distrito Federal.
4. Recurso conhecido e provido.
(Acórdão 1025588, 20150111283729APC, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, 3ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 14/6/2017, publicado no DJE: 26/6/2017. Pág.: 386/395)
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COMINATÓRIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. PRELIMINARES DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO E DE NULIDADE DO PROCESO. REJEIÇÃO. MÉRITO: OBRIGAÇÃO DO ESTADO DE PRESTAR ASSISTÊNCIA À SAÚDE. PACIENTE RESIDENTE EM OUTRA UNIDADE DA FEDERAÇÃO. IRRELEVÂNCIA. SUBSTITUIÇÃO DO MEDICAMENTO POR GENÉRICOS OU SIMILARES DE OUTRAS MARCAS. INOVAÇÃO RECURSAL.
(...)
03. O Distrito Federal tem o dever de arcar com o ônus do fornecimento de medicamentos a pacientes enfermos, nos termos do art. 196 da Constituição Federal e do art. 207 da Lei Orgânica do Distrito Federal.
04. Não há em nosso ordenamento jurídico norma que desobrigue o Distrito Federal de prestar atendimento a pessoas residentes em outras unidades da Federação.
(...)
(Acórdão 498033, 20080110712523APC, Relator: NÍDIA CORRÊA LIMA, Revisor: HUMBERTO ULHÔA, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 13/4/2011, publicado no DJE: 3/5/2011. Pág.: 196)
Por fim e não menos sem importância, urge observar que, de fato, a Câmara Legislativa do Distrito Federal editou o Decreto Legislativo nº 2.284, publicado no Diário da Câmara Legislativa de 6 de abril de 2020. Sucede que o referido decreto, ao reconhecer estado de calamidade, só o fez para atendimento de questões específicas, atinentes ao cumprimento de metas da Lei de Responsabilidade Fiscal, sem, contudo, impedir o atendimento de saúde no Distrito Federal.
Eis a sua ementa:
Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar federal nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do governador do Distrito Federal encaminhada por meio da Mensagem nº 111, de 31 de março de 2020.
Ainda que possa pretender eventual compensação dos Estados de Minas Gerais e Goiás, em razão de ampliação do atendimento do Distrito Federal, a premissa inserida na Constituição Federal e em todas as normas dela derivadas é de atendimento universal, sendo a recusa ato indevido do administrador.
Felizmente, após entendimentos com o Estado de Goiás, o Governador recuou e não editou norma nesse sentido. Se assim fizesse, fatalmente a referida norma seria confrontada no próprio Poder Legislativo, ao fim e cabo, no Poder Executivo, tendo em vista a sua manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade.
[1] Disponível em https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/14/ibaneis-diz-que-vai-proibir-hospitais-publicos-do-df-de-receber-pacientes-do-entorno-com-covid-19.ghtml. Acesso em 14.5.2020, às 12h45.
[2] SARLET. Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional – 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Pág. 676.
Advogado, Assessor Parlamentar, Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, Pós Graduado em Direito Administrativo pelo IDP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Adovaldo Dias de Medeiros. A universalidade do atendimento de saúde: a ilegalidade da recusa de atendimento de saúde por entes da Federação de pacientes oriundos de outra unidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2020, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54811/a-universalidade-do-atendimento-de-sade-a-ilegalidade-da-recusa-de-atendimento-de-sade-por-entes-da-federao-de-pacientes-oriundos-de-outra-unidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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