Em tempos de pandemia, onde a dinâmica social foge aos padrões da normalidade, uma das principais questões a ser enfrentada pela comunidade jurídica diz respeito à solução a ser empregada diante de aparente antinomia normativa, considerando a dicotomia decorrente das restrições de direitos e garantias individuais face à necessidade de implementação de medidas de distanciamento social.
Em verdade, a sociedade, não só a brasileira, visto que a situação excepcional decorrente da pandemia do novo Coronavírus é um fenômeno de escala mundial, tem sido obrigada a lidar com situações onde as liberdades individuais têm sido mitigadas em decorrência das restrições impostas pelo Poder Público, para implementação de políticas públicas para o enfretamento da situação de emergência de saúde pública vivenciada mundialmente.
Neste contexto, tem emergido a existência de pretensões que repousam muitas vezes em normas “aparentemente” contraditória. Os decretos e atos normativos editados pelo Poder Público, dispondo sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública por conta da COVID-19, com fundamento em valores constitucionais, trazem algumas restrições às liberdades e aos direitos individuais, com o desiderato maior de preservar o interesse público de preservar vidas e a saúde das pessoas.
Neste interim, diante do caso concreto, deve haver o sopesamento entre os valores envolvidos, para, ao final, optar-se pela prevalência de um deles, sem que seja preciso reconhecer a norma preterida como inválida.
Restringir, em certas circunstâncias, os direitos individuais não significa negar vigência às normas que lhes dão suporte. Como leciona Norberto Bobbio:
“Um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores contrapostos (em idéias opostas): consideram-se, por exemplo, o valor da liberdade e o valor da segurança como valores antinômicos, no sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à segurança, e a garantia de segurança tende a restringir a liberdade; em consequência um ordenamento inspirado em ambos os valores se diz que descansa sobre princípios antinômicos[1].
Como se vê, embora contraditórias, a coexistências de normas desta natureza é plenamente admissível, já que, diante de determinadas circunstâncias, é que se irá enxergar a curvatura a ser feita em favor de um destes valores, sem que o outro deixe de pertencer validamente ao ordenamento.
É certo que a Constituição Federal, em nível principiológio, além do direito à vida e à saúde, assegura a liberdade de locomoção, a livre iniciativa e o direito ao trabalho. Na situação vivenciada por conta da pandemia do Novo Coronavírus, enquanto as restrições impostas pelo Poder Público se apoiam nas normas que asseguram o direito à vida e à saúde, pessoas físicas e jurídicas lançam pretensões calcadas nos direitos individuais de ir e vir, da livre iniciativa e do trabalho.
A triste realidade decorrente da pandemia do Coronavírus fez com que, diante do caso concreto, os valores que alicerçam os direitos e garantias individuais se mostrassem em situação de aparente conflito com as medidas de distanciamento social impostas pelo Poder Público.
Para solução do aparente conflito principiológico que se evidencia, impõe-se a compreensão do real significado dos princípios e os caminhos indicados pela doutrina para que esses valores, ainda quando em conflitos, possam coexistir harmonicamente no sistema normativo.
Ao lado das teorias que procuram a distinção entre princípios e regras através do grau, seja de abstração, generalidade ou fundamentalidade, existem as que buscam um caráter lógico para este proceder. Virgílio Afonso da Silva, atento a isto, observa que a principal diferença entre ambas as propostas é facilmente identificável. O conceito de princípio na teoria de Alexy, é um conceito que nada diz quanto sobre a fundementalidade da norma. Assim, um princípio pode ser um mandamento nuclear de um sistema, mas pode também não o ser, já que uma norma é um princípio apenas em razão de sua estrutura normativa, e não de sua fundamentalidade.
O critério que nos parece mais útil à solução da celeuma instaurada é o que procura identificar a regra ou princípio através de sua estrutura normativa. A regra é uma construção feita pelo intérprete onde se obtém do texto normativo uma hipótese e uma consequência (dado A, deve ser B), nos princípios não é possível chegar a essa estrutura, sendo apenas valores tidos como importantes para o Direito. As regras, se são válidas, devem ser aplicadas, havendo regras antinômicas, uma das duas deve ser excluída do sistema. Já os princípios, podem não se realizar totalmente, sem que se tenha por afetada a sua validade.
As regras, por expressarem deveres definitivos, devem ser aplicadas na exata medida daquilo que prescrevem. Os princípios, por revelarem direitos e deveres prima facie, têm o grau de realização variável, a depender das circunstâncias do caso concreto.
Segundo Robert Alexy, “os princípios são normas que estabelecem que algo deve ser realizado na maior medida possível, diante das possibilidades fáticas e jurídicas presentes. Por isso são eles chamados de mandamentos de otimização.”[2]
Então chega-se à conclusão de que só os princípios admitem o sopesamento e ponderação no momento de serem realizados, sendo isto apenas possível em face da ausência da estrutura normativa hipótese – consequência, característica peculiar das regras. Contrário senso, toda vez que se chegar a uma estrutura reveladora de deveres definitivos (dado A deve ser B) de forma não haja espaço para ponderações, devendo realizar-se o exato quanto prescrito, estaremos diante de uma regra. Não havendo essa estrutura, mas tão somente valores reveladores de deveres e direitos prima facie, sendo possível ponderação e sopesamento, o que se tem é um princípio.
Deste modo, sendo os direitos à Liberdade, à Saúde e ao Trabalho alçados à categoria de princípios constitucionais, a realização deles deve ser graduada em função das circunstâncias do caso concreto.
Feitas estas considerações, resta evidente que a solução para acomodar o conflito de valores decorrente da situação da Pandemia do COVID-19 passa necessariamente pela ponderação e sopesamento dos valores constitucionais envolvidos. Nesta linha, ponderando e sopesando de um lado os princípios da liberdade, livre iniciativa e do trabalho e, de outro, os princípios do direito à vida e à saúde, parece inquestionável que, na situação atual, a curvatura deve se dar em favor destes últimos.
É importante lembrar que nenhum direito possui caráter absoluto, mesmo que de hierarquia constitucional. A situação concreta reclama que as liberdades individuais sejam mitigadas em prol do interesse da coletividade, especialmente em função da necessidade de se preservar a vida e a saúde das pessoas, todavia, essas limitações precisam ser justificadas e necessárias.
Desta forma, as normas constitucionais que veiculam os direitos e garantias fundamentais de ordem individual não podem servir de subterfúgio para afastamento das restrições impostas pelo Poder Público, considerando que estão calcadas em princípios constitucionais e se revelam medidas absolutamente necessárias para assegurar o direito à vida e à saúde das pessoas.
Afastar, em situações especiais, o espectro de incidência de um determinado princípio em prol de outro não significa negar vigência ou reconhecer a supremacia de nenhum deles, mas aceitar a generosidade inata a esta espécie normativa, que permite que um deles ceda espaço para o outro, através do caminho da ponderação e sopesamento.
Todavia, na medida em que a ciência indica a existência de segurança para flexibilização das restrições impostas, algumas atividades devem ser retomadas de forma gradativa e responsável.
As restrições às liberdades individuais só se justificam na medida absolutamente necessária à preservação de valores de igual envergadura, como o direito à Vida e à Saúde.
Então, na medida em que se torna possível a retomada gradual das atividades sociais, com respaldo em critérios científicos, sem colocar em risco a Saúde e a Vida da população, a flexibilização é medida imperativa, sob penas de restrições antes legítimas se tornarem arbitrárias.
REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru, SP: Ed. Edipro, 2001.
_______.Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria celeste Cordeiro Leite dos Santos,10ª ed., Brasília: ed. UNB, 1999.
FILHO, José dos Santos Carvalho. Manual de Direito Administrativo. 20ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2008.
JR, Hélio Silva. Direito de igualdade Racial: Aspectos Constitucionais, Civis e Penais: Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, 2002.
LENZA, Pedro, Direito Constitucional Esquematizado. 11ª ed. São Paulo: Ed. Método, 2007.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2005.
SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos de uma distinção. <http://constituicao.direito.usp.br/wp-content/uploads/2003-RLAEC01-Principios_e_regras.pdf>.
Procurador do Estado de Alagoas, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Cataria, Pós-Graduado em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSA, Danilo França Falcão. O conflito de princípios em tempos de pandemia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2020, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/54961/o-conflito-de-princpios-em-tempos-de-pandemia. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.