RESUMO: A Constituição Federal estabelece um sistema complexo de repartição de competências federativas, envolvendo tanto repartições verticais (em que mais de um ente federado compartilha a mesma competência) como repartições horizontais (em que apenas um ente goza de determinada competência). O critério doutrinário extraído da constituição para se repartir as competências verticais é o da Predominância dos Interesses. Por meio desse princípio, cabe à União legislar sobre normais de interesse nacional, aos Estados normais de interesse regional e aos municípios normas de interesse local. Recentemente, encontra-se sob julgamento na Suprema Corte a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, na qual foi discutida a repartição de competências relativas às medidas de enfrentamento do COVID-19. Serão analisadas a cautelar e sua posterior manutenção proferidas, respectivamente, pelo Ministro Marco Aurélio e pelo plenário do STF, tendo como base o princípio da Predominância dos Interesses. Assim, concluir-se-á que foi acertada a decisão do STF, uma vez que o Princípio da Preponderância, efetivamente, aponta para a impossibilidade de que a União esgote a competência federal para proteger a saúde pública, no âmbito do enfrentamento ao COVID-19.
PALAVRAS-CHAVE: repartição de competências federativas; princípio da preponderância dos interesses; ADI nº 6341.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do federalismo e das competências federativas. 2.1. Das técnicas de repartição de competências. 2.2. Da repartição de competências administrativas e legislativas. 2.3. Do princípio da preponderância dos interesses. 2.4. Da competência suplementar e delegada. 3. Do objeto da ADI nº 6341. 4. Da análise da decisão do Supremo Tribunal Federal. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, na qual foi discutida a competência dos entes federados em relação às medidas para enfrentamento da pandemia do COVID-19.
A matéria é de vital importância em razão do cenário pandêmico atual, que exige esforços de âmbito nacional, com cooperação mútua da União com Estados e Municípios.
Nesse sentido, primeiramente será necessária uma distinção conceitual dos tipos de competência existentes no texto da Constituição Federal (CF), de acordo com a doutrina. Após, far-se-á uma análise da decisão em si do Supremo Tribunal Federal (STF), verificando-se se o entendimento da Suprema Corte vai ao encontro ou não da doutrina constitucional majoritária.
2. DO FEDERALISMO E DAS COMPETÊNCIAS FEDERATIVAS
A Constituição Federal determina em seu primeiro artigo que o Estado Brasileiro é uma federação indissolúvel entre a União, os Estados, o Distrito Federal e o Município:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL,2020).
O termo “indissolúvel” nesse contexto tem como finalidade tornar impossível, enquanto vigora a Constituição Federal, qualquer rediscussão do pacto federativo. Posteriormente, no art. 60, §4º, o constituinte originário reforça a indivisibilidade e torna o pacto federativo cláusula pétrea, impossível de se abolir, portanto, mesmo por eventual emenda à constituição:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
(...). (BRASIL,2020).
A forma federativa de um Estado traz diversas implicações à sua forma de administração e de existência. Todavia, a mais evidente e precisamente o objeto do presente trabalho é a distribuição das competências federativas.
Resumidamente, os entes federados são proibidos de usurpar as competências federativas uns dos outros, de modo que não é possível que a União legisle ou exerça sua competência sobre aquilo que não lhe foi atribuída capacidade, nem que os demais entes o façam quando a capacidade foi atribuída à União.
Destaca-se que cada Estado federativo existente possui sua própria forma de divisão de competências, que costumam variar segundo o processo histórico de formação da própria federação. Não se realizará qualquer análise crítica a respeito da razoabilidade ou da adequação da forma pela qual a República Federativa do Brasil optou por distribuir as competências legislativas de seus entes federados.
Nesse sentido, o presente trabalho fará uma análise mais prática, no sentido de se verificar apenas como foi feita essa distribuição de competências e de como o Supremo Tribunal Federal as interpretou e aplicou no julgado objeto do trabalho.
2.1 Das técnicas de repartição de competências.
Para o objetivo do trabalho, é necessário se entender de qual maneira a República Federativa do Brasil escolheu distribuir as competências de seus entes federados. A doutrina elenca que, entre as federações, há duas formas (ou duas técnicas) pelas quais as competências podem ser distribuídas (ou repartidas). São elas: a repartição horizontal e a repartição vertical.
Ocorre a repartição horizontal quando determinada matéria não é compartilhada entre os entes federados. Em outras palavras: se determinada competência é atribuída a um ente, ele a exercerá com autonomia plena, independentemente de como os demais entes o fazem.
Nas palavras de Fernandes (2018):
É a técnica na qual, há uma distribuição estanque (fechada) de competência entre os entes, ou seja, cada ente terá suas competências definidas de forma enumerada e específica, não as dividindo com nenhum outro ente. Essa técnica advém do federalismo dual ou clássico. (FERNANDES, 2017, p. 884).
Por sua vez, a repartição vertical se demonstra quando determinada matéria é, simultaneamente, de competência de mais de um ente federativo. Em outras palavras: a Constituição Federal permite que mais de um ente exerça ou legisle sobre determinado assunto.
Segundo Fernandes (2018):
É aquela técnica na qual dois ou mais entes vão atuar conjuntamente ou concorrentemente para uma mesma matéria. A repartição vertical surge na Constituição alemã de Weimar, de 1919. No Brasil, aparece pela primeira vez na Constituição de 1934. Atualmente, ela existe na Constituição de 1988. Essa técnica advém do modelo de federalismo cooperativo ou de integração. (FERNANDES, 2017, p. 885).
Nota-se que as duas técnicas de repartição podem coexistir em um ordenamento jurídico, desde que aplicadas para matérias distintas. É precisamente isso que se verifica na Constituição Federal, na qual há determinadas competências federativas que foram verticalmente repartidas (atribuídas simultaneamente a mais de um ente), e outras que o foram horizontalmente (atribuídas exclusivamente a um ente).
Nesse sentido, esclarece Fernandes (2018):
Portanto, temos que o Brasil adota um sistema complexo de repartição de competências, trabalhando tanto a repartição horizontal (de competências enumeradas
e remanescentes) quanto a repartição vertical (de competências concorrentes e comuns), tendo o objetivo de desenvolver um federalismo de equilíbrio (ainda em processo!), no qual permeiam competências privativas (ou exclusivas), remanescentes, comuns e concorrentes entre os entes que compõem a Federação (União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal)
(FERNANDES, 2017, p. 885).
O objeto do presente trabalho será a repartição vertical de competências, uma vez que é neste que reside o conflito relativo à ADI nº 6341.
2.2. Da repartição de competências administrativas e legislativas
Até o presente momento, têm-se falado de “repartição de competências federativas” indistintamente. Faz-se necessário esclarecer que dentro do referido conceito podemos extrair dois que o compõem: repartição administrativa (também chamada pela doutrina de repartição material) e repartição legislativa.
Elucida Fernandes (2017):
A competência legislativa é a competência que o ente tem para legislar. A competência administrativa é a competência para a tomada de decisões ou execução
de políticas públicas ou para o gerenciamento e desenvolvimento da máquina administrativa. É também chamada por alguns doutrinadores de competência material.
Pelos verbos é possível verificar na CR/88 quando se trata de competência legislativa à luz do verbo legislar ou de competência administrativa que terá como característica a explicitação dos verbos: manter, guardar, preservar, emitir, declarar, decretar etc.
(FERNANDES, 2017, p. 891).
A repartição administrativa diz respeito à competência dos entes para agir sobre determinado assunto. Nesse sentido, as competências administrativas podem ser exclusivas ou comuns.
Tem-se, por exemplo, que a Constituição Federal estabelece que compete exclusivamente à União emitir moeda (art. 21, VII, da CF). Por outro lado, estabelece que é competência comum de todos os entes federados preservar as florestas, a fauna e a flora (art. 23, VII).
A repartição legislativa, por sua vez, diz respeito à competência legislativa propriamente dita, ou seja, à competência de cada ente para elaborar leis. Nesse sentido, subdividem-se em: competências privativas (cabem, em regra, apenas a um ente) e competências concorrentes (cabe a mais de um ente).
Como exemplo dos tipos de repartição legislativa, nota-se que compete à União, privativamente, legislar sobre direito civil (art. 22, I, da CF). De outra forma, compete concorrentemente à União e aos Estados e ao Distrito Federal legislarem sobre direito tributário (art. 24, I, da CF).
2.3. Do princípio da preponderância dos interesses.
Já foi dito que a Constituição Federal adota um sistema complexo de repartição de competências, ora se valendo da repartição horizontal (em que não há compartilhamento da competência) e ora se valendo da repartição vertical (em que há compartilhamento da competência por mais de um ente federado). Resta elucidar com base em qual princípio é realizada esta última.
Interpretando-se o texto constitucional, a doutrina destaca que o princípio norteador da repartição de competências federais é o “Princípio da Predominância dos Interesses”.
Nas palavras de Fernandes (2018):
Além do princípio da indissolubilidade do vínculo Federativo (já citado), existe um outro princípio importante para o federalismo e para o tema ora em análise. Esse princípio é chamado de Princípio da predominância dos interesses. Nesses termos, à luz do referido princípio: a União tem sempre interesse geral; os Estados-membros,
interesse regional e os Municípios, interesse local. O Distrito Federal terá interesse
tanto regional como local, conforme o art. 32 § lº da CR/88 (FERNANDES, 2018, p. 886).
A existência do referido princípio decorre, primeiramente, do §1º do art. 24 da CF, que estabelece a competência da União para legislar sobre normas gerais:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. (BRASIL,2020).
Posteriormente, estabelece-se no inciso I do art. 30 a competência dos Municípios para legislar sobre normas de interesse local:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
(BRASIL,2020).
Nota-se que, no âmbito da competência legislativa concorrente, a competência dos Estados é remanescente, ou seja, cabe aos Estados legislar concorrentemente sobre tudo aquilo que não seja de interesse geral (normais gerais da União), nem de interesse local (normas locais dos Municípios). É o que dispõe o § 1º do art. 25 da CF:
Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição.
§ 1º São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. (BRASIL,2020).
Por esse motivo, a doutrina elenca que aos Estados cabe legislar sobre normas que não sejam de interesse geral (de competência da União), nem de interesse local (de competência dos Municípios). Seriam, portanto, normas de interesse regional.
Nas palavras de Fernandes (2018):
Nesses termos, fica claro que os Estados poderão legislar sobre todas as matérias que não lhes sejam vedadas expressamente ou mesmo implicitamente pela Constituição. Como exemplo, para o exercício das competências remanescentes dos Estados, podemos observar que quem organiza e fiscaliza o transporte local são os Municípios, bem como o transporte interestadual, é a União. Todavia, em relação ao intermunicipal, não há previsão expressa. Aqui temos que a competência é remanescente dos Estados-membros (FERNANDES, 2018, p. 886).
O Distrito Federal, por sua vez, sendo ente federado com atribuições típicas tanto de Município como de Estado, possui competência para editar tanto leis de interesse local como leis de interesse regional. É o que dispõe o art. 32, §1º, da CF:
Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger- se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.
§ 1º Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios. (BRASIL,2020).
Nesse sentido, elucida Fernandes (2018):
Sobre o art. 32, § 1°, afirma a Constituição que: ao Distrito Federal são reservadas as competências legislativas dos Estados e dos Municípios. Nesses termos, temos o chamado interesse regional conjugado com o interesse local. (FERNANDES, 2018, p. 891)
Antes de se adentrar no julgado objeto de análise deste trabalho, convém esclarecer mais algumas peculiaridades acerca da repartição de competências legislativas dos entes.
2.4 – Da competência suplementar e delegada.
O legislador constituinte escolheu por conferir aos Estados duas competências legislativas excepcionais: uma suplementar e uma delegada.
Nesse sentido, dispõe o art. 24, §3º, da CF, que, inexistindo legislação federal em vigor, os Estados poderão exercer legislação de forma plena (isso significa, editar normas de caráter geral). Todavia, legislando a União, posteriormente, sobre o tema, ficam as normas estaduais existentes suspensas, conforme estabelece o §4º do art. 24 da CF:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
(...)
§ 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário
Há, ainda, a possibilidade de a União delegar aos Estados membros a capacidade para legislar sobre normas gerais, que, a princípio, seriam de competência legislativa da União, desde que o faça por Lei Complementar. É o que determina o parágrafo único do art. 22:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.
Ressalta-se, todavia, que há requisitos elencados pela doutrina, conforme esclarece Bernardo Fernandes (2018):
É mister salientar que existem requisitos para que possa ocorrer a delegação das competências privativas da União para os Estados. Nesse sentido, os requisitos de delegabilidade são: a) Requisito Formal: a União só pode delegar para os Estados competência legislativa mediante lei complementar. b) Requisito material: a União só poderá delegar questões específicas das matérias presentes nos incisos - não podendo delegar o inciso sem delimitação. c) Requisito Implícito: da isonomia, encontra-se no art. 19, inc. Ili, CR/88. (FERNANDES, 2018, p. 888-889).
Salienta-se, também, que a delegação não se confunde com abdicação. Ainda que a União delegue aos Estados a edição de determinada lei, não há óbice a que futura lei federal seja editada pela União, revogando, portanto, a Lei Delegada naquilo que lhe contrariar.
Nesse sentido, afirma Bernardo Fernandes (2018):
Por último, é mister salientar que a União, mesmo delegando competências aos Estados-membros (e Distrito Federal), não abdica delas, podendo então retomar a sua competência legislando sobre o assunto delegado a qualquer momento. (FERNANDES, 2018, p. 888-889).
Destaca-se que os Municípios também possuem competência para legislar de forma suplementar, tal como prevê o inciso II do art. 30 da CF:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; (BRASIL, 2020).
Após essa exposição, faz-se possível a análise da decisão do STF em face à ADI nº 6341.
3. O OBJETO DA ADI Nº 6341.
A referida ADI foi impetrada pelo Partido dos Trabalhadores (PDT), tendo como objeto as alterações promovidas pela Medida Provisória (MP) nº 926/2020, que modificou o art. 3º, caput, da Lei 13.979/20, bem como seus incisos I, II, VI e parágrafos 8º, 9º, 10 e 11. O diploma tem como objetivo regular as medidas de enfrentamento à pandemia do COVID-19.
Analisar-se-á, brevemente, as mais polêmicas mudanças realizadas pela MP, que foram questionadas pela referida ADI.
As primeiras principais alterações ocorreram no caput do art. 3º e no seu inciso VI, bem como nos §6º e §7º:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
VI - restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
a) entrada e saída do País; e (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
b) locomoção interestadual e intermunicipal; (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
§ 6º Ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura disporá sobre a medida prevista no inciso VI do caput. (Redação dada pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
§ 6º-A O ato conjunto a que se refere o § 6º poderá estabelecer delegação de competência para a resolução dos casos nele omissos. (Incluído pela Medida Provisória nº 927, de 2020)
§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
I – pelo Ministério da Saúde, exceto a constante do inciso VIII do caput deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020)
nas hipóteses dos incisos I, II, V e VI do caput deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 14.006, de 2020) (Vide ADI 6343)
III - pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.
IV – pela Anvisa, na hipótese do inciso VIII do caput deste artigo.
(...).
Segundo a nova redação, todas as medidas de restrição do inciso VI, inclusive a restrição de transporte interestadual e intermunicipal, apenas poderiam ocorrer se em conformidade com ato conjunto elaborado pelo Ministério da Saúde e da Justiça e Segurança Pública (§6º). Da mesma forma, os gestores locais (gestores estaduais e municipais) apenas poderiam decidir sobre o tema se assim o fossem autorizados pelo Ministério da Saúde (§7º, inciso I).
Ademais, a MP também dispôs que nenhuma medida de restrição poderia obstruir o exercício de atividades essenciais, determinando, ainda, que essas atividades seriam reguladas por meio de decreto do Poder Executivo Federal. Assim dispõem os parágrafos 8º e 9º do art. 3º:
§ 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
§ 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º. (Incluído pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
Em síntese, a MP 926/20 almejava limitar as capacidades dos Municípios e dos Estados de editar medidas de restrição de locomoção e de exercício e funcionamento de atividades essenciais, concentrando na União a capacidade para fazê-lo.
Destaca-se que a ADI 6341 almejava a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos citados da MP 926/20 por mais de um motivo: inconstitucionalidade formal por legislar sobre matéria alegadamente reservada à Lei Complementar, inconstitucionalidade material por abuso de poder ao expedir medida provisória sobre o tema e, por fim, inconstitucionalidade formal por esvaziar, na competência da União, competências legislativas e administrativas que caberiam aos demais entes federados.
Dos pedidos da ADI, apenas o último foi parcialmente deferido, até o momento, pelo STF. Por essa razão, é ele o objeto do presente trabalho.
4. DA ANÁLISE DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
A primeira decisão de mérito proferida na referida ação foi a do relator, Ministro Marco Aurélio, em sede de liminar. Em síntese, após negar, cautelarmente, os primeiros pedidos, o Ministro deu parcial provimento ao pedido de inconstitucionalidade por usurpação das competências dos demais entes federados.
Assim foi a decisão do Ministro relator:
Surge acolhível o que pretendido, sob o ângulo acautelador, no item a.2 da peça inicial, assentando-se, no campo, há de ser reconhecido, simplesmente formal, que a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.
3. Defiro, em parte, a medida acauteladora, para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente. (BRASIL, ADI 6341/DF, 2020).
Destaca-se, primeiramente, que o Ministro utilizou a terminologia “competência concorrente”. Todavia, a doutrina majoritária classifica as competências do art. 23 como “competências comuns”, por serem competências federais administrativas. Reserva-se o termo “competências concorrentes” para as competências federativas legislativas, previstas no art. 24 da CF.
Não obstante, trata-se de distinção meramente doutrinária. Efetivamente, tal como exposto, tanto as competências comuns como as concorrentes são espécies de repartição vertical de competências, as quais, indistintamente, orientam-se segundo o princípio da Preponderância dos Interesses. Dessa maneira, o termo “competência concorrente”, de que se valeu o Ministro, se doutrinariamente adequado ou não, em nada prejudica o mérito da questão.
Ademais, embora o Ministro não utilizado expressamente dessas palavras, conclui-se ter ocorrido a aplicação da técnica de julgamento da “interpretação conforme a constituição”. Em síntese, em vez de se ter como inconstitucional o dispositivo questionado, sublimando-o do ordenamento jurídico, o órgão julgador opta por conferir-lhe uma única interpretação jurídica possível que o torna constitucionalmente válido.
Nas palavras de Fernandes (2018):
A primeira modalidade de sentenças interpretativas é a conhecida e aqui já trabalhada interpretação conforme a Constituição, cujo escopo é fixar uma interpretação pelo Tribunal que seja tida como compatível (em consonância) com o Diploma Constitucional, de modo a não se declarar a norma inconstitucional desde que seja aplicada tal interpretação (FERNANDES, 2018, p. 1578-1579).
Posteriormente, tendo a cautelar sido submetida ao plenário do STF por meio de sessão virtual, obteve-se a ratificação da decisão do Ministro relator, conforme certidão de julgamento:
Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin. Falaram: pelo requerente, o Dr. Lucas de Castro Rivas; pelo amicus curiae Federação Brasileira de Telecomunicações – FEBRATEL, o Dr. Felipe Monnerat Solon de Pontes Rodrigues; pelo interessado, o Ministro André Luiz de Almeida Mendonça, Advogado-Geral da União; e, pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras, Procurador-Geral da República. Afirmou suspeição o Ministro Roberto Barroso. Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Plenário, 15.04.2020
(Sessão realizada inteiramente por videoconferência - Resolução 672/2020/STF).
(BRASIL, ADI 6341/DF, 2020).
Percebe-se que o STF, por meio de técnica de interpretação conforme à constituição, entendeu que as alterações promovidas pela MP 926/20, desde que sua interpretação e aplicação fosse compreendida com não redutora da competência concorrente dos Estados, Municípios e Distrito Federal. Assim, as normas fixadas pela União na referida lei não vinculam os demais entes federados, que podem legislar sobre o tema, inclusive em sentido diverso à lei federal, segundo seus interesses regionais e locais.
Após o exposto, faz-se possível a análise da adequação da referida decisão em relação ao conteúdo doutrinário já trabalhado.
Como bem salientado pelo Ministro Marco Aurélio, a competência federativa tutelada pela MP 926/20 é a saúde pública. Segundo a Constituição Federal, trata-se de competência federativa comum, ou seja, compartilhada entre os entes federados.
Isso se extrai tanto da leitura do art. 23, II, da CF, como do inciso I do art. 198, que estabelece o princípio da descentralização administrativa do Sistema Único de Saúde (SUS):
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...).
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
(...). (BRASIL, 2020).
Ademais, na própria Lei nº 8080/90 (Lei do SUS), é garantida que a organização do SUS será feita por cada esfera de governo, ratificando-se o princípio da descentralização do sistema único de saúde:
Art. 9º A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do art. 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:
I - no âmbito da União, pelo Ministério da Saúde;
II - no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente; e
III - no âmbito dos Municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente. (BRASIL, 2020).
Tratando-se de competência comum entre os entes federados, aplica-se à questão o referido princípio da Preponderância dos Interesses. Por meio deste, nota-se que não é possível que seja competência apenas da União decidir ou autorizar os demais entes a restringir o transporte intermunicipal e interestadual. Da mesma forma, não se torna viável que a União delimite genericamente quais são as atividades essenciais, de que cujo funcionamento os entes não podem restringir.
A razão disso se encontra no fato de a pandemia não atingir uniformemente todas as cidades, nem todos os Estados do Brasil. Isso significa que a União não possui profundidade de conhecimento para decidir de maneira uniforme sobre o tema, ignorando as peculiaridades locais e regionais de cada Município ou Estado, tais como taxa de contágio, tipo de economia, principais atividades econômicas da região, quantidade de leitos disponíveis, entre tantas outras variáveis.
Destaca-se que, segundo julgado do STF, não é possível sequer que os Estados e Municípios se omitam de exercer sua competência concorrente, sendo inconstitucional que determinado tema seja regido por simples remissão à lei federal.
Nesse sentido, pronunciou-se a corte a respeito de lei estadual que se eximia de legislar acerca do cultivo comercial de organismos geneticamente modificados, fazendo simples remissão à Lei Federal:
EMENTA: ALIMENTOS TRANSGÊNICOS. COMPETÊNCIA CONCORRENTE DO ESTADO-MEMBRO. LEI ESTADUAL QUE MANDA OBSERVAR A LEGISLAÇÃO FEDERAL. 1. Entendimento vencido do Relator de que o diploma legal impugnado não afasta a competência concorrente do Estado-membro para legislar sobre produtos transgênicos, inclusive, ao estabelecer, malgrado superfetação, acerca da obrigatoriedade da observância da legislação federal. 2. Prevalência do voto da maioria que entendeu ser a norma atentatória à autonomia do Estado quando submete, indevidamente, à competência da União, matéria de que pode dispor. Cautelar deferida.
(STF. Plenário. ADI 2303/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 5/9/2018).
Da mesma forma que não seria possível que um ente federado (no caso, o Estado) legislasse sobre interesse regional com mera remissão à Lei Federal, também não o seria no caso da COVID-19. Ou seja, não é possível que a União obrigue os demais entes a legislar por remissão à lei federal, no que tange à matéria de competência concorrente.
Isso não significa, contudo, que a União não possui competência para tratar das medidas de isolamento relativas à COVID-19. A existência dessa competência, inclusive, foi a razão pela qual não se declarou a inconstitucionalidade da norma federal. É ampla a capacidade da União para legislar sobre o tema, desde que, ao fazê-lo, não esgote por completo as capacidades dos demais entes federativos.
5. CONCLUSÃO.
O presente artigo conclui que há, no ordenamento jurídico brasileiro, duas técnicas de repartição de competências federativas: uma vertical e uma horizontal. A vertical é a que prevê o compartilhamento de competências federativas pelos entes federados, estando prevista, precipuamente, nos artigos 23, 24 e 30, I, da Constituição Federal.
Quando for caso de competência federativa de repartição vertical, seja ela de nomenclatura concorrente ou comum, o critério de repartição deve observar o princípio da Preponderância dos Interesses. Segundo esse princípio, cabe à União a competência para exercer e legislar sobre interesse nacional e aos Municípios sobre o interesse local, cabendo, portanto, aos Estados a competência remanescente, que se trata de interesse regional.
No caso das medidas de isolamento social de enfrentamento ao COVID 19, por se tratarem de matérias afetas à competência federativa da proteção à saúde pública, a sua aplicação é de competência comum a todos os entes federados. Nesse espectro, não pode a União decidir unilateralmente sobre as medidas de isolamento, exigindo a autorização dos demais entes para quando a matéria for de seu interesse regional ou local. Da mesma forma, não pode ela decidir uniformemente quais são as atividades que podem vir a ser restringidas, ignorando as peculiaridades de cada cidade ou estado. Qualquer norma federal nesse sentido deve ser interpretada como manifestação da competência comum ou concorrente da União sobre o tema, não vinculando, portanto, os Estados e os Municípios quando agirem dentro de seus interesses regionais e locais.
Dentro desse panorama, nota-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal no bojo da ADI nº 6341 foi ao encontro do que já estabelece a doutrina acerca do tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Guilherme Francisco Souza. Competências federativas: uma análise da decisão do STF no caso das medidas de combate ao Covid-19 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2020, 04:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55111/competncias-federativas-uma-anlise-da-deciso-do-stf-no-caso-das-medidas-de-combate-ao-covid-19. Acesso em: 23 dez 2024.
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