ANDREA LUIZA ESCARABELO SOTERO
(orientadora)[1]
RESUMO: Desde que a raça humana começou a viver de forma organizada, se entende e aceita a presença do Estado como agente soberano e regulador de todos, que tem o fito de harmonizar o convívio social. Foi através desse processo que o homem deixou seu estado natural e outorgou sua liberdade ao Estado. Com o passar dos anos e desenvolvimento intelectual, muito se questiona o limite da interferência do Estado na vida da sociedade civil organizada, principalmente no que diz respeito a questões ligadas a escolhas pessoais. O presente artigo busca, através de revisão bibliográfica, elucidar o contexto histórico em que as pessoas abdicaram de sua liberdade plena para que o Estado obtivesse sua tutela de forma a representar suas vontades, com enfoque na situação brasileira e quais as consequências desse processo.
Palavras-chave: Estado. Agente soberano. Estado natural. Interferência. Sociedade civil.
ABSTRACT: Since the human race has been living in an organized way, it has understood and accepted the presence of the state as a sovereign agent and regulator, which has the purpose of harmonizing this social life. It was through this process that man left his natural state and granted his freedom to the state. Over the years and intellectual development, much has been questioned about the limit of the state interference in the life of organized civil society, especially with regard to issues related to personal choices. This article seeks, through a bibliographic review, to elucidate the historical context in which people gave up their full freedom for the State to obtain their tutelage in order to represent their wishes, focusing on the Brazilian situation, and what are the consequences of this process.
Keywords: State. Sovereign agent. Natural state. Interference. Civil society.
1 INTRODUÇÃO
Buscando sobre a história da raça humana, verifica-se que antes das pessoas se organizarem no que hoje conhecemos como sociedade, houve tempos em que o homem só pensava em si mesmo e apenas tinha como objetivo realizar aquilo que lhe fosse bom, sem ao menos levar em consideração os efeitos que isso poderia ter no outro.
É verdade que nesse forma de viver, os homens gozavam da plenitude de sua liberdade, sendo eles mesmos os responsáveis por dirimir os conflitos e legitimar seus direitos.
Ocorre que cada indivíduo buscava satisfazer seu interesse, seja territorial, alimentar, sexual, entre outros, e vencia o mais forte, sem que houvesse para tanto, nenhum outro meio de justiça.
Tal estado de liberdade, é conhecido pelos filósofos contratualistas como Estado natural, e seu ônus era que todos viviam em guerras constantes para que realizassem seus “direitos”, ou seja, os direitos reais só pertenciam aos mais fortes que poderiam lutar para legitimar seus desejos.
A partir do momento em que o homem entendeu que essa forma de viver levaria a extinção da espécie humana, a sociedade passou a se organizar de forma diferente. Nesse momento da história foi concretizado o que mais tarde ficou conhecido como Pacto Social, ou Contrato social, que consiste na outorga da liberdade individual à um terceiro, escolhido para representar o interesse de todos e solucionar os conflitos.
Dessa forma, a sociedade passou então a conviver e se desenvolver com mais harmonia, e sempre que houvessem conflitos, o Estado Soberano, na figura de seu representante, era convocado a julgar e reestabelecer a ordem, de forma que todos pudessem viver em cooperação. No entanto, sem aquela liberdade plena de fazer o que bem se entendesse, da forma na qual funcionava no Estado Natural.
O Estado vem, desde então, sendo o tutor do direito de toda a população no mundo, podendo ele ser representado pelo monarca, presidente, primeiro ministro e etc, a depender do regime adotado no país, e, portanto, o responsável pela jurisdição à qual a sociedade está submetida.
Este trabalho científico, através de pesquisa exploratória, utilizando fontes primárias e revisão bibliográfica busca contextualizar todo esse crescimento do Estado como interventor, na busca de dirimir conflitos e alcançar a paz social, e mostrar quais os limites dessa intervenção nos dias atuais, e até que ponto ela é benéfica, podendo nos fazer retroceder aos desfechos que resultavam do Estado Natural, sempre focando no Brasil como parâmetro de análise, para que seja verificado sua real efetividade na solução dos problemas no país.
Para auxiliar o desenvolvimento do artigo, serão trazidos à baila filósofos, sociólogos e estudiosos do Tema como Jean Jacques Rousseau, Thomas Hobbes e John Locke. A análise dos resultados será feita de forma qualitativa para que fique bem elucidado todo o caminho que percorremos até chegarmos no atual modelo de gestão estatal e para onde possivelmente esse modelo nos levará.
2 O ESTADO E SUA ORIGEM
O Estado surgiu de formas diferentes, em momentos diferentes, em sociedade diferentes e com a necessidade de solucionar os conflitos em qualquer lugar em que esteja instituído.
A palavra estado vem do latim “status”, significa condição, foi utilizada no sec. XVI, na obra O Príncipe (1532), de Maquiavel, e tinha a ideia de se referir a uma sociedade política organizada e permanente.
Apesar dos estudiosos tentarem buscar resquícios históricos para se aproximar de uma teoria do surgimento do Estado, é praticamente impossível precisar, pois desde os primórdios, com o desenvolvimento intelectual do homem, ele vem se organizando (tentando) de alguma forma. Por óbvio que nos primórdios da humanidade, o Estado não era da forma como conhecemos hoje.
Portanto, só conseguiremos ter uma noção aproximada dos fatos, e nunca um relato preciso.
Darcy Azambuja, (2005) nos mostra que o Estado se caracteriza em três elementos: território, população e governo. As sociedades primitivas, nos relatos mais arcaicos, eram nômades, constituídas de pessoas com mesmo interesse comum ou famílias. Apesar dessas tribos possuírem lideranças, em sua maioria religiosa, o constante deslocamento físico os impedia de constituírem o Estado.
Segundo Azambuja (2005, p. 107) “Quando as sociedades primitivas, compostas já de inúmeras famílias, possuindo autoridade própria que as dirigia, se fixaram num território determinado, passaram a constituir um Estado”.
Nicéas (2015?) em seu artigo, assim elucidou:
A hierarquização destes grupos familiares era realizada pelos anciãos por intermédio dos conselhos tribais; a harmonização social era alicerçada em práticas religiosas, tendo relações sociais unicamente pessoais.
Findando-se o nomadismo e iniciando as práticas da agropecuária, surge-se a necessidade das propriedades privadas que desperta o interesse de garantias sucessórias, nascendo, portanto, as famílias patriarcais com vínculo monogâmico (por parte da mulher), podendo, todavia, garantir a hereditariedade dos bens privados.
Constatou-se que, a certeza da paternidade com o fito de acautelar a transmissão hereditária da propriedade privada não era o necessário para garantia da segurança dos bens.
Portanto, objetivando o resguardo das posses, criou-se uma estrutura política rudimentar capaz de assegurar os direitos, ora ameaçados por ladrões ora por invasores; também foi possibilitado a criação de cooperativas para trabalhos conjuntos onde toda a sociedade ou grande parte dela se beneficiava, como pontes, barragens, estradas, canais, etc.
Após essa união social institucionalizada, e liderada dentro de uma estrutura política, pode-se, todavia, identificar a gênese do Estado. Estes tinham como principal características o poder absoluto teocrático, constituído no monarca que era considerado divindade.
O próximo relato histórico do Estado foi verificado na Grécia com as chamadas polis (comunidades organizadas) formadas pelos politikos (cidadãos); cabendo mencionar dentre elas, as cidades-estados, Atenas, Esparta e Corinto.
É claro que não se pode olvidar, conforme já dito, que essas hipóteses não necessariamente ocorreram uniformemente em todo local onde o Estado se constituiu.
Azambuja (2005, p.108) pontuou em seu livro:
Só um fato é permanente e dele se promanam outros fatos permanentes: o homem sempre viveu em sociedade. A sociedade só sobrevive pela organização, que supõe a autoridade e a liberdade como elementos essenciais; a sociedade que atinge determinado grau de evolução, passa a constituir um Estado. Para viver fora da sociedade, o homem precisaria estar abaixo dos homens ou acima dos deuses, como disse Aristóteles, e vivendo em sociedade ele natural e necessariamente cria a autoridade e o Estado.
Infinitas são as teses sobre a formação do Estado e o momento histórico em que isso se deu. No entanto, podemos tratar do Estado como instituição de Direito a partir da criação de uma Constituição, já que esse é o principal marco democrático de todos os países e também a ferramenta que legítima o Estado.
É claro que nem sempre será possível precisar essa data, exceto nos casos de Constituições escritas, promulgadas por uma Assembleia ou outorgadas por um governo.
3 O CONTRATO SOCIAL
A ideia de contrato social, teve maior relevância nos séculos XVI e XVIII, quando os filósofos Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau escreveram sobre o tema.
Precipuamente trata-se da transição do homem de seu estado primitivo, conhecido como Estado natural, para um estado de mais civilidade, ou seja, um estado de harmonia na convivência com seus iguais.
Esse processo só foi possível porque através desse contrato social o homem outorgou a um terceiro, que mais tarde ficou conhecido como Estado soberano, o direito de decidir o que se pode ou não fazer dentro de um sociedade organizada.
Cada um dos filósofos citados tem uma visão diferente sobre o Estado natural no qual vivíamos, e sobre o papel do Estado enquanto uma instituto de Direito.
3.1 THOMAS HOBBES
Thomas Hobbes (1588- 1679) foi um estudioso e filósofo inglês, autor de Leviatã e Do cidadão. Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e sobre a necessidade de um governo e de uma sociedade forte.
Hobbes viveu no período do Absolutismo. Para ele o Estado de natureza é anterior a formação do Estado enquanto instituição, onde não existiam leis e a guerra por sobrevivência era constante.
Partia do princípio que a natureza humana é ruim, o homem nasce mal e por isso ele não pode confiar em si mesmo para lidar com os problemas da vida em sociedade.
De acordo com as ideias de Hobbes (2014, p. 111):
Uma vez que a condição humana é a da guerra de uns contra os outros, cada qual governando por sua própria razão, e não havendo algo de que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos tem o direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim perdurando esse direito de cada um sobre todas as coisas, ninguém poderá estar seguro (por mais forte e sábio que seja) de que viverá durante todo o tempo que normalmente a Natureza nos permite viver.
Devido a essa essência ruim dos seres humanos, para Hobbes o homem deve abdicar de sua liberdade plena, entregando-a a um rei absolutista para governar através de imposição de Leis, garantindo com isso a ordem civil.
A propriedade privada pertence ao governante, ou seja, ao estado Absolutista. Todavia, o povo pode rebelar-se quando a ordem não é garantida pelo soberano absolutista, tendo o direito de eleger um novo governante.
Fica claro que, para o filósofo, o poder estava centrado no Rei absolutista, que possuía uma certa divindade, sendo comparado ao Leviatã, um monstro marinho citado no Antigo Testamento, que possuía um cajado na mão representando o poder religioso, e na outra mão uma espada, representando o poder militar, uma coroa representando o Poder legislativo, executivo e judiciário. Ou seja, as Leis existiam para manter a ordem mas o rei estaria a cima de tudo, inclusive das Leis.
3.2 JOHN LOCKE
John Locke (1632-1704), filósofo inglês Iluminista que viveu no séc. XVII. Ele pertencia a burguesia e, portanto, era contra o Estado Absolutista de Thomas Hobbes.
Para Locke o Estado de natureza é um Estado inseguro, diferente de Hobbes, ele acreditava que o Homem não nascia bem e nem mau, ele poderia ser influenciado por suas vivências pessoais.
Apesar do homem não assumir uma natureza boa ou ruim, Locke acreditava que o homem possuía direitos inalienáveis: como a vida, a liberdade e a propriedade.
Ninguém pode tirar a vida de ninguém, nem o Estado. Ninguém poderia decidir sobre sua liberdade de ir e vir, liberdade religiosa, etc. A propriedade para Locke, apesar de ser inalienável, não significa que todos deveriam tê-la, somente poderia quem tivesse condições de adquiri-la.
Locke participou do estabelecimento da Monarquia Parlamentarista Inglesa no Século XVII, e por isso se opõe ao Absolutismo e defende a Democracia representativa, na qual os proprietários seriam a base política. Esse modelo se aproxima muito do que vivemos hoje no Brasil. O povo não governa, apenas elege representantes para governar.
Dessa forma, o principal objetivo do Estado é de garantir os direitos inalienáveis.
3.3 JEAN JACQUES ROUSSEAU
Jean Jacques Rousseau (1712- 1778) filósofo nascido na suíça. Para ele no Estado de Natureza os homens nascem bons e se corrompem com suas relações sociais.
As pessoas são boas porque são individuais, elas não precisam se relacionar e depender dos outros, é justamente a relação com o outro que torna ele mal.
Para Rousseau o contrato social deve ser feito através de uma Democracia Participativa, o povo vai para a rua e praças tomar as decisões políticas. Essa forma era ideal principalmente nas pequenas cidades.
“Se um cidadão privado, diz Grotius, pode alienar sua liberdade e tornar-se escravo de um patrão, por que não poderia todo um povo alienar a sua e tornar-se súdito de um rei?” (ROUSSEAU, 2006 p. 16).
A função do Estado é de atender o interesse de todos, independentemente de qual camada da sociedade você pertence.
Para ele, a propriedade é a causa dos males da sociedade, é o que gera todas as desigualdades sociais.
4 O CONFLITO ENTRE ATUAÇÃO DO ESTADO E A VIDA PRIVADA
Resta claro, diante do exposto até aqui, as motivações que levaram ao surgimento do Estado - ou o homem se organizava ou então a sua sobrevivência não perduraria por muito.
Por este motivo, e pela natureza humana ser ruim, segundo Hobbes, neutra segundo Locke e influenciável, segundo Rousseau, é que o Estado durante toda história passou a ter uma relevância maior, sendo escolhido pelo povo, na figura de seus representantes políticos, para saciar o anseio de todos.
Não obstante ao fato de que sem governantes a vida seria uma catástrofe e retomaríamos o estado natural, o que vem se questionando são os limites da atuação do Estado, que vem interferindo cada vez mais na vida privada e, no entanto, não consegue alcançar seus objetivos precípuos, quais sejam: justiça, fim das desigualdades sociais, paz entre os povos, entre muitos outros. Pelo contrário, o que se vê é um clima, em que a barbárie parece estar cada vez mais próxima do Estado natural.
Importante rememorar que o tamanho do Estado, no tocante ao seu poder de atuação, se difere em cada país, possuindo uma maior ou menor interferência. Contudo, a base para este trabalho é o Brasil.
Nos próximos tópicos elucidaremos melhor alguns dos conflitos estabelecidos entre a atuação do Estado e liberdade privada das pessoas.
4.1 DIREITO A PRÓPRIA VIDA
O Direito a vida é garantido na Carta Magna Brasileira, em seu artigo 5° que trata das garantias fundamentais, além de estar consolidado na Declaração Universal de Direitos Humano no artigo 3°.
Trata-se de um direito indisponível, portanto, mesmo que você deseje dispor de sua própria vida, você não pode.
Observamos por exemplo, que no Brasil, se uma indivíduo possui uma doença em estado terminal, sob forte sofrimento e dor, mesmo diante de tais circunstâncias, esse paciente ou algum ente familiar, não pode optar pelo desligamento dos aparelhos que o mantém vivo, procedimento conhecido como Eutanásia, sob o risco de, caso o faça, ser enquadrado no crime de homicídio ou auxílio ao suicídio, previstos respectivamente, nos artigos 121 e 122 do Código Penal.
Outro exemplo se dá no caso de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová, religião que não aceita que seus seguidores sob hipótese nenhuma recebam sangue de outra pessoa, mesmo que para salvar a sua própria vida. Mais uma vez o Estado interfere na questão e obriga os profissionais da saúde e realizarem o procedimento, mesmo que para tanto interfiram na liberdade religiosa de terceiro, assegurada pela Constituição no artigo 5°, VI.
São vários os exemplos em que o Estado acaba suprimindo a vontade individual dos cidadãos em prol se um suposto bem maior, conforme continuaremos a tratar.
4.2 DIREITO AO PRÓRPRIO CORPO
Em todo o mundo, os Estados dizem, de alguma forma, como os indivíduos devem dispor de seu próprio corpo. Como exemplo, vemos a prostituição, que hoje em dia, em países como Brasil e Portugal, o seu consumo não se enquadra como ilícito, isso se o usuário for civilmente capaz e obtiver maioridade. No entanto, quem fomenta, emprega, agencia, ou se de alguma forma obtém vantagem, é tipificado no Código Penal e pode sofrer sanção.
É considerável que se releve os seguintes dispositivos do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940) acerca do assunto:
Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração
Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone.
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Casa de prostituição
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente.
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.
Rufianismo
Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Resta evidente que da forma como (não) é tratada a situação, não se pretende acabar ou desestimular a prostituição, pois ela é aceita e muito consumida.
O real efeito dessa falta de regulação, é que as mulheres (principalmente) tem seus direitos trabalhistas suprimidos por agenciadores de má fé que não se importam com a saúde e dignidade humana das mesmas, enquanto é o Estado quem deveria regular essa atividade para que essas profissionais fossem amparadas pelas Leis trabalhistas e previdenciárias, como qualquer outro trabalhador.
Podemos observar que na Holanda, por exemplo, a regulamentação dos prostíbulos e agenciadores vem funcionando, estabelecendo critérios humanos e razoáveis de execução de tais práticas, e por corolário, garantindo os direitos trabalhistas e previdenciários das profissionais
4.3 CRIME DE ABORTO
No Brasil, a situação das mulheres com aborto é latente. Além de não poder decidir sobre o próprio corpo, ainda existe o revés de ser criminalizada e até presa, isso se sobreviver aos riscos do aborto clandestino.
A legislação vigente, disciplina o assunto da seguinte forma:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54) Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. (Código Penal. BRASIL, 1940)
Somente não é passível de sanção o aborto, nos seguintes casos:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (Código Penal. BRASIL, 1940)
Vejamos que se trata de um assunto espinhoso, que é tratado dessa forma no Brasil devido à grande influência da religião cristã na sociedade e na política.
Ora, a responsabilidade deveria ser na esfera da saúde pública e não na esfera criminal.
Da mesma forma como a prostituição e o consumo de drogas (lícitas e ilícitas) é algo que jamais irá cessar na sociedade, acreditar que as mulheres deixarão de decidir sobre o próprio corpo, e por conseguinte não abortarão mais, é de uma ingenuidade tamanha. Tais práticas são massivas e o único meio de se reduzir os danos, é através da regulamentação.
Hoje as mulheres pobres morrem em decorrência de aborto ilegais realizados sem o mínimo de dignidade, enquanto quem pertence à família abastada, realiza procedimentos caros e segue com sua vida normalmente.
O site jornalístico HuffPost Brasil (2018), apontou que estudo publicado pela Guttmacher Institute - organização internacional trabalha para estudar, educar e promover a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, com atuação nos Estados Unidos e nos países em desenvolvimento – estima que foi gasto aproximadamente US$ 232 milhões em procedimentos pós-aborto no ano de 2014, nos países em desenvolvimento. Ainda na mesma reportagem da HuffPost Brasil (2018) destaca o atendimento precário que a mulheres tem de passar, revelando que se todas mulheres que demandam o serviço fossem atendidas, o custo seria US$562 milhões, por outro lado, o estudo estima que se todos abortos fossem feitos de forma legalizada o custo cairia para US$ 20 milhões.
Nesse mesmo diapasão, se regulamentado fosse, o SUS poderia oferecer mecanismos de tornar essa decisão menos dolorosa a mulher e sua família, além de preservar sua vida e sua liberdade de decisão. Mesmo porque, nenhuma pessoa seria obrigada a abortar, somente poderia fazê-lo, caso desejasse, de forma segura e digna.
4.4 UNIÃO CIVIL
É recente na história do Brasil a desconstrução da família tradicional, perante o judiciário, constituída a partir de um homem e uma mulher. Somente em maio de 2011 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, e posteriormente, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), permitiu que os cartórios registrassem casamentos homoafetivos.
Se o reconhecimento, no âmbito legal, veio a duras penas, quem dirá no cultural. O preconceito ainda é muito latente, e se espera o dia em que as pessoas deixarão por completo suas amarras culturais e aceitarão a opção de cada um.
Até a questão ser pacificada pelo STF, as legislações eram omissas, e acabavam por não garantir a isonomia e direitos iguais, como preceitua nossa Constituição, o que desencadeava uma séria de problemas, como por exemplo no âmbito de sucessões, partilhas de bens, provimento de alimentos, problemas em contratos civis onde há necessidade de comprovação de renda familiar, incentivos do governo para a família, contratos em que o cônjuge figura como dependente, dentre vários outros.
No tocante a este tema, não há como negar que a legislação evoluiu, embora tardiamente. Todavia, era mais uma interferência, nesse caso através da omissão, em que o Estado agia de forma a limitar a opção de vida de seus cidadãos.
4.5 LIBERDADE RELIGIOSA
A Declaração Universal de Direitos Humanos adotada pelos 58 países membros das Nações Unidas, em dezembro de 1948, em Paris (França) preconizava a liberdade de religião e leciona em seu artigo 18:
Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular (NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Embora na história da humanidade já predominou um entendimento no qual Estado e Igreja se confundiam, as experiências de guerra, que até hoje perduram, como no Oriente Médio, fizeram o Brasil ir de encontro a DUDH (Declaração Universal de Direitos Humanos), colocando os mesmos princípios em seu diploma máximo, a Constituição Federal (BRASIL, 1998):
Inciso VII do artigo 5º é assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.
Inciso VII do artigo 5º estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Artigo 150, VI, b, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre templos de qualquer culto, salientando no parágrafo 4º do mesmo artigo que as vedações expressas no inciso VI, alíneas b e c, compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas.
Artigo 226, § 2º, assevera que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
Portanto, a despeito de existir muito preconceito com as religiões de matriz africana e uma histórica e majoritária disseminação do cristianismo, o Estado Brasileiro interfere no cerne da questão, deixando claro que todas as crenças estão amparadas pela Lei.
4.6 USO DE DROGAS
O proibicionismo perpetrado no Brasil, através da adoção da política de Guerra as Drogas, nunca foi óbice aos usuários, que conseguem facilmente acesso aos entorpecentes.
Tal realidade se verifica em todo mundo. Por este motivo, os países com índices melhores de desenvolvimento já observam que o caminho mais viável para reduzir os danos de saúde pública, e ao mesmo tempo enfraquecer os narco traficantes, seria a regulamentação ou legalização do uso e venda de determinadas drogas, que são as atividades de maior rentabilidade ao tráfico.
Gomes-Medeiro D. et al (2019) mostram que o fascínio do homem pelo consumo de substâncias psicoativas, conhecidas como “drogas” é um fenômeno antigo e ainda persistente, e como as mesmas possibilitam a alteração dos estados de consciência, alguns dos motivos pelo uso seria a busca pelo prazer, alívio de preocupações e tensões, controle do humor e a já citada expansão da consciência. Os autores citam que apenas populações habitantes de regiões desprovidas de vegetação não se relacionaram com tais substâncias, as demais, em diferentes épocas e lugares a fizeram. Gomes-Medeiros D. et al (2019) nos aponta que:
Nesse sentido, é adequado destacar que o consumo de substâncias psicoativas é um fenômeno histórico-cultural com implicações médicas, políticas, religiosas e econômicas. Igualmente pertinentes devem ser as necessidades de se distinguir entre uso ocasional/recreacional e dependência de drogas (evitando-se de apontar o usuário como dependente potencial) e a importância de se estabelecer as diferenças entre os diversos tipos de psicoativos e os danos que provocam.
Ao longo do século XX algumas substâncias se tornaram parte de um campo de atenção, debate e preocupação por parte do Estado e ao ser elevadas ao patamar de questão social a situação envolvendo as drogas passou a ser norteada por três formações discursivas, a medicalização, criminalização e moralização. Ressalta-se também uma forma específica de atuação do Estado nesse assunto, a postura proibicionista, resultado de uma conjunção de fatores sociais, políticos e econômicos; a radicalização política do puritanismo norte-americano, medo dos membros das elites em relação à uma desordem urbana, conflitos geopolíticos e interesses da industria farmacêutica são exemplos (Gomes-Medeiro D. et al, 2019).
Segundo Fiori (2019) e Faria (2017) apud Gomes-Medeiro D. et al:
O sucesso do proibicionismo contemporâneo consolidou, assim, uma verdadeira cruzada mundial contra as drogas, legitimada por duas premissas fundamentais, conforme definidas por Fiore: (a) o consumo de drogas é uma prática prescindível e danosa, o que justifica sua proibição pelo Estado; e (b) a atuação ideal do Estado para combater as drogas é criminalizar sua circulação e seu consumo. Faria (p. 45), em sua Dissertação de Mestrado, expande a definição do paradigma proibicionista de Fiore, propondo um conjunto de princípios que definiria o “Ideário da Guerra às Drogas”: (1) a percepção das drogas, e por extensão, aquele que as usa e as vende, como inimigas ou indesejáveis em si mesmas; (2) o uso de recursos militares e policiais como meio principal para se lidar com o problema; (3) a ideia de que as drogas ilegais e seu uso podem e devem ser erradicados; (4) o conceito implícito de que a solução para o uso problemático de drogas é a abstinência; (5) o incentivo de que modalidades de encarceramento – criminal ou sanitário – poderá resolver o problema das drogas.
A guerra às drogas produz como uma de suas consequências o aumento da violência e a taxa de mortalidade por homicídio; a demanda pela mercadoria segue estável e seu comércio gerando lucro, o qual vai para uma economia paralela gerida por redes criminosas (Gomes-Medeiro D. et al, 2019).
Outro resultado da postura de guerra em relação às drogas são as altas taxas de encarceramento. O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo e o tráfico de drogas é o que mais contribui isoladamente para o aumento do encarceramento no país (26% da população carcerária masculina e 62% da feminina), ainda, como demonstram Gomes-Medeiro D. et al (2019):
Os dados demonstram, ainda, que o aprisionamento resultante de crimes relacionados às drogas envolve, na maior parte das vezes, pequenas quantidades de substâncias: até 19% das prisões relacionadas à cocaína e 54% das relacionadas à maconha ocorrem por quantidades de drogas que seriam consideradas de uso pessoal em outras legislações
Segundo o 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira realizado pela Fiocruz em 2015:
A maconha é a substância ilícita mais consumida no Brasil, segundo a pesquisa. Dados do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), apontam que 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 anos já usaram maconha ao menos uma vez na vida. A segunda droga com maior consumo no país é a cocaína em pó (3,1%).
Portanto, diante de tais levantamentos e estudos, não se mostra viável prender e recriminar usuários, enquanto poderia ser feito um trabalho voltado a área da saúde, com controle e prevenção.
Ademais, na página eletrônica do portal de notícias G1 Mundo (2019) constatamos o importe de R$533 milhões de reais arrecadados no Canadá provenientes da venda de maconha. Salienta-se que tal valor foi somente nos primeiro cinco meses da legalização e os dados foram divulgados pelo departamento de estatísticas do país.
Diante de tais dados, fica a reflexão do quanto poderia ser arrecado no Brasil com a produção e venda da maconha. O Estado poderia utilizar desse dinheiro arrecadado para investir em campanhas educacionais sobre os riscos e malefícios de usar qualquer tipo de droga.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme discorrido no presente trabalho, o Estado é a instituição legítima para julgar e se for o caso aplicar sanções, sob a égide de representar a vontade da população.
É por esse motivo que o Estado intervencionista está cada vez mais presente em questões banais, sua finalidade deixou de ser a busca pela solução de conflitos e paz social e passou a ser regida por interesses escusos, dentre eles o precípuo no tocante a economia, favorecendo determinados grupos em detrimento de tantos outros.
Nossa Constituição é pautada em muitos princípios, um dos mais importantes é o Princípio da Intervenção mínima, que consiste em um freio no poder do Estado de incriminar, o que quer dizer que somente nos casos em que os bens jurídicos de maior relevância para sociedade estão em risco, é que se aplicará a lei penal, como último recurso (ultima ratio).
Claramente não é a forma de agir no Brasil, haja vista o Estado preocupado cada vez mais com temas que só dizem respeito as liberdades do indivíduo ou da família, como exemplo os livros proibidos na bienal do livro no Rio de Janeiro, a proibição do uso de drogas leves, entre outros.
O Estado social teve origem na extrema necessidade da humanidade sobreviver e evoluir, porém não podemos manter um modos operandi em que somente o interesse de alguns são atendidos, de forma que caminhamos para um formação de Estado totalitário, onde existe interferência em todos os âmbitos e o interesse da nação é colocado de lado.
Nessa formatação de Estado, a democracia vai sucumbindo aos poucos, os meios de comunicação são censurados, há interferência em qualquer tipo de relação contratual, as relações trabalhistas são afetadas, imposição de uma única religião, interferência na vida familiar, repressão à ideologias diversas, entre outras características.
Curioso notar que no atual momento do Brasil, muitas das características citadas estão em curso, e isso se deve justamente pelo crescimento do intervencionismo, motivo que deve preocupar a todos que estão do lado do Estado de Direito Democrático.
Diante das questões até aqui levantadas, resta claro que o ideal é um equilíbrio, onde o Estado interfira apenas em questões realmente imprescindíveis, como acontece nos países mais desenvolvidos como Suíça, Holanda, França, entre outros.
Importante salientar também que a falta do Estado nos levaria de volta ao Estado natural, onde reinaria o caos e a guerra, sem que pudesse se vislumbrar prosperidade para a humanidade.
Enquanto o Brasil adotar essa política excessivamente intervencionista, dificilmente conseguirá êxito na diminuição dos problemas sociais que essa política, em tese, visa proteger.
Esses são só alguns exemplos de como um Estado minimalista poderia ser mais eficiente no Brasil e solucionar os problemas sociais, atendendo ao chamado da população ao invés de privilegiar somente algumas camadas da sociedade.
REFERÊNCIAS
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[1] Docente mestre do curso de Direito – IESB Instituto de Ensino Superior de Bauru – e-mail: [email protected]
Discente do curso de Direito – IESB Instituto de Ensino Superior de Bauru .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FABRI, Leonardo. A origem do Estado e seus limites de atuação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 ago 2020, 04:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55146/a-origem-do-estado-e-seus-limites-de-atuao. Acesso em: 23 dez 2024.
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