KAMILE JEANE SILVA NASCIMENTO[1]
(Coautora)
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discorrer acerca do enquadramento da Covid-19 como acidente de trabalho. A metodologia adotada no presente estudo foi fundamentada na investigação da legislação, da doutrina, das decisões judiciais e notícias sobre a Covid-19. No presente trabalho, busca-se responder ao questionamento: a Covid-19 pode ser considerada como doença ocupacional? Ao final conclui-se que por omissão legislativa, ainda há muitas dúvidas sobre a caracterização da Covd-19 como acidente laboral. Entretanto, no tocante ao enquadramento, dessa doença como acidente de trabalho, para os profissionais cujas atividades resultem na exposição ou contato direto com a Covid-19 o tema é menos controverso.
Palavras-chave: Acidente de Trabalho. Covid-19. Doença Ocupacional.
ABSTRACT: This article aims to discuss about the Covid-19 as work accident. A methodology adopted in the present study was based on the investigation of legislation, doctrine, judicial decisions and news about Covid-19. In the present research, we seek to answer the following questions: it is possible to consider a Covid-19 as an occupational disease? At the end it was concluded that due to legislative omission, there are still many doubts about the characterization of Covd-19 as an occupational accident, however, the characterization for professionals whose activities result in exposure or direct contact with covid-19 the theme is less controversial.
Keywords: Work-related injury. Covid-19, Occupational disease.
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Surgimento do novo Coronavírus: 2. Conceito e Tipos de Acidentes do Trabalho; 2.1 Acidente Típico; 2.2 Doença Ocupacional; 2.3 Acidente por Equiparação. 3 A Covid-19 e o Acidente do Trabalho: 4. Considerações finais. 5. Referências.
1.Introdução
O surgimento e a proliferação de uma nova doença (Covid-19), altamente contagiosa que, até o momento, não possui vacina ou remédio para combatê-la, resultou em profundas mudanças na realidade mundial.
Essas mudanças impactaram inclusive no ambiente laboral fazendo com que muitas empresas implantassem o home office, para afastar os trabalhadores dos locais de trabalho temporariamente, ou adotassem novas medidas de proteção com o intuito de evitar a contaminação da mão de obra, por esse vírus, no local de trabalho.
Nesse contexto, o presente estudo possui como intento discorrer acerca do enquadramento da Covid-19 como acidente de trabalho. Para tanto, o início dar-se -á com um capítulo de contextualização do surgimento da Covid-19 no mundo e em particular no Brasil, mostrando quais são os sintomas da doença e as recomendações dos órgãos de saúde para evitar o contágio.
Na sequência, abordaremos o conceito legal de acidente do trabalho e suas espécies: acidente típico; doença ocupacional (doença profissional e doença do trabalho) e acidente por equiparação, destacando que, a priori, as doenças ocupacionais devem constar na lista elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, atual Ministério da Economia.
Finalizando o presente artigo, iremos verificar a legislação publicada relacionada à Covid-19 como acidente laboral, o posicionamento do STF em face de questionamentos acerca da Medida Provisória n.º 927 e a situação atual da legislação em relação a Covid-19 como acidente de trabalho.
O artigo adotou, como metodologia, a investigação da legislação, da doutrina, das decisões judiciais e notícias sobre a Covid-19. Desta maneira, busca-se contribuir para uma reflexão sobre a possibilidade do enquadramento da Covid-19 como acidente do trabalho.
2.Surgimento do novo Coronavírus
No final de 2019 fora noticiado que algumas pessoas tinham sido diagnosticadas com pneumonia de causa incerta na cidade Wuhan, pertencente a província de Hubei da República Popular da China. Aparentemente o surto inicial teve como origem o mercado de frutos do mar em Wuhan[2].
A comunidade cientifica ainda não tinha muitas informações acerca do novo coronavírus. Ficou-se então monitorando o seu comportamento e a sua transmissibilidade. Em 11 de janeiro de 2020 foi notificada a primeira morte decorrente dessa nova enfermidade[3].
Em 07 de janeiro de 2020, o governo chinês informou que identificou e isolou o novo tipo de coronavírus. No dia 20 de janeiro de 2020 foram confirmados 282 casos em 04 países: China (278 casos), Tailândia (2 casos), Japão (1 caso) e a República da Coreia (01 caso)[4].
A partir de então, o novo coronavírus se espalhou pelo mundo, resultando em uma grave crise, de saúde e sanitária, internacional, inclusive, com fortes consequências socioeconômicas nos países. No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou o cenário decorrente do novo tipo de coronavírus como sendo uma pandemia[5].
Identificou-se que essa enfermidade traz consequências mais gravosas para as pessoas classificadas como grupo de risco, que são “portadores de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica, e indivíduos fumantes (que fazem uso de tabaco incluindo narguilé), acima de 60 anos, gestantes, puérperas e crianças menores de 5 anos”[6].
Esse novo vírus foi batizado Sars-Cov-2 e a doença causada por ele foi denominada de Covid-19. Os principais sintomas, segundo o Ministério da Saúde, são tosse, febre, coriza, dor de garganta, dificuldade para respirar, perda de olfato (anosmia), alteração do paladar (ageusia), distúrbios gastrintestinais (náuseas/vômitos/diarreia), cansaço (astenia), diminuição do apetite (hiporexia) e dispnéia (falta de ar)[7].
Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, a transmissão da doença ocorre pelo toque (aperto de mão contaminada, etc.), gotículas de saliva (espirro, tosse, catarro), objetos ou superfícies contaminadas, como celulares, mesas, talheres, maçanetas, brinquedos, teclados de computador etc.[8] No dia 20 de março de 2020, o Brasil por meio do Ministério da Saúde declarou a transmissão comunitária nacional do Covid-19 [9].
Conforme o site Worldometers, até o dia 02 de setembro de 2020, no Brasil já haviam 4.001.422 pessoas diagnosticadas com a Covid-19, dentre as quais 123.899 faleceram vitimadas por essa doença. Cabe destacar que a população do Brasil é de 212.817.864 habitantes[10].
Até o momento ainda não há vacina, ou medicamento comprovadamente eficaz, para o combate à Covid-19. Assim, as medidas de prevenção são as armas disponíveis para diminuir a taxa de contaminação das pessoas por essa doença.
Segundo a OMS tais medidas consistem em higienizar constantemente as mãos com água e sabão, ou com álcool em gel 70%, usar máscaras, manter uma distância de pelo menos um metro de outras pessoas, evitar aglomerações e evitar levar a mão aos olhos, nariz e boca, etc.[11].
3.Conceito e Tipos de Acidentes do Trabalho
No Brasil o conceito de acidente de trabalho está contido na Lei n.º 8.213/1991. Essa legislação previdenciária define três espécies para o gênero acidente de trabalho. A primeira das espécies está presente no artigo 19 da aludida lei e é classificada como acidente típico. A segunda, contida no artigo 20, é denominada doença ocupacional e a terceira, chamada de acidentes por equiparação, conforme o artigo 11 da supramencionada lei.
Oswaldo Michel apud Brandão nos ensina “(...) o que qualifica, verdadeiramente, o acidente do trabalho é ser ele o resultado do nexo entre uma ocorrência (causa) e uma lesão corporal ou perturbação funcional (efeito), havendo, portanto, uma conexão indispensável entre o acidente e a vítima”[12]
Interessante destacar que o artigo 118 da Lei n.º 8.213/1991 estabelece que “o segurado que sofreu acidente do trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente”.
De acordo com a Súmula nº 378 do TST a estabilidade provisória do acidente do trabalho é somente para os casos de afastamento superior a 15 dias[13]. Dessa forma, caso o empregado venha a ser vitima de um acidente do trabalho com afastamento superior a 15 dias terá a garantia da manutenção do emprego por um período de um ano contado após o término da percepção do auxílio-doença acidentário.
O objetivo do legislador foi minimizar os impactos negativos do acidente na vida do trabalhador, haja vista que, além de sofrer o infortúnio laboral, o trabalhador ainda poderia ser demitido pelo empregador, após o retorno ao trabalho.
Nesse sentido, a empresa deve realizar a comunicação de acidente do trabalho (CAT) de seus empregados à Previdência Social, até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, de acordo com o artigo 22 da Lei n.º 8.213/1991. Assim, qualquer acidente ocorrido no âmbito laboral, ainda que sem afastamento, deve ser comunicado à previdência social.
Na hipótese do empregador se recusar a emitir a CAT, o próprio acidentado, seus dependentes, a entidade sindical competente, o médico que o assistiu ou qualquer autoridade pública poderá emiti-la, conforme artigo 22, § 2º, Lei n.º 8.213/1991.
De acordo com o artigo 19 da Lei n.º 8.213/1991, o “acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa (...), provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho”.
Assim, temos que o acidente típico é caracterizado pelo evento repentino, não planejando pelo acidentado, que tem como resultado de forma imediata um dano ao trabalhador, de tal sorte, que provoque, ainda que de forma temporária, a sua incapacidade para o desempenho de suas atividades.
Sebastiao de Oliveira leciona que “é da essência do conceito de acidente do trabalho que haja lesão corporal ou perturbação funcional. Quando ocorre um evento sem que haja lesão ou perturbação física ou mental do trabalhador, não haverá, tecnicamente, acidente do trabalho”. É necessário ainda que esteja presente a incapacidade para o trabalho, mesmo que temporária. Como exemplo podemos citar uma parada nas atividades laborais para realizar um curativo necessário em função de uma pequena lesão[14].
Neste sentido, o trabalhador que quebra uma perna devido a uma queda ou que sofre queimaduras de 3º grau devido à explosão de um equipamento ou ainda contusão ou fratura em parte do corpo decorrente do uso inadequado de ferramentas será caracterizado como acidente do trabalho.
A doença ocupacional, prevista no artigo 20 da Lei n.º 8.213/1991, compreende tanto as doenças do trabalho como as doenças profissionais, conforme incisos I e II do citado artigo. O inciso I define doença profissional como sendo a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, atual Ministério da Economia.
O inciso II estabelece que a doença do trabalho é aquela desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social, atual Ministério da Economia.
As listas, com as doenças do trabalho e doenças profissionais, constam no anexo II do Decreto n.º 3.048 de 06 de maio de 1999. Em que pese ter havido algumas modificações oriundas de decretos supervenientes (Decreto nº 3.265, de 1999, Decreto nº 4.032, de 2001, Decreto nº 4.882, de 2003, Decreto nº 6.042, de 2007, Decreto nº 6.957, de 2009)[15] as referidas relações ainda estão em vigor.
Para que seja considerada como doença ocupacional, a moléstia, então, deve constar nas relações citadas. No entanto, o artigo 20, § 2º, da Lei n.º 8.213/91 informa que, em caso excepcional, constatando-se que a doença não está incluída na aludida relação e resultou das condições especiais em que o trabalho é executado, e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la como acidente do trabalho.
Assim, a doença ocupacional é espécie do gênero acidente do trabalho e as doenças do trabalho e as doenças profissionais são subespécies de doença ocupacional. Esta espécie de acidente de trabalho ocorre quando o organismo do trabalhador fica exposto constantemente a determinado agente agressivo que com o passar do tempo, de forma lenta e progressiva, desencadeia a referida doença[16].
A doença profissional, também denominada de “idiopatias”, "ergopatias" ou "tecnopatias", distingue-se da doença do trabalho na medida em que se refere às enfermidades desenvolvidas em função do exercício peculiar de determinada profissão. Assim, o soldador que adquire catarata terá caracterizado esta doença com sendo profissional.
A doença do trabalho, também chamada de mesopatias, doenças do meio, doenças das condições do trabalho, doenças indiretamente profissionais ou moléstias profissionais atípicas[17], estão relacionadas ao ambiente em que é desenvolvido o labor. Como exemplo, citamos a secretária que tem perda auditiva em função do ruído existente na marcenaria na qual trabalha.
Importante registrar que, na doença profissional, o nexo causal é presumido. Representa dizer que cabe ao empregador o ônus para demonstrar que a doença não ocorreu no ambiente laboral, afastando-se, assim, a caracterização como acidente de trabalho. No tocante à doença do trabalho, é imperioso demonstrar o nexo causal entre os riscos existentes no local de trabalho e a doença que o empregado adquiriu[18].
Por fim, o artigo 20, § 1º da Lei n.º 8.213/91 prescreve que não será considerada como doença ocupacional a doença degenerativa, a inerente a grupo etário, a que não produza incapacidade laborativa e a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
O artigo 21 Lei n.º 8.213/91 trouxe outras hipóteses de situações que serão consideradas como acidente do trabalho. Cabe ressaltar, dentre essas hipóteses, o acidente de trajeto contido na alínea “d” do inciso IV do referido artigo. Esse dispositivo estabelece que será considerado, como infortúnio, o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado.
O Manual de Acidente de Trabalho, publicado pela Previdência Social, esclarece que qualquer acidente que cause lesão ao trabalhador, no percurso residência para o trabalho ou vice-versa ou de um local de trabalho para outro da mesma empresa, bem como o deslocamento do local de refeição para o trabalho ou deste para aquele, independentemente do meio de locomoção, sem alteração ou interrupção do percurso por motivo pessoal será considerando como acidente de trajeto, desde que o tempo seja compatível com a distância percorrida e o meio de locomoção utilizado[19].
Relevante destacar que o governo federal por meio da Medida Provisória n.º 905/2019 revogou a equiparação do acidente de trajeto como sendo acidente do trabalho. No entanto, essa Medida Provisória acabou por ser revogada pela MP n.º 955/2020[20]. Desta maneira, o acidente de trajeto voltou a ser enquadrado como acidente de trabalho.
4.A Covid-19 e o Acidente do Trabalho
No dia 22 de março de 2020, o governo federal publicou Medida Provisória n.º 927 que dispôs sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
O artigo 29 da citada Medida Provisória determinava que os casos de contaminação, pela Covid-19 ocorridos no ambiente laboral, não seriam considerados doença ocupacional, exceto se fosse comprovado o nexo causal entre as condições de trabalho e a doença.
Assim, o governo pretendeu delimitar a doença ocupacional somente aos profissionais que tenham tido contato com o novo coronavírus em seu ambiente laboral. A exemplo, os profissionais que laboram em ambientes hospitalares. Ainda assim, caberia a esses trabalhadores o ônus da prova.
Nesse sentido, na situação fática ficaria muito difícil para o trabalhador evidenciar a presença do nexo de causalidade, haja vista que a doença Covid-19 é facilmente transmissível e difícil de precisar onde e quando exatamente a pessoa a adquiriu.
Por essa questão polêmica o aludido artigo da Medida Provisória foi objeto de diversas Ações Diretas de Institucionalidade (ADI) promovidas pelo Partido Democrático Trabalhista (ADI 6342), pela Rede Sustentabilidade (ADI 6344), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (ADI 6346), pelo Partido Socialista Brasileiro (ADI 6348), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT) conjuntamente (ADI 6349), pelo partido Solidariedade (ADI 6352) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria (ADI 6354).[21].
O STF, por maioria, suspendeu a eficácia desse artigo[22]. Entretanto, a decisão dessa corte, não se pronunciou acerca da caracterização da Covid-19 como doença ocupacional, de forma presumida, para todo e qualquer trabalhador afetado por essa moléstia. A análise, para caracterização do acidente de trabalho, assim, deverá ser feita caso a caso. De toda sorte, a Medida Provisória nº 927/2020 teve seu prazo de vigência encerrado no dia 19 de julho de 2020[23].
Importante mencionar que o Ministério da Saúde por meio Portaria nº 1.339, de 18 de novembro de 1999[24] publicou a lista de doenças relacionadas ao trabalho (LDRT) que deveria ser adotada como referência dos agravos originados no processo de trabalho no Sistema Único de Saúde.
Assim, a LDRT deveria ser utilizada no uso clínico e epidemiológico com o fito estudar a relação doença e trabalho para que houvesse um aprimoramento dos diagnósticos para o desenvolvimento de melhorias na saúde de forma individual e coletiva[25].
A Portaria n.º 1.339 teve seu teor, posteriormente, publicado na Portaria da Consolidação nº 5GM/MS, de 28 de setembro de 2017[26]. Assim, houve a repetição da lista de doenças relacionadas ao trabalho para uso no Sistema Único de Saúde.
No dia 28 de agosto de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n.º 2.309 que alterou a Portaria de Consolidação n.º 5/GM/MS/2017 e atualizou a Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT). Essa alteração trouxe como novidade a inclusão da Covid-19 na Parte III que contempla os Agentes e/ou Fatores de Risco Biológicos e na lista B (Doenças Relacionadas ao Trabalho com respectivos Agentes e/ou Fatores de Risco).
No entanto, essa portaria provocou inúmeras polemicas e discussões, fazendo com que o Ministério da Saúde no dia 02 de setembro de 2020 publicasse a Portaria nº 2.345 tornando sem efeito a Portaria nº 2.309/2020.
Assim, atualmente há omissão legislativa para disciplinar o assunto. Alguns defendem o enquadramento da Covid-19 no artigo 20, § 1º, alínea d, da Lei n.º 8.213/91. Ou seja, essa doença seria considerada como doença endêmica e a caracterização do acidente laboral seria apenas para aqueles profissionais que tenham tido exposição, ou contato direto com o vírus, determinado pela natureza do trabalho.
Outra corrente advoga que ainda que a Covid-19 não esteja prevista na relação constante no anexo II do Decreto n.º 3.048 de 06 de maio de 1999, o artigo 20, § 2º da Lei n.º 8.213/91 deve prevalecer. Tal dispositivo preconiza que em caso excepcional, constatando-se que a doença resultou das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, a Previdência Social deve considerá-la acidente do trabalho.
Assim, a questão está indefinida para enquadrar a Covid-19 como infortúnio laboral, devendo cada caso ser analisado de forma individual. As dúvidas são diversas, como exemplo, podemos citar que no início da pandemia, muitas empresas passaram a adotar o home office com o intuito de preservar a saúde de seus trabalhadores. Agora, caso a empresa decida retornar ao modo presencial e o trabalhador alegar que adquiriu a Covid-19 no transporte público, como afastar a caracterização de acidente de trajeto?
De toda sorte, para aquelas empresas que necessitam da presença física de seus trabalhadores nos locais de trabalho, é importante a adoção de rígidos protocolos de segurança e saúde no trabalho com o instituto de afastar o nexo causal e consequentemente a caracterização do acidente de trabalho.
Para melhor compreensão do tema, do enquadramento do acidente laboral relacionado à Covid-19, interessante citar a Nota Técnica Conjunta n.º 04 de 17 de março de 2020 do Ministério Público do Trabalho. O referido documento divulgou a classificação de graus de risco à exposição considerando as funções desempenhadas pelos trabalhadores, elaborada pela Occupational Safety and Health - OSHA, in verbis[27]:
i) Risco muito alto de exposição: aqueles com alto potencial de contato com casos confirmados ou suspeitos de COVID-19 durante procedimentos médicos, laboratoriais ou post-mortem, tais como: médicos, enfermeiras, dentistas, paramédicos, técnicos de enfermagem, profissionais que realizam exames ou coletam amostras e aqueles que realizam autopsias;
(ii) Risco alto de exposição: profissionais que entram em contato com casos confirmados ou suspeitos de COVID19, tais como: fornecedores de insumos de saúde, e profissionais de apoio que entrem nos quartos ou ambientes onde estejam ou estiveram presentes pacientes confirmados ou suspeitos, profissionais que realizam o transporte de pacientes, como ambulâncias, profissionais que trabalham no preparo dos corpos para cremação ou enterro;
(iii) Risco mediano de exposição: profissionais que demandam o contato próximo (menos de 2 metros) com pessoas que podem estar infectadas com o novo coronavírus (SARS-coV-2), mas que não são considerados casos suspeitos ou confirmados; que tem contato com viajantes que podem ter retornado de regiões de transmissão da doença (em áreas sem transmissão comunitária); que tem contato com o público em geral (escolas, ambientes de grande concentração de pessoas, grandes lojas de comércio varejista) (em áreas com transmissão comunitária);
(iv) risco baixo de exposição: aqueles que não requerem contato com casos suspeitos, reconhecidos ou que poderiam vir a contrair o vírus, que não tem contato (a menos de 2 metros) com o público; profissionais com contato mínimo com o público em geral e outros trabalhadores.
A partir dessas informações, temos alguns parâmetros para caracterizar ou não a Covid-19 como acidente laboral. Esta análise deve levar em consideração outras variáveis, como os riscos presentes no ambiente laboral, a identificação se há outros trabalhadores com a Covid-19 no ambiente laboral, o conjunto de medidas de proteção que foram implantadas pelo empregador.
No dia 18 de junho de 2020, o Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, publicou a Portaria Conjunta nº 20 que estabelece as medidas a serem observadas visando à prevenção, controle e mitigação dos riscos de transmissão da Covid-19 nos ambientes de trabalho, Assim, reproduzimos abaixo, as medidas gerais contidas no item 1 do Anexo I da referida portaria.
Medidas de prevenção nos ambientes de trabalho, nas áreas comuns da organização, a exemplo de refeitórios, banheiros, vestiários, áreas de descanso, e no transporte de trabalhadores, quando fornecido pela organização; ações para identificação precoce e afastamento dos trabalhadores com sinais e sintomas compatíveis com a COVID-19; procedimentos para que os trabalhadores possam reportar à organização, inclusive de forma remota, sinais ou sintomas compatíveis com a COVID-19 ou contato com caso confirmado da COVID-19; e instruções sobre higiene das mãos e etiqueta respiratória. As orientações ou protocolos podem incluir a promoção de vacinação, buscando evitar outras síndromes gripais que possam ser confundidas com a COVID-19.A organização deve informar os trabalhadores sobre a COVID-19, incluindo formas de contágio, sinais e sintomas e cuidados necessários para redução da transmissão no ambiente de trabalho e na comunidade. A organização deve estender essas informações aos trabalhadores terceirizados e de outras organizações que adentrem o estabelecimento. As instruções aos trabalhadores podem ser transmitidas durante treinamentos ou por meio de diálogos de segurança, documento físico ou eletrônico (cartazes, normativos internos, entre outros), evitando o uso de panfletos[28].
Relevante então a adoção dessas medidas de controle, por parte das empresas, a fim de que se possam evitar a contaminação dos trabalhadores pelo novo coronavírus no ambiente laboral.
Vale lembrar que os empregados que sofrem acidentes de trabalho com afastamento superior a 15 dias têm direito à estabilidade provisória. Tal estabilidade adquirida em decorrência de adoecimento por Covid-19 poderia gerar um ônus adicional para as empresas, nesses tempos de crise.
5.Considerações finais
O aparecimento da Covid-19 e a sua disseminação pelo mundo fez com que houvesse a alteração no comportamento da sociedade como um todo. A doença de fácil contágio, e que em muitos casos pode resultar em óbitos, provocou severas alterações na rotina das pessoas.
No Brasil, aulas presenciais foram suspensas, bares fechados e shows foram proibidos de acontecer. Algumas empresas adotaram sistema de rodizio de trabalhadores para evitar aglomerações e outras empresas e alguns órgãos públicos optaram pelo trabalho remoto, com o intuito de proteger os trabalhadores do possível adoecimento no ambiente laboral.
Nesse cenário caótico algumas normas e recomendações surgiram com o intuito de disciplinar o tema Covid-19 no ambiente laboral. Dentre as quais damos destaque à MP n.º 927/2020 que dispôs sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do novo coronavírus.
O artigo 29 da referida Medida Provisória determinava que os casos de contaminação, pela Covid-19 ocorridos no ambiente laboral, não seriam considerados doença 0ocupacional, exceto se fosse comprovado o nexo causal entre as condições de trabalho e a doença.
Tal dispositivo gerou diversas discussões até que, após provocação advinda de inúmeras ADI propostas, o STF se pronunciou suspendendo o referido artigo, deixando a questão do acidente de trabalho oriundo da contaminação pela Covid-19 a cargo da legislação vigente.
De qualquer maneira a referida Medida Provisória perdeu sua vigência e o governo ou o congresso federal ainda não editaram legislação para tratar do tema. Tal ausência de regulamentação, portanto, trouxe um vazio legislativo.
Existem opiniões divergentes sobre a possibilidade de enquadramento do adoecimento do empregado pela Covid-19. Mas ainda não consenso para caracterizar a Covid-19 como acidente laboral para toda e qualquer atividade
Face ao exposto, conclui-se que embora ainda não exista legislação específica disciplinado esse tema, é imperioso que as empresas adotem rígidos protocolos de segurança com o intuito de preservar a saúde de seus trabalhadores e evitar a ocorrência de adoecimentos com possibilidade de enquadramento em acidente de trabalho.
REFERÊNCIAS
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BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. 4. ed. São Paulo: LTr, 2015.
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[1] Graduada em Engenharia Civil e em Direito. Pós-graduada em Engenharia de Segurança do Trabalho. E-mail: [email protected].
[2] BBC News. Coronavirus: What did China do about early outbreak? BBC News, 09 de junho de 2020. Disponível em: < https://www.bbc.com/news/world-52573137>. Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[3] TAYLOR, Derrick Bryson. A Timeline of the Coronavirus Pandemic. The New York Times, 06 de agosto de 2020. Disponível em: < https://www.nytimes.com/article/coronavirus-timeline.html>. Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[4] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Novel Coronavirus (2019-nCoV). Situation Report -1. 21 de janeiro de 2020. Disponível em: < https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200121-sitrep-1-2019-ncov.pdf?sfvrsn=20a99c10_4>. Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[5] UNIVERSIDADE ABERTA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, Organização Mundial de Saúde declara pandemia do novo Coronavírus. UNA-SUS EM NÚMEROS. 11 de março de 2020. Disponível em: <https://www.unasus.gov.br/noticia/organizacao-mundial-de-saude-declara-pandemia-de-coronavirus>. Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[6] BVS Atenção Primária em Saúde. Quais são os grupos de risco para agravamento da COVID-19? 26 de agosto de 2020. Disponível em: <https://aps.bvs.br/aps/quais-sao-os-grupos-de-risco-para-agravamento-da-covid-19/> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[7] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença Covid-19. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acessado em: 31 de agosto de 2020.
[8] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença Covid-19. Disponível em: <https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca>. Acessado em: 31 de agosto de 2020.
[9] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Ministério da Saúde declara transmissão comunitária nacional. 20 de março de 2020. Disponível em: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46568-ministerio-da-saude-declara-transmissao-comunitaria-nacional>. Acessado em: 31 de agosto de 2020.
[10] WORDMETERS. Pandemia de coronavírus COVID-19. Última atualização em 02 de setembro de 2020. Disponível em: <https://www.worldometers.info/coronavirus/> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[11] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Conselhos sobre doença coronavírus (COVID-19) para o público. Disponível em: <https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/advice-for-public> Acessado em: 01 de setembro de 2020.
[12] BRANDÃO, Cláudio. Acidente do trabalho e responsabilidade civil do empregador. 4. ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 133.
[13] TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Súmula nº 378 do TST - ESTABILIDADE PROVISÓRIA. ACIDENTE DO TRABALHO. ART. 118 DA LEI Nº 8.213/1991. (inserido item III) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_351_400.html#SUM-378> Acessado em 31 de agosto de 2020.
[14] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: LTr, 2013, p. 49.
[15] BRASIL. REGULAMENTO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. Anexo II – Agentes Patogênicos Causadores de Doenças profissionais ou do trabalho, conforme previsto no art. 20 da Lei nº 8.213, DE 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3048anexoii-iii-iv.htm> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[16] TUPONI JÚNIOR, Benedito Aparecido. Responsabilidade civil objetiva no ato do trabalho e atividade empresarial de risco. Curitiba: Juruá, 2010. p. 150.
[17] SILVA, José Antônio Ribeiro de Oliveira. Acidente do trabalho: responsabilidade do empregador. 3. ed. São Paulo: LTr, 2014, p.152.
[18] OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: LTr, 2013, p. 51.
[19] INSTITUTO NACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL. Manual de acidentes de trabalho. Diretoria de Saúde do Trabalhador. Maio de 2016. p.13 Disponível em: <http://www.abramt.org.br/k/downloads/12141696.pdf>. Acessado em: 01 de setembro de 2020.
[20] BRASIL, Medida Provisória nº 955, de 20 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv955.htm>. Acessado em: 31 de agosto de 2020.
[21] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF afasta trechos da MP que flexibiliza regras trabalhistas durante pandemia da Covid-19. Notícias STF, 29 de abril de 2020. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442355> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[22] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6354. Origem: DF - DISTRITO FEDERAL. Relator: MIN. MARCO AURÉLIO. Redator do acórdão: MIN. ALEXANDRE DE MORAES (ADI-MC-Ref). Relator do último incidente: MIN. MARCO AURÉLIO (ADI-MC-Ref). Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5882545> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[23] BRASIL. ATO DECLARATÓRIO DO PRESIDENTE DA MESA DO CONGRESSO NACIONAL Nº 92, 30 de julho de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Congresso/adc-92-mpv927.htm> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[24] BRASIL. Portaria nº 1.339, de 18 de novembro de 1999. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1999/prt1339_18_11_1999.html> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[25] ANAMT. Consulta Pública: Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho. Associação Nacional de Medicina do Trabalho. 6 de dezembro de 2019. Disponível em: <https://www.anamt.org.br/portal/2019/12/06/consulta-publica-lista-de-doencas-relacionadas-ao-trabalho/> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[26] MINISTÉRIO DA SAÚDE. PORTARIA DE CONSOLIDAÇÃO Nº 5, DE 28 DE SETEMBRO DE 2017. Disponível em: <https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/marco/29/PRC-5-Portaria-de-Consolida----o-n---5--de-28-de-setembro-de-2017.pdf> Acessado em: 01 de setembro de 2020.
[27] MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Nota Técnica Conjunta 04/2020. PGT/COORDIGUALDADE/ CODEMAT/CONAETE/CONAFRET/CONAP. 17 de março de 2020. Disponível em: <https://mpt.mp.br/pgt/noticias/nota-tecnica-no-4-coronavirus.pdf> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
[28] MINISTÉRIO DA ECONOMIA PORTARIA CONJUNTA Nº 20, DE 18 DE JUNHO DE 2020. Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Disponível em: <https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/PDF/COVID_-_SIT_-_Orienta%C3%A7%C3%B5es_Gerais.pdf> Acessado em: 02 de setembro de 2020.
Advogado, Especialização em Direito e Processo do Trabalho, Especialização em Ciências Políticas-Jurídicas , Mestre em Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PILOTO, JAMES RICARDO FERREIRA. Análise do enquadramento da Covid-19 como acidente de trabalho Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 set 2020, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55191/anlise-do-enquadramento-da-covid-19-como-acidente-de-trabalho. Acesso em: 23 dez 2024.
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