RESUMO: O artigo propõe-se a fazer uma análise do movimento neoconstitucionalista, a partir da posição de ícones da brasileira moderna. Parte-se de uma análise conjuntural: a partir de uma dita falência do positivismo normativista surge o pós-positivismo, havendo, assim, uma guinada principiológica que resguardou, e insculpiu, nas constituições do mundo os direitos humanos fundamentais para o desenvolvimento da personalidade dos cidadãos, em toda sua complexidade. Consequência inevitável deste caldo é uma maior instabilidade interpretativa, fruto não apenas do contexto cultural pós-moderno – imbricado que está com o direito –, mas, sobretudo, em razão da estrutura linguística e dogmática das normas principiológicas. Emerge, portanto, o problema: o juiz hoje vê-se diante de novas exigências sociais, totalmente diversas dos antigos problemas fáceis relativos a direitos patrimoniais; agora os casos envolvem direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Com efeito, o trabalho a ser feito (decisão) terá como base a norma principiológica, prenhe de abertura semântica e apta a validar interpretações das mais díspares. Não é senão por isto que surge a crítica de uma postura judicial ativista, que não raro ultrapassa os limites hermenêuticos impostos pela Constituição. Neste sentido, o caminho moderado é o mais sensato, nem o subjetivismo ilegítimo nem o formalismo anacrônico; é neste caminho que o presente artigo busca andar.
Palavras-chave: neoconstitucionalismo; ativismo judicial; hermenêutica jurídica.
Introdução
Não é de hoje que a questão da interpretação jurídica e suas consequências desperta o interesse dos juristas. Há muito o tema é estudado e enfrentado com o devido esmero.
Para isto, basta ver os contornos trazidos pelos compêndios de introdução à teoria do direito, que localizam o estudo da hermenêutica jurídica desde a jurisprudência romana, passando pela retórica grega e assim por diante até os dias atuais.[1]
Falar em interpretação de textos e contextos jurídicos, hodiernamente, é falar, inexoravelmente, do movimento neoconstitucional; seu filho (in)desejado, o ativismo judicial, não passa despercebido, sendo seus limites e possibilidades talvez a grande discussão do momento.
Todo este ambiente nasce da derrocada do positivismo normativista kelseniano – apesar de suas imensas contribuições à ciência jurídica – e da imposição de um direito que pudesse garantir não apenas a validade formal das leis e sua aplicação, mas sim justiça e dignidade aos cidadãos. É dizer: um direito transformador da realidade.
O momento histórico de que se está a falar está inserido no período que sucede a segunda grande guerra mundial. A fundamentação desta nova face do direito está, pois, numa imbricação entre direito e moral; numa espécie de cooriginariedade, como quer Streck a partir da tese de Habermas.[2]
A despeito desta constatação, o problema que se põe é, antes de tudo, o que é este neoconstitucionalismo, porquanto que desde sua origem não se tem uma clareza conceitual sobre sua identidade.[3] Ainda: quais os problemas e mal-entendidos que o dito movimento traz consigo.
Dentre estes problemas o mais sobranceiro parece ser a questão do ativismo judicial, já que é em nome deste novo constitucionalismo – agora com juízes menos formalistas e mais protagonistas – que surgem julgamentos com alto grau de subjetivismo e baixo grau de legitimidade normativa.
Por outro lado, apegar-se demasiado às amarras formais da lei turva a visão do magistrado para uma análise mais acurada do ordenamento jurídico – através, v.g., de interpretação sistemática ou mesmo de exercício do controle de constitucionalidade –, impedindo-o de realizar a justiça para o caso.
Deste modo, é o intento do artigo enfrentar esta questão buscando balizar o fenômeno a partir da moderação, com esteio na argumentação jurídica e na realização dos direitos fundamentais plasmados na Constituição Federal.
Desenvolvimento
1. Que é o neoconstitucionalismo?
O tema desperta defesas e críticas há algum tempo. A celeuma começa pela indeterminação semântica do próprio termo, que parece causar mais confusão do que consenso.
Antes de adentrar ao tema, deve-se tecer uma digressão, ainda que breve, acerca do ambiente que fecundou o neoconstitucionalismo, ou constitucionalismo moderno, e as influências que este teve e tem na ciência jurídica.
A partir disto, pretende-se analisar o posicionamento de alguns autores modernos de extrema relevância na doutrina.
1.1 A posição de Luís Roberto Barroso e Lenio Streck
Assim como o autor espanhol Pietro Sanchis, Luís Roberto Barros parte de paradigmas não estritamente jurídicos para chegar ao cume do movimento neoconstitucional.
Aborda a questão do marco histórico a partir da cultura de proteção, aplicação direta e expansão dos direitos fundamentais que nasceu, principalmente, do segundo pós-guerra, para os países europeus, v.g. Alemanha e Itália, e, no caso brasileiro, a partir da redemocratização advinda da Constituição de 1988.[4]
Na Europa, a junção da reconstitucionalização com o apego à democracia, movimento iniciado no final da década de quarenta e levado a cabo nos idos dos anos 1950, especialmente para Alemanha e Itália com a criação das Cortes Constitucionais, são um marco para este novo constitucionalismo. Afinal, reconheceu, através de forte produção teórica e pujante trabalho jurisprudencial, a força normativa das normas constitucionais.
No que diz com o movimento em termos de Brasil, “o renascimento constitucional se deu, igualmente, no ambiente de reconstitucionalização do país, por ocasião da discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988”.[5]
Com efeito, nega a separação irretratável entre direito, moral e política, mas não para simplesmente invalidar seus âmbitos de atuação em separado; apenas indica que eles convergem para a feitura de uma nova ciência jurídica, na qual há, inexoravelmente, influência recíproca entre todos eles.
Afora esses dois marcos, sugere Barroso mais um, e último: o marco teórico fincado em três paradigmas, força normativa da constituição, expansão da jurisdição constitucional e reelaboração da interpretação constitucional.
Por força normativa da constituição deve-se entender, de modo resumido, a aptidão que a lei fundamental tem de obrigar, ter força cogente tanto no âmbito público como no âmbito privado. As constituições do pós-guerra passam a ser normativas (jurídico-políticas) e deixam de ser meras cartas de intenções (política pura).[6]
Em relação à expansão da jurisdição constitucional, elenca-se uma passagem de uma hegemonia do Poder Legislativo para um protagonismo do Poder Judiciário, agora inserido no processo democrático de transformação social.[7]
Por fim, no que diz com a reelaboração doutrinária da interpretação constitucional, esta é fruto e resultado dos dois paradigmas anteriores, porquanto que em razão dos novos influxos do contexto sociocultural do pós-guerra e do pós-positivismo, a hermenêutica jurídica teve de se reinventar para acompanhar a complexidade da vida contemporânea.
Assim, a norma jurídica foi reelaborada a partir de matizes filosóficos, linguísticos e dogmáticos, assim como também o foi o processo tradicional de interpretação e o próprio intérprete.
Lenio Streck, por outro lado, irá se contrapor as ideias de Barroso. As premissas teóricas e metodológicas de Streck são completamente distintas, a começar pelo paradigma filosófico que aderem. Streck é um adepto da hermenêutica filosófica Gadameriana, em que faz com ela uma imbricação com teoria integrativa do direito de Dworkin para criar sua crítica hermenêutica do direito, avessa que é da discricionariedade judicial.
Streck parte de uma análise acerca do significante neoconstitucionalismo. Refere que este é tratado de forma diversa pelas diferentes escolas jurídicas; é o caso da ciência política americana que denomina new constitucionalism os movimentos de redemocratização ocorrido nos países periféricos, caso do Brasil, Argentina, Equador, os países do leste europeu e também a África do Sul.[8]
Já no caso da teoria do direito da Europa Ibérica (Espanha, Itália, Portugal), o termo neoconstitucionalismo designou a produção do direito do pós-guerra, encontrando neste novo modelo diferenças estruturais relativas à interpretação e aplicação da ciência jurídica.[9]
Após esta observação, pode-se dizer que Streck não se posiciona como um neoconstitucionalista, pelo menos não no conteúdo das propostas do movimento. É possível dizer que se de alguma forma suas bases teóricas podem ser identificadas como neoconstitucionalistas, esta aproximação deve ser entendida de forma crítica. O neoconstitucionalismo de Streck o é apenas e tão somente porque critica o modo de produção do direito, mais especificamente o positivismo normativista da escola de Viena.
Assim, suas teses não endossam as teorias da argumentação e a técnica da ponderação. Para Streck, estas soluções continuam a apostar numa discricionariedade judicial, que não raro descamba para a arbitrariedade e o subjetivismo.
Nesse sentido, reconhece que, a despeito da boa estratégia com o nome – que indica, de logo, uma ruptura –, o neoconstitucionalismo representa uma contradição para lidar com este direito novo (pós-guerra), já que lança “todas as esperanças de realização desse direito na loteria do protagonismo judicial”.[10]
Com efeito, para ele, o Brasil mais sofre do que ganha com a entrada dos ideais neoconstitucionalistas na produção do direito, sobretudo no que toca à jurisdição constitucional. Houve uma verdadeira recepção equivocada, e anacrônica, de posturas incompatíveis com as peculiaridades brasileiras e, mais ainda, com a uma verdadeira postura nova em relação à efetividade da Constituição e sua vocação dirigente.
Com efeito, como saída para todo estado de coisas que critica, propõe a saída a partir de um constitucionalismo contemporâneo. Nele a constituição constitui-a-ação dos poderes públicos e das relações privadas, que aposta na hermenêutica filosófica como condição de possibilidade para se fazer uma correta teoria da decisão judicial, negando assim a discricionariedade judicial.[11]
2. Neoconstitucionalismo brasileiro e críticas
Como se percebe, o neoconstitucionalismo é um movimento complexo, cheio de nuances jurídicas, políticas e históricas; não é senão por isto que Miguel Carbonell prefere o termo no plural: neoconstitucionalismo(s). Aliás, o termo, assim cunhado, chega à doutrina brasileira através deste autor mexicano, o que não quer dizer que as ideias neoconstitucionalistas não pairassem por aqui antes.[12]
Dentre as várias mudanças na teoria jurídica e na prática dos tribunais brasileiros, pode-se enfatizar a negação do formalismo, herança do direito produzido pelos tribunais na época do governo militar; o reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e com isso a abertura metódica na interpretação e aplicação do direito (tópica, teorias da argumentação e ponderação); e, por fim, a judicialização da política e das relação sociais e privadas, o que reforça uma sobreposição do Poder Judiciário sobre os Poderes Executivo e Legislativo.[13]
Sarmento[14] argumenta porque as constituições brasileiras, antes de 88, não eram dignas de respeito no sentido jurídico, aduzindo que
A constituição de 1824 falava em igualdade, e a principal instituição do país era a escravidão negra; a de 1891 instituíra o sufrágio universal, mas tosas as eleições eram fraudadas; a de 1937 disciplinava o processo legislativo, mas enquanto ela vigorou o congresso esteve fechado e o Presidente legislava por decretos; a de 1969 garantia os direitos à liberdade, à integridade física e à vida, mas as prisões ilegais, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura campeavam nos porões do regime militar. Nesta última quadra histórica, conviveu-se ainda com o constrangedor paradoxo da existência de duas ordens jurídicas paralelas: a das constituições e a dos atos institucionais, que não buscavam nas primeiras o seu fundamento de validade, mas num suposto poder revolucionário em que estariam investidas as Forças Armadas.
Assim, é fácil notar a razão da forte mudança de rumo que se deu a partir da Carta cidadã de 1988. Isto não significa dizer que a recepção deste novo modelo não seja digna de críticas, ou mesmo que não haja excessos, muito ao contrário. É tão somente a constatação de que antes a Constituição não constituía a ordem jurídica e social, ao passo em que a lei ordinária era mais importante para o trabalho diário dos operadores jurídicos.
Note-se que a própria Corte Suprema sofreu preconceito à época da promulgação, pois era formada por juízes nomeados na época do regime militar. Logo, sua posição era sempre acanhada diante do novo mundo constitucional. No entanto, com a renovação que se deu já nos idos de 90, é possível dizer que a jurisdição constitucional tem tido papel importantíssimo nas disputas sociais, políticas e jurídicas nacionais.[15]
É exatamente neste ponto que entra uma crítica salutar: com esse crescimento do protagonismo judicial, com a confirmação da tradição jurídica que incorpora a Constituição como norma jurídica, com seus princípios e regras, e com a total descrença da sociedade brasileira na sua classe política, quais o limites para a atuação do Judiciário brasileiro neste contexto neoconstitucional?
Indaga-se até que ponto o Judiciário pode ser ativista sem que invada a seara constitucional dos outros poderes, sobremodo o Legislativo.
3. O ativismo judicial: diferença salutar em relação à judicialização da política
De início, frise-se que há entre os dois modelos (o americano e o brasileiro) algumas distinções básicas e fundamentais; desde o próprio modelo jurídico, naquele país vigora o commom law e aqui a civil law, até o nível de debate doutrinário existente sobre o tema. Note-se que há cerca de dois séculos o tema do ativismo é amplamente debatido pela doutrina americana.
Adentrando especificamente o tema, tem-se que a questão do controle das políticas públicas (judicialização da política) e do ativismo judicial, entendido como problema ou solução, está inserida, inarredavelmente, no contexto da promoção dos direitos fundamentais (no Brasil, especialmente os sociais) encarados a partir dos diversos desafios argumentativos que se impõem para sua não implementação.
Note-se, de pronto, a imbricação dos temas promoção dos direitos fundamentais e política pública a partir da concepção de que esta é um conjunto de normas e medidas tendentes à realização dos fins postos na constituição. Daí se dizer, com Krell, que política pública se instala numa zona cinzenta entre política, Constituição e o direito.[16]
Dentro desta problemática, encontra-se parcela da doutrina que defende uma postura ativista do poder judiciário – não sem antes analisar e tecer algumas críticas ao panorama geral do ativismo –, caso de Luis Roberto Barroso e de Andreas Krell; e outra que o refuta com veemência, esta capitaneada por Lenio Streck.
Segundo a doutrina defendida por Andreas Krell, nenhum destes argumentos acima alinhavados são suficientes para afastar, de forma peremptória e a priori, a efetivação dos direitos fundamentais. Isso porque, em relação à inefetividade das normas de direitos fundamentais, a Constituição brasileira de 1988 deixou claro o caráter pleno de efetividade das normas de direitos fundamentais.[17]
No que toca o ponto do princípio da separação dos poderes, faz-se relevante destacar que, com a consagração do Estado Democrático de Direito, este postulado tem merecido uma nova interpretação – sobretudo a partir da concepção dos sistemas de poderes baseado na dinâmica do check and balances.
É dizer: na medida em que o brasil tem uma realidade social e política fragmentada, o que gera uma instabilidade no modelo baseado na soberania da maioria, “uma parte cada vez maior das demandas políticas e sociais não atendidas em nível dos parlamentos e dos órgãos administrativos acaba ‘desaguando’ no Poder Judiciário, especialmente na forma de ações civis públicas”[18]. Portanto, o Judiciário apenas controlaria os demais poderes, não invadindo suas competências.
Por sua vez, o argumento da reserva do possível não merece prosperar em se tratando do contexto fático e jurídico do Brasil. Isto porque este argumento tem sua origem na jurisprudência alemã, num contexto sociocultural e político-jurídico totalmente distinto. Invocar tal argumento em um país que se comprometeu constitucionalmente em transformar a realidade social, cumprindo as promessas de modernidade que nunca chegaram, não passa de retórica argumentativa.
Desse modo, Krell defende um ativismo judicial moderado na consecução dos direitos fundamentais. É que o ativismo é um fenômeno jurídico – diferentemente da judicialização da política, que é uma questão social contingente. [19]
O fato é que, principalmente nos países de modernidade tardia – em que o Brasil está inserido –, não se percebe uma atitude dos poderes executivo e legislativo, em todos os níveis federativos, compromissada com o programa democrático e inclusivo instituído pela Constituição de 1988.
Contudo, mesmo ressaltando a urgência em ver os ditames constitucionais sendo concretizados, a questão do ativismo judicial é deveras complexa, conquanto envolve não apenas essa questão social e política de reivindicação por direitos, mas também – e sobretudo –, uma questão jurídica das mais importantes: a atuação do judiciário frente à autonomia do direito.
No atual estágio em que se encontra o fenômeno jurídico, o juiz deve decidir levando em conta a sua vontade (discricionariedade ampla) ou deve realizar uma atividade hermenêutica apta a deixar que o direito diga algo sobre o caso?
É exatamente nessa crítica que se baseia Lenio Streck para refutar a postura ativista do poder judiciário. Analisa, portanto, a questão do ativismo inicialmente diferenciando-o da judicialização da política. Encara “o controle judicial das políticas públicas” a partir de um apanhado contextual em que judiciário brasileiro e a própria sociedade imergiram-se no imaginário de que a atividade jurisdicional é a condição de possibilidade para a aplicação dos mais diversos direitos. Nota-se que o judiciário é quem diz a palavra final em questões políticas relevantes, numa espécie de juristocracy.[20]
Com efeito, como já adiantado no parágrafo anterior, a judicialização, como uma questão social que é, não depende do desejo ou da vontade do órgão judicante. Ao contrário, está ligada a fatores, de certa forma, alheios à jurisdição, como a amplitude do reconhecimento de direitos e garantias fundamentais (a partir do constitucionalismo contemporâneo), a amplitude do acesso à justiça (também com a onda de democraticidade da Constituição de 1988) e a incidência do Estado em implementar tais direitos, desaguando no aumento da litigiosidade – característica das sociedades de massas.[21]
Após a experiência trágica da segunda grande guerra mundial, os poderes executivo e legislativo caíram na desconfiança geral do povo – no cenário brasileiro, a desconfiança nestes poderes veio do período pós-ditadura militar.
Por outro lado, o ativismo judicial em si é um fenômeno interno da jurisdição. Está ligado à configuração de um poder judiciário revestido de supremacia, com competências que não lhe são reconhecidas constitucionalmente. Para além disso, tem-se pujante o problema de como se decide. Segundo Lenio Streck, o juiz ou o tribunal que decide conforme sua consciência ou utilizando-se de argumento puramente subjetivos – morais e políticos.[22]
Dentro dessa perspectiva de ativismo encontra-se a consideração da vontade como fundamento para a decisão, o que engendra, inexoravelmente, uma imbricação entre vontade-discricionariedade-subjetivismo. Essa problemática está inserida, ainda, na teoria do positivismo normativista de Kelsen, quando ao propor uma pureza da ciência jurídica, separa nitidamente a interpretação/aplicação do direito realizada pelo órgão competente da interpretação realizada pelo cientista do direito.[23]
Por todo o exposto, constata-se que o ativismo é uma postura do judiciário que, extrapolando ou não suas atribuições, a pretexto de realizar os fins constitucionais impostos pelos direitos fundamentais, excede-se na interpretação/aplicação do direito, trazendo ao discurso produzido na decisão judicial elementos alheios à autonomia do Direito, como o subjetivismo moral, político, etc.
Conclusão
A ciência do direito é completamente diversa de qualquer outra. Seu objeto, seus métodos e sua dinâmica não podem ser aproximadas a nenhum ramo científico, seja das ciências humanas, o que seria mais fácil, seja das ciências naturais, o que é impossível.
Diz-se isto apenas para afastar qualquer anseio por uma conclusão do tipo resolutória; perene. A dogmática não gera resultados unívocos, incontestáveis. Sem contestação são os pontos de partida estabelecidos pelo dogma jurídico; a solução, entretanto, é algo mais complexo e envolve algo como argumentação e respeito às regras democráticas, instrumentos naturalmente voláteis.
Nesse sentido, dentro do problema ligado ao ativismo judicial como consequência do movimento neoconstitucional e sua recepção pela doutrina e pelos tribunais brasileiros, o que se conclui é que o fenômeno é complexo e que não se pode adotar posições extremas: negá-lo a priori; ou mesmo defende-lo em abstrato.
Como as posturas ativistas estão quase sempre ligadas ao trabalho hermenêutico relativo à efetivação dos direitos fundamentais, é o caso dos direitos à saúde, moradia, meio ambiente etc., não se pode dizer que todo ativismo é ruim ou errado do ponto de vista técnico jurídico.
Isto porque, a Constituição Federal impôs um dever a todos os cidadãos, sobretudo aos agentes competentes oficialmente para aplicação de seus enunciados – membros do Poderes constituídos –, de extirpar a pobreza e a marginalização, de reduzir drasticamente a desigualdade social que fulmina o país e, assim, construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Quando isso não ocorre, o Judiciário é instado a decidir; seu papel não é outro senão o de equilibrar a relação de desvantagem estabelecida à margem do direito (da Constituição, em última análise), realizando, deste modo, a justiça.
Exemplo claro se dá no caos (caso) da saúde pública. Diariamente, cidadãos necessitam de medicamentos para tratar doenças que estão catalogadas como de tratamento obrigatório pelo SUS. Na vida real, os remédios não estão disponíveis, ou a burocracia suplanta o direito a continuar vivo.
É certo que esta questão é muito mais complexa que este exemplo trazido. Há varias nuances que precisam ser enfrentadas, desde uma análise jurídica (ações individuais versus ações coletivas; cobertura única pelo SUS ou pagamento de tratamentos por instituições privadas às custas do Estado) até uma análise econômica do direito, adentrando questões de verniz político ideológico.
O correto é ter o ativismo como um veneno que deve ser administrado a partir do antídoto da constituição: em casos em que se tem o imperativo de se realizar um mandamento constitucional expresso e um dos poderes públicos, ou mesmo um particular, ponha barreiras ilegais ou mesmo ilegítimas, deve sim o Judiciário tomar posição e equilibrar a relação, mais como um agente corretor e não como ente inovador, lugar dos parlamentos.
Em contrapartida, deve permanecer inerte e deixar que o Legislativo resolva questões eminentemente políticas, de interesse geral e abstrato, sob pena de se imiscuir na legitimidade democrática direcionada constitucionalmente aos agentes públicos eleitos pelo voto popular; assim é a democracia, exige, portanto, respeito e tolerância as maiorias eventuais.
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[1] FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. Pág. 68-69.
[2] STRECK, Lenio. Neoconstitucionalismo, positivismo e pós-positivismo. In: Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Org: Luigi Ferrajoli, Lenio Streck e André Karam. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. Pág. 75-86.
[3] LIZANA, Eduardo Aldunate. Aproximación conceptual y crítica al neoconstitucionalismo. Revista de Derecho (Valdivia), Vol. XXIII, n. 1, Jul/2010, Chile. Pág. 79-102.
[4] BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. Pág. 279.
[5] Ibidem, Pág. 280.
[6] Ibidem, Pág. 296.
[7] Ibidem, Pág. 297-298.
[8] STRECK, Lenio. Contra o neoconstitucionalismo. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, n. 4, Jan-Jun. Pág. 10.
[9] Idem.
[10] STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. Pág. 115-118.
[11] Ibidem, Pág. 45-56.
[12] SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira. Teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Pág. 251.
[13] Ibidem, Pág. 233-234.
[14] Ibidem, Pág. 245.
[15] Ibidem, Pág. 252.
[16] KRELL, Andreas. Para além do fornecimento de medicamentos para indivíduos: o exercício da cidadania jurídica como resposta à falta de efetivação dos direitos sociais: em defesa de um ativismo judicial moderado no controle de políticas públicas. In: O judiciário e o discurso dos direitos humanos. Org: Enoque Feitosa [et al]. Volume 2. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. Pág. 136-137.
[17] Idem.
[18] Ibidem, Pág. 138.
[19] Ibidem, Pág. 135 et seque.
[20] STRECK, Lenio. Verdade e consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 61-66.
[21] TASSIARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Pág. 28-38.
[22] STRECK, Lenio. Verdade e consenso. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Pág. 61-66
[23] TASSIARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. Pág. 54-60.
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Faculdade Única de Ipatinga. Analista - Área Jurídica - do Ministério Público do Estado de Alagoas. Aprovado para o cargo de Juiz de Direito do Estado de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Francisco Ernesto Agra Cavalcante. Neoconstitucionalismo e ativismo judicial: a necessária postura moderada entre subjetivismo e formalismo jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2020, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55231/neoconstitucionalismo-e-ativismo-judicial-a-necessria-postura-moderada-entre-subjetivismo-e-formalismo-jurdico. Acesso em: 22 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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