RESUMO: Esta monografia se propõe a estudar a crise no sistema carcerário sob a ótica do postulado constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, verificando a possível ocorrência do fenômeno Estado de Coisas Inconstitucional no país. Tem-se como plano de fundo do presente trabalho a ADPF 347 proposta perante o Supremo Tribunal Federal.
ABSTRACT: This monograph proposes to study the crisis in the prison system from the point of view of the constitutional postulate of the Dignity of the Human Person, verifying the eventual occurrence of the phenomenon State of Things Unconstitutional in the country. The background to the present work is the ADPF 347 offered towards the Federal Supreme Court.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Dignidade da Pessoa Humana. 3. Reserva do Possível x Mínimo Existencial. 4. Poder Judiciário e o Mérito Administrativo. 5. A Pena. 6. Estado de Coisas Inconstitucional e a ADPF 347. 7. Conclusão. 8. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Rebeliões ou fugas em massa são manchetes comuns nos periódicos do país. Da mesma maneira, notícias de ex-presidiários sendo apanhados pela polícia, em decorrência do cometimento de novos crimes, não causam mais espanto à população. É fácil depreender que há algo errado na seara penitenciária brasileira. Entre as possíveis causas para tal problema, aponta-se a morosidade do Poder Judiciário e a legislação penal branda.
A crise no sistema carcerário é um velho problema enfrentado pelo Poder Público. Tem-se um verdadeiro caos, no qual a missão de ressocialização da pena parece cada vez mais distante de ser alcançada. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil é um dos países que mais encarcera no mundo. Contudo, o Estado não consegue acompanhar tal numerário, falhando em conceder o aparato mínimo de sobrevivência a então superpopulação carcerária. Por conseguinte, as facções criminosas encontram uma brecha para o seu crescimento, uma vez que suprem as necessidades dos detentos em troca da obediência às suas normas e da prestação de serviços quando esses forem postos em liberdade. Tem-se, dessa forma, a perfeita formatação da chamada “escola do crime”.
Outrossim, um terço dos presos nas penitenciárias brasileiras é provisório, conforme levantou o CNJ.[1] O Poder Judiciário é extremamente moroso para realizar o julgamento dos presos, sendo esses, em parcela significativa dos casos, absolvidos ou condenados por período menor do que aquele o qual passaram aguardando o posicionamento judicial. Além disso, a falta de assistência jurídica de qualidade pelo Poder Executivo contribui para que os suspeitos estejam mais vulneráveis à prisão provisória e, da mesma maneira, para que os condenados tenham mais dificuldade de acesso aos benefícios da progressão de regime, gerando, assim, mais tensão no sistema.
Nesse contexto, torna-se fundamental analisar o referido problema à luz dos postulados constantes da Constituição Federal, norma de hierarquia superior no ordenamento jurídico pátrio. Em decorrência de tal diploma ser de observância obrigatória, especialmente para os agentes públicos, o presente trabalho aufere salutar importância, uma vez que possibilita um estudo abrangente acerca da temática.
2. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição brasileira de 1988, ademais denominada de CF/88, foi elaborada sob a influência do neoconstitucionalismo, movimento político-social que visa regular o poder político em um Estado, o qual tem como uma de suas bases o conteúdo axiológico no sentido da promoção da dignidade humana e dos direitos fundamentais e, por conseguinte, garantia de condições dignas mínimas. [2]
Logo em seu art. 1º, a Carta Magna, traz insculpido em seu bojo, a dignidade da pessoa humana como uns dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a qual é formada não só pela União, mas também pelos Estados, Municípios e Distrito Federal. Dessa maneira, em razão da posição de lei suprema que a Constituição ocupa no ordenamento jurídico pátrio, pode-se dizer que a observância do referido princípio se espraia por todos os Poderes políticos e por todos os entes federativos, devendo esses ter no postulado da Dignidade da Pessoa Humana um norte obrigatório na elaboração e aplicação de seus atos políticos, administrativos, judiciais e legislativos.
Nesse sentido, Bruna Pinotti Garcia e Rafael de Lazari trazem, conjuntamente com a democracia, a razoabilidade-proporcionalidade e as dimensões de direitos, a Dignidade da Pessoa Humana como um dos fundamentos dos direitos humanos. Para os autores, corretamente, a dignidade da pessoa humana é o valor-base de interpretação de qualquer sistema jurídico, internacional ou nacional, que se possa considerar compatível com os valores éticos, em especial da moral, da justiça e da democracia. Desse modo, pensar em Dignidade da Pessoa Humana significa, acima de tudo, colocar a pessoa humana como centro e norte para qualquer processo jurídico de interpretação, seja na elaboração da norma, seja na sua aplicação.[3]
Outrossim, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 acrescentou o §3º ao art. 5º, CF, o qual tem a seguinte redação:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Tal constitucionalização denota a importância do postulado da Dignidade da Pessoa Humana para o ordenamento pátrio, uma vez que se traduz na possibilidade dos documentos internacionais observados pela República Federativa do Brasil que versem sobre direitos humanos tenham valor hierárquico igual ao das normas constitucionais, ou seja, valor superior ao das demais normas do sistema. Nesse sentido, caso, porventura, haja algum tratado de direitos humanos, submetido ao rito referido, que disponha em sentido contrário a uma norma posta infraconstitucional, aquele deve prevalecer, ainda que esta seja válida de acordo com o disposto no texto constitucional vigente.
Destarte, é possível depreender que a importância e a posição do postulado da Dignidade da Pessoa Humana no ordenamento pátrio não deixam qualquer margem de inobservância daquele para os agentes estatais, sendo vedado a esses, portanto, a prática de qualquer ato atentatório tal valor constitucionalmente assegurado.
3.RESERVA DO POSSÍVEL X MÍNIMO EXISTENCIAL
Segundo ensina Flávia Bahia, a carga axiológica que lastreia o vértice dos direitos humanos ou dos direitos fundamentais é a mesma, qual seja o centro dos direitos mais valiosos que as pessoas têm. Nesse panorama, direitos humanos, sob a análise do Direito Constitucional, são denominados, portanto, como direitos fundamentais.[4]
A CF/88 traz em seu título II a expressão “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, englobando em tal grupo: os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais, a nacionalidade, os direitos políticos e os partidos políticos. Lançando-se os olhos sobre o art. 6º, tem-se que os direitos sociais são a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
O art. 5º, §1º, enuncia que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Não obstante todas desse rol a tenham, algumas dessas não tem aplicabilidade imediata. Conforme aduz José Afonso da Silva, aplicação imediata consiste no fato das referidas normas serem dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua pronta incidência aos fatos, situações, condutas ou comportamentos que regulam. Por outro lado, a aplicabilidade imediata se traduz pelo fato das normas prescindirem de providências ulteriores que lhes completem a eficácia e possibilitem a sua aplicação.
Nesse contexto, continua o autor, a regra é de que as normas que revelem direitos fundamentais democráticos e individuais são de aplicabilidade imediata, enquanto que as que definem direitos sociais apenas tendem a ser, possuindo uma carga de eficácia menor que a dos direitos de primeira geração. Assim, algumas são de eficácia limitada e aplicabilidade indireta. Dessa maneira, o Poder Judiciário, sendo invocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar de aplicar as referidas normas, sob pena de violação ao texto constitucional, devendo, portanto, conferir ao interessado o direito reclamado.[5]
Por outro lado, a efetivação dos direitos sociais depende da concretização de políticas públicas e, por conseguinte, de maneira vultosa, de gastos estatais. Nesse panorama, sustenta-se a teoria da reserva do possível, segundo a qual ao Estado cabe apenas efetivar os direitos sociais na medida do financeiramente possível. Desse modo, a efetivação dos direitos sociais deve ocorrer nos ditames da suficiência de recursos públicos e da previsão orçamentária da respectiva despesa. Em outras palavras, é possível compreender que, segundo tal ideário, não havendo verba em caixa para a prestação do direito, o Poder Público estaria a priori liberado da sua missão.
Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal (STF), em sede da ADPF 45 MC/DF, decidiu que a cláusula da reserva do possível afasta a aptidão do Poder Judiciário para intervir na efetivação dos direitos sociais, desde que reste comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, uma vez que, considerada a limitação material referida, não se pode razoavelmente exigir a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. [6]
Todavia, os direitos sociais são direitos fundamentais e, consequentemente, indispensáveis à realização da dignidade da pessoa humana, a qual constitui vetor interpretativo maior em um estado democrático de direito. Nesse contexto, o Estado, na qualidade de promotor do interesse público, deve garantir o mínimo existencial daqueles na tarefa de concretização dos direitos sociais. Mínimo existencial, dessa forma, pode ser conceituado como o grupo de prestações essenciais que se deve fornecer ao ser humano para que esse tenha uma existência minimamente digna.
Consoante entende o STF, o mínimo existencial é uma limitação à cláusula da reserva do possível, embora esses sejam compatíveis e devam conviver de maneira harmônica. Dessa monta, a reserva do possível só pode ser invocada após a garantia do mínimo existencial pelo Estado, sendo a última, por conseguinte, uma obrigação estatal inafastável e não sujeita, portanto, à reserva do possível.[7]
Em outros termos, é possível concluir que os gastos públicos devem ser orientados, de maneira precípua a garantir o mínimo existencial. Uma vez garantido, o Estado pode decidir em quais outros campos investir. Lado outro, a cláusula da reserva do possível restringe a atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais. Contudo, tal limitação é mitigada pelo princípio do mínimo existencial. Nesse sentido, tem sido possível a judicialização de grande das políticas públicas de forma a garantir direitos mínimos para os cidadãos.
4.PODER JUDICIÁRIO E O MÉRITO ADMINISTRATIVO
A teoria da separação dos poderes foi criada com o escopo de evitar o recrudescimento do absolutismo, fato o qual representaria a morte da democracia e dos direitos fundamentais, conforme ensina Paulo Bonavides.[8] Da mesma maneira, Alexandre de Moraes defende que a separação de poderes é um princípio cujo objetivo é evitar arbitrariedades e desrespeito aos direitos fundamentais, uma vez que o poder político concentrado nas mãos de uma só pessoa tende ao abuso, constituindo tal ideário uma verdadeira técnica de limitação do poder estatal.[9] É clara, desse modo, a relação de interdependência existente entre a estruturação do poder em uma sociedade e a realização dos direitos fundamentais, tema cerne deste trabalho.
Conquanto o art. 2º da CF aduza que são poderes, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, a independência entre os poderes não é absoluta. Mas sim, atenuada pelo sistema de freios e contrapesos, o qual prevê a interferência legítima de um poder sobre o outro.
Fundamentado nesse panorama, o art. 5º, XXXV, garante que a lei (em sentido amplo) não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Resta, então, consagrado o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o qual possibilita, entre outras coisas, que os atos praticados pela Administração Pública, em especial, pelo Poder Executivo sejam revistos no âmbito judicial.
Maria Sylvia Zanella de Pietro conceitua ato administrativo como a declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário.[10] Quanto à liberdade da Administração Pública quando da formação do ato, esse pode ser classificado em vinculado ou discricionário.
O ato administrativo vinculado é aquele no qual a lei estabelece a única conduta possível diante de certa hipótese de ocorrência, deixando a Administração presa à escolha legal. Lado outro, ato administrativo discricionário é aquele em que a lei concede à Administração uma margem de liberdade na prática do ato, podendo essa, diante do caso concreto, escolher a opção que mais lhe pareça conveniente e oportuna diante das legalmente permitidas.
Nesse contexto, o mérito do ato administrativo é o conteúdo da decisão discricionária feita pela Administração no que tange à oportunidade e a conveniência para praticá-lo, só existindo tal instituto, por conseguinte, nos atos discricionários.[11] Grande parte da doutrina entende que, em decorrência da própria lei conferir à Administração o poder de escolher qual a melhor opção dentre as legalmente permitidas, não cabe ao Poder Judiciário analisar ou controlar o aspecto discricionário do ato, isto é, seu mérito, sob pena de se imiscuir em missão reservada a outro Poder pelo texto constitucional. Não obstante, esse poderia apenas analisar a legalidade do ato discricionário, ou seja, se a Administração escolheu uma das situações previstas na lei.
Entretanto, Gustavo Scatolino e João Trindade, acertadamente, entendem que é cabível a análise do mérito administrativo pelo Poder Judiciário no que tange a sua razoabilidade/proporcionalidade. Por serem a razoabilidade e a proporcionalidade princípios de Direito Administrativo, caso a escolha do agente público não seja razoável (fuja ao senso comum de aceitabilidade) ou seja desproporcional (não se revele o meio menos danoso e mais adequado a consecução daquele fim), a decisão seria ilegal, uma vez que, de acordo com o princípio da legalidade, a Administração sempre se submeterá à lei e só poderá agir quando e como ela autorizar. Nesse caso, a lei é tida em sentido amplo, englobando não só as regras, como também os princípios. Assim, o controle realizado, no que toca a razoabilidade/proporcionalidade, seria, em última análise, de legalidade, não se revelando, portanto, interferência à autonomia dos Poderes, mas sim preservação dos ditames do ordenamento jurídico pátrio.
5.A PENA
Conforme dispõe Cleber Masson, a pena é uma espécie de sanção penal que se traduz na privação ou restrição de determinados bens jurídicos de uma certa pessoa. É aplicada pelo Estado como consequência do cometimento de uma infração penal e tem por objetivo castigar o infrator, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, de forma ostensiva à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.[12]
O art. 5º, XLVII, e), CF, enuncia que são vedadas penas cruéis. Nessa esteira, o mesmo art. 5º, XLIX, aduz que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Da leitura dos artigos da Carta Maior, é possível depreender a preocupação do constituinte originário com o caráter humanitário da pena em observância ao postulado da dignidade da pessoa humana.
Tem-se, assim, positivado o princípio da humanidade, segundo o qual nenhuma pena pode violar a dignidade da pessoa humana, sendo proibida a aplicação de penas cruéis e infamantes. A pena deve respeitar, portanto, os direitos fundamentais do condenado enquanto ser humano e deve ser cumprida de forma a efetivamente ressocializar a pessoa do condenado, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.[13]
Muitas teorias tentam explicar a finalidade do instituto da pena, sendo possível dividi-las em dois grandes grupos: as teorias absolutas ou retributivas, as quais enunciam que a pena é concebida como uma forma de retribuição justa pela prática de um delito, sendo o castigo a ser recebido para que se faça justiça; e as teorias relativas, preventivas e utilitárias, as quais não veem a pena como retribuição, mas sim como uma forma de prevenção, constituindo um meio de proteção dos bens jurídicos, em última análise.
O legislador pátrio optou por tentar conciliar as duas teorias acima, surgindo, dessa maneira, as teorias unificadoras, unitárias, ecléticas ou mistas. Para essas, a pena tem dupla finalidade: retributiva e preventiva. Nesse sentido, a parte final do art. 59 do Código Penal dispõe que o juiz estabelecerá a pena conforme seja necessário o suficiente para a reprovação e prevenção do crime.
O STF entende que as finalidades da pena têm sua incidência de forma diversa de acordo com o momento penal. Na fase da elaboração da lei e cominação abstrata, prevalece a finalidade de prevenção geral. Por outro lado, na etapa de aplicação da pena, prepondera a finalidade de uma decisão justa e retributiva. Já no momento de execução da pena, restaria prevalecido o aspecto ressocializador da pena.[14]
6.ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A ADPF 347
O Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) surgiu em 1997 a partir de decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC). Aquele foi observado quando esta esteve frente à constatação de violações generalizadas, contínuas e sistêmicas aos direitos fundamentais ocorridas naquele país, as quais se originaram na inércia ou incapacidade reiterada e contumaz do Poder Público em alterar a conjuntura existente.
A omissão inconstitucional deriva, portanto, da falha de coordenação entre o Legislativo e o Executivo, a qual resulta em deficiências na consecução de políticas públicas. Em que pese, em muitos casos, haver leis e atos administrativos dirigidos à concretização dos comandos legais em observância aos ditames constitucionais, tais atitudes se mostram insuficientes. Em outras palavras, tem-se que a omissão não é decorrência exclusiva da ausência de lei, mas sim da inexistência de estrutura apta a realizar os comandos legais e constitucionais. A persistência de tal situação somada à violação massiva dos direitos fundamentais se traduz em um quadro extremo e permanente de falhas estruturais conhecido como Estado de Coisas Inconstitucional, o qual legitima medidas ativistas.[15]
Segundo ensina Dirley da Cunha Jr., é inegável que o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional pressupõe uma atuação ativista por parte dos tribunais (uma espécie de Ativismo Judicial Estrutural), uma vez que as decisões judiciais vão induvibitavelmente interferir nas funções executivas e legislativas, com repercussões, sobretudo, orçamentárias.[16]
Como explica Márcio André Lopes Cavalcante, o ECI gera um litígio estrutural, no qual um número grande de pessoas é alcançado pelas violações de direitos. Dessa maneira, para enfrentar litígio dessa espécie, a Corte teria que fixar “remédios estruturais” dirigidos à formulação e execução de políticas públicas, objetivo o qual não seria atingido por meio de decisões tradicionais.[17]
Nesse sentido, o Partido Socialista e Liberdade (PSOL) ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 347, em desfavor da União e de todos os Estados, pleiteando que seja reconhecido pelo STF que o sistema carcerário brasileiro enfrenta um ECI em razão de afronta aos direitos humanos e de violação aos direitos fundamentais dos presos e aos preceitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Em sua petição inicial, os autores esclarecem que, apesar da técnica de declaração do ECI e da adoção das medidas subsequentes não estarem previstos no texto da Carta Magna, a intervenção da Suprema Corte deve ocorrer excepcionalmente quando houver sérias e generalizadas violações aos direitos humanos, como é o caso do ocorrido com o sistema penitenciário. Entre as medidas requeridas, tem-se a implementação de audiência de custódia, o estabelecimento de penas alternativas à prisão, o abrandamento de requisitos temporais para a concessão de benefícios aos detentos, entre outros.
O STF ainda não se debruçou total sobre o mérito da peça, mas ao analisar o pedido liminar, o concedeu parcialmente, deferindo os pedidos de estabelecimento de audiência de custódia e de liberação de verbas do Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para qual foi criado.
A partir de tal decisão, STF sinalizou que dispositivos infraconstitucionais, constitucionais e internacionais estão sendo desrespeitados no sistema prisional brasileiro, uma vez que, além dos cárceres brasileiros não estarem servindo à ressocialização dos presos, estão servindo como criadouro de “monstros do crime”, o que se comprova pela alta taxa de reincidência com o cometimento de crimes mais graves. Todavia, em que pese caber à Suprema Corte retirar os demais poderes da inércia, monitorando ações e controlando resultados, o Poder Judiciário não pode retirar dos demais Poderes constituídos a incumbência de formulação e implementação de soluções necessárias.
7.CONCLUSÃO
Diante da interpretação sistemática dos institutos pátrios sob a ótica da dignidade da pessoa humana, postulado fundamental previsto na Constituição Federal, torna-se forçoso reconhecer que o Poder Público tem falhado em sua missão em decorrência da inobservância dos ditames jurídicos no que tange o sistema penitenciário.
Vive-se, dessa maneira, um verdadeiro estado de coisas inconstitucional, no qual os direitos dos presos, ao longo dos mais variados estados do país, são desrespeitados. Falta estrutura mínima de sobrevivência, estando as prisões superlotadas e configurando masmorras medievais. A prestação de serviços de saúde preventiva e curativa é negligenciada, ocorrendo em alguns locais epidemia de doenças tais como sarna.
Ademais, o Poder Executivo tem fracassado na incumbência de fornecer assistência jurídica satisfatória aos detentos, impedindo o acesso desses a prerrogativas como progressão de regime ou prisão domiciliar para as mães de filhos menores de 12 anos em crimes menos graves. Tais medidas trariam impacto positivo na situação de superlotação das prisões, além de fomentar um caráter humanitário da pena ao promover uma efetiva ressocialização.
Não se pode esquecer que em pese o alvo imediato de tais medidas seja a população carcerária, os efeitos de tais ações se espraiam pela sociedade como um todo, impactando na economia, seguridade social, educação, entre outros aspectos, atingindo de forma mediata os direitos dos demais brasileiros.
Frente a isso, espera-se que, no julgamento do mérito da ADPF 347, o STF reconheça o estado de coisas inconstitucional que vige no Brasil. Nesse sentido, é mister que a Suprema Corte, em respeito à dignidade da pessoa humana, tome as medidas necessárias de modo a amenizar as inconstitucionalidades patentes ocorridas no sistema carcerário. Seria o primeiro passo na concretização dos direitos previstos na Carta Magna de 1988.
Em um Estado Democrático de Direito, não se pode admitir que o órgão guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, despreze os ditames do texto constitucional e lhes dê sentido diverso, rejeitando os pedidos da ADPF 347, sob pena de afronta ao bloco de constitucionalidade no qual o ordenamento jurídico pátrio está inserto.
8.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Reunião Especial de Jurisdição. 2017. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/02/b5718a7e7d6f2edee274f93861747304.pdf> Acesso em 12 out 2017.
[2] BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43620/4469. Acesso em 15 jun 2017.
[3] GARCIA, Bruna Pinotti; Lazari, Rafael de. Manual de Direitos Humanos. Salvador: ed. Juspodivm. 2014. P.74.
[4] BAHIA, Flavia. Descomplicando Direito Constitucional. 3.ed. Recife: ed. Armador. 2017. P. 102.
[5] SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39.ed. São Paulo: Saraiva, 2016. P. 185.
[6] ADPF 45 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.04.2004, DJ 04.05.2004.
[7] STF, RE 639.637. AgR. Rel. Min. Celso de Mello. 15.09.2011.
[8] BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. P. 203.
[9] MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas. 2010. P. 72.
[10] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004. P 189.
[11] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: ed.
Forense, 2008. P. 147.
[12] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado. Vol 1. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. P. 604.
[13] AZEVEDO, Marcelo André de; SALIM, Alexandre. Direito Penal. Parte Geral. 5. ed. Salvador: ed. Juspodivm. 2015. P.364.
[14] STF HC 70362
[15] CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de Coisas Inconstitucional. Salvador: Juspodium, 2016. P 57 e 58.
[16] CUNHA JR., Dirley. Estado de Coisas Inconstitucional. Disponível em <https://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/264042160/estado-de-coisas-inconstitucional> Acesso em 11 ago 2017.
[17] Info 798 STF.
Conciliadora no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2016). Pós-graduanda em Direito Constitucional pelo Instituto Elpídio Donizetti (2017).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEMOS, Milena Tenório de. Estado de coisas inconstitucional e a dignidade da pessoa humana: experiência do sistema carcerário brasileiro e a ADPF 347 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 out 2020, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55340/estado-de-coisas-inconstitucional-e-a-dignidade-da-pessoa-humana-experincia-do-sistema-carcerrio-brasileiro-e-a-adpf-347. Acesso em: 23 dez 2024.
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