Resumo: O presente artigo objetiva estudar a função consultiva dos Tribunais de Contas, na qual são dirimidas dúvidas de gestores públicos, em situações sempre aventadas em tese. No exercício dessa função, invariavelmente é necessária uma apreciação do objeto da dúvida em face da Constituição Federal, o que denota uma proximidade do procedimento com o controle concentrado de constitucionalidade. A matriz teórica utilizada neste artigo será a proposta por Jürgen Habermas, de forma que será analisada a concepção deste sociólogo acerca da democracia deliberativa. O problema a ser respondido nesta pesquisa é: quais instrumentos de participação, em uma perspectiva de democracia deliberativa, poderiam ser utilizados pelos Tribunais de Contas no exercício de sua função consultiva? A hipótese, que se confirmou, é que a possibilidade de participação de amicus curiae e a realização de audiências públicas, nos procedimentos de consulta, seriam formas de se democratizar a função consultiva, em uma perspectiva deliberativa. O método de abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo, a fim de verificar a confirmação da hipótese. O método de procedimento será o monográfico e as técnicas de pesquisa consistirão em pesquisas bibliográficas e a jurisprudenciais.
Palavras-chave: Audiências Públicas; Amicus Curiae; Democracia Deliberativa; Função Consultiva.
Abstract: This paper aims to study the consultative function of the Court of Accounts, in which questions about public managers are answered in theoretical situations. Invariably an appreciation of the issue in relation to the Federal Constitution, which means the procedure is near to concentrated control of the constitutionality. The theoretical origin used in this paper will be Jürgen Habermas’ proposal, since this sociologist’s conception about deliberative democracy will be analysed. The problem to be solved in this study is: from the perspective of deliberative democracy, which instruments of participation could the Court of Accounts use in its consultative function? The assumption held in here is that the possibility for amicus curiae participation and the accomplishment of public audience in consulting services would be ways to democratise the consultative function from a deliberative perspective. The method of approach was the hypothetico-deductive one and we will conduct bibliographic and jurisprudence on a monograph.
Keywords: Amicus Curiae; Consultative Function; Deliberative Democracy; Public Audiences.
Notas introdutórias
A democracia deliberativa em Jürgen Habermas parte de premissas que serão observadas e contextualizadas no presente artigo, em especial para possibilitar uma correlação com a função consultiva dos Tribunais de Contas da federação brasileira. Partindo de uma ideia de democratização da Administração Pública, propõe-se a utilização de contribuições da teoria habermasiana, como forma de pluralização dos participantes e dos argumentos aventados nas consultas formuladas às Cortes de Contas.
A função consultiva dos Tribunais de Contas será esclarecida no primeiro capítulo deste artigo, cabendo adiantar que, por meio desse procedimento, se objetiva esclarecer o consulente acerca de dúvidas relacionadas à matéria objeto de jurisdição do Órgão de Controle Externo. Invariavelmente, conforme se demonstrará, será necessária uma apreciação da consulta em face da Constituição Federal, haja vista a vinculação que a Administração Pública possui, em seu agir, com as normas constitucionais. Nesse sentido, será possível verificar uma aproximação entre o procedimento em estudo e o controle concentrado de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário.
A seguir, no segundo capítulo, será desenvolvida a possibilidade de democratização das consultas respondidas pelos Tribunais de Contas, valendo-se dos aportes teóricos de Jürgen Habermas e sua concepção de democracia deliberativa. A fim de contextualizar, cabe registrar que Jüngen Habermas é um filósofo e sociólogo alemão, cuja gênese acadêmica está imbricada com a segunda geração da Escola de Frankfurt, que desenvolveu sua matriz teórica a partir de uma crítica à racionalidade construída na modernidade, sendo que a complexidade de seu pensamento possui significativa influência no direito, hodiernamente. Assim sendo, conforme se detalhará adiante, Habermas elabora uma nova teoria da racionalidade (comunicativa), que se distancia de paradigmas transcendentais e metafísicos ou daqueles fundados na filosofia do sujeito cognoscente, de forme que o pensador alemão, a partir de um paradigma linguístico-pragmático, viável após a guinada linguística, desenvolve a concepção de que a linguagem possui a relevante função de ser o meio de justificação argumentativa da legitimação do próprio direito, o que enseja o estudo dos discursos de fundamentação e aplicação.
O terceiro capítulo procura vislumbrar dois mecanismos de participação da sociedade ou de outras instituições estatais no procedimento de consulta, quais sejam: as audiências públicas e o amicus curiae. Não se pretende neste trabalho o aprofundamento das raízes históricas desses institutos, mas sim a viabilidade de suas implementações nos procedimentos em estudo, em uma perspectiva de democracia deliberativa, pautada na inclusão e na argumentação discursiva.
O problema a ser solvido, portanto, é: quais instrumentos de participação, em uma perspectiva de democracia deliberativa, poderiam ser utilizados pelos Tribunais de Contas no exercício de sua função consultiva.
A resposta ao problema proposto tem por objetivo a identificação da possibilidade de democratização da função consultiva dos Tribunais de Contas, em uma perspectiva deliberativa, valendo-se dos aportes teóricos de Jürgen Habermas. Assim, o estudo em tela envolve a compreensão da função consultiva, a importância de sua democratização e a proposta de utilização de mecanismos que poderiam concretizar a proposta habermasiana.
A hipótese é que uma abertura em relação à participação, nos procedimentos de consulta dos Tribunais de Contas, por meio de audiências públicas e amicus curiae podem ser uma forma de implementação de pressupostos da democracia deliberativa.
Em relação às diretrizes metodológicas, será utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo, a fim de verificar a confirmação ou não dá hipótese. O método de procedimento será o monográfico e as técnicas de pesquisa consistirão em pesquisas bibliográficas e a jurisprudenciais.
Compreende-se que o presente estudo se justifica para a sociedade e à Administração Pública, pois visa um procedimento inclusivo em uma importante atribuição das Cortes de Contas, em uma perspectiva de pluralização argumentativa dos debates. Justifica-se, ademais, para o direito, visto que aprofunda a compreensão acerca de competências de um órgão de matriz constitucional.
2.Identificando a função consultiva dos Tribunais de Contas
Os Tribunais de Contas são órgãos autônomos que exercem competências constitucionais atreladas ao ofício do controle externo da Administração Pública, sendo disposto no artigo 71 da Constituição da República que o Congresso Nacional é o titular do Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União[1] (BRASIL, 1988). Cumpre esclarecer, todavia, que a expressão “auxílio”, utilizada pelo legislador constituinte, poderia levar à conclusão de que há uma relação de subordinação entre os Tribunais de Contas e o Poder Legislativo. Todavia, as Cortes de Contas têm suas próprias competências, definidas, inclusive, no mesmo texto constitucional, que não se confundem com aquelas previstas para o Congresso Nacional, de forma que não se vislumbra uma relação hierarquizada, sendo que as decisões emanadas dos Tribunais de Contas poderão subsidiar a tomada de decisão do Poder Legislativo, no exercício de suas atividades de controle externo (AGUIAR; AGUIAR, 2008).
Desta forma, analisando as competências constitucionais próprias dos Tribunais de Contas, constata-se que a função consultiva não está expressamente positivada no texto constitucional, sendo invariavelmente prevista, contudo, nas leis orgânicas e regimentos internos dos tribunais em tela, como exemplificativamente regrado no âmbito do Tribunal de Contas da União. A Lei Federal n° 8.443, de 16 de julho de 1992, assim dispõe:
Art. 1° Ao Tribunal de Contas da União, órgão de controle externo, compete, nos termos da Constituição Federal e na forma estabelecida nesta Lei:
[...]
XVII - decidir sobre consulta que lhe seja formulada por autoridade competente, a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, na forma estabelecida no Regimento Interno. (BRASIL, 1992).
O Regimento Interno da Corte de Contas da União, por sua vez, assim regulamenta a função consultiva:
Art. 264. O Plenário decidirá sobre consultas quanto a dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes à matéria de sua competência, que lhe forem formuladas pelas seguintes autoridades:
I – presidentes da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal;
II – Procurador-Geral da República;
III – Advogado-Geral da União;
IV – presidente de comissão do Congresso Nacional ou de suas casas;
V – presidentes de tribunais superiores;
VI – ministros de Estado ou autoridades do Poder Executivo federal de nível hierárquico equivalente;
VII – comandantes das Forças Armadas.
§ 1º As consultas devem conter a indicação precisa do seu objeto, ser formuladas articuladamente e instruídas, sempre que possível, com parecer do órgão de assistência técnica ou jurídica da autoridade consulente.
§ 2º Cumulativamente com os requisitos do parágrafo anterior, as autoridades referidas nos incisos IV, V, VI e VII deverão demonstrar a pertinência temática da consulta às respectivas áreas de atribuição das instituições que representam.
§ 3º A resposta à consulta a que se refere este artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento da tese, mas não do fato ou caso concreto.
§ 4º A decisão sobre processo de consulta somente será tomada se presentes na sessão pelo menos sete ministros, incluindo ministros-substitutos convocados, além do Presidente.
Art. 265. O relator ou o Tribunal não conhecerá de consulta que não atenda aos requisitos do artigo anterior ou verse apenas sobre caso concreto, devendo o processo ser arquivado após comunicação ao consulente. (BRASIL, 2002).
Assim sendo, a despeito de não existir expressa previsão constitucional, a função consultiva se caracteriza como uma das mais importantes atribuições das Cortes de Contas, haja vista seu papel esclarecedor de dúvidas dos gestores públicos, em áreas afetas à fiscalização contábil financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, consubstanciando uma forma de prevenção de cometimento de irregularidades ou atos contrários ao ordenamento jurídico, em virtude de dúvidas dos administradores públicos, fazendo com que esta atividade complementar ao controle externo, muitas vezes, esteja caracterizada de essencialidade em face da falta de estrutura de alguns entes da federação, como carência de qualificação profissional e administrativa (MILESKI, 2011).
Ressalta-se que a Suprema Corte já reconheceu a função consultiva do Tribunal de Contas da União, conforme decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.691-7/DF:
O artigo 1°, § 2°, da Lei n° 8.443/1992 – Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, é expresso no sentido de a resposta à consulta ter caráter normativo e constituir prejulgamento da tese, razão aliás, por que essa Corte de Contas determinou a remessa de cópia das Decisão em causa ao Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado para que, evidentemente, fosse observada por toda a Administração Pública. É, portanto, a Decisão em causa ato normativo susceptível de controle de constitucionalidade por meio de ação direta. (BRASIL, 1997).
Ao responder uma consulta, como afirmado introdutoriamente, os Tribunais de Contas, como qualquer órgão estatal, deverão analisar a questão a partir do paradigma constitucional, sendo inviável, nesse sentido, não se apreciar a constitucionalidade da dúvida no procedimento em tela. Portanto, é possível concluir que há uma aproximação entre o controle concentrado de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário e a função consultiva, pois ambas ocorrem em abstrato e envolvem a apreciação de leis em face das Constituição Federal.
Portanto, partindo do exemplo da função consultiva desempenhada pelo Tribunal de Contas da União, constata-se a possibilidade de exame de preceito normativo em tese no procedimento em estudo (JACOBY FERNANDES, 2016).
Ressalta-se que a possibilidade de apreciação da constitucionalidade de leis está prevista na Súmula n° 347 do Supremo Tribunal Federal: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público” (BRASIL, 1963).
A apreciação em tese da constitucionalidade de leis pelo Tribunal de Contas não está apta a retirar a validade da lei, como pode ocorrer no controle abstrato de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário, mas garante que a aplicação (ou não aplicação) da norma respeito o texto constitucional, conforme assinala a doutrina:
Não pretende o Tribunal de Contas julgar a constitucionalidade de lei com o mesmo objetivo do Excelso Supremo Tribunal Federal. O Supremo julga leis, dizendo de seu valor objetivo em nosso ordenamento jurídico. Vale dizer, a competência do Supremo Tribunal Federal abrange a própria lei, emprestando-lhe validade, ou suprimindo a sua existência no campo da realidade jurídica. O Tribunal de Contas, por outro lado, aprecia a constitucionalidade. Não é o fato de ser incidental, ou não, que retira a faculdade do julgamento, o que importa é que o efeito decorrente deste, diversamente do que o Supremo Tribunal impõe, é tão-somente o de conduzir a interpretação da lei a parâmetros centrados na Constituição Federal, sem, de fato, implicar efeito objetivo sobre a norma (JACOBY FERNANDES, 2016 p. 317).
Nesse ponto, cabe trazer o entendimento de Habermas acerca do controle de constitucionalidade, que, pelo menos no tocante à função de proporcionar clareza ao direito e coerência normativa, entende-se que há uma harmonia com os objetivos da função consultiva em tela:
Pouco importa como nos posicionamos em relação à questão da institucionalização adequada dessa interpretação da constituição, que diz respeito diretamente à atividade do legislativo: a concretização do direito constitucional, através de um controle judicial de constitucionalidade serve, em última instância, para a clareza do direito e para a manutenção de uma ordem jurídica coerente. (HABERMAS, 2012, p. 302).
O que importa dessa digressão, para a pesquisa que aqui se propõe, é salientar que a democratização da função consultiva das Cortes de Contas se mostra elementar ao se considerar que o procedimento em estudo envolve a apreciação da dúvida suscitada pelos consulentes, sendo sempre necessária uma análise em face da Constituição Federal. Nesse sentido, a seguir serão desenvolvidas as contribuições da democracia deliberativa, consoante a teoria proposta por Jürgen Habermas.
3. Democratização das consultas dos Tribunais de Contas em uma perspectiva deliberativa
O estudo da democracia deliberativa, conforme proposto por Habermas, exige compreensões preliminares no sentido de que a sua matriz teórica, o pragmatismo linguístico, não se coaduna com os idealismos platônicos ou com a filosofia da consciência.
Em apertada síntese, podem ser observados três paradigmas que são estudados para compreensão do mundo. Assim, segundo o paradigma ontológico, que pode encontrar representação na filosofia de Platão e Aristóteles, há uma precedência do ser sobre a linguagem, sendo a concepção de mundo verificada em essências ou suposições metafísicas. No paradigma mentalístico, subsequente em uma análise histórica, a partir de Descartes e Kant, o pensamento é o elemento central, no qual o sujeito aprende o objeto por intermédio da sua mente. Em ambos paradigmas, a linguagem apresenta uma função meramente instrumental, de designação de coisas ou transmissão de conhecimento (ALMEIDA; RECK, 2013).
Ademais, a razão científica, conforme crítica de Adorno e Horkeimer, passa a ser uma nova espécie de divindade, de forma que é observada uma racionalização das relações sociais, a qual:
[...] sistematiza, especializa, diferencia, procedimentaliza e compartimentaliza num nível tão cientificizado e pretensamente imparcial o espaço e as formas de coordenação das interações vitais cotidianas – interações estas que compõem o que Habermas denomina Lebenswelt, do alemão “mundo da vida” -, que acaba por criar Sistemas funcionais de ação autônomos que se desacoplam do mundo da vida, porém gradativamente subordinam-no”. (BLOTTA, 2010, p. 25).
Portanto, com a guinada linguística, o terceiro paradigma, a linguagem deixa de ser instrumental para ser o meio constitutivo do saber, contexto no qual Habermas desenvolve sua teoria da ação comunicativa, que envolve a teoria do discurso, da qual o direito se vale, sendo a comunicação, na forma proposta pelo sociólogo em tela, uma forma de se alcançar um entendimento de forma abrangente (ALMEIDA; RECK, 2013).
O uso da linguagem como forma de entendimento parte de uma intersubjetividade da práxis linguística, de sorte que não sobra espaço, nessa perspectiva comunicativa proposta por Habermas, para um monólogo solitário da subjetividade, sendo indispensável que aquela comunicação ocorra de forma não instrumental, cuja validade das decisões não prescindem a interações entre sujeitos participantes orientados ao entendimento por meio de atos de fala (BOLZAN, 2005).
Retornando brevemente à função consultiva das Cortes de Contas, já sob à luz da teoria em estudo, pode se concluir que não haveria espaço para decisões fundamentadas em noções metafísicas ou decididas de forma solipsista, que desconsideram a intersubjetividade e o entendimento por meio da linguagem.
Desta forma, ao formular sua ética do discurso, Habermas compreende que uma razão comunicativa se mostra como alternativa para decisões centradas na razão de um determinado sujeito, afastando a compreensão solipsista da filosofia moderna, na qual a autoridade está no sujeito e não na racionalidade argumentativa, cuja força cogente só poderia ser exposta em processos comunicativos, nos quais o ser humano busca o entendimento com quem dialoga, contrapondo-se a uma ação estratégica (SOUZA NETO, 2006).
A proposta habermasiana de ação comunicativa que visa o entendimento mútuo, por meio da linguagem, por intermédio de um processo discursivo, sendo que essa ação social se contrapõe a uma ação estratégica, a qual se caracteriza por envolver a comunicação somente daqueles que atuam com a finalidade de realizar seus próprios interesses (BANNEL, 2006). O direito, nesta perspectiva, a partir da consideração do outro, não é mais percebido como o resultado das fontes de poder, que é válido simplesmente porque observou requisitos formais de validade jurídica e com abstração do seu conteúdo (ALMEIDA; RECK. 2013).
Na ação comunicativa são apontadas pretensões de validade (inteligibilidade, verdade correção e veracidade), sendo que, ocorrendo uma problematização quanto às pretensões de validade relacionadas à cada ato de fala, surge a necessidade de, por meio do discurso, se realizar uma fundamentação argumentativa (ALMEIDA, RECK, 2013).
O discurso jurídico é uma espécie de discurso prático, que deve, portanto, observar o princípio do discurso, conhecido como “D”, que nas palavras de Habermas, significa: “São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2012, p. 142).
O princípio democrático está incluído no princípio do discurso, quando institucionalizado pelo direito:
Ainda, diga-se que a observação dos discursos não poderá ser feita senão considerando o princípio democrático, motivo pelo qual, obrigatoriamente, é necessário vislumbrar, ainda que brevemente, o que é a democracia no conceito da teoria pragmática e como ela opera, para então discorrer sobre os discursos de fundamentação e aplicação. Para Habermas, o princípio democrático está inserido no princípio do discurso e vem ao encontro da necessidade da integração social a partir do entendimento mútuo e não mais mediante a autoridade de fundamentos metafísicos. O pluralismo, característico desse momento histórico, requer ampla discussão e debate acerca dos conteúdos, dos conceitos e das práticas da comunidade, que será afetada individual e coletivamente. Nesse aspecto, as normas sociais que até poderiam ser observadas, de certa forma, simplesmente pelo fato de existirem, serão colocadas à discussão na esfera pública e em torno delas discutirão sua pretensão de validade. Dito de outro modo: a validade que antes era dada por outros meios, como autoridade, carisma, religião passa a ser dada através de sua fundamentação, pois nesse processo de agir comunicativo voltado ao entendimento mútuo é que ocorre a integração social. (BITENCOURT; RECK, 2015, p. 27).
Ou seja, para Habermas, a moral e o direito valem-se do princípio do discurso. Todavia, considerando que são esferas normativas distintas, o direito, que se mostra como uma tensão permanente entre facticidade e validade, é regido pelo princípio da democracia e possui o papel de integrador social nas atuais sociedades. (XIMENES, 2010).
Klaus Günther, discípulo de Habermas, entende que nos discursos de fundamentação é a própria norma que deve ser acentuada, não conjecturando a aplicação concreta, diante da particularidade de cada situação, sendo relevante se é do interesse de todos observar a regra. Diferentemente, no discurso de aplicação, a particularidade de cada uma das situações é relevante (GÜNTHER, 2011).
Assim sendo, Günther elabora uma diferenciação entre o princípio da universalização, ou “U”, em uma versão forte ou fraca.
Uma norma é válida e, em qualquer hipótese, adequada, se em cada situação especial as consequências e os efeitos colaterais da observância geral desta norma puderem ser aceitos por todos, e considerados os interesses de cada um individualmente.
[...]
Uma norma é válida se as consequências e os efeitos colaterais de sua observância puderem ser aceitos por todos, sob as mesmas circunstâncias, conforme os interesses de cada um, individualmente. (GÜNTHER, 2011, p. 29-30).
Conclui-se então que o procedimento de consulta dos Tribunais de Contas, ao apreciar a constitucionalidade de uma lei, diante da matriz teórica proposta, e até mesmo pela proximidade com um controle abstrato de constitucionalidade, exige um retorno ao discurso de fundamentação, respeitando o princípio democrático e valendo-se do princípio da universalização, na sua versão fraca, em virtude de sua abstração e generalidade.
Henning Leal esclarece aspectos da teoria do discurso:
Neste sentido, a “teoria do discurso” sustenta que a conformação da vontade democrática e sua força legitimadora não derivam de uma convergência prévia de convicções éticas, mas sim de pressupostos comunicativos e de procedimentos que, no processo deliberativo, permitem que os melhores argumentos venham à tona. Consequentemente, o procedimento democrático não pode mais retirar sua força legitimadora do acordo prévio de uma comunidade ética pressuposta, senão somente de si mesmo. (HENNING LEGAL, 2007, p. 138).
No modelo de democracia proposto por Habermas, entre argumentos e contra-argumentos é possível observar uma tensão dialética, que tem por fim racionalizar o processo deliberativo, sendo indispensável a liberdade e a igualdade na participação argumentativa, sob pena de se exaurir a legitimação das deliberações, sendo necessário que o Estado, por meio do direito, garanta o processo de inclusão da opinião e vontades públicas (OLIVEIRA, 2015). O modelo democrático em pauta busca a conciliação entre a soberania popular e o estado de direito, sendo imprescindível a existência de direitos fundamentais para que ocorra uma formação livre da vontade, inclusive com a garantia da participação de minorias, competindo ao estado de direito a manutenção de um equilíbrio entre os participantes do debate público, para formação discursiva da vontade coletiva, sendo necessário o estabelecimento de condições procedimentais de democracia (SOUZA NETO, 2006).
Habermas ressalta elementos da teoria do discurso que diferem a democracia deliberativa, por ele proposta, das alternativas liberais ou comunitaristas:
A teoria do discurso, que obriga ao processo democrático com conotações mais fortemente normativas do que o modelo liberal, mas menos fortemente normativas que o modelo republicano, assume por sua vez elementos de ambas as partes e os combina de uma maneira nova. Em consonância com o republicanismo, ele reserva uma posição central para o processo político de formação da opinião e da vontade, sem, no entanto, entender a constituição jurídico-estatal como algo secundário; mais que isso, a teoria do discurso concebe os direitos fundamentais e princípios do direito como uma resposta consequente à pergunta sobre como institucionalizar as exigentes condições de comunicação do procedimento democrático. A teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da institucionalização dos procedimentos que lhes digam respeito. (HABERMAS, 2007, p. 288).
Assim sendo, o fundamental na teoria democrática de Habermas é que os cidadãos, ao participarem do processo deliberativo, possam agir em condições de liberdade e igualdade, não se exigindo cidadãos permanentemente engajados na política, como no modelo republicano (SOUZA NETO, 2006).
4.Audiências Públicas e Amicus Curiae: propostas para uma democracia deliberativa nos procedimentos de consulta
Diante do exposto até o momento, acerca da democracia deliberativa, é possível a reflexão acerca da institucionalização de procedimentos, no âmbito da função consultiva das Cortes de Contas, que possibilitassem a criação de discursos argumentativos e a ampliação dos sujeitos participantes.
Habermas aduz que a formação democrática da vontade, em uma perspectiva discursiva, não possui legitimidade a partir de convicções éticas consuetudinárias, pois são os pressupostos comunicativos e os procedimentos que farão com que os melhores argumentos surjam, no decorrer de uma deliberação (HABERMAS, 2012).
A figura do amicus curiae está prevista na Lei Federal n° 9.868, de 10 de novembro de 1999, que regulamenta o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade:
Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
[...]
§ 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.
O Supremo Tribunal Federal trouxe elementos importantes ao se debruçar acerca da efetivação do amicus curiae, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 2.321-7-MC/DF, na qual o voto do Ministro Celso de Melo asseverou que esta forma de intervenção processual:
[...] tem por objetivo pluralizar o debate constitucional, permitindo, desse modo, que o Supremo Tribunal Federal venha a dispor de todos os elementos informativos possíveis e necessários à resolução da controvérsia, visando-se, ainda, com tal abertura procedimental, superar a grave questão pertinente à legitimação democrática das decisões emanadas desta Suprema Corte, quando no desempenho de seu extraordinário poder de efetuar, em abstrato, o controle concentrado de constitucionalidade. (BRASIL, 2000).
As audiências públicas têm previsão legal na mesma norma referenciada para o instituto do amicus curiae:
Art. 9o Vencidos os prazos do artigo anterior, o relator lançará o relatório, com cópia a todos os Ministros, e pedirá dia para julgamento.
§ 1o Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
Cumpre observar que o controle objetivo de constitucionalidade, com o qual o procedimento de consulta guarda algumas semelhanças, é desprovido de partes ou contraditório. Nesse sentido, os participantes do discurso, exigidos pela teoria do discurso poderiam ser verificados na figura do amicus curiae, nos processos de controle de constitucionalidade, sendo que os melhores argumentos ventilados poderia colaborar com a racionalidade da decisão (FERRAZ, 2009).
As audiências públicas e a figura do amicus curiae se coadunam com a compreensão de que em um processo deliberativo a ampliação das formas de participação da sociedade torna mais legítima e democrática a formação de uma decisão que terá reflexos sobre todos (OLIVEIRA, 2015).
Nesse sentido, Oliveira ainda contribui com a temática ao tratar da jurisdição constitucional:
Habermas não traz um conceito de legitimidade pautado apenas pela legalidade, mas sim no fato de o procedimento corresponder com a prática discursiva, ou seja, não basta o procedimento – tão importante quanto ele é a sua justificação.
Percebe-se, pois, que as ideias trazidas por Habermas pregam a valorização do respeito ao campo correto para a construção do procedimento, o Legislativo, e a legitimidade advinda deste, desde que justificada, consentida.
Então, trazendo para a jurisdição constitucional concentrada, o procedimento para a sua realização foi construído pelo Legislativo e lá mesmo já houve a previsão para a sua abertura cognitiva com a realização de audiências públicas e a permissão da participação do amicus curiae, isso com vistas a justificar, socialmente, uma decisão trazida por onze ministros do STF, que deverá ser cumprida por toda a sociedade. (OLIVEIRA, 2015, p. 89).
Ferraz, em breve e percuciente estudo acerca da adoção da figura do amicus curiae nas Cortes de Contas, constata que a ampliação das vias de participação dos prováveis afetados ou destinatários das decisões funcionaria como indutor de legitimidade da jurisdição dos Tribunais de Contas, proporcionando um valor qualitativo nos argumentos que serão levados em consideração pelos julgadores (FERRAZ, 2009).
O mesmo autor ainda vislumbra a possibilidade de adoção dessa forma de participação de terceiros em procedimentos de consulta ou de uniformização de jurisprudência:
Sem pretensões últimas, trazendo o debate para a seara específica do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais — que recentemente consolidou nova sistemática de competências, estruturação e funcionamento com a edição da Lei Orgânica do TCEMG, posteriormente regulamentada com a publicação do Regimento Interno —, e partindo da necessária premissa de um sentido amplo da ideia de repercussão e relevância da matéria tratada, vislumbra-se, neste primeiro momento, que o potencial legitimador da figura poderia ser perfeitamente utilizado em sede de consultas e incidentes de uniformização de jurisprudência. (FERRAZ, 2009, p. 60-61).
Assim sendo, as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, em respostas às consultas formuladas, ou seja, no exercício de sua função consultiva, poderiam fazer parte de um processo deliberativo e inclusivo, que promovesse a participação da sociedade ou de outros órgãos da Administração Pública neste debate argumentativo.
A regulamentação desses institutos, por meio de um procedimento, se coadunaria com a perspectiva pluralista da sociedade e com a ampliação dos espaços de argumentos ventilados no âmbito das consultas.
Notas conclusivas
No presente estudo identificou-se, inicialmente, a função consultiva dos Tribunais de Contas, que significam uma importante forma de orientação aos gestores públicos acerca do correto agir, diante de uma dúvida suscitada. Ademais, constatou-se que, invariavelmente, para se formular uma resposta aos consulentes, as Cortes de Contas devem apreciar as dúvidas em face da Constituição Federal, o que aproxima essa apreciação em tese de constitucionalidade do controle concentrado de constitucionalidade realizado pelo Poder Judiciário, sem descurar de suas peculiaridades.
Concluiu-se também, analisando a função consultiva a partir dos pressupostos teóricos de Habermas, acerca da teoria do discurso e da democracia deliberativa, que as Cortes de Contas, ao apreciar uma norma em tese, sobre sua constitucionalidade, devem retornar aos discursos de justificação e utilizar o princípio da universalização em sua forma fraca.
No quarto capítulo, foi possível confirmar a hipótese, de forma que a abertura democrática das decisões dos Tribunais de Contas, em sede de consulta, assegurando-se a participação de amicus curiae, assim como a realização de audiências públicas, seriam uma forma de propiciar a democratização dos procedimentos de consulta, harmonizando-se com elementos da teoria de democracia deliberativa proposta por Jürgen Habermas.
Referências
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[1] A própria Constituição Federal, cabe esclarecer, dispõe que as normas de referentes ao Tribunal de Contas da União, aplicam-se, no que couber, aos demais Tribunais de Contas da federação, no que tange à organização, composição e fiscalização.
Mestre em Direito (UNISC). Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Regimes Próprios de Previdência. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Público - CEISC-UNISC
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TRINDADE, Jonas Faviero. Democracia deliberativa e a função consultiva dos Tribunais de Contas: amicus curiae e audiências públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 out 2020, 04:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55343/democracia-deliberativa-e-a-funo-consultiva-dos-tribunais-de-contas-amicus-curiae-e-audincias-pblicas. Acesso em: 23 dez 2024.
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