RUBENS ALVES DA SILVA[1]
RESUMO[2]: Uma discussão está localizada no contexto de dois debates mais amplos no Brasil, que se caracterizam como constitucionais em caráter ou, pelo menos, como possuidores de propriedades constitucionais, no caso como Direito fundamental. O primeiro é o debate sobre o tratamento de grupos minoritários, o multiculturalismo e as mudanças nas percepções nas políticas públicas sobre o papel da religião na vida nacional. O segundo debate é ainda mais amplo e diz respeito à mudança nas abordagens do constitucionalismo no Brasil. Neste sentido, este artigo tem como objetivo geral, descrever os reflexos na sociedade de modo geral, da interferência com o uso das leis, na garantia da liberdade de crenças religiosas no Brasil, além de especificamente, conhecer os significados das crenças e seu efeito na alma da sociedade brasileira; analisar o que determina as leis quanto a proteção do direito ao exercício das crenças religiosas no Brasil; e, analisar os atos práticos das instituições na garantia do livre exercício das crenças religiosas e as fragilidades dessas garantias. Desta forma. Sugere-se que, com a chegada da Declaração dos Direitos Humanos de 1948, o Brasil viu uma mudança de uma abordagem pragmática do pensamento constitucional, no qual o compromisso legislativo desempenhou um papel fundamental, para o reconhecimento de certos aspectos constitucionais, permitindo que o judiciário amplie enormemente seu papel na proteção dos direitos individuais, ao mesmo tempo em que exige que os juízes articulem uma base de princípios para fazê-lo. O que justifica este trabalho. Assim este estudo foi construído do apoio do aporte bibliográfico em livros e artigos acadêmicos que tratam do tema. Conclui que, o princípio da igualdade desempenha um papel importante na questão da liberdade de credo no Brasil.
Palavras-chave: Religião. Direitos Fundamentais. Liberdade de Credo.
ABSTRACT: A discussion is located in the context of two broader debates in Brazil, which are characterized as constitutional in character or, at least, as possessing constitutional properties, in this case as a fundamental right. The first is the debate on the treatment of minority groups, multiculturalism and changes in perceptions in public policies about the role of religion in national life. The second debate is even broader and concerns the change in approaches to constitutionalism in Brazil. In this sense, this article has the general objective of describing the reflexes in society in general, of the interference with the use of laws, in guaranteeing the freedom of religious beliefs in Brazil, in addition to specifically knowing the meanings of beliefs and their effect on soul of Brazilian society; to analyze what determines the laws regarding the protection of the right to exercise religious beliefs in Brazil; and, to analyze the practical acts of the institutions in guaranteeing the free exercise of religious beliefs and the weaknesses of these guarantees. Thus. It is suggested that, with the arrival of the 1948 Declaration of Human Rights, Brazil saw a change from a pragmatic approach to constitutional thinking, in which legislative commitment played a key role in recognizing certain constitutional aspects, allowing the judiciary to greatly expand its role in protecting individual rights, while requiring judges to articulate a foundation of principles to do so. What justifies this work. Thus, this study was built on the support of bibliographic input in books and academic articles dealing with the theme. It concludes that the principle of equality plays an important role in the issue of freedom of belief in Brazil.
Keywords: Religion. Fundamental rights. Freedom of Creed.
1 INTRODUÇÃO
O interesse por essa tema surgiu da preocupação com os resultados práticos obtidos do diálogo entre ciência da religião e a teologia como uma ação coletiva, conforme apregoado pelo apóstolo Paulo em suas cartas as diversas comunidades cristãs primitivas, no seio da sociedade construída dentro dos princípios de liberalismo, que a partir de 1945 se renovou (neoliberalismo), mas guardou os preceitos e características de seu antecessor, modelo.
A noção da existência do outro é um dos elementos que constitui a natureza humana, capaz de estabelecer as diferenças entre os sujeitos, passaporte, aliás, indispensável à organização da identidade de todos. É no outro e a partir do outro que se afirmou a mensagem das religiões. O outro, também sujeito, é necessário para dizer da diferença, a qual garante a saudalidade da vida que não se padroniza. Assim, pois, a questão da diferença e da exclusão na perspectiva teológica se concretiza? O que, na vivência das diferentes religiosidades, há a dizer sobre modos inclusivos de conviver com a diferença? Diferenças de dentro e diferenças de fora.
No caso brasileiro, o campo constitucional, a religião sempre esteve presente. Na Constituição do Império, a ramificação católica do cristianismo era o segmento oficial ditado na Constituição. A partir do advento da República, profundamente identificada com a filosofia positivista[3] e na Revolução Francesa que separou Estado e religai, criando a figura do Estado laico. Mas, apesar de separar o Estado da religião, os textos constitucionais, a partir de 1891, garantiram a liberdade de credo no Brasil.
Assim, diversas construções constitucionais (1891, 1934, 1937, 946, 1967 e 1988) passaram a conviver com as práticas religiosas diferentes, surpreendentes em suas manifestações e, estiveram foram dos padrões legais até então. Neste sentido, apesar da garantia constitucional de liberdade religiosa, desde a constituição de 1891, indaga-se: Qual o nível de tolerância religiosa que se estabeleceu no Brasil a partir da Constituição de 1891? Qual sua capacidade que os textos constitucionais da República do Brasil, tiveram de contemplar as diferenças culturais, por exemplo, e de compreender as manifestações da religiosidade circunstanciada nessa categoria? Para responder a esses questionamentos foram traçados o seguintes objetivos. Objetivo geral: descrever os reflexos na sociedade de modo geral, da interferência com o uso das leis, na garantia da liberdade de crenças religiosas no Brasil, além de especificamente, conhecer os significados das crenças e seu efeito na alma da sociedade brasileira; analisar o que determina as leis quanto a proteção do direito ao exercício das crenças religiosas no Brasil; e, analisar os atos práticos das instituições na garantia do livre exercício das crenças religiosas e as fragilidades dessas garantias.
Assim, todas as Constituições do Brasil a partir da primeira Constituição da República de 1891 incorporam princípios de igualdade, de liberdade, princípios aliás der todas as religiões do mundo ao lado dos princípios de caridade, de solidariedade e, certamente de fraternidade, mas, antes de tudo é necessário dizer que não há uma teologia, mas várias, o que já estabelece a diferença. Todas são tentativas de expressar formas de entendimento sobre a relação de Deus como os humanos. E essa relação, no campo legal está protegida pelas Cartas Constitucionais, no Brasil consubstanciadas pelas variantes sobre o entendimento desta questão.
Nas sociedades primitivas brasileiras, neste caso faz-se referência as nações indígenas de um modo geral, cada povo, vivem harmoniosamente, no respeito mútuo, pois, todos comungam das mesmas tradições, às quais, também, são incorporadas como leis, tanto espirituais, quanto morais no convívio diário. Imaginemos que se de um momento para outro, essas pessoas fossem impedidas de realizarem seus rituais xamânicos, dentre eles, suas danças, os cantos evocativos e narrativos das origens dos seus deuses e heróis, certamente veríamos acontecimentos inesperados como uma guerra interna ou a morte espiritual e a identidade de um povo. Essa referência, serve como alusão para o que viria a ser ou se tornar a sociedade, caso ela fosse impedida de livremente, manifestar suas crenças.
As leis que regeram os povos antigos, assim como nas sociedades modernas, foram construídas a partir das suas tradições, mitos e ritos, porém, o que notamos neste século é o rompimento do elo que liga aqueles que fazem, aplicam e mantem as leis em curso, para aqueles que numa esfera inferior, são abarcados por essas leis no dia a dia. Pois o povo quase na sua totalidade, não tem se identifica com tais leis impostas o que tem sido um agravador de conflitos ao invés de garantidor ou contributivo para o convívio harmônico das pessoas em sociedade. Vale lembrar que quase todas as crenças estão embasadas nas relações interpessoais de cada ente e é essa relação que mantem viva sua esperança, o que justifica este trabalho.
Assim este foi realizado por revisão bibliográfica integrativa que é um apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestido de importância pela capacidade de fornecimento de dados atuais e relevantes relacionados com o tema. A pesquisa teve como metodologia fundamental o campo da revisão integrativa com aplicação do método de análise de conteúdo que busca estabelecer as correlações necessárias entre o que se encontra na bibliografia e sua relação com a realidade inferida.
Com isso, a revisão integrativa foi realizada com construções teóricas densas, complexas que, ao se particularizarem, se distanciam das demais, estabelecendo, a partir delas e de suas diferenças com elas, suas particularidades próprias.
2 RELIGIÃO E AS NORMAS JURÍDICAS
As teologias, por mais que sejam instigantes, não esgotam o fenômeno da relação entre o humano e o divino. Há mais, no campo do real. Há religiosidade no cotidiano da vida das pessoas que se plenificam por si mesmas porque alimentam as necessidades mais profundas e dão respostas mais desejadas.
As religiões segundo Kung (2014 p. 1730): “São todas as mensagens de salvação, que procuram responder às mesmas perguntas básicas das pessoas. Esta pergunta sobre os eternos problemas do amor e sofrimento culpa e reparação, vida e morte: donde vem o mundo e suas leis? Por que se nasce, e por que se deve morrer? O que governa o destino do indivíduo e da humanidade? Como se fundamenta a consciência moral e a existência de normas éticas?
Todas oferecem também caminhos semelhantes de salvação: caminhos na situação de penúria, sofrimento e culpa da vida terrena; indicação de caminhos para um procedimento correto e conscientemente responsável nesta vida, a fim de alcançar uma felicidade duradoura, constante e eterna, a libertação de todo o sofrimento, culpa e morte. (DURKHEIM, 2002).
Dentro desse contexto surge a ciência da religião como um movimento que ganhou maior expressão com as Revoluções do mundo do Oceano Atlântico, em particular a Revolução Francesa. Nesta a burguesia exaltou a liberdade nos planos políticos, religioso, econômico e social. Assim, o próprio avanço de filosofias materialistas (Existencialismo , Marxismo etc.), a expansão do Protestantismo, a crescente laicização do Estado e, segundo alguns a crise de instituições eclesiásticas, sempre concebidas na perspectiva de uma civilização ultrapassada, constituíram graves problemas ente ciência da religião, o sistema jurídico e a teologia (KUNG, 2014).
Classicamente, distinguem-se diversos tipos de diálogos. Assim, o primeiro tipo de diálogo se caracteriza por um interesse comum. No caso da teologia, da ciência da religião e do sistema jurídico: a historicidade da existência de Deus. Assim, neste diálogo possível que esses três campos se afirmam defendendo seus interesses. Assim tanto na ciência da religião, como na teologia, bem como Deus no campo jurídico é o interesse comum (LUCÁKS, 2015).
Essa proposição é admitida de modo implícito, tornando-se um pressuposto da consciência que redunda normalmente num diálogo que visa promover o interesse comum (LUCÁKS, 2015).
È evidente que existe uma concorrência entre os interesses que são ao mesmo tempo legítimos e, pelo menos em parte, opostos em um mecanismo fundamental. Então o diálogo deve ser difundido e utilizado para discutir s pressupostos utilitarista de cada uma, isto é, que age segundo seu próprio interesse, buscando sempre maximizar seu benefício próprio (SOUZA, 2014).
As diferentes estruturais e tradições históricas correspondem a diferentes representações, estratégias e ações por parte da ciência da religião, da teologia e do sistema jurídico. Alguns autores como Lukács (2015), notadamente, cabe o mérito de com rigor haverem interrogado a pertinência da série interesse comum-tomada de consciência, do interesse comum-diálogo, de modo geral, como evidente.
Em certos casos, a união ocorrerá, mas em outros, ainda que seja de interesse, ela não se fará. De um lado, porque ciência da religião e normas jurídicas, em certos casos, tem a possibilidade de recorrer, à defecção, preferindo-a a história. A existência de possibilidades de defecção contribui com frequência para explicar o fato de que o diálogo não se dê onde se esperava que ela se desenvolvesse e, de modo geral, a probabilidade de que o descontentamento se traduza em ato próprio é tanto menor quanto mais eficaz e menos custosa ela for (DURKHEIM, 2002).
Possibilidades limitadas de defecção não garantem o surgimento do diálogo, ou seja, de uma ação coletiva, mesmo quando há consciência do interesse comum. Os benefícios eventuais do diálogo entre ciência da religião e teologia não dependem de sua participação. É impossível, portanto, admitir, mesmo no caso em que tenha consciência do interesse comum, deva, em quaisquer circunstâncias, desenvolver um diálogo visando promover esse interesse comum (KUNG, 2014).
A existência de um interesse comum e a consciência desse interesse são condições necessárias, mas, em geral, não suficientes para a emergência do diálogo. Para que uma ação coletiva possa ocorrer é preciso que outras condições sejam preenchidas (LUCÁKS, 2015).
O segundo tipo de caso é aquele em que o diálogo é assegurado pela criação de mecanismos coercitivos, ou seja, no caso da ciência da religião, da teologia e do sistema jurídico, quando se usa modelo de coerção social para o convencimento. Que o processo de diálogo exerce uma coerção, ou antes, uma grande variedade de coerções, é pouco discutível. Infelizmente, esse termo, popularizado por Durkheim (2002), teve muitos empregos abusivos.
Alguns autores chegaram a dizer que a coerção era o único meio de ação coletiva da sociedade sobre seus membros. No campo do diálogo, essa tese leva-os a duas vias igualmente inaceitáveis. Ora, a coerção é definida de maneira tão ampla que faz abrigar, nessa denominação termos como influências, persuasão, introjeção. Pode-se então dizer que o diálogo age pela coerção (DURKHEIM, 2002).
Ora ela é considerada no sentido preciso e limitante de um determinismo físico. Neste caso, porém, se percebe que ela está bem longe de se aplicar a todas as situações de diálogo. No entender de Souza (2014, p. 56): O melhor modo de preservar a objetividade do diálogo seria ver nele uma interação de preferências subjetivas e intersubjetivas, mas um conjunto de dados subsistentes e resistentes, cujo aparecimento e desenrolar seriam regularmente previsíveis.
Durkheim (2002, p. 154), em a educação moral não se limita a essa concepção naturalista da coerção. Insiste na autonomia, que no caso é a autonomia da ciência da religião e a autonomia da teologia. Faz dela uma condição para o funcionamento da sociedade, condição cada vez mais estrita á proporção que a solidariedade orgânica vai substituindo a solidariedade mecânica. Por analogia, isso é o que ocorre com o diálogo.
O terceiro tipo de caso é aquele em que o diálogo é favorecida pela assimetria entre os interesses e recursos. Isso quer dizer que o interesse em assumir sozinhos os custos do diálogo, como ocorreu com o Apóstolo Paulo e sua dinamicidade em levar o evangelho aos povos pagãos, conforme descrito na Carta aos Romanos (1, 16,17). O Apóstolo Paulo assume os custos do diálogo com outros povos, mesmo considerando que o primeiro é o povo judeu, dando a entender que Deus é de todos, bastando, para tal viver da fé.
O quarto tipo de caso do diálogo fragmentado. Ou seja, ele pode ocorrer mas repartido em unidades de dimensão restrita. Em cada uma dessas unidades, ocorrem estrutura oligopolista. Há probabilidade, portanto, do diálogo se produzir no nível de cada unidade e, em consequência, envolver o conjunto, embora este seja de grande dimensão. Na realidade, esse tipo de fragmentação foi imposto pela Igreja, católica quando descentralizou sua ação teológica e, foi seguida, depois por outras ramificações do cristianismo como forma mais realista de evangelizar como ato de imitação (KUNG, 2014).
O quinto tipo de caso é precisamente o da organização que se pode chamar exógena, onde cada uma (ciência da religião e teologia) é submetida a um estímulo que os leva mais a fuga de um eventual diálogo do que à participação nele, mesmo quando a defecção é impossível. Isso se dá porque ambas escolhem determinados postulados como forma de representa-los (LUCÁKS, 2015).
O sexto tipo de caso corresponde é quando ambas estão ligadas por uma relação de lealdade. É evidente que o desenvolvimento da lealdade depende ao mesmo tempo da dimensão e daquilo que Durkheim (2002, p. 158) chamaria “sua densidade". É difícil imaginar que essa atitude se desenvolva no interior de uma ou de outra. Em contrapartida, ela aparece com frequência no caso de grupos de dimensão médios caracterizados, seja por relações diretas, seja por uma forte densidade de relações mútuas.
O sétimo tipo de caso, banal, mas que é importante lembrar a título de indicação, corresponde àquele em que os custos da participação no diálogo são nulos ou negativos. Nesse caso, os obstáculos internos para o desenvolvimento do diálogo descritos no início, desaparecem (SOUZA, 2014).
Assim a primeira conclusão é que as sociedades são compostas de um teor infindável de sujeitos e de experiências inúmeras que constituem sua riqueza e potencialidade. O agir social e o pensar dos grupos na composição do tecido social está extremado de experiências diferentes que constrói sua própria natureza. É impossível supor uma sociedade de igualdades que impeça a possibilidade da diferença, sem que esse pensamento conduza a concepções totalitárias e desrespeitadoras da natureza humana. A vida humana é uma vida de relação. Relação de cada um, com a realidade (KUNG, 2014).
Também a vida dos seres humanos é demarcada pela necessidade da relação com a transcendência. Deus é o grande; aquele que, por ser tão grande, não tem nome. . Sua dimensão é da ordem da diferença. As linguagens não são suficientes para dizê-lo. Deus é o diferente. É aquele cuja natureza é tão outra que, por mais que se revele, não consegue ser completamente interpretado. Ou melhor; todas às tentativas de interpretação sucumbem diante do mistério da dimensão do outro (DURKHEIM, 2002).
A segunda conclusão é de que o ato de dialogar entre s historicidade das religiões (ciência da religião) e teologia surge exatamente para buscar novamente uma relação entre a mensagem de Deus (teologia) como um instrumento fundamental da história da humanidade. A análise da história das religiões não deixa dúvidas quanto ao protagonismo de Deus (KUNG, 2014).
E, a terceira conclusão é que, embora os discursos, atualmente, sejam mais amenos, aparentes recomendações, buscando muito mais o estabelecimento de consensos, mudam apenas na aparência, persistindo argumentações traduzidas sob formas de estratégias mais sutis, veiculadas em textos cuja polissemia possibilita a manipulação de palavras e intencionalidades o que não referenda a mensagem e a necessidade de diálogo como uma ação coletiva de coesão entre ciência da religião e teologia (SOUZA, 2014).
2.1 Cristianismo e política
Em todas as religiões a política sempre esteva envolvida. Assim foi com a ação de Moisés quando retirou os Hebreus do Egito e criou os alicerces do judaísmo; assim foi com Confúcio na China quando estabeleceu uma ligação com o poder político local e o confucionismo. Assim foi com Ghandi que usou a religião Hindu contra a ocupação inglesa na Índia; assim ocorre com os islamismo que possui duas visões políticas bem diferentes. No cristianismo ocorreu o mesmo. Jesus era um ser político na essência; contestava a religião judaica e seus pressupostos e contestava o poder político de Roma, embora de maneira bem mais discreta, quando dizia que o verdadeiro reino é dos céus e não o da terra, onde Roma era soberana. Sobre a ação política de Jesus, Lopes Cruz (2010) diz com muita propriedade:
Jesus começou sua vida de pregação logo após se batizar no Rio Jordão por João. João pregava o arrependimento e contestava o poder político de Rei Herodes. Jesus assumiu esse papel, embora não tenha se rebelado contra Herodes. A mensagem de Jesus era direta para os Fariseus, doutores da Lei Judaica, que para ele não passavam de hipócritas. Os Fariseus percebendo o cunho político da mensagem de Jesus, tentavam fazer parecer que a mensagem fosse contra o Império Romano. Várias passagens do Evangelho levam a essa conclusão, dentre elas o episódio da moeda em que Jesus diz ‘dai a Deus o que e de Deus e César o que de César, ou seja, a Roma o que é de Roma’. Mas como pregava um novo reino, sua pregação era também contrária ao poder Romano.
Com a aceitação do Cristianismo como religião pelo Império Romano, numa clara ação política, a religião cristã se propagou pelo mundo de forma vertiginosa até o advento da Reforma de Lutero que também não pode se colocada como uma ação puramente de retorno as questões religiosas; por ser uma ação que mexia com a estrutura da Igreja, essa ação da Reforma, foi considerada como uma ação política. Mas era uma ação política como se entende a palavra política, não tinha cunho partidário, mas sim institucional (PEDRO, 2014).
No campo partidário, é somente em meados do século XIX que ocorre a filiação de religiosos a partidos. Na Inglaterra, católicos convictos se filiam ao partido trabalhista, enquanto que Anglicanos tradicionais se filiam ao partido conservador (PEDRO, 2014).
Nos Estados Unidos, ocorre o mesmo com democratas e republicanos, já que se fazia necessário que as doutrinas e visões de cada Igreja ganhassem cada vez mais espaço no mundo político partidário (GOMES, 2011).
A política do cristianismo deixava de ser uma política puramente institucional e passava a ganhar as dimensões partidárias. Para Gomes (2011, p.133) “essa ação foi deliberada em função da visão de sociedade que cada segmento do cristianismo precisava difundir e já não bastava fazer política institucional, mas ganhar poder no legislativo, justamente pra preservar suas visões de sociedade”.
No Brasil, seguindo os ditames internacionais, os políticos brasileiros possuíam profunda ligação com a Igreja Católica e defendiam os interesses desta igreja no campo político partidário, não importando a matiz partidária a que pertenciam. Isso ficou estabelecido desde o texto constitucional de 1824, em que a religião cristã, na ramificação católica, se tornou religião oficial do Estado. De Paula (2009) fala sobre isso com muita propriedade:
No Brasil, a Igreja Católica se estabeleceu desde o descobrimento de forma muito intensa; Com a Independência do Brasil em 1822, o texto constitucional de 1824 dizia ser a religião católica a religião oficial do Império e não fazia referência a religião Cristã que já estava dividida. Ao longo dos anos, o Estado brasileiro não era um Estado laico, o que só ocorreu com a Constituição Federal de 1891. O laico aqui que dizer que a religião é livre para todos. Não há ramificação oficial no texto constitucional.
No campo estatístico, embora muitos políticos seguissem certa ramificação da religião Cristã, não havia nenhum nitidamente ligado a política até que o Padre Cícero se enveredou pelo caminho político partidário Ele era um religioso com muita fama no interior do Ceará que se espalhava pelo Nordeste do Brasil. A cidade de Juazeiro do Norte era o local de sua pregação. Mas não era um padre comum. Em função de sua imensa popularidade, os fiéis recorriam a ele em tudo para tudo. Surgia então o Padre Cícero político (PEDRO, 2014).
Ao mesmo tempo sua ação preocupava a cúpula da Igreja Católica que acabou o proibindo de exercer sua atividade de Padre. Virou então político, embora para o povo nunca tenha deixado de ser o padre Cícero. Foi eleito prefeito de Juazeiro do Norte na década de 1930, passando a figurar como um verdadeiro deus dos nordestinos, o que o transformou em uma figura lendária no Nordeste brasileiro a partir de então. Nunes (2015) fala com propriedade sobre o assunto:
Padre Cícero ere um ser político na essência da palavra. No campo da Igreja católica agia como Lutero agia, contestando a doutrina da Igreja Católica e sua ação social; no campo político se condicionou como a voz dos nordestinos desassistidos; era profundamente respeitado tanto pela população nordestina como pela oligarquia econômica e política do Nordeste que não se atrevia a contestá-lo.
Com sua eleição, Padre Cícero assumiu definitivamente sua face política de uma vez por todas e causou com sua ação e atividades uma nova visão de religiosos. Essa visão estava atrelada a visão de que os religiosos precisavam estar na política partidária em função de que havia um avanço legislativo em propostas de leis que iam de encontro a visão de sociedade de cada segmento da religião cristã, principalmente com o avanço do comunismo. No Brasil, surgiu, então um movimento Religiosa denominado de Tradição, Família e Propriedade – TFP, que pode ser considerada o primeiro partido político, embora não tenha registro como tal, que defendia os interesses puramente religiosos (NUNES, 2015).
A TFP se opunha, principalmente ao Governo de João Goulart, nitidamente mais próximo de comunistas e socialistas. Sobre a TFP, Ramos (2017, p. 34) assim se manifesta:
A TFP foi um movimento ligado a Igreja Católica que tinha como fundamento o combate ao avanço do comunismo do Brasil e que no Governo de João Goulart estava muito próximo de se concretizar, pelo menos no campo operacional das reformas propostas. Preocupados com isso, católicos tradicionais se uniram e fundaram a TFP que tinha como vetor combater o comunismo que para eles negava a religião.
Começou ai a necessidade de se infringir um partido político com doutrina puramente religiosa, como já existia na Itália, por exemplo com os democratas cristãos e em outros locais da Europa cujo cristianismo já fazia parte da vida política partidária de forma mais intensa.
Exclusivamente sobre os evangélicos se pode considerar que dois (2) deles chegaram a presidente dos Brasil. João Fernandes Campos Café Filho, que governou o país entre os anos de 1954 e 1955 em substituição a Getúlio Vargas que tinha se suicidado e Ernesto Geisel, que governou entre 1974 e 1979, durante o governo militar. Café Filho foi eleito pelo povo brasileiro em sufrágio universal e Geisel foi eleito pelo Colégio Eleitoral. Segundo Pinheiro (2013) “Café Filho era presbiteriano; Geisel era luterano”. Com relação ao poder legislativo, os registros são parcos com relação aos políticos eleitos para câmaras de vereadores, assembleias legislativas, câmara federal e senado federal o que dificulta uma pesquisa mais aprofundada. Mas, sabe-se que o avanço é vertiginoso de políticos ligados a alguma ramificação da religião cristã e até um partido político está diretamente atrelado a uma ramificação delas – o Partido Republicano Brasileiro – PRB, ligado a Igreja Universal do reino de Deus que já elegeu, em 2016, o prefeito da segunda maior cidade ‘do Brasil – Rio de Janeiro – Marcelo Crivella.
O problema não esta no fato de um político seguir os caminhos de uma religião; o problema está no contrário? O religioso se tornar político para defender uma visão única de sociedade. Essa visão única de sociedade não é de todo errada; o erro está no fato de se querer impor essa visão como a única visão em uma sociedade plural ao extremo. O ex-governador do Rio de Janeiro Antony Garotinho, um evangélico convicto, deu uma declaração substancial a uma Rede de Televisão, quando de seu primeiro mandato: foi lhe perguntado como seria sua relação com o carnaval do Rio de Janeiro, por ele ser evangélico: disse então o ex-governador: “o carnaval do Rio de Janeiro é um evento centenário de grande tradição cultural e é uma festa do Estado do Rio de Janeiro; minhas convicções pessoais não podem está acima dos interesses do Estado e muito menos dos interesses da sociedade que é plural; minha religião não pode ter nenhuma influencia sobre isto”. Nunca mais lhe fizeram pergunta parecida. (ANDRADE, 2009).
Mas esse posicionamento de Antony Garotinho não é seguido pela grande maioria dos políticos religiosos, que embora tenham legitimidade em defender suas visões de mundo, a perdem quando tentam se impor a base de argumentações errôneas (NUNES, 2015).
Tudo isso vem estabelecer uma nítida ruptura em relação ao mundo, sua mentalidade, sua organização social, sua política, sua cultura, Novos valores – que são geralmente o inverso dos clássicos: a humildade diante do poder, a paz diante da força, a fraternidade diante do ódio etc. se difundem e se colocam no centro de um novo modelo antropológico, cultural e social; são propriamente, os valores negativos do mundo que são colocados no centro: a fraqueza, a tolerância, a compaixão. A sociedade valem sobretudo os vínculos espirituais entre iguais e não as relações hierárquicas, assimétricas, de domínio e de imposição ou as identidades étnicas e locais, superadas aqui na universalidade da mensagem (ANDRADE, 2009).
Até mesmo as relações entre classes e grupos sociais sofrem uma revolução mediante o apelo à igualdade, à solidariedade e à fraternidade. Também a política se transcreve em sentido religioso e irenista[4], indo além do “daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” e projetando um modelo de sociedade orgânica e colaboradora (GOMES, 2011).
Com o cristianismo, irrompeu no mundo uma nova concepção do mundo que, própria do início de minorias perseguidas, marginal – favorecida também pela crise espiritual que atravessa a cultura antiga na época imperial e pelas fraquezas internas (lutas étnicas, crise militar, crise econômica) do Império Romano -. Tornou-se central e depois hegemônica durante certa de três séculos. Assim, a revolução do cristianismo é também uma revolução educativa, que durante muito tempo mudou o Ocidente, constituindo uma das suas complexas, mas fundamentais matizes (KUNG, 2014).
3 RELIGIÃO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Foi o Imperador Constantino que tornou o cristianismo como religião oficial do Estado Romano. Isso perdurou no mundo ocidental até o advento da Reforma Protestante de Lutero, quando alguns Estados Europeus separam a Igreja do Estado, embora alguns tenham apenas trocado de ramificação cristã como religião oficial. Dentre esses se destaca a Grã Bretanha de Henrique VIII que trocou a ramificação católica como religião oficial do Estado, trocando-a pela Igreja Anglicana, ramificação criada por ele mesmo para poder se casar outra vez, já que o Papa não permitia tão intento (PEDRO, 2014).
A partir da Revolução Francesa com exceção da Espanha e de Portugal, todos os Estados Europeus partilham um firme compromisso com a liberdade de consciência e de religião. Isso se refletia e se reflete até hoje, já com a adesão de Portugal e Espanha na Lex comunidade europeia sobre a proteção dos direitos fundamentais, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, consubstanciada por outras nações que deixam claro em seus textos constitucionais que todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (CARDOSO, 2013).
No entanto, essa definição comum é acompanhada por concepções divergentes do que esses direitos abrangem e, mais especificamente, da relação adequada entre estado e igreja, exatamente como vem ocorrendo no Brasil (KLINERT, 2014).
Na maioria das tradições constitucionais nacionais, a liberdade de consciência é entendida como coincidente com a separação entre igreja e estado, embora a separação exija coisas diferentes em diferentes tradições constitucionais (e mesmo em diferentes regiões do mesmo estado) (BOFF, 2012).
Assim, a tradição constitucional brasileira exclui o estado de entrar em acordos com qualquer igreja, embora existam acordos com a Igreja Católica, o que implica reconhecer um público papel da Igreja Católica, especialmente no que se refere a questões educacionais. Em contraste, o estabelecimento de uma igreja faz parte da prática constitucional do Brasil, desde 1824 (com a Igreja Católica) e a partir de 1891 (em acordo tácito com a Igreja Católica, embora exista o reconhecimento formal do Estado laico) (BLANCARTE, 2008).
Nem é preciso dizer que essa pluralidade não apenas reflete, mas também consolida o papel desempenhado pela crença religiosa na construção da identidade nacional. Diferentes entendimentos nacionais sobre o que é exigido pela liberdade de religião e consciência tornam necessariamente complexos e intensos os debates sobre o quadro jurídico de o processo através do qual o Brasil deve estabelecer uma união cada vez mais estreita (FORST, 2009).
Com efeito, a existência de uma lei comum aplicável a todos os brasileiros está obrigada a exigir a revisão das definições substantivas nacionais dos direitos fundamentais e, em particular, do direito à liberdade de religião e de consciência (HESSE,2018).
A evolução da interpretação da Convenção dos Direitos do Homem e dos seus protocolos constitui uma prova da tensão entre o pluralismo nacional e a construção de um direito comum. Apesar do fato de que a Convenção é formalmente um tratado internacional, e o Tribunal Haia um tribunal internacional, vários de seus acordos tornaram-se legais e incursões políticas nas concepções nacionais de liberdade religiosa (RIBEIRO, 2016).
Esse processo tende a ser ainda mais agudo no Brasil que pode ser definida de maneira adequada como uma comunidade política em formação. A redação de um catálogo de direitos fundamentais e, mais recentemente, de um Tratado Constitucional, colocam o Brasil em 1988 a um acordo com a pluralidade de concepções nacionais de liberdade de consciência e religião, e considerar se tal pluralidade era compatível com o fortalecimento de uma identidade brasileira comum (ARAGÃO, 2015).
Talvez a questão mais contestada a esse respeito se a Constituição deveria conter uma referência explícita à contribuição dos valores cristãos para a formação de uma identidade brasileira. A partir dos anos 2000 se intensificou as ações políticas de ramificações cristãs ditas evangélicas pretende se colocar no centro do debate as questões religiosas. Elas defendem a afirmação de que tanto as tradições constitucionais dos Estados-Membros da União Europeia, como a própria história da Europa e mas recentemente do Brasil, defendem uma referência explícita às raízes cristãs da identidade no preâmbulo de qualquer Constituição. Essas argumentações não são apenas escritas com elegância e amplamente fundamentadas, mas também de autoria de um dos principais acadêmicos jurídicos europeus, Joseph Weiler, cuja monografia A Constituição da Europa é considerada uma autoridade na área e que vem se expandido para o mundo, principalmente no Brasil (HUACO, 2008).
A defesa de uma referência aos valores cristãos no Preâmbulo da Constituição Brasileira com base em dois argumentos principais, um constitucional e outro histórico, que se complementam e apoiam numa leitura cristã dos fundamentos e da história do processo legal no Brasil, segue os ditames da defesa de Weiler nas constituições dos estados da União Europeia (KLINERT, 2014).
O argumento Constitucional utilizado ainda de forma discreta no Brasil afirma que as tradições constitucionais do Brasil exigem que o Preâmbulo de qualquer futuro. A Constituição deve referir-se aos valores cristãos como um dos objetivos definidores dos direitos fundamentais e isso a Constituição Brasileira de 1988 já faz quando se apropriou do que se denomina de “direitos da primeira geração” inspirados nas doutrinas iluministas e jus naturalistas dos séculos XVII e XVIII e dentre eles se destaca o direito as liberdades religiosas (BLANCARTE, 2008).
A liberdade religiosa nasceu com o termo tolerância religiosa que se origina da palavra alemã Toleranz que não foi emprestada do latim e do francês até o século XVI - em outras palavras, na época das guerras religiosas. Neste contexto, o termo primeiro teve um significado restrito, o de tolerância para com outras denominações religiosas (FORST, 2009).
Durante os séculos XVI e XVII, a tolerância religiosa adquiriu significado legal. Os governos então promulgam éditos de tolerância e, assim, forçam os funcionários - e uma população convencida a aderir à verdadeira religião - a serem tolerantes com essas minorias religiosas que são luteranos, huguenotes e papistas (FORST, 2009).
O ato legal de tolerar tanto as pessoas que aderem a uma denominação diferente quanto a sua prática religiosa exige tolerância para com os membros de uma comunidade religiosa que até então foi oprimida ou perseguida. Mais claramente do que os alemães, os ingleses distinguem entre tolerância, disposição ou virtude comportamental e tolerância, que se refere ao ato jurídico. Por Toleranz, a língua alemã denota tanto a ordem jurídica que garante a tolerância quanto a virtude política de manter relações tolerantes com os outros. Montesquieu, por sua vez, insiste na relação de consagração existente entre o fato de tolerar e a tolerância: “Quando as leis de um Estado acreditaram que devem sofrer várias religiões, devem obrigá-las também a tolerar umas às outras (PEDRO, 2014, p. 133).
Portanto, é útil que as leis exijam dessas várias religiões não apenas que não perturbem o estado, mas também que não perturbem umas às outras. O cidadão não cumpre as leis, contentando-se em não agitar o corpo do Estado; também não deve incomodar nenhum cidadão (HESSE,2018).
Até a época das revoluções, o termo se referia não apenas aos crentes, mas também a um poder que via a prática da tolerância como uma concessão. Para dizer a verdade, as justificativas filosóficas da tolerância religiosa já se referem, desde Spinoza e Locke, não apenas ao ato jurídico autoritário de tolerância religiosa declarada unilateralmente, mas também ao direito ao livre exercício da própria religião, direito que se baseia em reconhecimento recíproco da liberdade religiosa do outro e, portanto, implica o direito negativo de respeitar as práticas religiosas dos outros (CARDOSO, 2013).
À concepção condescendente de um poder que outorga as liberdades religiosas, Forst (2009) opõe-se assim a uma concepção baseada no respeito. Corresponde à concepção atual de liberdade religiosa como um direito fundamental de todos como ser humano, independentemente da religião a que aderem.
Desta forma, o paradoxo da intolerância inerente a toda tolerância limitante não parece desaparecer completamente simplesmente porque a universalização recíproca da liberdade religiosa se tornou um direito fundamental. Ao contrário, esse paradoxo parece ressurgir no próprio cerne do estado constitucional democrático. Com efeito, a ordem constitucional que garante a tolerância é obrigada a proteger-se preventivamente contra os inimigos da Constituição (ARAGÃO, 2015).
O mais tardar com a transição legal da República de Weimar para o regime nazista, percebe-se a dialética muito singular que é específica da autoafirmação de uma democracia obrigada a ser combativa ou pronta. Em certos casos especiais, os tribunais podem responder à questão dos limites da liberdade religiosa em nome da lei e da Constituição. Por outro lado, quando a Constituição encontra a oposição dos inimigos da própria liberdade que ela garante, a questão dos limites da liberdade política surge de forma autorreferencial: em que medida a democracia tem o direito de tratar os inimigos da democracia com espírito de tolerância? (HUACO, 2008).
Para não se resignar, o Estado democrático é obrigado a adotar uma atitude intolerante, recorrendo aos meios do direito penal político. É necessário proibir certos partidos políticos ou privar certas pessoas dos seus direitos fundamentais. Seja na forma do ideólogo político que luta contra o Estado liberal, seja na forma do fundamentalista que luta contra a forma moderna de vida como tal, vê-se o ressurgimento, sob a forma de inimigo da Constituição, o inimigo do estado, uma noção cujas conotações eram inicialmente religiosas (RIBEIRO, 2016).
Mas por quem é definido o inimigo da Constituição, senão pelos órgãos do próprio Estado constitucional? Deve defender-se tanto contra a hostilidade dos inimigos que desejam sua própria existência quanto contra a traição de seus próprios princípios - em outras palavras, o perigo que, em tal situação, sempre ameaça cair novamente por sua própria culpa. Na prática autoritária de definir os limites da tolerância unilateralmente (ARAGÃO, 2015).
A tarefa da democracia, de ter que se limitar paradoxalmente, vem da tolerância religiosa, mas a democracia é obrigada a resolver o paradoxo da tolerância constitucional em sua própria linguagem, que é a do direito. Esse paradoxo torna-se agudo quando a proteção da Constituição se torna paternalista. Com efeito, o direito objetivado, que assume a forma de uma ordem de valores objetivos, tende, como já o vê Hesse (2018, p. 234), “a buscar a proteção da Constituição em um sistema bem organizado de controle e defesa”.
Não se deve esquecer, segundo ele, que não é reduzindo as liberdades que pode-se garantir a substância da democracia liberal. A democracia combativa só pode escapar ao risco do paternalismo dando rédea solta ao caráter autorreferencial do procedimento democrático por ela instituído, inclusive nas disputas por definição indecisas sobre a interpretação de determinado artigo da Constituição (CARDOSO, 2013).
Assim, o Estado respeita a regra da neutralidade e se a legislação e o exercício da justiça institucionalizam adequadamente a liberdade religiosa. Assim os sikhs obtiveram na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos o direito de usar turbantes e adagas, o que constitui uma exceção em relação às regras de segurança geralmente em vigor. Também na Alemanha as disputas jurídicas desse tipo tratam da fronteira entre, por um lado, as práticas e as leis da cultura cristã majoritária e, por outro, as demandas de certas minorias religiosas (KLINERT, 2014).
No Brasil, desde 1988 o tratamento igual é regra constitucional (como as Testemunhas de Jeová cuja associação solicitou, perante o Tribunal Constitucional, ser reconhecida como pessoa jurídica de direito público), normas excepcionais (os Adventistas do Sétimo Dia de não comparecerem a obrigações a partir das 18:00 h de todas as sextas feiras até as 18:00 de todos os sábados. Um seguidor da Igreja Adventista do Sétimo Dia arguiu o direito de fazer um prova, em um concurso público, marcado para um sábado com base na incomunicabilidade durante o período dos exames. Ele justificou o seu pedido, contra a Escola de Administração Fazendária, dizendo-se obrigado a cumprir as regras de sua religião. O pedido foi indeferido no juizado de primeira instância. No plano recursal ao Tribunal Regional da 1ª Região, o pedido foi aceito mesmo de forma provisória por intermédio da concessão de uma liminar. No STF, o ministro Marco Aurélio cassou a limiar por se tratar de um único candidato, passando o caso para uma decisão colegiada (RIBEIRO, 2016).
Nesses casos, os tribunais devem responder às seguintes perguntas: Quem e quando deve aceitar o ethos de qual outro: aldeões religiosos podem solicitar com base na liberdade religiosa, privilégios diante do conjunto da sociedade? Fica claro que, a liberdade religiosa coloca a neutralidade do estado à prova. Essa neutralidade é frequentemente ameaçada pelo predomínio de uma cultura majoritária que abusa de um poder de definição historicamente adquirido para definir por si mesma, segundo seus próprios critérios, o que deve ser considerado como cultura política obrigatória da sociedade pluralista (FORST, 2009).
Não resolvida, tal fusão pode levar à substancialização da interpretação de uma constituição que é essencialmente processual. Com efeito, a substância moral dos princípios constitucionais é garantida por procedimentos cuja força legitimadora se deve à imparcialidade e igual consideração dos diversos interesses envolvidos; no entanto, eles perdem essa força quando a interpretação e aplicação de prescrições formais é subvertida por representações de moralidade substancial. A exigência de neutralidade pode ser transgredida tanto do ponto de vista secular como do ponto de vista religioso (HESSE,2018).
4 CONCLUSÃO
A rigor, os direitos culturais como direitos fundamentais não significam simplesmente mais diferença e mais autonomia. Grupos discriminados não têm acesso livre para o benefício de direitos culturais iguais. Eles não podem desfrutar de uma moralidade de inclusão igualitária sem aderir, por sua vez, a tal inclusão. Por outro lado, as comunidades fortes (minorias nacionais ou étnicas, subculturas) são marcadas por tradições comuns e desenvolveram identidades coletivas que lhes são específicas.
Essas tradições também abrem perspectivas de mundo que, como as concepções religiosas, podem competir entre si. Portanto, a liberdade religiosa como direito fundamental recíproca também exige que comunidades seculares fortes estabeleçam um vínculo cognitivo entre seu ethos interno e a moralidade dos direitos humanos que governa seu ambiente social e político.
Se houver uma lacuna histórica, pode ser mais difícil para eles do que para as comunidades religiosas que podem aproveitar os ricos recursos conceituais de uma religião universal.
O nível mais alto de pensamento que nas sociedades agora com várias listas, do ponto de vista de suas visões de mundo, é exigido da consciência religiosa é, por sua vez, um modelo para a estrutura mental necessária nas sociedades multiculturais.
Na verdade, o multiculturalismo bem compreendido não é uma rua de mão única na qual grupos, cada um com sua identidade, buscam se afirmar. A coexistência igualitária de diferentes formas de vida não deve levar à dessegmentação. Requer a integração dos cidadãos - e o reconhecimento recíproco de suas afiliações sub culturais - no quadro de uma cultura política compartilhada. Membros da sociedade só podem desenvolver sua especificidade cultural na condição de que todos - além das fronteiras de sua subcultura - se entendam como cidadãos do mesmo Estado Nacional. Os direitos e poderes culturais são, portanto, limitados pelos fundamentos normativos da própria Constituição que os justifica.
REFERÊNCIAS
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SOUZA, P. de O. de L. O papel da Igreja no ato de evangelizar na sociedade moderna. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
[1] Mestre em Direito do Trabalho Faculdade de Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas em 2013 e professor do curso de Direito do CEULM/ULBRA, Manaus-AM, [email protected]
[2] Artigo acadêmico apresentado ao curso de Direito do Centro Universitário Luterano de Manaus – CEULM – Manaus, AM como requisito final para obtenção do título de bacharel em Direito
[3] O positivismo se baseia na ideia de que a ciência é a única forma de aprender sobre a verdade.
[4] Escritor eclesiástico do grupo dos irenista, que pregam a reconciliação entre as igrejas e seitas separadas.
Graduanda no Curso de Direito pela Universidade Luterana do Brasil - Manaus.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Máblia Marques da. A liberdade de credo religioso no Brasil: como direito fundamental Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 out 2020, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55368/a-liberdade-de-credo-religioso-no-brasil-como-direito-fundamental. Acesso em: 23 dez 2024.
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