O Tribunal de Contas da União, no âmbito de sua atuação institucional de controle externo, tem a missão de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público, podendo, de conseguinte, aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei.
Neste viés, a Lei nº 8.443/92, Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, legitima a Corte de Contas para aplicação de sanções, possibilitando a imposição de multa e obrigação de devolução do débito apurado, o afastamento provisório do cargo, o arresto dos bens de responsáveis julgados em débito e a inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da administração pública.
Como se sabe, o advogado, no exercício da profissão, é inviolável por seus atos e manifestações, nos termos da Lei 88.9060/94, que institui o Estatuo da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil. Por outro lado, essa inviolabilidade não pode ser de caráter absoluto ao ponto de conferir ao advogado imunidade para prática de atos deliberadamente ilícitos.
No âmbito do Tribunal de Contas da União tem sido cada vez mais frequente a imposição de sanções a advogados parecerista por conta de seus pronunciamentos jurídicos, sobretudo em procedimentos licitatórios.
Nas situações em o parecer é meramente opinativo, a Corte de Contas tem atribuído responsabilidade ao advogado parecerista nas hipóteses de constatação de culpa ou erro grosseiro. Vejamos o enunciado constante do Acórdão TCU 2994-2009, que, nesse aspecto, assim dispôs:
Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa.
No que tange aos pareceres ditos vinculantes, o TCU caminha no sentido de atribuir responsabilidade solidária entre o gestor e o parecerista em caso de dolo ou culpa deste, conforme se extrai do enunciado do Acórdão TCU 2860-2018:
Nos casos em que o parecer técnico é indispensável para fundamentar o ato administrativo e o seu conteúdo, por dolo ou culpa do emissor, conduzir à prática de irregularidade, haverá responsabilidade solidária entre o gestor e o parecerista.
Nesta mesma linha, o TCU definiu tese no sentido de que os ocupantes de cargos da Advocacia Pública Federal podem ser responsabilizados pelo Tribunal, mesmo quando não tenham atuado com dolo ou fraude:
Outra situação recentemente caracterizada como erro grosseiro pelo TCU diz respeito à aprovação, pelo parecerista jurídico, de minuta de edital contendo vícios que não envolvem controvérsias jurídicas ou complexidades técnicas, conforme abaixo se vê:
Para fins do exercício do poder sancionatório do TCU, pode ser tipificada como erro grosseiro (art. 28 do Decreto-lei 4.657/1942 - Lindb) a aprovação, pelo parecerista jurídico (art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993), de minuta de edital contendo vícios que não envolvem controvérsias jurídicas ou complexidades técnicas (Acórdão 9294/2020-Primeira Câmara Data da sessão 01/09/2020 Relator BRUNO DANTAS)
Também, na ótica do TCU, pode ensejar a responsabilidade do parecerista a indicação de fato não correspondente à realidade, ou seja, quando o pronunciamento jurídico for construído sobre pressuposto fático inexistente nos autos, conforme se extrai do seguinte julgado:
A emissão de parecer técnico indicando fato não correspondente à realidade caracteriza inobservância ao dever de cuidado objetivo imposto a todos os servidores públicos e gera a responsabilização do seu emissor perante o TCU.( Acórdão 591/2010-Segunda Câmara Data da sessão 23/02/2010 Relator AROLDO CEDRAZ)
Por fim, cumpre fazer referência à situação em que o parecer é lavrado em notória afronta à legislação e à jurisprudência consolidada dos tribunais. Aqui é preciso destacar que o que enseja a responsabilização do parecerista não é a encampação de tese jurídica divergente, ainda que minoritária, mas sim a afronta direta à legislação e à jurisprudência consolidada dos tribunais, conforme se percebe do seguinte julgado:
O erro grosseiro se afigura como uma das causas que justificam a responsabilização do advogado público que emite parecer, seja ele de caráter vinculante, ou meramente opinativo. A responsabilização na emissão do parecer ocorre diante da sua notória afronta à legislação e à jurisprudência consolidada dos tribunais. (Acórdão 2202/2008-Plenário Data da sessão 08/10/2008 Relator GUILHERME PALMEIRA)
Então, tem-se que, no âmbito da jurisprudência quem vem se consolidando no âmbito do Tribunal de Contas da União, o advogado parecerista responde solidariamente nos casos em que atuar com dolo ou diante de erro grosseiro, nos casos de pronunciamento jurídico meramente opinativo. Já em se tratando de parecer vinculante, ou seja, quando a autoridade administrativa não pode decidir de forma diversa da indicada no pronunciamento jurídico, a imputação de responsabilidade ao parecerista tem se dado nos casos de dolo ou culpa, não se exigindo a caracterização de erro grosseiro.
Todavia, é preciso que a linha jurisprudencial que vem se formando no âmbito do TCU em relação à responsabilização do parecerista seja analisada de forma crítica e levando em consideração suas consequências para atuação do advogado público e para a Administração Pública.
Neste toar, não se pode desprezar o fato inevitável de que uma saga punitiva desenfreada das cortes de contas certamente trará como consequência uma postura mais conservadora para os advogados públicos, gerando uma forte tendência de um significativo incremento burocrático para a atuação desses profissionais, muitas vezes em detrimento da eficiência que deve permear a atuação da Administração Pública.
É necessário perceber que o parecerista que trabalha com a espada de Dâmocles sobre sua cabeça tende a ser um profissional engessado e com propensão a pronunciamentos extremamente tradicionais e formalistas, o que, muitas vezes, traz em consequência decisões que não satisfazem ao interesse público.
Nesta linha, é natural que o profissional que atua com a latente possibilidade de ser responsabilizado por seus pronunciamentos adote uma postura muito mais rígida e formalista, o que, inevitavelmente, gerará um travamento na máquina da Administração Pública. Então, a se perpetuar essa realidade, sobretudo nos procedimentos licitatórios, resta inevitável uma postura mais defensiva do advogado público, com natural propensão a emissão de pareceres negativos e verdadeira repulsa à opção por posturas mais arrojadas e inovadoras, o que, além de não evitar fraudes e corrupção, muitas vezes, não satisfaz ao interesse público.
Não por outro motivo que, em outro espectro, adotando uma linha de pensamento mais condizente com os ditames da realidade, o Supremo Tribunal Federal, em decisão de fevereiro de 2020, não obstante indicando a possibilidade de responsabilização do parecerista pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa, assentou que o erro grave ou grosseiro do parecerista público define a extensão da responsabilidade, porquanto uma interpretação ampliativa desses conceitos pode gerar indevidamente a responsabilidade solidária do profissional pelas decisões gerenciais ou políticas do administrador público. Vejamos, então, a ementa do julgado em sua integralidade:
EMENTA: AGRAVO INTERNO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TOMADA DE CONTAS ESPECIAL. RESPONSABILIDADE. PARECER TÉCNICO-JURÍDICO. ART. 38, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI 8666/93. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE DOLO, ERRO GRAVE INESCUSÁVEL OU CULPA EM SENTIDO AMPLO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. O advogado é passível de responsabilização “pelos atos que, no exercício profissional, praticar com dolo ou culpa”, consoante os artigos 133 da Constituição Federal e o artigo 32 da Lei 8.906/94, que estabelece os limites à inviolabilidade funcional. 2. O erro grave ou grosseiro do parecerista público define a extensão da responsabilidade, porquanto uma interpretação ampliativa desses conceitos pode gerar indevidamente a responsabilidade solidária do profissional pelas decisões gerenciais ou políticas do administrador público. 3. A responsabilidade do parecerista deve ser proporcional ao seu efetivo poder de decisão na formação do ato administrativo, porquanto a assessoria jurídica da Administração, em razão do caráter eminentemente técnico-jurídico da função, dispõe das minutas tão somente no formato que lhes são demandadas pelo administrador. 4. A diligência exigível do parecerista no enquadramento da teoria da imprevisão, para fins de revisão contratual, pressupõe a configuração da imprevisibilidade da causa ou dos efeitos, assim como da excepcional onerosidade para a execução do ajustado, vez que o artigo 65, II, d, da Lei 8.666/1993 autoriza a revisão do contrato quando houver risco econômico anormal, tal qual aquele decorrente de fatos “previsíveis porém de consequências incalculáveis”. 5. Os preços, posto variáveis, podem ensejar a revisão contratual in concreto, na hipótese de serem inevitáveis, excepcionais e não precificadas no contrato, ainda que haja cláusula de reajuste motivada por inflação ou outro índice, razão pela qual não se configura a responsabilização do parecerista tão somente por não ter feito referência expressa à cláusula contratual. 6. A diversidade de interpretações possíveis diante de um mesmo quadro fundamenta a garantia constitucional da inviolabilidade do advogado, que assegura ao parecerista a liberdade de se manifestar com base em outras fontes e argumentos jurídicos, ainda que prevaleça no âmbito do órgão de controle entendimento diverso. 7. In casu, a decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União, lastreando-se em mera interpretação distinta dos fatos, deixou de comprovar o erro inescusável pelo agravado para sustentar a irregularidade do aditivo, que somente restaria configurado caso houvesse expressa previsão contratual do fato ensejador da revisão, na extensão devida, a afastar a imprevisão inerente à álea extraordinária. 8. O agravado no caso sub examine efetivamente justificou a adequação jurídica do aditivo contratual à norma aplicável, ao assentar que o equilíbrio econômico da mencionada obra civil foi afetado por distorções dos preços dos serviços e aos insumos básicos, logo após explicitar que se tratava de hipóteses motivadas por fatos supervenientes, de ordem natural, legal ou econômica e de trazer referências doutrinárias específicas de atos imprevisíveis ou oscilação dos preços da economia. 9. Agravo interno a que NEGO PROVIMENTO por manifesta improcedência.
(MS 35196 AgR, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 12/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-022 DIVULG 04-02-2020 PUBLIC 05-02-2020)
Por extremamente precisas e bem colocadas, vejamos então as lúcidas ponderações feitas pelo Eminente Relator do julgado acima transcrito, Ministro Luiz Fux, que, em seu voto condutor assim se posicionou:
Atribuir a responsabilidade solidária ao parecerista pode acarretardois reveses ao funcionamento da Administração Pública. Em primeirolugar, o parecerista estaria menos propenso a trazer teses inovadoras,ainda que razoáveis, das quais poderia advir soluções mais adequadas aointeresse público em concreto. Em vez de viabilizar políticas públicas, oadvogado público se tornaria um mero burocrata, atando-se aprocedimentos mais longos, difíceis e custosos. Esse engessamento nãoacarreta retorno em moralidade pública, mas em ineficiência. Em segundo lugar, a responsabilização plena dos advogadospúblicos por suas opiniões jurídicas ocasionaria a assunção, por estes, dafunção de administradores, em que se tratar de cognições distintas.Dentre as atribuições da função, o advogado público emite pareceresjurídicos ao administrador. Trata-se de uma forma de controle interno delegalidade dos atos administrativos, em que assessora o administrador ese posiciona sobre a legalidade de determinado ato da Administração Pública.
Então, diante do que antes se expôs e considerando os ditames da eficiência e os primados da independência funcional do advogado, não se pode deixar de reclamar aos órgãos de controle, externos e internos, e ao próprio Poder Judiciário a necessidade de evolução de pensamento, no sentido de buscar critérios cada vez mais claros e objetivos para diferenciar a atuação do advogado corrupto e mal-intencionado, que atua em conluio com criminosos, do advogado que, no âmbito de sua independência profissional, busca soluções arrojadas para melhor atender ao interesse público.
Nestes termos, é perceptível que a deflagração de movimento sancionatório desenfreado e sem controle em desfavor dos advogados pareceristas tende a criar uma categoria de profissionais burocratas e engessados, o que, sem sombra de dúvidas, trará um inevitável travamento na máquina pública, com franco prejuízo para o interesse da coletividade.
Referências
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 29ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 2004.
MENDONÇA, José Vicente Santos de. A responsabilidade pessoal do parecerista público em quatro standards. http://www.procuradoria.al.gov.br/centro-de-estudos/teses/xxxv-congresso-nacional-de-procuradores-de-estado/direito administrativo/A%20RESPONSABILDADE%20PESSOAL%20DO%20PARECERISTA%20PUBLICO%20EM%20QUATRO%20STANDARDS.pdf
PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 18ª ed., São Paulo: Ed. Atlas, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed., São Paulo: Ed. Malheiros, 2004.
Procurador do Estado de Alagoas, ex-Procurador do Estado de Pernambuco, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade do Sul de Santa Cataria, Pós-Graduado em Direito Administrativo e Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEDROSA, Danilo França Falcão. A responsabilidade do advogado parecerista perante o Tribunal De Contas da União Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 nov 2020, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55492/a-responsabilidade-do-advogado-parecerista-perante-o-tribunal-de-contas-da-unio. Acesso em: 23 dez 2024.
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