EMANUELLE ARAÚJO CORREIA[1]
VALDIRENE CÁSSIA DA SILVA[2]
(orientadoras)
RESUMO: O presente artigo aborda a condição das gestantes, mães, puérperas à luz do sistema carcerário em diálogo com as disposições legais do sistema penal brasileiro. A partir de uma análise geral atinente à execução penal e a condição de mãe e gestante da mulher privada de liberdade, à luz da Lei de Execução Penal, do Marco Legal da Primeira Infância e da Lei n. 13.769/18, bem como do julgamento do Habeas Corpus Coletivo 143.641-SP (STF), debateu-se a realidade da mulher alvo dos benefícios legais anotados em tais leis, confrontando-os com o cotidiano carcerário pela extensão do país. Para tanto, empregou-se o método de abordagem qualitativo, colhendo-se os dados por meio dos instrumentos bibliográfico e documental. Apontou-se, ao final, que a realidade enfrentada por estas mulheres é muito discrepante daquela devida se cumpridos os deveres estabelecidos para o Estado em seu tratamento. As condições carcerárias, para aquelas que não permanecem em relativa liberdade, é degradante, vez que faltam aos estabelecimentos penais assistências mínimas a estas mulheres. Além disso, inobstante as imposições legais relativas à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, as mulheres que seriam suas potenciais beneficiárias encontram severo obstáculo ao seu alcance, seja em razão da moralidade que compõe algumas decisões judiciais, seja por outros requisitos exigidos pelo Poder Judiciário para além daqueles objetivos, previstos em lei, para sua concessão. Considera-se, finalmente, que a condição das mães e gestantes à luz do sistema carcerário e suas garantias é degradante, desarmônica com a Constituição da República e com a lei.
Palavras-chave: Gestante; Mãe; Lei de execução penal; Sistema carcerário.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A EXECUÇÃO PENAL E A CONDIÇÃO DE MÃE E GESTANTE DA MULHER PRIVADA DE LIBERDADE: 1.1. A Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984): 1.2. O Marco Legal da Primeira Infância e sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere: 1.3. A Lei n. 13.769/18 e sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere; 2. A CONDIÇÃO CARCERÁRIA DAS GESTANTES, PUÉPERAS E MÃE E O HABEAS CORPUS COLETIVO 143.641-SP (STF): 2.1. Os dados acerca da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância às mulheres alvos de seu alcance: 2.2. Aspectos acerca do Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP (STF). CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO
Todos os ramos do Direito perpassam, atualmente, pelo inevitável olhar constitucional. Qualquer que seja o instituto – de direito público ou privado –, sua interpretação e aplicação reclamam compatibilidade com a Constituição da República. Não é diferente, portanto, com o Direito Penal e de Execução Penal, cuja sensibilidade é ainda maior do que qualquer outra área do Direito, haja vista sua repercussão direta na liberdade do ser humano, um dos valores mais caros das civilizações modernas.
Não se pode negar que a Lei de Execução Penal brasileira é de uma elaboração admirável, isso em virtude de seu prestígio à dignidade humana e seu caráter ressocializador, sem perder de vista o seu aspecto punitivo, o qual não deixa de apresentar certo componente humanista. Todos estes institutos estão adequadamente moldados à luz de direitos e garantias estabelecidos desde o texto constitucional.
No entanto, a realidade carcerária nacional há muito tempo acendeu o sinal de alerta. Denunciam-se anualmente diversas e graves violações de direitos e garantias da pessoa encarcerada no contexto penitenciário do país. Com o expressivo aumento da quantidade de mulheres presas, novas preocupações ocuparam as demandas judiciais e políticas públicas relacionadas à execução penal, das quais pretende-se destacar, no presente trabalho, a condição das mães e gestantes em condição de privação de liberdade.
É inegável que a condição da mulher encarcerada demanda cuidados específicos daqueles que gerem a segurança pública, especialmente em virtude do genuíno papel da amamentação e gestação. A saúde pública já deixa rastros suficientes de ineficiência fora do contexto carcerário, sendo que não raramente ouve-se queixas quanto às superlotações de maternidades e violências obstétricas por todo o país.
A vulnerabilidade da situação de mulher presa pode expô-la ainda mais a condições degradantes de parto e lactação, circunstâncias que, por si sós, exigem o mais amplo cuidado do poder público com as suas necessidades. A luta pela preservação da dignidade destas mulheres, desde já inquinada pelo preconceito e desprezo coletivo, é motivo suficiente para fomentar o debate quanto às condições das mães e gestantes recolhidas ao sistema carcerário, cuja fiscalização não incumbe somente aos órgãos de execução penal, mas também à sociedade civil.
Nesse sentido, diante da preeminente relevância do tema, a partir do reconhecimento dos direitos e garantias elementares à mulher penitenciária, bem como diante das perspectivas legislativas relacionadas à primeira infância, proceder-se-á com sua análise em contraste com a realidade cotidiana enfrentada pela mulher gestante e mãe recolhida ao sistema prisional.
Por sua natureza, inspirada em uma análise valorativa, a pesquisa utilizou o método de abordagem qualitativo, enquanto os dados que a desenharam foram colhidos das fontes bibliográficas e documentais.
A importância desta pesquisa traduz-se pelo olhar social que busca incentivar. Pretende-se, com seus resultados, fomentar maior cuidado público com a gestação e amamentação da mulher retraída ao cárcere, na medida em que o confronto entre as previsões legais às realidades testemunhadas pelas grades carcerárias indiquem algum descuidado com o tema. Busca-se, ainda, investigar a necessidade de se estimular maior atenção especificamente do poder público à pauta, pois é seu dever constitucional por diversos prismas a proteção da mulher e do menor nas circunstâncias da abordagem deste trabalho.
Na extensão da obra, aborda-se, antecipadamente, aspectos relacionados à execução penal e a condição de mãe e gestante da mulher privada de liberdade, capítulo em que se aborda a Lei de Execução Penal, o Marco Legal da Primeira Infância e sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere e a Lei n. 13.769/18 e igualmente sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere.
Após, discute-se a condição carcerária das gestantes, puéperas e mãe e o Habeas Corpus Coletivo 143.641-SP (STF), onde se discutiu os dados acerca da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância às mulheres alvos de seu alcance, o próprio habeas corpus precitado e suas nuances, concluindo-se, ao final, que a condição das mães e gestantes à luz do sistema carcerário e suas garantias é degradante, desarmônica com a Constituição da República e com a lei.
1. A EXECUÇÃO PENAL E A CONDIÇÃO DE MÃE E GESTANTE DA MULHER PRIVADA DE LIBERDADE
É de conhecimento geral que o sistema carcerário brasileiro vive em uma situação crítica, mormente considerando a superlotação que o acomete. Em 2019, em análise realizada pelo repórter Fernando Martines (2019), apontou-se que o Brasil tem uma taxa de superlotação carcerária que ultrapassa os 150%. Trata-se de mais de 700 mil presos, enquanto a quantidade de vagas disponíveis é de pouco mais da metade da ocupação.
Em estudo realizado em 2018 pelo Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário[3], acerca da população carcerária feminina, constatou-se que o Brasil posiciona a quarta colocação no mundo considerando a quantidade de mulheres presas, disputa encabeçada pelo EUA, seguido pela China e Rússia, que ocupa o terceiro lugar. Nesta colocação, o Brasil ostentava um saldo de 42.355 mulheres encarceradas, dentre as quais 536 mulheres eram gestantes.
Tendo em vista a realidade de mães de menores ou incapazes e gestantes que se encontram confinadas no sistema carcerário, deve-se observar o que dispõe o sistema penal – incluindo-se aqui as garantias previstas na Lei de Execução Penal –, e aquilo que efetivamente coloca-se em prática.
1.1. A Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/1984)
O Direito de Execução Penal, conforme como está posto na Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, pauta-se em diversos preceitos constitucionais relativos à execução penal. Em regra, relaciona-se a ciência criminal apenas com o Direito Penal e Direito Processual Penal, esquecendo-se que por meio do Direito de Execução Penal o legislador optou por entregar ao Judiciário o controle principal sobre a pena (NUCCI, 2020).
Especialmente considerando-se um supraprincípio como o da dignidade da pessoa humana, o qual irradia-se sobre todos os demais em alguma medida, tem-se diversos outros atinentes ao cumprimento da pena, como ensina Guilherme de Souza Nucci (2020, p. 1):
No art. 5.º da Constituição Federal, podem-se mencionar os seguintes preceitos relativos à execução penal: “XLVI – a lei regulará a individualização da pena...”; “XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”; “XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”; “XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”; “L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”. Ressaltemos alguns fatores importantes, decorrentes desses dispositivos constitucionais.
Por outro lado, é cediço que o cumprimento destas garantias e direitos constitucionais, mesmo aqueles direitos mais básicos dispostos no texto infraconstitucional, têm esbarrado na omissão do poder público, o que tem motivado inúmeras denúncias tanto dos órgãos de execução penal incumbidos desta fiscalização quanto de entidades representativas de Direitos Humanos.
A omissão estatal ante as mais básicas necessidades do público carcerário já é suficiente para vulnerar ainda mais a pessoa presa, marcada pelo preconceito coletivo, linchamento moral público e subversão de seus direitos. Nesse sentido, especialmente como consequência do descaso do poder público, o recinto penitenciário se torna ainda mais prejudicial ao(à) apenado(a), como arremata Norberto Avena (2019, p. 30) “como todo o ser humano, o preso está suscetível a doenças, risco esse que se eleva em razão das condições em que vive no ambiente prisional”.
Ainda como exposição desta assustadora realidade ligada à inospitalidade penitenciária e desassistência de que padece, Aldeildo Nunes (2016, p. 42) aponta:
Anualmente, em média, 1% da população carcerária brasileira morre antes de completar um ano de prisão, seja porque muitos presos são assassinados dentro dos presídios, seja pela ausência de assistência médica àqueles que tantas vezes já estão em estágio terminal da enfermidade. A quantidade de detentos portadores de HIV, tuberculose, hanseníase e outras doenças infectocontagiosas é tamanha que não há dados estatísticos confiáveis sobre esse mal carcerário que atinge desumanamente os que já perderam a liberdade.
Logo no artigo 10 e 11 da Lei de Execução Penal, estabelece-se a assistência ao preso (aqui compreendendo-se, evidentemente, também a mulher), nos seguintes termos:
Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade.
Parágrafo único. A assistência estende-se ao egresso.
Art. 11. A assistência será:
I - material;
II - à saúde;
III -jurídica;
IV - educacional;
V - social;
VI - religiosa.[4]
Clara que é, a redação legal expõe que o objetivo da assistência prestada ao preso visa prevenir o crime e instruir sua reinserção à convivência em sociedade. Intenciona-se, portanto, evitar-se a reincidência do encarcerado. Desde o mandamento constitucional, no entanto, a saúde, uma das faces da assistência que deverá ser prestada ao preso, como citado acima, é direito de todos e dever do Estado, “direito este não atingido com a condenação criminal e que, portanto, não pode ser maltratado no processo execucional” (MARCÃO, 2017, p. 73).
Destarte, reforce-se, o direito à saúde, do qual o preso também é seu sujeito, não pode ser solapado a qualquer pretexto que seja, principalmente se relacionado à sua punição. Os valores humanos hodiernos, especialmente aqueles explícitos e implícitos na Constituição da República Federativa do Brasil, não autorizam que a subversão deste direito fundamental seja utilizada como meio para vingar qualquer que seja a antijuridicidade cometida pela apenada, mesmo porque “as penas não podem consistir em tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem tender à reeducação do condenado” (BRITO, 2019, p. 65).
Ao se pensar na mulher privada de liberdade, enxerga-se nuances relacionadas à humanização de sua pena que são particulares de seu gênero. A saúde da mulher inegavelmente reclama cuidados especializados sobretudo quando relacionados à sua eventual condição de mãe e gestante. No mesmo sentido, para além do direito materno, está o direito da criança e adolescente, bem como da pessoa com deficiência que carece da tutela materna, cujo cuidado e desenvolvimento são brutalmente atingidos ao distanciá-los do cuidado da mãe.
A assistência à saúde, consoante disposto no extrato legal colacionado acima, é uma das garantias asseguradas à presa por meio da Lei de Execução Penal, quando determina:
Art. 14. A assistência à saúde do preso e do internado de caráter preventivo e curativo, compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico.
§ 2º Quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, esta será prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento.
§ 3o Será assegurado acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido[5].
O artigo 14, § 3.º da Lei de Execução Penal garante à mulher, durante o pré-natal e no pós-parto, acompanhamento médico, o qual também será prestado ao recém-nascido. A previsão legal, por mais que não pudesse ser diferente, é ainda de afirmação necessária, já que, mesmo existindo, a realidade expressa uma face sombria do cuidado com a saúde da mulher privada de liberdade.
Em exame às Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela), expostas por Renato Marcão (2017, p. 74-75) em sua obra acerca da execução penal, consta:
Regra 24
1. O provimento de serviços médicos para os presos é uma responsabilidade do Estado. Os presos devem usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à comunidade, e os serviços de saúde necessários devem ser gratuitos, sem discriminação motivada pela sua situação jurídica.
[...]
Regra 28
Nas unidades prisionais femininas, deve haver acomodação especial para todas as necessidades de cuidado e tratamento pré e pós natais. Devem se adotar procedimentos específicos para que os nascimentos ocorram em um hospital fora da unidade prisional. Se a criança nascer na unidade prisional, este fato não deve constar de sua certidão de nascimento.
Segundo Guilherme de Souza Nucci (2020), a proteção à saúde constante do artigo 14, § 3.º da Lei de Execução Penal visa dar cumprimento ao que consta do artigo 5.º, inciso L da Constituição Federal, que assegura: “Às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”[6]. Importa, nesse diapasão, colher-se um extrato de seu ensino:
Portanto, garante-se o acompanhamento médico à presa, durante toda a gestação e na fase do pós-parto, incluindo-se nesses cuidados o recém-nascido. Na realidade, os avanços obtidos nos últimos anos, em relação aos estabelecimentos penais e à nova ideia de cumprimento de pena, proporcionaram, dentre outros, o surgimento do direito à visita íntima.
Ora, havendo contato sexual da presa com seu marido, companheiro ou namorado, é possível que ocorra a gravidez, não deixando de ser um direito correlato, portanto, a assistência médica durante o período de gestação e, também, logo após. Ademais, outras modificações introduzidas nesta Lei permitem o contato da presidiária com seu filho, ao menos, até os sete anos (ver art. 89, caput, LEP) (NUCCI, 2020, p. 34).
Por sua vez, Norberto Avena (2019, p. 30), ao comentar o mesmo excerto legal, aponta que “na prática, essa assistência é bastante prejudicada pela absoluta falta de estrutura dos estabelecimentos penais, tanto em termos de recursos humanos como de espaço físico adequado”, o que apresenta, desde já, o grave contraste entre previsões legais relativas à proteção da mulher e a realidade carcerária enfrentada por esta.
1.2. O Marco Legal da Primeira Infância e sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere
A Lei n. 13.257/16 é conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, representando uma legislação “que pavimenta o caminho entre o que a ciência diz sobre as crianças, do nascimento aos 6 anos, e o que deve determinar a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância”[7].
Em suma, o Marco Legal sustenta o seguinte:
Garantir às crianças o direito de brincar
Priorizar a qualificação dos profissionais sobre as especificidades da primeira infância.
Reforçar a importância do atendimento domiciliar, especialmente em condições de vulnerabilidade.
Ampliar a licença-paternidade para 20 dias nas empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã.
Envolver as crianças de até seis anos na formatação de políticas públicas.
Instituir direitos e responsabilidades iguais entre mães, pais e responsáveis.
Prever atenção especial e proteção a mães que optam por entregar seus filhos à adoção e gestantes em privação de liberdade[8].
De acordo com os termos do artigo 1.º da Lei, esta visa estabelecer princípios e “diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano"[9], com repercussão em diversas vértices do ordenamento jurídico, sobretudo no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de tocar também à legislação processual penal.
O artigo 41 da Lei n. 13.257/16 determinou alterações nos artigos 6.º, 185, 304 e 318 do Decreto-Lei n. 3.689/41, o Código de Processo Penal. Incialmente, a partir da edição do artigo 6.º do Diploma Processual, a Lei determinou à autoridade policial, quando do conhecimento da prática da infração penal, a responsabilidade de colher informações quanto à existência de filhos, com dados relacionados à sua idade e eventual deficiência física, bem como quanto ao eventual responsável por estes e seu contato. Este é o mesmo comando quando do colhimento do interrogatório do(a) acusado(a), o qual igualmente deverá estar acompanhado das informações precitadas.
No mesmo sentido, o artigo 304 do Código Processual Penal foi alterado, afirmando a obrigatoriedade da informação quanto à “a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa”[10] quando da lavratura do auto de prisão em flagrante.
A principal alteração em matéria fática está ligada à alteração que o Marco Legal da Primeira Infância provocou no artigo 318 da Lei de Processo Penal, em seu capítulo relacionado à prisão domiciliar. O dispositivo precitado passou a prever a hipótese de prisão domiciliar, em substituição à prisão preventiva, caso a agente seja gestante (inserção do inciso IV ao artigo 318) ou mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos (inserção do inciso V ao artigo 318), além de prever igualmente a possibilidade ao homem, em sendo este o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos de idade incompletos (inserção do inciso VI ao artigo 318).
1.3. A Lei n. 13.769/18 e sua repercussão na situação processual penal da mãe e gestante recolhida ao cárcere
A Lei n. 13.769/18 igualmente trouxe um avanço, na proteção tanto de crianças quanto da pessoa com deficiência, ao passo que inseriu no Código de Processo Penal (artigos 318-A e 318-B) a obrigatoriedade da prisão domiciliar à mulher gestante, ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, em substituição à prisão preventiva, desde que cumpridos os requisitos que dispõe, a saber, não ter sido o crime cometido com violência ou grave ameaça a pessoa e não ter sido cometido contra o próprio filho ou descendente[11]:
Art. 318-A. A prisão preventiva imposta à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência será substituída por prisão domiciliar, desde que:
I - não tenha cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não tenha cometido o crime contra seu filho ou dependente.
Art. 318-B. A substituição de que tratam os arts. 318 e 318-A poderá ser efetuada sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 deste Código.
Dentre as alterações que a Lei n. 13.769/18 provocou na Lei de Execução Penal está a determinação para que o Departamento Penitenciário Nacional acompanhe a execução da pena das mulheres beneficiadas pela progressão de regime especial da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, nos seguintes termos:
Art. 72. São atribuições do Departamento Penitenciário Nacional:
[...]
VII - acompanhar a execução da pena das mulheres beneficiadas pela progressão especial de que trata o § 3º do art. 112 desta Lei, monitorando sua integração social e a ocorrência de reincidência, específica ou não, mediante a realização de avaliações periódicas e de estatísticas criminais.
[...]
§ 2º Os resultados obtidos por meio do monitoramento e das avaliações periódicas previstas no inciso VII do caput deste artigo serão utilizados para, em função da efetividade da progressão especial para a ressocialização das mulheres de que trata o § 3º do art. 112 desta Lei, avaliar eventual desnecessidade do regime fechado de cumprimento de pena para essas mulheres nos casos de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça[12].
No tocante à citada progressão especial da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, a Lei acabou por dirigir tratamento diferenciado à mulher nestas condições, determinando o seguinte:
Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos:
[...]
§ 3º No caso de mulher gestante ou que fr mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são, cumulativamente:
I - não ter cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente;
III - ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior;
IV - ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento;
V - não ter integrado organização criminosa.
§ 4º O cometimento de novo crime doloso ou falta grave implicará a revogação do benefício previsto no § 3º deste artigo[13].
A Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90) também sofreu alterações quanto à progressão de regime, em se tratando da hipótese acrescentada ao artigo 112 da Lei de Execução Penal (§§ 3.º e 4.º), mas o dispositivo inserido, o § 2.º do artigo 2.º da Lei dos Crimes Hediondos, foi revogado quando da aprovação da Lei n. 13.964/19, conhecida como Pacote Anticrime.
Todas as alterações e inserções legislativas precitadas corporificaram o ordenamento jurídico principalmente considerando os interesses do menor e da pessoa com deficiência física, visando seu desenvolvimento, formação e proteção, mas visou igualmente dirigir tutela diferenciada à mãe e gestante em privação de liberdade, o que relaciona as medidas adotadas pelo legislativo com aspectos atinentes à própria dignidade humana desta mulher.
2. A CONDIÇÃO CARCERÁRIA DAS GESTANTES, PUÉPERAS E MÃE E O HABEAS CORPUS COLETIVO 143.641-SP (STF)
2.1. Os dados acerca da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância às mulheres alvos de seu alcance
O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) divulgou, em setembro de 2019, um estudo relacionado à aplicação do Marco Legal da Primeira Infância com o fim do desencarceramento de mulheres, titulado como “Maternidade Sem Prisão: diagnóstico da aplicação do Marco Legal da Primeira Infância para o desencarceramento de mulheres” (ITTC, 2019).
A constatação conclusiva, após análise da situação de cerca de 601 mulheres, sujeitas de diferentes fases processuais, foi de que as disposições inseridas no Código de Processual Penal em favor do desencarceramento da mulher pelo Marco Legal da Primeira Infância não estavam sendo cumpridas.
Para tanto, analisou-se a situação de mulheres sujeitas ao processo penal em audiência de custódia, processo de instrução e processos que recorreram a tribunais superiores. Constatou-se que, dentre aquelas que passaram por audiência de custódia, aproximadamente 83% tiveram o benefício negado:
Os desfechos das audiências de custódia dessas mulheres potencialmente beneficiárias nos permitem aferir quanto o Marco Legal foi efetivamente aplicado. Houve determinação da liberdade provisória em 65 desses 120 casos, o que representa 54,2%. Das 55 mulheres restantes, 45,8% de 120 tiveram decretada a sua prisão preventiva. Contudo, destas, somente 9 tiveram a prisão preventiva convertida em prisão domiciliar, sendo que em 46 casos, a conversão foi negada.
Isso significa que, das 55 mães de crianças menores de 12 anos ou com deficiência, gestantes e/ou imprescindíveis aos cuidados de outros que tiveram a prisão decretada e poderiam tê-la substituída pela prisão domiciliar, 83,6% não tiveram a medida aplicada. O gráfico abaixo ilustra esses números (ITTC, 2019, p. 39).
Quando da análise de mulheres sujeitas de processos em instrução, a pesquisa destacou que cerca de 80% dessas mulheres não tiveram o benefício intentado pelo Marco Legal da Primeira Infância aplicado. Segundo o Instituto (2019, p. 39-40):
[...] na segunda etapa da pesquisa, analisamos os processos de instrução de 200 mulheres e identificamos 107 delas que teriam direito às previsões do Marco Legal: 92 mães de crianças com até 12 anos com deficiência; 4 mulheres gestantes; 8 que são mães e gestantes; 3 mulheres que declararam ser imprescindíveis aos cuidados de outros.
Dessas 107 mulheres, 67,3% permaneceram presas. Dentre as restantes, 18 tiveram concedida a prisão domiciliar; 16 a liberdade provisória; e 1 obteve a revogação da prisão temporária.
Isto é, excluindo-se as 17 mulheres que tiveram concedida a liberdade (ou tiveram a prisão temporária revogada), restam 90 potenciais beneficiárias. Portanto se dessas 90, só 18 mulheres tiveram a prisão domiciliar concedida em algum momento de seu processo judicial (até o momento da consulta eletrônica aos autos), podemos dizer que, 80% não tiveram o benefício aplicado.
Já nas Cortes Superiores a realidade se mostrou um pouco diferente, uma vez que, ao acompanhar os recursos judiciais específicos para substituição da prisão preventiva pela domiciliar, o ITTC (2019) expôs que em aproximadamente 64% dos casos houve a concessão da prisão domiciliar, ao passo que as negativas representaram cerca de 38%:
Já na última etapa da pesquisa observamos 200 decisões do STF ou STJ, todas relativas a mulheres que teriam direito à prisão domiciliar, e que por isso entraram com ações especificamente para fazer esse pedido perante esses tribunais.
Aqui, os números foram distintos, uma vez que, a maioria das decisões (total de 116) concedeu a substituição da prisão preventiva pela domiciliar, correspondendo a 58% das decisões concedidas pelos Tribunais Superiores. Em contrapartida, 71 das mulheres teve mantida a sua prisão preventiva, o que representa 35,5% das 200 decisões analisadas. Dessa porcentagem foram excluídos 9 casos em que as mulheres tiveram concedida a liberdade provisória (com ou sem cautelares) e 4 que tiveram outros tipos de decisões que as mantiveram em liberdade (semi-aberto e aguardar julgamento em liberdade).
Assim, considerando-se os 116 casos que tiveram concedida a prisão domiciliar e os 73 que tiveram o pedido negado, apuramos que nos Tribunais Superiores a taxa de concessões de prisão domiciliar é de 64,1% e a de negativas é de 38,6% (ITTC, 2019, p. 40).
Destarte, as observações supras são suficientes para expor um problema grave na aplicação legal dos benefícios inaugurados pelo Marco Legal da Primeira Infância às mulheres gestantes, puérperas e mães de menor de 12 anos de idade e responsáveis por pessoa com deficiência submetidas ao processo penal, uma vez que, inobstante as intenções da lei, bem como seus critérios objetivos de aplicação, a relativização de seus termos e a utilização de outros critérios, para além daqueles previstos em lei, acabam por obstar o acesso dessas mulheres ao benefício legal.
Em razão deste extenso descumprimento das previsões legais, logrou-se impetrar, no Supremo Tribunal Federal (uma vez que até mesmo o Superior Tribunal de Justiça era considerado autoridade coatora) um habeas corpus coletivo, com vistas a assegurar a estas mulheres as garantias previstas em lei e repelir a ilegalidade dos obstáculos postos à efetivação de seus direitos.
2.2. Aspectos acerca do Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP (STF)
O Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski no Supremo Tribunal Federal, representou um marco no cuidado das mulheres gestantes, puérperas ou mães com criança com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade e mesmo das próprias crianças.
Impetrado pela Defensoria Pública da União (DPU) e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), o habeas corpus teve como paciente “todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças”[14], sendo motivado, em suma, pela seguinte situação:
[...] a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, subtraindo-lhes o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pósparto, e ainda privando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa.
Asseveraram que a política criminal responsável pelo expressivo encarceramento feminino é discriminatória e seletiva, impactando de forma desproporcional as mulheres pobres e suas famílias.
[...]
Salientaram o caráter sistemático das violações, no âmbito da prisão cautelar a que estão sujeitas gestantes e mães de crianças, em razão de falhas estruturais de acesso à Justiça, consubstanciadas em obstáculos econômicos, sociais e culturais.
Ressaltaram que os estabelecimentos prisionais não são preparados de forma adequada para atender à mulher presa, especialmente a gestante e a que é mãe.
Além disso, conforme supracitado, o habeas corpus baseou-se também na violação das disposições inseridas pela Lei n. 13.257/16 – citadas logo acima nesta obra –, ao Código de Processo Penal, sustentando que apesar da possibilidade da “a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças, o Poder Judiciário vem sendo provocado a decidir sobre a substituição daquela prisão por esta outra, nos casos especificados pela Lei”[15], mas que em quantidade significativa de casos, aproximadamente metade, o pedido tem sido indeferido. Além disso, dentre outras várias alegações:
Informaram que as razões para o indeferimento estariam relacionados à gravidade do delito supostamente praticado pelas detidas e também à necessidade de prova da inadequação do ambiente carcerário no caso concreto.
Aduziram que esses argumentos não têm consistência, uma vez que a gravidade do crime não pode ser, por si só, motivo para manutenção da prisão, e que, além disso, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.
Disseram que se faz necessário reconhecer a condição especial da mulher no cárcere, sobretudo da mulher pobre que, privada de acesso à Justiça, vê-se também destituída do direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar.
Insistiram em que essa soma de privações acaba por gerar um quadro de excessivo encarceramento preventivo de mulheres pobres, as quais, sendo gestantes ou mães de criança, fariam jus à substituição prevista em lei.
Asseveraram que a limitação do alcance da atenção pré-natal, que já rendeu ao Brasil uma condenação pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (caso Alyne da Silva Pimentel versus Brasil), atinge, no sistema prisional, níveis dramáticos, ferindo direitos não só da mulher, mas também de seus dependentes, ademais de impactar o quadro geral de saúde pública, bem como infringir o direito à proteção integral da criança e o preceito que lhe confere prioridade absoluta.
Citaram casos graves de violações dos direitos das gestantes e de seus filhos, e realçaram que esses males poderiam ser evitados, porque muitas das pessoas presas preventivamente no Brasil são, ao final, absolvidas, ou têm a pena privativa de liberdade substituída por penas alternativas.
[...][16]
Assim, a demanda exposta no Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP expôs extenso e grave descumprimento de toda a legislação aventada acima quanto ao cuidado da mulher gestante, puérpera e mãe de criança com menos de 12 anos de idade em situação de privação de liberdade. Os avanços trazidos pelo Marco Legal da Primeira Infância ao Diploma Processual Penal também foram apontados no remédio constitucional precitado como alvo de descumprimento pela extensão do país, assim como a pesquisa encabeçada pelo ITTC.
Em uma primeira decisão, de caráter liminar, proferida em fevereiro de 2018, o Min. Ricardo Lewandowski concedeu parcialmente o pedido elencado no remédio constitucional, determinando a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para todas as mulheres gestantes, puérperas ou mães de criança com até 12 anos e pessoas com deficiência recolhidas no sistema prisional. No entanto, alguns pontos da decisão, que foi acompanhada pelos pares do Ministro, foram alvo de críticas pelas entidades representativas relacionadas ao processo. Segundo o ITTC (2019, p. 18):
[...] a decisão do Ministro não foi universal, sendo, mais restritiva que a lei. Nos termos propostos por Lewandowski, determinou-se que a aplicação da prisão domiciliar poderia excetuar-se nos casos em que o crime seja cometido com violência ou grave ameaça, ou, ainda, em “situações excepcionalíssimas”. O relator não especificou o que seriam as referidas situações, deixando-as absolutamente indeterminadas e limitando-se a pontuar que, nesses casos, os juízes devem fundamentar devidamente as decisões contrárias à aplicação da prisão domiciliar, abrindo espaço para discricionariedades.
Após levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), constatou-se que somente 426 mulheres, das 10.693 potenciais elegíveis para o benefício, alcançaram a concessão da prisão domiciliar entre fevereiro e outubro daquele ano (ITTC, 2019), o que acabou motivando nova decisão, proferida no mês de outubro de 2018, resumida pelo ITTC (2019, p. 19) nos seguintes termos:
A decisão proferida em outubro também aborda relatos sobre não aplicação da medida em casos relacionados ao tráfico de drogas. Frisou-se, por exemplo, que o fato de uma mulher ter sido presa em flagrante levando substâncias entorpecentes para dentro de estabelecimento prisional não é situação que impede a aplicação da prisão domiciliar, pois não configura “situação excepcionalíssima”. Também o fato de uma mulher ter sido flagrada na posse de drogas em seu domicílio não pode ser considerado como impeditivo para a aplicação da prisão domiciliar. Ainda, indica que eventual passagem pela Vara da Infância ou a falta de comprovação de trabalho formal tampouco são argumentos que obstam a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar. Ao final, o Ministro requisitou mais informações sobre o monitoramento da aplicação da decisão pelas entidades participantes da ação.
O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e a Pastoral Carcerária Nacional, apresentaram uma dessas manifestações. O documento teve como finalidade reforçar a necessidade de estabelecimento de critérios objetivos para aplicação da prisão domiciliar, a fim de reduzir possíveis arbitrariedades justificadas nas “situações excepcionalíssimas” ou a utilização de negativas fundadas em critérios que não estão previstos no Marco Legal ou na decisão do Ministro Lewandowski.
Percebeu-se, por fim, haver grave violação dos direitos das mulheres submetidas ao processo penal e ao cárcere relativos à sua condição de gestante, puérpera ou mãe responsável por criança ou pessoa com deficiência. Há até mesmo um componente moralista que influi sobre as decisões judicias pelo país irradiando sobre o julgamento da condição dessas mulheres, em detrimento dos critérios objetivos estabelecidos legalmente na processualística penal e mesmo na decisão do habeas corpus supracitado. Isabela Cunha (2019, s/p)[17], ao opinar sobre o descumprimento da lei em desfavor dessas mulheres, discorreu:
A prisão domiciliar é uma das expressões mais simbólicas da forma como o sistema penal está estruturado sobre articulações de gênero. Às mulheres infratoras que desviaram do padrão de feminilidade, docilidade e domesticidade que deveriam corresponder, o seu aprisionamento em suas casas, junto a seus filhos e família, pode ser considerado suficiente para restaurá-las a tal comportamento. Mas o modo como a medida vem sendo aplicada na prática demonstra o quanto a interseccionalidade complexifica e amplia a assimetria dentro das relações sociais. O atravessamento de diferenças de classe, raça, nacionalidade e outras faz com que o encarceramento siga sendo a principal medida aplicada pelo sistema de justiça criminal para as mulheres infratoras provenientes de realidades diversas daquela por ele defendida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Abordou-se, na extensão deste trabalho, desde os aspectos gerais a respeito da proteção da mulher em condição de cárcere e a legislação relacionada à execução penal, as alterações provocadas pelo Marco Legal da Primeira Infância no processo penal e, ao final, debateu-se a condição das mães e gestantes à luz do sistema carcerário e seu diálogo com o sistema penal brasileiro e o Habeas Corpus Coletivo (STF) n.º 143.641-SP.
Cumpriu-se, pois, com o objetivo incialmente aventado, qual seja, contrastar a realidade vivenciada pelas mulheres sujeitas do processo penal pelo país com as disposições legais que devem servir ao benefício de algumas delas, mormente aquelas que estão gestantes, puérperas ou são mães de crianças ou pessoas com deficiência física.
Concluiu-se, após a realização da presente análise que a situação dessas mulheres indica, a princípio, um não cumprimento mesmo das medidas legais garantidas em seu favor, asseguradas na legislação para sua proteção e para a proteção daqueles que dependem de sua presença para seu desenvolvimento.
No Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP (STF), expôs-se, inclusive, gravíssima violação de diretos da mulher encarcerada, em absoluta contraposição com os direitos e garantias assegurados pela Lei de Execução Penal, como, por exemplo, a ausência de berçários e centros materno-infantis e demais instalações para atendimento de mães e gestantes e crianças nos estabelecimentos penais.
Isto é, a falha do Estado ante os direitos dessas mulheres não somente diz respeito ao descumprimento, por exemplo, da determinação processual relacionada à substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar (nos casos em que especifica), mas também, no caso daquelas que permanecem no cárcere, há gravíssima violação dos mínimos deveres assistenciais estabelecidos pela Lei de Execução Penal à mulher, malferindo-se direitos e garantias constitucionais, ligados a aspectos de sua própria dignidade humana.
Outrossim, observou-se que há deficiência na elaboração de dados oficiais quanto ao sistema penitenciário relacionados ao número de mulheres em condição de privação de liberdade que teriam direito, por exemplo, à substituição da pena preventiva pela domiciliar, o que dificulta e até impossibilita melhor apreciação da eficiência legal das determinações inauguradas pelo Marco Legal da Primeira Infância, além daqueles estabelecidos pela Lei n. 13.769/18. A própria ausência ou inconsistência de tais dados representa uma violação de direitos, uma vez que a obscuridade de sua constatação repercute na percepção do problema do encarceramento da mulher e minimiza a necessidade de políticas públicas em seu cuidado.
Identificou-se ainda que a ausência de objetividade na apreciação, pelo Poder Judiciário, do direito da mulher, nas condições especificadas em lei, à substituição da prisão preventiva pela domiciliar, como manda a lei, acaba por obstar o acesso desta aos direitos concedidos pela lei, uma vez que o componente moralista que incide sobre as decisões judiciais dificulta a concessão, burocratizando-a ao criar requisitos que não compõem o rol legal.
Espera-se que haja uma reforma principalmente no pensamento judicial, que deve acompanhar e se deixar influir pelos avanços legais, em consideração aos direitos das mulheres mães, gestantes e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, levando-se que em conta a superação da cultura do encarceramento e as condições sub-humanas que o sistema penitenciário brasileiro ostenta atualmente.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei de Execução Penal. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília, 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 16 set. 2020.
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CUNHA, Isabela. Por que, mesmo depois de um Habeas Corpus coletivo, ainda há mulheres presas com seus filhos no Brasil? 2019. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/79830-2/>. Acesso em: 05 out. 2020.
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NUNES, Aldeildo. Comentários à lei de execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143.641 São Paulo. Pacientes: Todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias crianças. Impetrante: Defensoria Pública da União. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Segunda Turma. Data de julgamento: 24/10/2018. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em: 25 set. 2020.
[1] Orientadora. Possui graduação em Direito pela Faculdade UNIRG-TO; Especialização "lato-sensu" em Direito Processual Civil e Penal (2006) e em Direito Público (2007), pela Faculdade FESURV-GO; Mestrado em Direito pela Universidade de Marília-SP (2010), Doutorado em Direito Privado pela Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Atua como advogada no Estado do Tocantins e como Professora no curso de Direito da Católica do Tocantins. Tem experiência na área do Direito, com ênfase em Direito Civil e Direito Processual Civil.
[2] Orientadora. Doutora e Mestre em Educação (UFBA). Professora do UniCatólica. Membro do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências e Saúde, da Universidade Federal do Tocantins-Brasil. E-mail: [email protected]
[3] Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf>. Acesso em 15 set. 2020.
[4] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 16 set. 2020.
[5] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 16 set. 2020.
[6] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 set. 2020.
[7] FUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL, 2016, disponível em: <https://www.fmcsv.org.br/pt-BR/impacto/marco-legal/>. Acesso em: 22 set. 2020.
[8] FUNDAÇÃO MARIA CECÍLIA SOUTO VIDIGAL, 2016, disponível em: <https://www.fmcsv.org.br/pt-BR/impacto/marco-legal/>. Acesso em: 22 set. 2020.
[9] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
[10] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
[11] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
[12] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
[13] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 22 set. 2020.
[14] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em 25 set. 2020.
[15] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em 25 set. 2020.
[16] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/HC143641final3pdfVoto.pdf>. Acesso em 25 set. 2020.
[17] Disponível em: <https://diplomatique.org.br/79830-2/>. Acesso em: 05 out. 2020.
Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Católica do Tocantins.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, ana julia ferreira da silva. Condição das mães e gestantes à luz do sistema carcerário: interfaces com o sistema penal brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 nov 2020, 04:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55515/condio-das-mes-e-gestantes-luz-do-sistema-carcerrio-interfaces-com-o-sistema-penal-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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