RESUMO: O presente artigo teve como objetivo a abordagem a respeito da enorme importância de uma carreira por muitas vezes desvalorizada dentro das carreiras jurídicas: a de delegado de polícia. Em se tratando de uma carreira que impõe ainda mais fortemente ao servidor o dever da fiel observância dos trâmites legais para a condução de suas atribuições – como vemos refletida na produção de provas, por exemplo – temos que a sua atuação é muito importante para resguardar a ordem social e jurídica vigente no país. Além disso, durante a condução da prisão do acusado, torna-se muito importante que o delegado de polícia, assim como os demais servidores da delegacia, observem a execução dos trâmites dentro dos parâmetros legais, em especial os que dizem respeito a garantia de direitos fundamentais, para que prisões de acusados que deveriam estar recolhidos no presídio não se deixem ser anuladas por serem consideradas ilegais em decorrência da maneira que foram executadas, ou seja, da forma.
PALAVRAS-CHAVE: Direito, Polícia, Direitos Humanos, Direitos Fundamentais, Atuação.
ABSTRACT: This article aimed to approach the enormous importance of a career that is often devalued within legal careers: that of police chief. In the case of a career that imposes even more strongly on the server the duty of faithful observance of legal procedures for the conduct of his duties - as we see reflected in the production of evidence, for example - we have that his performance is very important to safeguard the social and legal order in force in the country. In addition, while conducting the accused's arrest, it becomes very important that the police chief, as well as the other police officers in the police station, observe the execution of procedures within the legal parameters, especially those that concern the guarantee of rights fundamental, so that arrests of defendants who should be held in the prison are not allowed to be annulled because they are considered illegal due to the way they were executed, that is, the form.
KEYWORDS: Law; Police; Human rights; Fundamental Rights; Performance
INTRODUÇÃO
Ao cargo de delegado de polícia, recai uma enorme responsabilidade: indicar, de forma coesa, os indícios que o levam a acreditar que tal pessoa cometeu o crime sob sua investigação. Para isso, é necessário que se façam diligências para a elucidação dos fatos, uma vez que estas demonstrarão o convencimento do delegado naquele indiciamento.
No entanto, a condução de diligências durante a investigação nem sempre é feita de forma legal. É necessário que o inquérito policial respeite aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, por mais que parte destes direitos sejam relativizados buscando a eficácia da lei penal e os interesses da coletividade.
Por ser o presidente do inquérito de polícia como dispõe o artigo 4º e seguintes do CPP, é responsabilidade do delegado de polícia prezar pela obediência da Constituição, cabendo a interpretação do Código de Processo Penal à luz constitucional, para evitar que certas violações de direitos e garantias fundamentais existam, tais como a decretação (irregular) da incomunicabilidade do preso, conforme dispõe o CPP – artigo que não foi recepcionado pela Constituição de 1988. Como continua na lei, é possível que um leigo auxiliar do dia a dia da delegacia acredite ser viável a incomunicabilidade do preso por conta da circunstância e de quem ele é (se possui maus antecedentes ou reincidência, por exemplo).
Por isso, a pesquisa justifica-se na tentativa de elucidar e demonstrar os deveres do delegado, não como perseguidor da pessoa do acusado, mas sim aquele que quer elucidar os fatos e garantir que todos os direitos fundamentais inerentes do acusado sejam respeitados, ressalvadas as hipóteses em que, por interesse da coletividade e da ordem pública, se faz necessária a relativização de direitos, como o caráter inquisitivo do inquérito, por exemplo.
No primeiro item, o trabalho apresentará um breve histórico a respeito da atuação do delegado de polícia, de maneira que pretende-se demonstrar que função que hoje é exercida pelo delegado de polícia está presente, de alguma maneira, em toda a história do Brasil – por mais que, inicialmente, não houvesse a carreira de delegado de polícia propriamente dita.
Após isso, no segundo item deste trabalho, será abordado o impacto da Constituição Federal da República dentro da carreira do delegado de polícia, uma vez que, a partir da sua promulgação, existem garantias constitucionais dadas ao processo penal e aos apenados, que anteriormente a ela não existiam.
Nesse sentido, o processo penal passou a respeitar os direitos fundamentais dos acusados, procurando respeitar vários direitos como o contraditório, a ampla defesa e a dignidade da pessoa humana, por exemplo.
Por fim, o terceiro tópico do presente trabalho discutirá a respeito da atuação da polícia judiciária em prol da comunidade, uma vez que a polícia judiciária, como veremos, é a que mais chega perto do que realmente ocorreu naquele contexto de crime, uma vez que é a polícia judiciária que realiza a investigação daquele crime.
1 BREVE HISTÓRICO SOBRE A ATUAÇÃO DO DELEGADO DE POLÍCIA
A Polícia Civil, aqui representada por meio da figura do delegado de polícia, é peça fundamental para a concretização de diversos direitos sociais e fundamentais.
Sua atuação na resolução de crimes traz dignidade as famílias das vítimas, resolve – em um primeiro momento - a controvérsia a respeito de quais são os prováveis fatos em que se deu a execução daquele crime, além de trazer o seu contexto, indicando os prováveis motivos do crime, podendo, inclusive, conectar a ocorrência de um crime a outro com mesmo autor e modus operandi, por exemplo.
Nesse sentido, cabe ressaltar que a atuação do delegado de polícia defende alguns dos direitos mais importantes ao cidadão, como seu patrimônio, sua integridade física e a liberdade, por exemplo:
No curso de sua atividade diuturna, a autoridade policial lida diretamente com direitos muito caros ao cidadão: imagem, liberdade, integridade física, patrimônio, dentre outros. É responsabilidade do delegado estar atento à observância da Constituição Federal e da legislação de regência quando da prática de seus atos e os de sua equipe, de forma a não vilipendiar os direitos escritos com pena de ouro pelo legislador constituinte e as regras de procedimento grafadas na legislação infraconstitucional
Feitas essas considerações, a partir de agora adentraremos a um breve histórico a respeito da atuação da autoridade policial a partir do tempo, e veremos como suas competências evoluíram a partir da evolução do contexto social e jurídico em que a sociedade estava inserida.
Desde as origens do direito brasileiro, sempre houve alguma forma de investigação preliminar dentro do Brasil colônia. Assim, a função do delegado de polícia pode ser entendida como inserida no contexto jurídico desde o início do direito brasileiro, mais um fato em que resta demonstrado a sua importância a ordem jurídica.
Inicialmente, o Brasil colônia tinha dois tipos de investigação: a devassa e a querela. A devassa era uma investigação ordinária, sem preliminar indicação de autoria ou de indícios de autoria delituosa, ao passo que a querela era uma investigação sumária, ou seja, com prévia indicação de autoria ou seus indícios
Importante ressaltar que, nesse primeiro momento, a função que hoje é reservada ao delegado de polícia, ou seja, a de investigação de materialidade e autoria, era feita pelo juiz, que tinha acumuladas as funções que hoje são atribuídas ao delegado de polícia e a que lhe é casta ainda hoje, ou seja, a de analisar os fatos e dar a decisão.
Até então, não havia uma polícia dedicada exclusivamente a investigação de delitos, embora houvesse outros tipos de polícia no Brasil colônia, como as polícias ostensivas
Essa configuração, no entanto, foi se demonstrando inadequada ao longo do tempo. Isso porque não havia polícias dedicadas a investigação dos delitos e deixar essa condução a cargo do juiz revelava-se cada vez mais inadequado, uma vez que o juiz se tornava um juiz inquisidor, ou seja, ele apresentava as provas e julgava.
A figura do juiz inquisidor era temerária, uma vez que não havia paridade de armas entre o acusado e o Estado, ali representado pelo juiz. Não havia muitas chances de o acusado convencer ao juiz que os supostos indícios encontrados contra ele não procediam, vez que havia algum vício na coleta daqueles dados, por exemplo.
Além disso, o convencimento do juiz já encontrava-se formado: ao atuar ativamente na coleta de provas contra o acusado, macula-se qualquer chance de um juízo de valor imparcial por parte do juiz, de maneira que essa configuração por parte do direito feria direitos hoje considerados como fundamentais, tais como o afetivo contraditório e ampla defesa, direitos estes consagrados hoje com status de proteção constitucional.
A primeira configuração de polícia com o objetivo de executar as investigações criminais surgiu apenas a partir de 1808. Isso porque a partir dessa data é que foi criada a Intendência Geral de Polícia, cuja chefia era desempenhada por um desembargador, nomeado Intendente Geral de Polícia, com status de ministro de Estado.
Já a partir de 1827, houve algumas mudanças nas persecuções penais. A ideia era afastar a centralização do poder que a persecução penal trazia ao monarca, de maneira que os juízes de paz tinham as mesmas funções que aqueles anteriores, porém eram eleitos nas comunidades:
[…] introduziu o juiz de paz previsto na Constituição de 1824, com atribuição policial e judiciária, e extinguiu os delegados de polícia. A principal diferença entre os delegados de polícia e os juízes de paz vinha da origem da autoridade judicial. Enquanto a autoridade do intendente e do comissário emanava do monarca, a do juiz de paz vinha da eleição na localidade. (BONELLI, 2003, p. 6-7 APUD PERAZZONI, 2013)
A figura do juiz inquisidor, diferente do modelo de juiz do nosso Estado de Democrático de Direito atual, continuou e foi ratificado pelo Código de Processo Criminal de 1832, conferindo novamente a mesma pessoa a incumbência de julgar e efetuar o levantamento das provas de indício e materialidade dos crimes.
Só a partir de 1841 é que houve a atribuição explícita das competências do delegado de polícia no direito brasileiro. Os chefes das autoridades policiais deveriam ser nomeadas dentre juízes e cidadãos respeitáveis, e as denominações destas autoridades seriam Chefe de Polícia, Delegado de Polícia e Subdelegado de Polícia, respectivamente o primeiro, segundo e terceiro em comando daquelas atribuições.
Para Zaccariotto (2005, p. 60-61 APUD Perazzoni, 2013), a reforma a qual enfrentou a Polícia Administrativa e a Polícia Judiciária em 1842 teve algumas falhas. Entre elas, o autor cita a falta de separação das funções judiciais e executivas, que, nesse momento, continuam nas mãos das mesmas pessoas, maculando assim o contraditório e ampla defesa efetivos:
À polícia judiciária de então, quase sempre exercida por magistrados togados, competia mais que a apuração das infrações penais (função criminal), cabendo-lhe também o processo e o julgamento dos chamados “crimes de polícia” (função correcional) […] Falhou a reforma, destarte, precisamente por não realizar a separação, já há tempo veementemente reclamada, entre as funções judiciais e policiais (executivas), que continuaram em mãos únicas […] Quase três decênios de protestos e inúmeros projetos legislativos foram necessários para reverter os excessos perpetrados por meio das mudanças em comento […]
Como bem ressaltado pelo autor, a concentração do poder de julgar e da persecução penal abrem brechas para a execução de vários excessos por parte das autoridades estatais, violando direitos que a época não eram considerados como fundamentais, mas que no atual Estado de Direito brasileiro são muito importantes e dispostos no art. 5º da Constituição Federal.
A separação das funções de julgamento e investigação criminal só foram ocorrer a partir de 1871, trazendo importantes avanços de direitos humanos, como a vedação de julgamento por parte das autoridades policiais de qualquer tipo de ilícito penal, reservando-se essa incumbência a autoridade julgadora.
Pontes Filho (2020) esclarece que a Polícia Civil no Estado do Amazonas teve como primeiro juiz municipal – incumbido também da administração da polícia – o vereador Henrique João Cordeiro. Há também algumas curiosidades a respeito dos próximos chefes de polícia do Estado:
No Amazonas, à época Comarca do Alto Amazonas, que integrava a Província do Pará, a fim de dar efetividade ao Código de Processo Criminal do Império (1832), foi escolhido, em 03/01/1834, o vereador Henrique João Cordeiro para função de juiz municipal, a quem coube também administrar a polícia, com o título de Chefe de Polícia, sendo, portanto, o primeiro a ocupar a função. No tocante ao período posterior à elevação da Comarca à categoria de Província (1850), assumiu a função de Chefe de Polícia, a partir de 1852, o juiz de direito Manoel Gomes Correa de Miranda, pois a legislação à época estabelecia que o juiz devia acumular a chefia de polícia e ainda os foros da Fazenda. Posteriormente, com a criação do cargo de Chefe de Polícia para a Província do Amazonas, por meio do Decreto régio de 3 de fevereiro de 1854, o Imperador nomeou o bacharel Policarpo Nunes Leão, juiz de direito, para ocupá-lo, o qual iniciou o efetivamente o exercício a partir de 13 de dezembro daquele ano. Desse modo, a Província do Amazonas, que contava à época com cerca de 50 mil habitantes, teve como primeiro Chefe de Polícia nomeado pelo império o Juiz Policarpo Leão, natural da Bahia.
Dessa forma, observamos que a carreira de delegado de polícia sofreu inúmeras mutações de acordo com o tempo e as novas legislações que iam surgindo. Com a Constituição Federal de 1988, isso não foi diferente.
O próximo tópico abordará de maneira mais aprofundada a respeito das alterações constitucionais trazidas pela Constituição Federal de 1988, com ênfase no paralelo de como essas
2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A CARREIRA DO DELEGADO DE POLÍCIA
Como vimos anteriormente, a Constituição Federal de 1988 trouxe inúmeras mudanças a carreira de Delegado de Polícia, seja direta ou indiretamente.
Isso porque com os direitos e garantias fundamentais dispostos no artigo 5º, houve mudanças significativas no ramo do direito penal e processual penal. Logo, a carreira precisou se adequar a estas garantias constitucionais.
Atendo-se apenas aos fundamentos da Constituição Federal de 1988, podemos depreender que a Dignidade da Pessoa Humana é valor muito importante ao constituinte, uma vez que este fundamento se encontra junto a outros muito importantes a todo o povo brasileiro, como a soberania, cidadania e o pluralismo político:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
V - o pluralismo político.
Dessa forma, podemos depreender que o constituinte tem por principais objetivos a condução de uma sociedade que respeite valores de direitos humanos, e isso se reflete diretamente nas carreiras jurídicas, mas nesse caso em especial, mais ainda na de delegado de polícia.
Para Corrêa (2008), a atribuição e competência de reprimir as práticas de infrações penais é dada pela Constituição Federal de 1988, por meio do art. 144, parágrafos 1° e 4°:
O poder de polícia, a cargo da Administração Pública, é exercido por duas modalidades de polícias distintas: a polícia administrativa e a polícia judiciária. Os objetos dessas polícias são distintamente previstos tanto na carta magna quanto na legislação extravagante. Cada qual persegue fim diferente, apresentando como traço diferenciador o fato de a polícia administrativa atuar preventivamente - a fim de evitar que o crime aconteça - e a polícia judiciária dirigir a investigação criminal, buscando a elucidação dos delitos já cometidos.
É à polícia judiciária, formada pelas Polícias Civis Estaduais e Federal, que cumpre a repressão à prática de infrações penais, conforme preleciona o art. 144, parágrafos 1º e 4º da Constituição Federal4.
Nesse sentido, verificamos a importância da Polícia Judiciária para a investigação dos crimes, porém com um viés constitucional, que seria o respeito as garantias constitucionais que refletem no direito processual penal.
Um exemplo dessas garantias pode ser verificado, por exemplo, por meio da interpretação do artigo 21, do Código de Processo Penal, à luz da Constituição Federal de 1988.
O art. 21 do Código de Processo Penal trazia a possibilidade de o delegado de polícia optar pela decretação da incomunicabilidade do preso, desde que haja seu pedido expresso ao juiz e “quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”.
Como o Código de Processo Penal é anterior a Constituição Federal da República, entende-se que este artigo não foi recepcionado pela nova Carta Magna, uma vez que o art. 136, parágrafo 3°, inciso IV proíbe, expressamente, a incomunicabilidade do preso.
É importante que tal proibição encontra-se consagrada mesmo em situações extremas como é o caso do estado de sítio, que é um dos eventos mais graves que a nação poderia passar.
Assim, com a importância dada a garantias de direitos humanos para com os investigados – como foi o caso que acabamos de verificar, com a impossibilidade de incomunicabilidade do preso – cabe tecermos algumas considerações a respeito da atuação da polícia judiciária em prol da comunidade, uma vez que interessa a todos os esclarecimentos a respeito de atos penalmente relevantes.
3 ATUAÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA EM PROL DA COMUNIDADE
Para compreendermos de que maneira a polícia judiciária pode auxiliar a comunidade, é necessário compreendermos de que maneira o inquérito policial funciona. Para isso, é necessário primeiramente a diferenciação dos tipos de polícia existentes: a polícia administrativa e a polícia judiciária. O poder de polícia, em sua forma pura, é dividido entre poder de polícia administrativo e poder de polícia judiciário.
De forma simplificada, podemos dizer que o poder de polícia administrativo é aquele que incide sobre os bens das pessoas; ele tem função fiscalizadora e preventiva, não cabendo a ele a investigação e persecução de infrações penais. Esgota-se no âmbito administrativo.
Já a polícia judiciária tem por objetivo reprimir a prática das infrações penais, conforme entendimento de Corrêa (2008): “é à polícia judiciária, formada pelas Polícias Civis Estaduais e Federal, que cumpre a repressão à prática de infrações penais, conforme preleciona o art. 144, parágrafos 1º e 4º da Constituição Federal”
Segundo a Constituição da República, por meio do artigo 144, parágrafo 4º, é dever do delegado de polícia a apuração das ações penais de caráter comum, excluídas de sua apreciação os crimes especiais – militares.
Neste sentido, Rebelo (2016) afirma que “cabe ao delegado realizar a primeira análise acerca dos atributos e parâmetros de legalidade conferidos pela doutrina administrativista ao Poder de Polícia”.
Tais atributos consistem em: discricionariedade, auto executoriedade e coercibilidade (MARINELA, 2013, p. 235 APUD REBELO, 2016). Corrêa (2008) entende que o inquérito policial tem caráter elucidativo dos fatos, não predominantemente acusatório:
Importa frisar que a investigação preliminar tem por escopo elucidar um evento criminoso, verificando sua real existência e/ou materialidade e buscando a identificação de seu autor. Todavia, a atuação da polícia judiciária, como pré-processual que é, deve ater-se à coleta de todas as provas necessárias à elucidação do fato, sirvam estas ou não a acusação
Por mais que haja o entendimento formado de que o inquérito policial é dispensável ao processo penal, são raros os casos em que não há a presença do inquérito. Tal entendimento é corroborado por Corrêa (2008):
Disseminado o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o Inquérito Policial configura peça meramente informativa, reforçando sua prescindibilidade para instauração da ação penal. Todavia ao longo dos anos a realidade prática vem mostrando que raríssimas são as ações penais interpostas sem o auxílio e provas alcançados pelo IP e inúmeros os julgamentos cuja condenação se baseava, quase com exclusividade, nas provas produzidas pelo caderno investigativo
Nesse sentido, evidencia-se ainda mais a importância da figura do delegado de polícia, uma vez que, por ter o dever de presidir o inquérito, assegura que ele seja feito sob a égide da legalidade e com a observância de todos os princípios que lhe são peculiares.
Segundo Corrêa (2008), a polícia judiciária é a instituição que mais se aproxima a verdade natural do fato, uma vez que é a primeira a ter contato com o crime a partir da sua realização:
Por oportuno, observa-se ser a polícia judiciária instituição que mais se aproxima da verdade natural do fato, porquanto é a primeira a ter contato com o crime a partir de sua realização. Destarte possui maiores condições de proporcionar a produção de provas que se aproximem com maior eficiência do discutido7 Princípio da Verdade Real que norteia o processo penal. Isto reforça a importância da prova produzida no Inquérito Policial como elemento relevante para levar ao acusador e ao julgador as evidências que os ponham em contato com o crime, seus motivos, circunstâncias e seu autor.
Corroborando este entendimento sobre a importância da figura do delegado de polícia, Barbosa (2017) defende que o delegado de polícia exerce função de autoridade de garantias, por ter o poder de assegurar, por exemplo, a manutenção do direito de liberdade até que não haja outra opção senão a prisão preventiva:
o Delegado de Polícia não é uma figura autômata no âmbito da investigação criminal, pois a todo instante exerce função imanente de decidir, e uma das mais importantes, que dá sentido à sua função democrática, além da exclusiva função de investigar, é assegurar que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando for cabível liberdade provisória, ou até mesmo decidir pela não lavratura do auto de prisão em flagrante por estar calçada em prova ilícita, exercendo o papel de verdadeira autoridade de garantias, função tipicamente judicial, que não se confunde com a estritamente jurisdicional
No mundo ideal, sabemos que as diligências seguem os parâmetros de direitos humanos e direitos fundamentais dispostos na constituição federal. Porém, conforme observa-se no cotidiano forense, percebemos não ser totalmente procedente este pensamento, pois, segundo AZEVEDO et. al (2011), “a forma como a investigação policial é conduzida e o modo como é produzido o inquérito nas delegacias, apresenta oscilações entre o legal e o ilegal nas práticas policiais. A construção do inquérito vai depender, na prática, do controle das informações obtidas no decorrer das investigações.”
Ainda sobre a condução da investigação criminal e suas fases, (LOPES Jr., 2006 APUD AZEVEDO et al, 2011) frisa que:
é importante referir que, do ponto de vista normativo, a fase pré-processual, na qual a elaboração do inquérito policial está colocada, deve ter as ações direcionadas para o apontamento da probabilidade de materialidade e de autoria de um crime, não sendo cabível, nesse momento, a produção de provas, que deve ser feita em juízo (sendo excetuados os exames periciais), preservando, desse modo, todas as garantias do acusado
Portanto, ao poder escolher as diligências que serão realizadas, o delegado tem poder de controle sobre as informações obtidas nas investigações, que podem resultar em uma fase constitucional e garantista em relação aos direitos fundamentais do indivíduo ou em uma fase que poderá trazer sérias implicações negativas ao objetivo da verdade real no âmbito de um futuro processo – por ter diligências passivas de anulação por ilegalidade nos meios empregados, atrasando diligências que poderiam realmente elucidar os fatos – e consequentemente ignorar os direitos fundamentais do investigado.
Por isso, é necessária a efetiva atuação do delegado de polícia como operador do direito e conhecedor das normas constitucionais e infraconstitucionais que garantem direitos aos investigados em diligências do inquérito policial.
Tal entendimento é afirmado por Rebelo (2016), onde acredita que “(...) vale ressaltar a maior obrigação do delegado, como operador do direito, em conhecer e aplicar princípios expressos constitucionalmente como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.
Isso, no entanto, não significa dizer que a polícia judiciária não terá liberdade para conduzir a investigação de forma que possa garantir a ordem jurídica e o interesse da coletividade.
Rebelo (2016) entende que o delegado de polícia “deve se atentar para a proteção de direitos, de igual modo, daquele policial que teve de realizar o uso proporcional e progressivo da força para cessar uma injusta agressão a um bem juridicamente tutelado.”
Com a prestação desse serviço à comunidade, o delegado de polícia tem como consequência a melhora da imagem da polícia judiciária junto a sociedade, uma vez que cumpre seu papel constitucional e esperado pela população, de forma que mesmo que aja uma relativização de direitos fundamentais, esta relativização seja pautada em indícios oriundos de investigação respaldada legalmente.
Sobre a sua atuação perante a comunidade, Rebelo (2016) afirma que a sociedade tende a colaborar mais com as instituições estatais se houvessem decisões mais equânimes.
Essa colaboração poderia vir, por exemplo, por meio da prestação de informações para o Estado, para que seja possível a persecução penal destes que prejudicam a comunidade realmente, segundo Rebelo (2016):
Havendo decisões mais equânimes, a sociedade, partícipe no controle informal da criminalidade, tende a colaborar mais com as instituições, inclusive prestando informações para o Estado concretizar a persecução penal contra aqueles que de fato prejudicam o corpo social. Essa conjuntura pode ser observada, a contrario sensu, em diversas obras não científicas que relatam a realidade do enfrentamento à criminalidade por parte do Poder Público em diversas regiões do país, tais como Rota 66 (BARCELLOS, 1992) e Meu Casaco de General (SOARES, 2000). Em sentido contrário, infelizmente, porque a maioria desses livros ilustra o temor e o ódio que a população em geral adota face às instituições policiais. Todavia, apresenta-se plausível que diante da repreensão enérgica de arbitrariedades cometidas por agentes públicos e, da mesma forma, de criminosos perigosos, a população, ao contrário da preponderante realidade, principalmente nas periferias, comece a buscar a polícia como aliada.
Ainda existe um temor por parte da população em colaborar com o estado e seus agentes – aqui também nos referimos a polícia judiciária – pois, como trazido por Rebelo (2016), alguns agentes públicos ainda cometem arbitrariedades no exercício de suas funções.
Queiroz (2015) esclarece que, embora a Polícia Civil ainda carregue algumas cicatrizes de uma cultura autoritária, visto que por muitos anos foi utilizada como órgão repressor do Estado para perseguição de seus opositores, como ocorreu no caso da ditadura, a Polícia Civil hoje tem um viés mais constitucionalizado, visando a garantia dos direitos fundamentais aos indivíduos:
É bem verdade que a Polícia Civil ainda carrega, embrenhada em suas práticas, a cultura autoritária, fruto dos anos em que foi utilizado como órgão repressivo de governo. O que, de certa forma, é previsível, já que em uma democracia recente, como a brasileira, as práticas consagradas em determinada época, mesmo que reprovadas pela nova ordem política, convivem com as contemporâneas, perdurando a desaparecerem.
Todavia, afigura-se certo que o atual cenário político e jurídico exige uma acoplagem constitucional e convencional da atividade policial, notadamente do Delegado de Polícia, devendo ser extirpada a visão de investigação policial como máquina repressiva.
Podemos depreender, portanto, da fala de Queiroz (2015) que a tarefa do delegado de polícia não seria unicamente efetuar a prisão daqueles que acreditam ser culpados, mas analisar a legalidade dos fatos e preservar tanto os interesses do Estado em relação a preservação do direito das vítimas, quanto os direitos do acusado do suposto crime:
Nesse contexto, a função de um Delegado de Polícia vai muito além da tarefa de prender. Por ser o primeiro profissional com atribuição legal para realizar análise jurídica dos fatos, o primeiro “juiz” da causa, incumbe ao Delegado de Polícia a preservação do interesse do Estado de proteção dos indivíduos de uma injusta perseguição.
Assim, faz parte do dever do delegado de polícia a garantia da integridade física, psicológica e a dignidade tanto da vítima quanto do acusado na condução de investigações, uma vez que mesmo em uma situação de ocorrência de crime, o delegado de polícia, como representante do Estado, não pode permitir que ocorram violações de direitos a este investigado, como ocorre quando a população chega a linchar os acusados, por exemplo.
Quando isso ocorre, é sinal de que é necessário revisar os procedimentos adotados, vez que a abertura de brechas para estas ilegalidades para algumas pessoas também servirá de brecha para ocorrer com todas as outras pessoas.
Por esse motivo, é necessário que o delegado de polícia nunca deixe de verificar a legalidade dos atos investigatórios, exercendo a sua função precípua de primeiro guardião dos direitos fundamentais dos investigados.
CONCLUSÃO
A carreira de delegado de polícia sofreu intensas transformações desde sua origem oficial, a partir de 1841, ainda no período do Brasil imperial. Essa separação demonstrava a necessidade cada vez maior da existência de uma autoridade que conferisse uma idoneidade maior das decisões judiciais, uma vez que anteriormente a carreira de delegado de polícia, o juiz era julgador e investigador, formando seu convencimento e impossibilitando o efetivo direito a defesa.
É a partir do período atual, com a vigência do Estado Democrático de Direito, que as garantias processuais, como as do contraditório e da ampla defesa, são vistas como ainda mais importantes.
A existência destas garantias permitem que a polícia judiciária e o próprio Poder Judiciário não cometam arbitrariedades quando na investigação, instrução e julgamento dos atos criminosos.
É necessário lembrar a importância da existência do monopólio punitivo por parte do Estado: para que a pena tenha caráter, entre outros, de retribuição a vítima e sua família, mas não caráter vingativo.
Importa lembrar que não interessa o tipo de crime que foi cometido, ou a comoção que o delegado de polícia pode passar em decorrência das circunstâncias do caso – por mais que ele seja, também, um ser humano com sentimentos.
Assim, é necessário que sejam assegurados, a todos os investigados, as garantias constitucionais e processuais penais para a condução de sua investigação, buscando a verdade e o esclarecimento dos fatos, sendo o delegado de polícia o primeiro garantidor dos direitos fundamentais destes investigados.
REFERÊNCIAS
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THOMAZ, T H B. A importância dos trabalhos de polícia judiciária para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Disponível em: http://amdepol.org/arquivos/7382_artigoeadelta.pdfa3cf4.pdf
Graduanda do 10° período do curso de Direito pela Faculdade Metropolitana de Manaus – FAMETRO.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BATISTA, ALESANDRA DE ARAUJO. Atuação do delegado de polícia: o delegado de polícia como primeiro garantidor de direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2020, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55710/atuao-do-delegado-de-polcia-o-delegado-de-polcia-como-primeiro-garantidor-de-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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