SARA GRACIELLY LOPES DA SILVA
(coautora)[1]
Resumo: No presente trabalho, pretende-se abordar as alterações advindas pela LEI n° 13.718/2018,publicada no dia 25.09.2018, ao Decreto- Lein°2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, onde os crimes contra Liberdade Sexual passaram de natureza da ação penal pública condicionada a representação para ação penal pública incondicionada, independente da vítima ser ou não classificada como vulnerável, ser ou não maior de 18 anos, ou o crime for praticado com ou sem uso da violência. A análise da constitucionalidade do artigo 225 do Código Penal Brasileiro de 1940, diante da nova redação dada pela Lei nº. 13.718/2018, que, em termos práticos, faz com que o rito para o processamento das ações penais que tenham por objeto os crimes contra a liberdade sexual (Capítulo I, Título IV –Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, do Código Penal) seja através de ação penal pública incondicionada, ou seja, sem qualquer aquiescência por parte da vítima. Há evidente embate de princípios constitucionais: o direito fundamental à privacidade, explícita na redação do art. 5º, inciso X, da Carta Magna. Este trabalho será abordado em primeiro momento através de pesquisas bibliográficas, em seguida, analisaremos período compreendido entre 2017 e 2019, acerca da aplicabilidade da Lei e sua eficácia.
Palavras chave: Estupro. Capacidade Incondicionada. Liberdade Sexual. Intervenção do Estado.
INTRODUÇÃO
No mundo jurídico é essencial o estudo sobre determinadas mudanças em nosso Código Penal Brasileiro, e a análise de progresso ou retrocesso da polêmica alteração legislativa proporcionada pela lei nº. 13.718 de 2018, no que se refere a mudar o tratamento dos crimes contra liberdade sexual para ação penal incondicionada, gerou dano ao direito fundamental à privacidade das vítimas nestes crimes, que deixaram de possuir a prerrogativa de condicionar sua vontade ao início da persecução penal.
O legislador teve por necessário atender os clamores sociais de endurecimento da legislação referente aos crimes sexuais. De fato, considera-se que a transformação da ação penal pública em incondicionada para todos os casos causa certa sensação de rigidez da norma penal, admitindo-se, assim, há congruência entre a nova redação do art. 225 do CP e a finalidade procurada pelo legislador.
Há que se reconhecer, portanto, que a disposição do novo artigo 225 do CP afronta substancialmente a disposição constitucional do art. 5º, inciso X.
O objetivo dessa pesquisa é identificar a legitimidade da intervenção estatal ao estender o crime de estupro sobre a vítima capaz, a ação penal pública incondicionada. Para tanto pretende-se: analisar a liberdade de escolha da vítima em denunciar o crime, analisar o preparo dos policiais que têm o primeiro contato com as vítimas de estupro, verificar os efeitos da denúncia forçada sobre a vítima.
Este trabalho será abordado através de pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais. A pesquisa bibliográfica proporcionará o aprofundamento necessário para que possamos entender e descobrir quais os efeitos negativos que a aplicação da atual Lei do Estupro n° 13.718/2018, versará sobre um direito constitucional explícito da vítima, qual seja: a liberdade , pois, seu direito de decidir se denuncia ou não o agressor passa a ser tutelado pelo Estado. Além disso, buscaremos novos conceitos doutrinários sobre o tema. Em seguida, analisaremos entendimentos e decisões judiciais, através da jurisprudência, período compreendido entre 2017 e 2019, acerca da aplicabilidade da Lei e sua eficácia.
Estas pesquisas serão de extrema importância para o aprofundamento sobre o tema abordado, com o intuito de trazer um olhar mais crítico sobre os efeitos negativos quanto à exposição pública da vítima, o despreparo das autoridades policiais na abordagem do tema, além do retrocesso do direito a liberdade pessoal adquirido com a constituição de 1988, ser maculado por um Estado intervencionista.
Serão observadas as seguintes etapas para a conclusão destas pesquisas: a) Pesquisa bibliográfica e jurisprudencial sobre julgados de vítimas de estupro que tiveram a denúncia condicionada; b) coleta de dados estatísticos de fontes oficiais, relacionados às mudanças do número de denúncias antes e depois da alteração da lei; c) Filtragem e sistematização dos dados com os resultados levantados.
1.OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER
Segundo a Câmara dos deputados (55ª Legislatura-4ª sessão Legislativa), que criou a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, o Mapa de Violência contra a mulher (2018) traz uma análise de 140.191 notícias publicadas pela imprensa brasileira no período de janeiro e novembro de 2018.
A fonte das informações veiculadas foi o banco de matérias da empresa Linear Clipping, especializada em monitoramento estratégico de pesquisa, com análise inicial realizada pela Associação de Educação do Homem de Amanhã de Brasília (HABRA) identificando 68.811 casos de violência contra a mulher em cinco categorias: importunação sexual, violência online (crimes contra a honra), estupro, feminicídio e violência doméstica.
No formulário de pesquisa havia cinco critérios: data do episódio, tipo de crime, unidade federativa onde o crime ocorreu, idade da vítima e relação dela com o agressor. Já para as notícias relacionadas a estupro, existia um critério adicional para identificar a natureza do crime: comum, coletivo ou virtual.
Os dados gerados foram cruzados para chegarem a um nível de informação de qualidade onde se constatou que cerca de 50% dos estupros são cometidos por companheiros e familiares. Conhecidos da família representam pouco mais de 15%. Os vizinhos representam o menor percentual de 3,7%. Diante desses dados, verifica-se que os estupradores em 31% dos casos de violência sexual são desconhecidos pela vítima.
Em análise a idade da vítima, evidenciou-se que quando se trata de menores de 18 anos, os parentes são responsáveis pelo estupro em 60% dos casos. Se somado a esse percentual os menores de 14 anos quando se configura estupro de vulnerável, os parentes, conhecidos da família e vizinhos representam juntos, 86,4% do total de abuso sexual a menores. O menor percentual representa as mulheres idosas em 4% das vítimas do crime de estupro.
Estes dados mostram o quão foi urgente tratar das violências às quais essas vítimas estão expostas.
Avançamos da ação penal privada na década de 1940, para a pública condicionada à representação em 2009.
Finalmente em 2018, criou-se a Lei 13.718/18 em que o poder legislativo incumbiu privativamente ao Ministério Público o papel de promover a ação penal pública conforme a nova redação dada ao artigo 225 do Código Penal, a ação penal pública nos casos dos crimes contra a liberdade sexual deixa de ser condicionada à representação.
A diferença da ação penal pública incondicionada para a condicionada à representação é a proteção que o Estado remete ao ofendido a deliberação de propor a ação ou preferir o silêncio.
Esse dano ao campo íntimo está diretamente ligado ao direito fundamental à privacidade, disposto no art. 5º, inciso X, da CF/88: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
O Código Civil também procurou dar-lhe proteção própria em seu art. 21, que assim dispõe: “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
A privacidade, enquanto direito fundamental, compõe uma vertente da própria dignidade da pessoa humana. Há a violação do direito à privacidade, em um sentido amplo, quando o Estado passa a permitir a persecução penal em casos onde o crime praticado envolve, inevitavelmente, dados íntimos da vítima, sem que essa possa opor o seu constrangimento como óbice à ação.
2.DIREITO AO ESQUECIMENTO
Também tratado como “direito de ser deixado em paz” ou o “direito de estar só”, conhecido nos Estados Unidos como “therighttobeletalone”.
Para falar em direito ao esquecimento, temos que falar primeiro nos direitos fundamentais assegurados na Constituição:
Artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal “X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
O Inciso X traz a faculdade que cada indivíduo tem de inibir a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre suas vidas, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre essa área da manifestação existencial do ser humano.
A honra em sentido objetivo está ligada ao decoro, identifica-se com a estima e a opinião que os outros têm de uma pessoa, constituindo sua reputação.
Já o direito à imagem, pode ser apresentado, como sendo uma violação que pode repercutir no sentimento da vítima, na sua dor pessoal, na intimidade da sua consciência. Há, assim, sempre uma violência causadora de um dano moral.
Segundo René AriellDotti (DOTTI, René Ariel. “Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação”. São Paulo: Ed. RT, 1980.), a intimidade se caracteriza como “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”.
Este direito subjetivo está em sequer propalar por qualquer meio que seja sobre o fato, que lhe causou constrangimento.
O tempo tem que ser um aliado para a recuperação física, emocional e psicológica dessas vítimas de estupro. Elas têm o direito ao esquecimento. O direito ao esquecimento está intimamente ligado ao direito de personalidade, garantidor da proteção à dignidade humana.
As vítimas do crime de estupro têm o direito de escolher aquilo que estão dispostas a revelar aos outros.
O direito ao esquecimento é fundamental para que a vítima possa manter-se socialmente protegida e levar uma vida com dignidade.
A VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, trouxe no enunciado 531 que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento.”
Aquele que comete um crime, depois de determinado tempo, vê apagadas todas as consequências penais do seu ato. No Brasil, dois anos após o cumprimento da pena ou da extinção da punibilidade por qualquer motivo, o autor do delito tem direito à reabilitação. Depois de cinco anos, afasta-se a possibilidade de considerar-se o fato para fins de reincidência, apagando-o de todos os registros criminais e processuais públicos.
A nossa Constituição em seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b”, veda a aplicação de penas perpétuas, de modo que os registros da condenação não devem ser além do tempo da condenação.
Ora, se o autor do crime tem direito ao esquecimento quem dirá a vítima. Esta também tem que ter o seu direito ao esquecimento respeitado pelo Estado, de ter a liberdade de escolha de ter sua vida íntima preservada e não ter este direito violentado, ao ter de forma incondicionada a denúncia do crime sofrido.
3.DIREITO DA PERSONALIDADE
O direito da personalidade é atributo de todo ser humano adquirido desde a concepção preservando os direitos do nascituro até o nascimento com vida, quando se inicia a personalidade jurídica. A personalidade como um direito natural é considerado inerente à pessoa humana, sem distinção de raça, cor, sexo ou condição social. Nesse sentido, doutrina Maria Helena Diniz:
[...] a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens (DINIZ, 2005, p. 121).
A proteção à personalidade jurídica está intimamente ligada à ideia da dignidade da pessoa humana como principio norteador do Estado Democrático de Direito nos termos do Art. 5, III, da Constituição Federal.
Todo aquele que nasce com vida adquire personalidade para exercer direitos e contrair obrigações, são considerados prerrogativas individuais inerentes à pessoa humana. Não haverá proteção a dignidade da pessoa humana quando não forem respeitados os direitos advindos da personalidade jurídica.
A Constituição Federal em seu Art. 5, X, assegura à inviolabilidade a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O Código Civil também procurou dar-lhe proteção à privacidade em seu art. 21, que assim dispõe: “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Assim, Carlos Alberto Bittar assevera que a extensão dos direitos da personalidade é a classificação dos mesmos, distribuindo os direitos da personalidade em:
a) direitos físicos; b) direitos psíquicos; c) direitos morais; os primeiros referentes a componentes materiais da estrutura humana (a integridade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os órgãos; os membros; a imagem, ou efígie); os segundos, relativos a elementos intrínsecos à personalidade (integridade psíquica, compreendendo: a liberdade; a intimidade; o sigilo) e os últimos, respeitantes a atributos valorativos (ou virtudes) da pessoa na sociedade (o patrimônio moral, compreendendo: a identidade; a honra; as manifestações do intelecto) (BITTAR, 1999, p. 17).
No Código Civil dispõem expressamente cinco direitos da personalidade, sendo direito ao corpo, direito ao nome, direito a honra, direito à imagem e direito à privacidade.
Ressaltamos que no viés dos direitos da personalidade vem sendo introduzido o denominado direito ao esquecimento de origem na expressão inglesa “righttobeforgotten”. O direito ao esquecimento tutela a intimidade e vida privada no fato de que pessoa humana dispõe do poder de escolha em relação a conviver ou ser lembrado de algo que lhe causou constrangimento no passado.
Dito isto, o direito da personalidade é amplamente protegido por diversos princípios e garantias fundamentais a dignidade da pessoa humana, devendo ser observado com cautela para não depreciar um direito em detrimento de outro que está sendo violado, como será demonstrado neste estudo com relação ao crime de estupro na alteração trazida pela Lei 13.718/18.
Consagra-se, desta forma, que o debate proposto neste estudo parte da garantia fundamental do direito à privacidade, aplicável a todos os seres humanos e visto como uma das conquistas mundiais fixadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos; e vai de encontro com a atuação abusiva do Estado. Dessa forma, questiona-se acerca da constitucionalidade das alterações trazidas pela Lei 13.718/18.
4. O CRIME DE ESTUPRO E O DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana não se encontra no rol dos direitos e garantias fundamentais, para o legislador ela possui maior importância, como princípio fundamental à dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana é dotada de valor supremo, princípio constitucional fundamental.
O legislador lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito, constituindo assim um valor supremo. No artigo 1º da Constituição Federal “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
Dignidade: "[...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida".
Guilherme de Souza Nucci (NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual, p. 30/31.) leciona que:
A dignidade da pessoa humana é princípio regente do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, da CF), constituindo-se de dois aspectos, objetivo e subjetivo. Sob o ponto de vista objetivo, abrange a segurança do mínimo existencial ao indivíduo, que precisa ver atendidas as suas necessidades básicas para a sobrevivência, tais como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte, previdência social. No enfoque subjetivo, abarca o sentimento de respeitabilidade e autoestima do ser humano, destacando-se como indivíduo, desde o nascimento até o final de sua trajetória, durante a qual forma sua personalidade e relaciona-se em comunidade, merecendo particular consideração do Estado.
Essa dignidade se aplica também a liberdade sexual. Na nova disciplina dos crimes contra a liberdade sexual(Capítulo I, Título IV-Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, do Código Penal) como bens merecedores de proteção penal, por serem aspectos essenciais da dignidade da pessoa humana e dos direitos da personalidade.
A dignidade sexual é um bem protegido pela Constituição da República. O constituinte de 1988 deixou claro que o Estado democrático de direito tem comofundamentoa dignidade da pessoa humana (art. 1o, III, da Constituição Federal). Aquele reconheceu nadignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio.
Corrobora o FahdAwad:
“Adotar a dignidade da pessoa humana como valor básico do Estado democrático de direito é reconhecer o ser humano como o centro e o fim do direito. Essa prerrogativa é o valor máximo, constitucionalmente falando, o valor absoluto. Esse princípio se tornou uma barreira irremovível, pois zela pela dignidade da pessoa, que é o valor supremo absoluto cultivado pela Constituição Federal.” (AWAD, 2006, p.113-114).
Toda pessoa possui uma dignidade sexual. Certo é que a vítima deve ter seu direito de escolha respeitado, em denunciar ou não o seu agressor.
5.A LEGITIMIDADE DA INTERVENÇÃO ESTATAL RELATIVA AO CRIME DE ESTUPRO
O Ministério Público possui legitimidade para ação penal pública de acordo com preceito constitucional, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis conforme artigos 127 a 129 da Constituição Federal.
A ação pública subdivide em incondicionada ou condicionada a representação da vítima, se tratando da ação privada esta subdivide em privada, personalíssima e subsidiária da pública.
A ação penal pública é a regra. Tratando-se de ação penal pública incondicionada o Ministério Público não possui discricionariedade e conveniência sobre a ação, devendo dar início à persecução criminal sempre que estiverem presentes indícios suficientes de autoria e prova da materialidade do crime, não necessitando de qualquer solicitação ou autorização para iniciar o processo. (ESTEFAM, 2019, p.543)
Nesse sentido, de acordo com a Lei 13.718/2018 a ação penal no crime de estupro é incondicionada à representação do ofendido, na qual o Ministério Público dará início a ação penal independente da vontade da vítima assegurando a proteção aos direitos sociais e individuais indisponíveis.
No entanto, ainda que o Estado busque a proteção dos direitos sociais e individuais indisponíveis na propositura da Ação Penal, este não poderá justificar o desprezo aos princípios fundamentais da personalidade, privacidade, dignidade da pessoa humana e liberdade sexual que estão diretamente relacionados ao poder de escolha da vítima.
Portanto, após alteração da Lei 13.718/2018 o ordenamento jurídico passou a prevalecer um direito social se esquecendo do mais importante, pois, ao propora ação penal incondicionada obrigará a vítima a reviver um momento traumático que perdurará até o final do processo ferindo gravemente o princípio da dignidade da pessoa humana.
6.A AÇÃO PENAL INCONDICIONADA
A Ação Penal Pública Incondicionada é promovida pelo Ministério Público. Em regra não está subordinada a qualquer requisito conforme artigo 129 da Constituição Federal “são funções institucionais do Ministério Público: I- promover, privativamente, a ação penal pública na forma da lei”. No entanto, o Código de Processo Penal em seu artigo 24 determina que Ação Pública dependerá de requisição do Ministério Público ou de representação do ofendido quando a lei o exigir em casos específicos.
São princípios da Ação Penal Pública a legalidade, indisponibilidade, intranscendência, divisibilidade e oficialidade, na qual difere da Ação Penal Privada que se rege ainda pelo princípio da conveniência.
A ação penal, no contexto dos crimes sexuais, conforme determinação do art. 225, caput, do Código Penal, cuja a redação havia sido alterada pela Lei 12.015/2009, era, em regra, pública condicionada a representação do ofendido. A exceção a regra enquadraria na hipótese em que a vítima é menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, caso em que a ação seria incondicionada.
Atualmente, com entrada em vigor da Lei 13.718/2018, a ação penal, no contexto dos crimes sexuais, passa a ser pública incondicionada a representação do ofendido, isto é, independente da vontade da vítima.
Portanto, questiona-se a coerência do legislador ao ignorar o poder de escolha da vítima que teve sua intimidade, privacidade e liberdade sexual cruelmente violada.
A representação, nesses casos, é requisito para a propositura da ação e decorre da natureza e da gravidade do crime, que, lesando valores íntimos, a vítima prefere suportar a sua dor a ter que suportar o trâmite processual e a repercussão social que o caso oferece, causando danos maiores à vítima e seus familiares do que a própria impunidade do agressor. (SOUZA, 2019, p. 10)
O que se vê é completo desrespeito aos princípios fundamentais da personalidade, privacidade e dignidade da pessoa humana tendo em vista que o legislador desprezou a autonomia da vontade da vítima e respeito a integridade física e moral.
7.A LIBERDADE DE ESCOLHA DA VÍTIMA
A mulher vítima de violência sexual amplia os debates sobre participação da vítima no sistema penal, pois, não seria possível dar prosseguimento a uma ação penal desconsiderando o interesse e a vontade da vítima. Um dos pontos que causam obscuridade do legislador está justamente no ponto de querer a prevalência de uma lei que tenha utilidade social em detrimento da própria pessoa que integra a sociedade.
Não justifica a violação de um direito fundamental cuja finalidade seria defendê-los, preservando com segurança a Dignidade da Pessoa Humana. A norma fere a princípios constitucionais sob o motivo de proteção, isto é, um direito prevalecerá sobre o outro em determinadas situações. Talvez fosse melhor mudarmos para “Dignidade da lei”, assim, assumiríamos de uma vez por todas que a sociedade serve estritamente ao legislador, ignorando a função primordial de ordem e segurança jurídica aos Direitos da Personalidade e Dignidade da Pessoa Humana.
Todos nós sabemos que as leis devem atender as necessidades da sociedade. O fato importante é que as mulheres vítimas de violência sexual não podem simplesmente ter os seus direitos vilipendiados em detrimento de leis que ferem gravemente o seu direito de escolha.
O sistema jurídico Brasileiro deve ser um ponto de apoio e tutela a estas vítimas e não uma imposição normativa. Certo é que a vítima deve ter seu direito de escolha respeitado, em denunciar ou não o seu agressor.
8.O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DE ESTUPRO E OS EFEITOS SOCIAIS E PSICOLÓGICOS DA DENÚNCIA FORÇADA
A violência sexual é toda ação na qual uma pessoa numa relação de poder, por meio de força física, coerção, sedução ou intimidação psicológica, obriga outra pessoa a praticar ou submeter-se a prática sexual. Atualmente a violência sexual tornou-se parte do nosso cotidiano como um dos principais problemas que estamos enfrentando na sociedade.
As mulheres que foram vítimas de violência sexual podem evocar emoções muito fortes, em reação a invasão e desrespeito a intimidade de seu corpo que expressará muitos sinais em decorrência disso, pois, elas carregam e convivem com as marcas invisíveis causadas pelo seu agressor. É compreensível que diante de tal crueldade seus próprios limites corporais foram atacados friamente trazendo inseguranças e medo constante.
O Ministério da Saúde entende que é dever do Estado e da sociedade civil delinear estratégias para atenuar a violência sexual, e cabe ao setor de saúde acolher as vítimas para minimizar sua dor e evitar outros agravos. O grande risco aqui é tratar a violência como uma doença ou como um risco em saúde, e deduzir imediatamente daí um conjunto de procedimentos e ações que a mulher deve seguir para poder “curar-se” do problema.
O profissional de saúde é colocado muitas vezes frente a problemáticas de ordem social às quais não é preparado para enfrentar, já que os atendimentos emergem fortes emoções e sentimentos levando ao sofrimento da vítima ao reviver aquele momento que refletirá no profissional responsável pelo caso.
Os depoimentos ou relatos que as vítimas de violência sexual trazem durante o atendimento são densos e os colocam em uma posição delicada, frágil, diante da impossibilidade de resolver o problema porque extrapola seus limites de competência, o que pode gerar nesse profissional um sentimento de impotência e frustração.
A violência sexual é um problema complexo com sérias consequências, pois, afeta a multidimensionalidade da mulher. A pressa dos profissionais de saúde em tratar a vítima pode produzir um resultado oposto ao esperado, isto é, outra violência já que pode desrespeitar a trajetória dessa vítima e acabará por frustrá-la.
E o que dizer a respeito da morosidade do processo penal quanto ao crime de estupro, levando a vítima a reviver seu trauma por mais tempo em detrimento da longevidade do processo sem resolução rápida. A vítima precisa constantemente prestar declarações na delegacia, estar presente em audiências de instrução e julgamento, ou seja, relembrando à cada momento a agressão e lhe causando diversos abalos psicológicos que se refletem na sua vida em sociedade.
Talvez devamos pensar em reduzir ao máximo o atendimento e o procedimento da violência sexual pelo sistema de justiça criminal, deslocando-os para o âmbito da saúde (física e psíquica). Com isso, talvez também possamos refletir sobre o crime de estupro ter se tornado uma denúncia incondicionada, forçando a vítima a aceitar a imposição do Estado.
O estupro é um ato violentíssimo, uma invasão ao corpo com efeitos em gerais impensados e nem sempre reconhecidos: depressão, períodos longos de silêncio, descuido com o corpo, dificuldade e pânico diante de tentativas de estabelecer novas parcerias afetivas e sexuais, incompreensão e distanciamento de namorados, maridos, sentimentos de vergonha e uma sensação de medo constante e paralisadora. Não é necessário somar a tudo isso a privação de seu livre arbítrio em decidir se irá ou não prosseguir com a contra seu agressor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O legislativo, por meio da nova Lei 13.718/2018 força a mulher a perseguir seu agressor. Não é plausível que o Estado imponha à mulher passar por mais situações que vão contra sua vontade. Enquanto na verdade, ao invés do agressor, é ela quem sofre as maiores consequências de tal caminho.
A consequente mudança da ação penal como pública incondicionada não é necessariamente uma forma de proteção à mulher, visto que o Estado se preocupa mais em encarcerar do que em incentivar medidas preventivas contra as discriminações que essas vítimas sofrem.
Dessa forma, o estupro como ação penal incondicionada que traz a imposição da investigação por parte do Estado afronta a liberdade de escolha da vítima ao ser exposta. São necessárias mudanças estruturais para que a ação penal pública incondicionada seja efetiva em relação à proteção da vítima.
Os direitos fundamentais e direitos da personalidade amplamente tutelados pela Constituição Federal, muito embora sejam consolidados em nossa legislação, ainda necessitam de amparo específico e de políticas públicas e sociais que visem o respeito à liberdade de escolha da vítima de denunciar ou não seu agressor.
Evidencia-se, assim, que o direito a autonomia jurídica da vítima foi usurpado pela proteção estatal, que por sua vez sofrerá a posterior ridicularização pela exposição demasiada de sua imagem e de sua moral subjetiva, devido à mudança natureza da ação penal da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual. Demonstrando assim, as consequências nas hipóteses da aplicação da nova redação do artigo 225 do Código Penal, tendo como resultado o strepitusiudicii, que seria o escândalo do processo relacionado aos fatos íntimos da vítima. Além, da usurpação dos Direitos Fundamentais e Direitos da Personalidade da vítima do crime de estupro.
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WEBER, T. Autonomia e dignidade da pessoa humana em Kant. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 3, n. 9, p. 232-259, 30 dez. 2009.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PEREIRA, Indianara Cristiana Ferreira. A persecução penal pública no crime de estupro e o direito à intimidade da vítima Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 dez 2020, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55946/a-persecuo-penal-pblica-no-crime-de-estupro-e-o-direito-intimidade-da-vtima. Acesso em: 23 dez 2024.
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