Resumo: A advocacia popular, que prioriza a defesa e promoção dos direitos humanos, em especial, dos direitos coletivos de determinada sociedade, possui suas particularidades na realidade brasileira. Diante das dificuldades apresentadas pela Defensoria Pública e Ministério Público, figuras institucionalizadas que muitas vezes restam impedidas de atuar plenamente nessa questão, o exercício de referida prática advocatícia representa uma garantia de exercício da cidadania diante das inúmeras e constantes violações de direitos no país. Com isso, o presente trabalho buscará descrever a formação histórica da advocacia popular no Brasil, contextualizando-a com a conjuntura político-econômica nacional e internacional a partir da segunda metade do século XX. Em seguida, serão exploradas suas características atuais, o que permitirá a compreensão de suas principais áreas de alcance, suas estratégias jurídicas e políticas e os principais obstáculos enfrentados atualmente para seu pleno exercício, contemplando, ainda, a possibilidade de inserção de novos personagens que atuem em prol dos ideais humanitários.
Palavras-chave: advocacia popular; direitos humanos; cidadania.
ABSTRACT: Popular advocacy, which prioritizes the defense and promotion of human rights, especially the collective rights of a given society, has its particularities in the Brazilian reality. In view of the difficulties presented by the Public Defender's Office and the Public Prosecutor's Office, institutionalized figures who are often prevented from fully acting on this issue, the exercise of this advocacy practice represents a guarantee of exercising citizenship in the face of the numerous and constant violations of rights in the country. With this, the present work will seek to describe the historical formation of popular advocacy in Brazil, contextualizing it with the national and international political-economic conjuncture from the second half of the 20th century. Then, its current characteristics will be explored, seeking, with this, the understanding of its main areas of reach, its legal and political strategies and the main obstacles currently faced for its full exercise, also contemplating the possibility of inserting new characters that act in favor of humanitarian ideals.
Keywords: popular advocacy; human rights; citizenship.
SUMÁRIO: Resumo 1 Introdução 2 Desenvolvimento 3 Conclusão. 4. Referências.
1.Introdução
Desde o processo de redemocratização brasileiro, concluído com a promulgação da Constituição Federal de 1988, houve a idealização do desenvolvimento de uma consciência cidadã no país, seja de forma indireta, com a garantia do voto direto, secreto, universal e periódico como cláusula pétrea, ou de forma direta, com a criação de mecanismos de participação da sociedade civil, tais como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular para propositura de projetos de lei e o instrumento da ação popular para o questionamento da validade de atos inerentes à Administração Pública.
À guisa de exemplificação, a participação da sociedade civil brasileira no controle social, que é representada, principalmente, pelos conselhos de políticas públicas, constitui um espaço privilegiado de participação popular para que haja, com a maior eficácia possível, um consenso social em relação aos temas que compõem a agenda pública estatal, visto possuir em sua composição membros do governo e da própria sociedade civil.
Historicamente, porém, tem se verificado que diversas minorias seguem deslocadas do processo de tomada de decisão, somando-se ao fato de que desigualdades de gênero, étnico-raciais e sociais permanecem, frustrando a expectativa de inclusão social que existiu quando da promulgação da também denominada “Constituição Cidadã”.
A advocacia popular, embora seja um conceito que permanece em desenvolvimento, é costumeiramente definida como a prática advocatícia que, orientada pelas ciências sociais e pela noção de solidariedade, contribui com movimentos sociais para a efetivação dos direitos humanos, principalmente a partir da defesa coletiva de grupos em situação de hipossuficiência ou vulnerabilidade social, política e/ou econômica em determinada sociedade.
A legitimidade para tanto, nos diferentes níveis federativos, é originariamente atribuída à Defensoria Pública, que, como expressão e instrumento do regime democrático, age no fomento à inserção dos necessitados nos espaços hegemônicos, como o campo político e jurídico, e também ao Ministério Público, que atua na defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis. Contudo, referidas instituições, que, assim como a advocacia, representam constitucionalmente funções essenciais à Justiça, muitas vezes restam impedidas de atuar plenamente na promoção de tais direitos.
A realização do presente estudo é justificada pelo propósito de se compreender as perspectivas para o exercício da advocacia popular no Brasil, seja pela sua notória potencialidade na conjuntura exposta, seja pelos desafios que se sugerem à sua atuação no contexto vigente, pelo que serão analisados fatores relevantes nesse contexto, como o ordenamento jurídico vigente no país, o funcionamento da sua Justiça e o seu atual contexto social, político e econômico.
O artigo se limitará à realização de uma análise do atual panorama da advocacia popular, o que se fará tão somente à luz da realidade brasileira, considerando que, por se tratar de uma prática pouco desenvolvida cientificamente até então, restaria impedida uma delimitação mais ampla no espaço e no tempo a respeito do tema.
2.Desenvolvimento
No levantamento histórico de Eliane Botelho Junqueira, os primeiros relatos da advocacia popular brasileira estão inseridos no contexto de ditadura civil-militar no país, marcado pela imposição da “ordem” e pela prática de medidas repressivas, como a suspensão direitos civis e políticos, evidenciando o caráter autoritário de tal governo[1][2].
Há uma imprescindível associação dessa prática com os movimentos sociais, considerando que ambos são manifestações de cidadania que surgiram em tal época e que, desde então, promovem uma atuação em prol de mudanças para interesses coletivos, sendo notório que as condições inerentes à realidade brasileira até então fomentaram o desenvolvimento de instrumentos de defesa em face dos abusos de autoridade e à demasiada intervenção estatal nas relações sociais.
Concomitantemente, a própria lógica capitalista já esteve induzindo a permanência e o desenvolvimento de desigualdades econômicas por todo o globo, visto que seu compromisso em assegurar o livre mercado e o crescimento competitivo da economia tem por contrapartida a inevitável naturalização da desigualdade social, ao passo que essa discrepância tende a se intensificar, progressivamente. Aqui, advém da teoria social de Loïc Wacquant que, sob o predomínio do neoliberalismo, os movimentos mundiais do capital implicam em um crescente distanciamento estatal em relação às políticas sociais, convertendo segmentos sociais em deserdados das bases sociais fundamentais à sobrevivência humana[3].
A contraposição possível entre as noções de privilégio e cidadania é fundamental, visto que é a permanência de camadas privilegiadas que impedem a construção de uma sociedade verdadeiramente cidadã no Brasil, como se intentou na promulgação da atual Carta Magna.
Quando estes, em situação de vulnerabilidade, almejam pelo reconhecimento de um direito, ficam sujeitos a inúmeras barreiras. Fernando Pagani Mattos aponta que, dentre os principais entraves desse acesso à justiça, está a insuficiência de recursos econômicos e o desconhecimento de direitos a aspectos simbólicos, psicológicos e ideológicos vinculados à noção de justiça[4].
Outro desafio para a defesa de tais direitos é a frequente inadequação do ordenamento jurídico positivado com a realidade de sua respectiva sociedade, na medida em que o Direito nem sempre evolui em conformidade com as transformações sociais, o que por si só dificulta a atuação do advogado que atenda a causas populares, além da lentidão para o Judiciário efetuar a resolução de processos, o que desestimula seu público-alvo e favorece as fortes estruturas de manutenção de poder.
Ao entrevistar profissionais dessa área, Fábio Costa Morais de Sá e Silva constatou que, no momento, a falta de imparcialidade da justiça, as relações de poder e hierarquia estabelecidas dentro das profissões jurídicas e a ausência de aplicabilidade de direitos constitucionais são considerados os maiores obstáculos da advocacia popular brasileira[5].
Flávia Carlet, por sua vez, apurou que, para tais profissionais, o Poder Judiciário é considerado um campo “extremamente conservador, comprometido com o interesse dos latifundiários e com uma mentalidade ultrapassada por ainda entender o direito de propriedade como um direito absoluto”[6]. Contudo, para a autora, as seguintes ferramentas podem ser efetivamente empregadas para a garantia do acesso à justiça no atual panorama: (i) o uso do direito positivo, estratégia na qual se subtrai da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais argumentos jurídicos essenciais às reivindicações dos movimentos; (ii) a construção interpretativa dos fatos e das normas, identificando na relação entre “fato” e “norma” novas possibilidades interpretativas à luz da Constituição Federal; e (iii) a mobilização política, estratégia que tem como objetivo potencializar as estratégias jurídicas e realizar pressão social em prol da efetivação de tais direitos[7].
Fato é que, ainda que remanesçam controvérsias a respeito do Poder Judiciário Brasileiro, as quais reafirmam fatores de disparidade social, referido campo ainda constitui um dos mais importantes espaços na busca da concretização dos direitos humanos. Como exemplo, tem-se o marco pelo qual o Supremo Tribunal Federal autorizou nacionalmente o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, contribuindo com o rompimento de uma negação histórica de direitos desta natureza.
Para ampliar a compreensão desse fato social, o Ministério da Justiça apresentou um compilado de experiências da advocacia popular no Brasil, salientando que, dentre 103 (cento e três) entidades responsáveis por referida prática, a atuação judicial tem sido priorizada no ajuizamento de ações judiciais coletivas em face de ações individuais.[8] Nesse documento, são enumerados, ainda, os temas de atuação das entidades entrevistadas, que corresponde tanto a segmentos de praxe da advocacia, como saúde, família, criminal e consumidor, quanto a defesa de imigrantes, pessoas com deficiência, indígenas e comunidades tradicionais[9].
3.Conclusão
Diante da literatura revisada, tem-se que a advocacia popular representa uma resposta definitiva à ideologia neoliberal de desenvolvimento econômico, demonstrando que a injustiça social não é um efeito absoluto e permanente nas sociedades contemporâneas, independentemente de qualquer atuação estatal a respeito.
A advocacia, nos termos do artigo 133, da Constituição Federal, é considerada uma função indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, pelo que referida profissão possui uma imprescindível função social para a constituição e o exercício da cidadania em qualquer sociedade.
Não obstante, o fato de historicamente a advocacia popular estar interligada aos movimentos sociais e às causas coletivas não pode representar uma obstrução para que advogados não relacionados a tais categorias possuam legitimidade na defesa e promoção dos direitos humanos. Vale lembrar que as causas individuais igualmente representam um interesse social, principalmente ao se considerar que a Defensoria Pública, que usualmente é quem assume tal função nas grandes cidades, não está implementada em diversas comarcas no país.
Em que pese todas as dificuldades apresentadas historicamente no exercício da advocacia popular, referida prática tende a significar um diferencial para a concretização de uma plena participação popular no país, adquirindo um papel fundamental para a manutenção e desenvolvimento de um Estado Democrático de Direito, bem como permanecendo em ascensão em uma conjuntura que abrange um número progressivo de direitos violados e a insuficiência da atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público.
Somando-se a isso, se os escritórios que prestam assistência judiciária gratuita, os núcleos de prática jurídica e as promotorias legais populares não se enquadram na definição histórica de “advocacia popular”, importante mencionar que referidas práticas possuem igualmente um potencial para cumprir o objetivo com o qual a advocacia popular se comprometeu a realizar, qual seja, a construção de uma sociedade civil livre e igualitária.
4.Referências
BRASIL. Ministério da Justiça. Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/publicacoes/Biblioteca/dialogos-ssobrejustica_advocacia_popular.pdf/. Acesso em 09 jan, 2020.
CARLET, Flávia. Advocacia Popular: práticas jurídicas contra-hegemônicas no acesso ao direito e à justiça no Brasil. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/15409. Acesso em 11 fev, 2020.
JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: em busca de una identidad”, in: El outro derecho. ILSA: Bogotá, 2002.
MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à justiça: um princípio em busca de efetivação. Curitiba, Juruá, 2009, p. 89.
SÁ E SILVA, Fábio Costa Morais de. É possível, mas agora não. A Democratização da Justiça no Cotidiano dos Advogados Populares. in: Fábio Costa Morais de Sá e Silva e tal (Orgs.), Estado, Instituições e Democracia: democracia. Brasília, IPEA, 2010.
WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria. Paris: Raisons d’Agir, 1990.
[1]JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: em busca de una identidad. in: El outro derecho. ILSA: Bogotá, 2002, 26,194-202.
[2] Dentre as primeiras instituições de advocacia popular no Brasil mencionadas pela autora, ganham destaque: (i) a Associação de Advogados Trabalhadores Rurais (AATR), responsável pela prestação de assistência jurídica para direitos sociais no Estado da Bahia; (ii) o Instituto de Apoio Jurídico Popular (IAJUP), responsável pelo assessoramento de movimentos sociais em demandas agrárias e urbanas no Estado do Rio de Janeiro, sendo incorporado à Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião; (iii) a Associação Nacional dos Advogados Populares (ANAP), que foi sucedida pela Rede Nacional dos Advogados e Advogadas Populares (RENAP), que surgiu com fortes vinculações ao Movimento Sem Terra (MST) e até hoje é parâmetro na formação de uma advocacia popular idealizada no exercício de uma atividade descentralizada, horizontal e coletiva.
[4] MATTOS, Fernando Pagani. Acesso à justiça: um princípio em busca de efetivação. Curitiba, Juruá, 2009, p. 89.
[5]SÁ E SILVA, Fábio Costa Morais de. “É possível, mas agora não. A Democratização da Justiça no Cotidiano dos Advogados Populares”. in: Fábio Costa Morais de Sá e Silva e tal (Orgs.), Estado, Instituições e Democracia: democracia. Brasília, IPEA,2,75, 2010.
[6]CARLET, Flávia. Advocacia Popular: práticas jurídicas contra-hegemônicas no acesso ao direito e à justiça no Brasil. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/15409. Acesso em 11 fev, 2020.
[8]BRASIL. Ministério da Justiça. Advocacia de interesse público no Brasil: a atuação das entidades de defesa de direitos da sociedade civil e sua interação com os órgãos de litígio do Estado. Disponível em: https://www.justica.gov.br/seus-direitos/politicas-de-justica/publicacoes/Biblioteca/dialogos-ssobrejustica_advocacia_popular.pdf/. Acesso em 09 jan, 2020.
Advogado inscrito na OAB/PR sob o n° 95.867 e membro consultor da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/PR, é graduado em Direito pelo UNICURITIBA e especialista em Direito de Família e Sucessões pela ABDConst. É, ainda, graduando em Ciências Sociais pela UFPR e pós-graduando em Direitos Humanos e Questão Social pela PUCPR.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOCELIN, Matheus Amaral. Perspectivas para o exercício da advocacia popular no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2020, 04:10. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55968/perspectivas-para-o-exerccio-da-advocacia-popular-no-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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