Resumo: A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 conferiu às universidades autonomia, com o objetivo de proteger a liberdade de suas atividades institucionais, evitando que ingerências externas pudessem comprometer sua importante função social de promover ensino, pesquisas e serviços de boa qualidade para a sociedade. Por isso, esse artigo tem o objetivo de demonstrar que a autonomia das universidades brasileiras, mesmo estando positivada na Constituição Federativa do Brasil de 1988, não é integralmente garantida pelo Estado brasileiro, prejudicando o desenvolvimento da sua função social. Assim, a pesquisa analisou o tratamento dado pela Administração Pública às universidades federais brasileiras, apontando a importância das atividades de ensino, pesquisa e serviços prestados pelas universidades, que só podem ser oferecidos com qualidade quando a autonomia universitária é assegurada.
Palavras-chave: Universidades. Autonomia. Estado.
Abstract: The 1988 Constitution of the Federative Republic of Brazil gave universities autonomy, with the objective of protecting the freedom of their institutional activities, preventing external interferences from compromising their important social function of promoting good quality education, research and services for society. For this reason, this article aims to demonstrate that the autonomy of Brazilian universities, even though it is positivized in the Federative Constitution of Brazil of 1988, is not fully guaranteed by the Brazilian State, hindering the development of its social function. Thus, the research analyzed the treatment given by the Public Administration to Brazilian federal universities, pointing out the importance of teaching, research and services provided by universities, which can only be offered with quality when university autonomy is assured.
Keywords: Universities. Autonomy. State.
Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de autonomia das universidades. 3. Evolução legislativa. 4. Limites de regulamentação. 5. Importância e concretização da autonomia das universidades. 5.1 Fundamentos dos pesquisadores. 6. Considerações finais. Referências.
1 Introdução
O marco da garantia da autonomia das universidades ocorreu com a sua previsão no artigo 207 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), momento que passou a ter mesma hierarquia das demais normas constitucionais. Uma importante decisão do legislador constituinte já que considerou para isso o importante papel das universidades na construção dos valores sociais de uma democracia.
Assim, esse artigo intitulado “Perspectiva Constitucional da Autonomia das Universidades Brasileiras: Extensão e Efetividade.” teve como objetivo demostrar que a autonomia das universidades brasileiras, mesmo estando positivada na CRFB/88, não é integralmente garantida pelo Estado brasileiro, prejudicando o desenvolvimento da sua função social.
A pesquisa que foi realizada com base numa coleta de dados bibliográfica e documental apresenta relevância jurídica já que analisará a importância da Administração Pública efetivar a autonomia das universidades federais, assim, contribuindo para uma melhor compreensão sobre a extensão e os efeitos da liberdade das universidades. Também apresenta relevância social, em razão de ser a comunidade a maior beneficiária das atividades de ensino, pesquisa e serviços prestados pelas universidades, que só podem ser oferecidos com qualidade quando a autonomia universitária é respeitada.
No que se refere à autonomia das universidades particulares, as instituições conseguem ter suas autonomias sem maiores interferências por conta do seu próprio regime jurídico de natureza privada, que acaba por favorecer as liberdades didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Em relação às universidades públicas as mudanças de gestores da Administração Pública, quase sempre alinhados com diretrizes político-partidárias, dificultam a eficácia da autonomia das universidades.
Lembrando, a autonomia que será tratada nesse artigo, não deve em hipótese alguma, ser confundida com soberania. As universidades não são partes autônomas do ordenamento jurídico brasileiro, assim, devem obediência às normas constitucionais e infraconstitucionais.
2 Conceito de autonomia das universidades
As autarquias integram a Administração Pública Indireta e são pessoas jurídicas de direito público. Não estando subordinadas a nenhum órgão do Estado, devem, por tanto, organizar seus negócios, recursos e atividades. Nas palavras de Mello (2019, p.165) “são centros subjetivos de direitos e obrigações”. Para o ilustre jurista, as universidades são denominadas de autarquias especiais por desfrutarem de maior independência que as demais autarquias. Ainda segundo ele,
Isto como decorrência tanto da legislação de ensino, em nome da liberdade de pensamento e orientação pedagógica, quanto da circunstancia de que seus dirigentes máximos são escolhidos mediante processo prestigiador da comunidade universitária e com mandatos a prazo certo, excluindo-se ou minimizando-se interferências externas ao meio universitário (MELLO, 2019, p. 173).
A natureza das universidades como entes autônomos não existe para assegurar interesses da própria universidade ou de sua comunidade acadêmica, ela é necessária à consecução da sua função social, em consonância com os demais valores presentes na CRFB/88. O artigo 207 da Lei Maior brasileira elenca suas variadas dimensões: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (BRASIL, 1988, p. 1).
Para Meireles (2020), as três dimensões de autonomia se complementam e por isso devem ser garantidas integralmente, sendo partes de uma mesma autonomia. A autonomia didático-científica se refere à possibilidade das universidades criarem, modificarem e extinguirem cursos, órgãos e currículos, definindo critérios de admissão e avaliação de discentes, além da liberdade ampla de realizarem pesquisas. A autonomia administrativa se traduz na possibilidade de gerir seus recursos humanos e materiais, decidindo sobre a sua correta aplicação. Por fim, a autonomia financeira-patrimonial permite a elaboração e aplicação dos recursos orçamentários, bem como a disposição do patrimônio das universidades, observados as regras gerais de direito aplicáveis à matéria.
Dessa forma, qualquer tipo de ato normativo expedido pela Administração Pública que desconsidere a aplicação de alguma das dimensões da autonomia universitária deve ser tido como inconstitucional. Como exemplo de interferências ilegais tem-se, a criação, modificação ou extinção de regras para escolha dos seus dirigentes, os contingenciamentos orçamentários que afetam diretamente as atividades essenciais desenvolvidas pelas universidades e as tentativas de padronização pedagógicas que cerceiam o pluralismo de ideias.
3 Evolução legislativa
Raniere (1994), descreve muito bem a origem e evolução da autonomia universitária no ordenamento jurídico brasileiro. A primeira vez que se tentou positivá-la foi durante as discursões que antecederam à Assembleia Constituinte de 1823, porém, não chegou a ser votada porque Dom Pedro I dissolveu a Constituinte. Após algumas tentativas de implementação ao longo da história, a autonomia só conseguiu ser inserida na legislação infraconstitucional com certa segurança jurídica em 1961 pela Lei 4.024, de 20 de dezembro.
Mas o grande marco do Instituto foi sem dúvida a CRFB/88 que o concedeu natureza de princípio constitucional. Compartilhando as lições de Di Pietro (2019), apesar de já existir previsão em legislação ordinária, a inserção da autonomia universitária no texto da CRFB/88 concedeu ao Instituto a mesma hierarquia dos demais princípios constitucionais, garantindo a sua eficácia diante de qualquer tipo de norma do ordenamento jurídico brasileiro, sendo admitidas ponderações apenas em situações extremas conforme metodologia hermenêutica de interpretação.
4 Limites de regulamentação
Segundo Silva (2020), é inaceitável que leis federais restrinjam conteúdo que verse sobre qualquer autonomia prevista na CRFB/88, seja na interpretação ou aplicação da norma. O princípio presente no artigo 207 da CRFB/88, irradia um mandamento para todo sistema jurídico devido sua hierarquia que prevalece sobre todas as normas infraconstitucionais. Dessa forma, políticas públicas educacionais que contravenham a autonomia das universidades interferindo na sua função social ou pluralidade de ideias são inconstitucionais.
Considerando que o artigo 207 da CRFB/88, é uma norma principiológica, torna-se necessário analisar as possibilidades de sua regulamentação. O artigo 22, inciso XXIV, da CRFB/88 atribui competência à união para fixar as diretrizes e bases da educação nacional, ou seja, é tarefa da união editar as normas gerais nacionais sobre matéria educacional (BRASIL, 1988). Sendo que as normas gerais devem deixar amplos espaços para que normas específicas possam regulamentar posteriormente questões específicas relacionadas às atividades da universidade, pois o que não estiver vinculado a orientações amplas e bases estruturais será norma reservada à autonomia universitária.
5 Importância e concretização da autonomia das universidades
A autonomia universitária é fundamental para que as universidades possam proporcionar a sociedade uma educação superior de excelência com produção de conhecimentos e democratização do ensino. Após períodos da história do Brasil marcados por autoritarismo e ingerências em Institutos de Ensino Superior (IES) a autonomia das universidades foi positivada na CRFB/88.
O artigo 207 da CRFB/88 prevê três dimensões de autonomia: didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial (BRASIL, 1988). Mello (2019), afirma que a CRFB/88 garantiu às universidades maior independência que outros sujeitos autárquicos com o objetivo de minimizar intervenções externas principalmente em relação à liberdade de pensamento, escolha de seus dirigentes e à gestão financeira.
5.1 Fundamentos dos pesquisadores
Estando o fundamento da autonomia universitária na Lei Maior brasileira, para Raniere (2018), uma das maiores pesquisadoras brasileiras do assunto, a autonomia deve ser plena e somente sofrer ponderações quando estiver em aparente conflito com valores da própria Constituição. De forma categórica, afirma que a autonomia:
[...] compreende prerrogativas de autogoverno atribuídas às universidades nas áreas didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial para que melhor desempenhem atividades de ensino, pesquisa e extensão de serviços à comunidade (RANIERE, 2018, p. 947).
Embasada em suas pesquisas documentais e bibliográficas, a pesquisadora afirma que a previsão da autonomia no texto constitucional assegurou mais estabilidade às atividades universitárias se comparado à legislação que vigorava anteriormente, pois, somente através de emenda constitucional esta garantia pode ser alterada.
Porém, essa previsão constitucional não foi suficiente para a efetivação do modelo de autonomia das universidades federais, já que as regulamentações feitas pelos diferentes governos que ocuparam a Administração Pública Federal não asseguraram às instituições um sistema de financiamento estável com previsão de recursos públicos suficientes para que os objetivos das atividades acadêmicas e administrativas fossem plenamente realizados.
Assim, no que refere à disposição de recursos financeiros e patrimoniais, a pesquisadora afirma que mesmo após a promulgação da CRFB/88 as universidades sofreram com contingenciamentos orçamentários de diferentes governos, preterindo os investimentos na educação superior, subestimando seus resultados e comprometendo a função social das universidades de produção de conhecimento, preservação e transmissão da ciência e cultura brasileira.
Para os professores Muzy e Drugowich (2018), pesquisadores com vasta experiência em gestão universitária, que fundamentam suas pesquisas na análise bibliográfica e documental, é necessário que o financiamento das universidades brasileiras seja efetivamente garantido pelo Estado, através de regulamentações legais e determinadas, livres de políticas públicas educacionais de contingenciamento orçamentário, sob o risco de não se alcançar a autonomia financeira e dessa forma se assistir a uma desestruturação dos Institutos e a diminuição da qualidade da educação prestada.
Os citados professores elogiam e defendem a utilização do modelo de autonomia adotado pelas universidades estaduais de São Paulo para todas as universidades públicas do país. O modelo paulista é assegurado pelo Decreto Estadual nº 29.598/89, que regulamenta o repasse de verbas equivalentes a 9,57% do ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação), às instituições estaduais de ensino, cabendo a elas total gestão na alocação interna desses recursos desde que atendam a finalidade pública.
Muzy e Drugowich (2018), destacam, ainda, que é arriscado negligenciar as autonomias didático-científica e administrativa, tão importantes quanto à financeira, pois, pode resultar na diminuição da produção científica e tecnológica do país, além de prejudicar a democratização do ensino superior e as ações que viabilizam a permanência na universidade dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Para eles, os docentes, os discentes e funcionários devem atuar exercendo essa autonomia prevista na CRFB/88 nas funções de ensino, pesquisa e extensão.
De acordo com Fávero (2000), outra importante referência nos estudos sobre a autonomia universitária e tendo como base de seus estudos a análise bibliográfica e documental, a garantia da autonomia financeira aos IES é indispensável para a definição de suas politicas de ensino, pesquisa e prestação de serviços à sociedade, entretanto, apesar dessa ideia ser praticamente uma unanimidade na comunidade acadêmica, a União não tem regulamentado e delimitado ao longo dos anos, de maneira satisfatória, a forma concreta de aplicação dos recursos orçamentários, o que tem acarretado mau funcionamento dos Institutos impedindo que cumpram seu dever constitucional de promover a educação.
Ainda segundo a pesquisadora, o Princípio da Autonomia Universitária, extraído do artigo 207 da CRFB/88, não tem força para garantir uma existência autônoma para as universidades, pois suas atividades-fim não estão isoladas dos demais interesses e relações sociais, devido às orientações ideológicas dos governantes que muitas vezes influenciam de forma negativa na política educacional, interferindo não só nos orçamentos destinados aos IES, mas também na formação acadêmica, trabalho docente e gestão institucional.
6 Considerações finais
A autonomia das universidades públicas brasileiras não é integralmente garantida pelo Estado, o que prejudica o desenvolvimento da sua função social de prestar com excelência serviços à comunidade, maior beneficiária das atividades de ensino, pesquisa e serviços. É inaceitável que normas restrinjam conteúdo que verse sobre qualquer autonomia prevista na CRFB/88. Políticas públicas educacionais que, por exemplo, contrariem a autonomia das universidades interferindo na sua função social ou pluralidade de ideias são inconstitucionais.
Para os pesquisadores citados ao longo do artigo, é necessário que os diferentes governos, que ao longo dos anos ocupam a Administração Pública, assegurem às universidades um sistema de financiamento estável com previsão de recursos públicos suficientes para que as instituições possam efetivar seus objetivos acadêmicos e administrativos, já que as universidades não possuem receitas financeiras próprias capazes de manterem suas atividades.
Sendo a autonomia das universidades estabelecida pela Constituição, ficam as universidades sujeitas aos controles e limites estabelecidos nas próprias normas constitucionais. Apesar de possuírem maior autonomia se comparadas a outros institutos da Administração Pública, não são entes soberanos e não podem, por tanto, se eximirem do controle do poder público, devendo estar suas atividades institucionais em consonância com os demais princípios do ordenamento jurídico brasileiro.
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Bacharel em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana (FAN), Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA), Especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais (IPEMIG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Otton Tércio de Oliveira. Perspectiva Constitucional da Autonomia das Universidades Brasileiras: Extensão e Efetividade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2020, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/55969/perspectiva-constitucional-da-autonomia-das-universidades-brasileiras-extenso-e-efetividade. Acesso em: 23 dez 2024.
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