GALVÃO RABELO
(orientador)
Resumo: Neste artigo iremos tratar da violência obstétrica e de sua responsabilização nas esferas penal e civil. No Brasil não existe um tipo penal específico que puna os agentes da violência obstétrica, porém é possível enquadrar esses atos de violência em vários tipos penais. Trataremos de cada um deles, fazendo o liame de como é possível essas punições do Código de Penal Brasileiro. Antes, contudo, este artigo irá conceituar e exemplificar a violência obstétrica e os tipos de procedimento que há caracterizam. Por fim, abordará a responsabilização de tal ato no Código Civil, bem como visão do código de ética médica sobre o assunto.
Palavras-chave: violência obstétrica. Responsabilidade penal. Responsabilidade Civil. Código de ética médica.
Abstract: In this article we will deal with obstetric violence and its accountability in the criminal and civil spheres. In Brazil there is no specific type of criminal law that punishes agents of obstetric violence, but it is possible to frame these acts of violence in various types of criminal law. We will deal with each one of them, making the link on how these penalties of the Brazilian Penal Code are possible. Before, however, this article will conceptualize and exemplify obstetric violence and the types of procedures that characterize it. Finally, it will address the accountability of such an act in the Civil Code, as well as view of the medical ethics code on the subject.
Key words: obstetric violence. Criminal liability. Civil responsability. Medical code of ethics
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 COMO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA É CARACTERIZADA E POR QUAIS PROCEDIMENTOS. 3 A RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E A VISÃO DO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA. 4 CONDUTAS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA QUE SE AMOLDAM AOS TIPOS PENAIS DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO. 4.1 INJÚRIA. 4.2. MAUS TRATOS. 4.3 AMEAÇA. 4.4 CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 4.5 LESÃO CORPORAL. 5 RESPONSABILIDADE JURÍDICA SEGUNDO O CÓDIGO CIVIL. 6 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
Segundo os dados da Fundação Perseu Abramo, 25% das mulheres que tiveram filho, nas redes pública e privada, sofreram violência obstétrica, o que significa que a cada quatro mulheres uma já sofreu violência de algum tipo, desde as mais brandas até os casos mais graves, gerando o óbito da mãe ou da criança.
O presente artigo trata da violência obstétrica, com foco na responsabilidade civil e penal dos seus agentes pelos atos intencionais ou culposos que praticam. Por ser um assunto ainda muito velado na nossa sociedade, a maioria das mulheres que sofre esse tipo de violência muitas vezes não sabem como ela é caracterizada, em qual momento ela surge, e quais medidas podem ser tomadas quando ela ocorre, principalmente no âmbito jurídico.
A violência obstétrica ocorre antes, durante e depois do parto. Muitas vezes, são iniciadas no pré-natal, quando a gestante opta por ter um parto natural e naquele momento o médico já começa a desencorajá-la, dizendo que é uma dor insuportável e que o mais viável seria uma cesária. A partir dali alguns princípios já começam a ser violados. Na maioria das vezes, a violência obstétrica se manifesta na forma de procedimentos desnecessários, durante o pré-natal, trabalho de parto e parto, ferindo os direitos fundamentais como a saúde e a dignidade da pessoa humana, especificamente da mulher.
No próximo capítulo, este artigo tratará das formas de manifestação da violência obstétrica. Na sequência, vai-se perquirir como o Código de Ética Médica trata do tema, para desaguar na responsabilidade penal e civil dos agentes responsáveis por essa prática.
A violência obstétrica consiste na prática de procedimentos e condutas que desrespeitam e agridem a mulher durante a gestação, no pré-natal, parto, nascimento ou pós-parto. Na prática, se considera violência obstétrica os atos agressivos tanto de forma psicológica, quanto física ou verbal. Ou seja, são todos aqueles atos praticados contra mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnicos-administrativos de instituições públicas e privadas, bem como por civis.
No aspecto físico, a violência obstétrica consiste em ações que incidem sobre o corpo da mulher, causando dor ou dano físico (de grau leve ao intenso), a partir de intervenções sem recomendações baseadas em evidências cientificas. As violências físicas mais comuns que ocorrem durante o trabalho de parto são:
(i) Episiotomia ou pique de rotina: caracteriza-se pelo corte na região do períneo, entre a vagina e o ânus, feito com o intuito de ampliar o canal do parto para facilitar a passagem do bebê. Ela é usada com o objetivo de evitar uma possível laceração (ou “rasgo”) irregular. Como explica o obstetra Hemmerson, “no Brasil esse procedimento passou a ser utilizado de forma rotineira, sem uma avaliação da sua real necessidade. Era uma prática aprendida nas escolas e nos livros de medicina” (HEMMERSON apud DEUS, 2020).
No entanto, os estudos científicos mostram que ela é necessária para apenas uma minoria dos partos. Segundo o obstetra Alberto Guimarães (apud DEUS, 2020), é o caso de quando o anel vulvar está endurecido ou vascularizado, o que só pode ser notado no momento em que o bebê já está saindo. Portanto, quando a episiotomia é feita como rotina, ou seja, sem uma reflexão sobre a real necessidade, pode ser considerada uma má prática médica. Se for sem o consentimento, ainda pode ser classificada como violência obstétrica.
(ii) Ponto do marido: após a episiotomia ou a laceração da vulva, há relatos de médicos que fazem a sutura do corte maior do que necessária, para deixar a entrada da vagina mais estreita. Esse procedimento já chegou a ser chamado de “ponto do marido”, pois é feito com o intuito de supostamente aumentar o prazer do homem nas relações sexuais pós-parto. Isso pode causar dor e desconforto à mulher e, por isso, configura uma prática violenta.
(iii) Uso da ocitocina sintética sem necessidade: a ocitocina sintética é usada quando não há evolução da dilatação após muito tempo de contrações. No entanto, hoje em dia já se entende que não há uma velocidade “ideal” de progressão das dilatações. Mesmo assim, há médicos que optam por aplicá-la ao menor sinal de “demora” do trabalho de parto, ou até mesmo quando elas dão entrada na maternidade, intensificando as dores da gestante. Por isso, se for aplicada sem necessidade, e sem o consentimento da gestante – que muitas vezes acha que se trata apenas um soro comum –, esta ferramenta pode ser considerada violenta.
(iv) Manobra de Kristeller: Este procedimento consiste em pressionar a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê. Ele pode levar a traumas tanto no bebê, quanto na mãe. A técnica é agressiva: quando pressiona a parte superior do útero para facilitar (e acelerar) a saída do bebê, pode causar lesões graves, como deslocamento de placenta, fratura de costelas e traumas encefálicos. A polêmica está na força aplicada na barriga da mãe: alguns médicos empurram com as mãos, braços, cotovelos e até joelhos. É a famosa “subidinha na barriga” já dentro da sala de parto.
(v) Lavagem intestinal: a lavagem intestinal pode ser feita para diminuir os riscos de escape de fezes durante o trabalho de parto. No entanto, ela não é recomendada antes do parto pela OMS. Fazer esse procedimento sem o consentimento da gestante pode ser considerado violência obstétrica.
(vi) Restrição de alimentação e bebida: é comum que a mulher seja mantida em jejum durante o trabalho de parto normal. Isso era praticado para evitar o risco da Síndrome de Mendelson caso ela tivesse uma cesárea, que consiste em uma pneumonia química, resultante de aspiração de alimentos durante uma anestesia.
Contudo, como explica Hemmerson,
Não há mais respaldo científico para manter as mulheres em jejum absoluto, caso o trabalho de parto esteja fluindo de forma salvável. Dessa forma, a orientação mais moderna é que a mulher tenha liberdade de ingerir líquidos claros (água, gelatina, sucos sem resíduos, etc) e não manter jejum absoluto durante o trabalho de parto (HEMMERSON apud DEUS, 2020).
(vii) Impedir que a mulher grite ou se expresse: as contrações do trabalho de parto doem. Quando as gestantes as sentem, é comum a vontade de se expressar e gritar. Muitas vezes por falta de cuidado, isso pode ser repreendido pela equipe médica.
(viii) Impedir livre posição e movimentação durante o trabalho de parto: em um trabalho de parto normal, é benéfico que a mulher consiga se movimentar e ficar em várias posições. No entanto, muitas vezes a equipe impede isso, e a faz ficar deitada na cama.
(ix) Não oferecer métodos de alívio da dor: as contrações do trabalho de parto doem. O ideal é que durante o pré-natal a mulher esteja preparada para vivenciar essa dor de forma mais consciente. No entanto, toda gestante deve ter direito a métodos de aliviar essa dor.
Além das formas de violência física listadas, ainda existem outras como, por exemplo, a tricotomia (raspagem dos pelos pubianos) e as cesarianas eletivas sem indicações clínicas.
Há também a violência obstétrica de caráter psicológico que consiste em toda ação verbal ou comportamental que cause desconforto ou sentimentos de inferioridade, vulnerabilidade, abandono, instabilidade emocional, medo, acuação, insegurança, dissuasão, ludibriamento, alienação, perda de integridade, dignidade e prestígio.
A violência obstétrica pode ser também de caráter sexual que se caracteriza como aquela ação imposta à mulher, violando sua intimidade ou pudor, incidindo sobre o senso de integralidade sexual e reprodutiva, mediante o acesso ou não aos órgãos sexuais e partes íntimas do seu corpo.
Por fim, é importante dizer que a violência obstétrica de caráter institucional não se é muito falada, até porque muitos não sabem como ela se realiza, mas consiste em ações ou formas de organização de seus serviços que dificultam, retardam ou impedem o acesso da mulher aos seus direitos constituídos, sejam esses serviços de natureza pública ou privada. Isso pode ocorrer na forma de uma violência de caráter material, que são as condutas ativas e passivas com o fim de obter recurso financeiro de mulheres em processo reprodutivos, violando os direitos já garantidos por lei em benefício de pessoa física ou jurídica. Exemplo disso são as cobranças indevidas por planos e profissionais de saúde, indução de contratação do plano na modalidade privativa, alegando ser a única alternativa que viabiliza o acompanhante. Todos esses atos podem se mesclar durante uma situação, o que não impede que seja também realizado um só deles para que se tipifique violência obstétrica.
O conceito de violência obstétrica ainda está em construção. Transita entre o desrespeito humano durante o cuidado ao nascimento até a prática de condutas médicas sem respaldo científico.
Quando ocorre uma situação de erro médico praticada por agentes públicos, fica o Estado incumbido de providenciar o ressarcimento ao lesado, caso venha a ser condenado, tendo este o direito de uma ação regressiva contra o seu servidor. Se o erro médico for praticado por um profissional liberal incumbe a este reparar o dano causado.
Nos casos específicos de violência obstétrica, há um desfalque na legislação vigente sobre o tema. De um modo geral, as ocorrências que envolvem essas condutas são enquadradas como erro médico, tendo que ser comprovadas por provas documentais ou testemunhais que permitam a averiguação da ocorrência do erro médico, dificultando assim que os agressores que praticam esse tipo de violência sejam punidos.
Mesmo com esse prévio conhecimento, a questão ainda é polêmica, pois os tribunais até este momento não firmaram entendimento sobre o tema. O que se defende é que a vítima de violência obstétrica tenha o direito de ser indenizada, com base na responsabilidade civil dos agentes prestadores do serviço público de saúde, sendo eles vinculados ao Estado ou à iniciativa privada.
Referente à responsabilidade ética do médico, deve-se destacar a disciplina do Código de Ética Médica (Resolução n. 1.931 de 2009, do Conselho Federal de Medicina). O Código impõe uma série de deveres aos médicos, a fim de viabilizar os Direitos Humanos do paciente, e, na violação destes deveres é possível identificar condutas que se ajustam ao conceito de violência obstétrica. São eles:
Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.
Art. 25. Deixar de denunciar prática de tortura ou de procedimentos degradantes, desumanos ou cruéis, praticá-las, bem como ser conivente com quem as realize ou fornecer meios, instrumentos, substâncias ou conhecimentos que as facilitem
Art. 27. Desrespeitar a integridade física e mental do paciente ou utilizar-se de meio que possa alterar sua personalidade ou sua consciência em investigação policial ou de qualquer outra natureza.
Art. 28. Desrespeitar o interesse e a integridade do paciente em qualquer instituição na qual esteja recolhido, independentemente da própria vontade.
Na mesma definição, os profissionais de enfermagem, que acompanham o pré e pós-parto, possuem responsabilidade direta e subjetiva, assim como os médicos, ou seja, é necessário provar a culpa.
Ambos, ao descumprirem tais dispositivos, estarão sujeitos às sanções disciplinares que vão desde de uma advertência até uma possível cassação do exercício profissional, pois, a relação médico-paciente deve se basear no princípio da dignidade humana.
Mas enquanto o erro médico de fato envolve a averiguação de responsabilidade civil, a violência obstétrica deve ser encarada como uma violência de gênero, conforme preconizam os tratados internacionais relativos aos direitos humanos das mulheres ratificados pelo Brasil. A Convenção de Belém do Pará define violência contra a mulher como “ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
A categoria “gênero” é causa específica desse tipo de violência; a violência é dirigida contra a mulher simplesmente pelo fato de ela ser mulher. É por isso que se diz que a violência obstétrica é um tipo de violência de gênero, pois, as mulheres que passam pela experiência da gestação e do parto, estão sujeitas a lidar com atitudes desrespeitosas que estão relacionadas a estereótipos do que uma mulher deveria ou não fazer.
A violência de gênero, em todas as suas modalidades, é uma violência presente na estrutura social, capaz de moldar os comportamentos das relações interpessoais de acordo com a predominância da cultura machista, que acolhe comportamentos agressores às mulheres como aceitáveis dentro do paradigma social vigente.
Sabe-se que para que haja responsabilidade penal, a conduta ilícita do agente deve ser dolosa ou culposa. Diz-se que o crime é doloso quando “o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo” como estabelece o artigo 18, I, Código Penal. Já a conduta culposa ocorre quando “o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia” nos termos descritos no artigo 18, II, Código Penal.
Ainda não existe um tipo penal específico dentro do Código Penal Brasileiro (CP) que puna os agentes imputadores da violência obstétrica. Porém, como se verá a seguir, é possível enquadrar os atos da violência obstétrica em vários tipos penais existentes no Código.
São eles o crime de injúria (artigo 140), maus-tratos (artigo 136), ameaça (artigo 147), constrangimento ilegal (artigo 146) e lesão corporal (artigo 129), todos elencados no Código Penal Brasileiro. Trataremos de cada uma delas a seguir.
O crime de injúria está previsto no art. 140 do CP nos seguintes termos: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa”.
Na tipificação de injúria, o bem jurídico protegido é a honra subjetiva da pessoa humana, que é constituída pelos atributos morais (dignidade) ou físicos, intelectuais, sociais (decoro), pessoais de cada indivíduo.
Não há, no crime em tela, imputação de fatos precisos e determinados, mas apenas de fatos genéricos desonrosos ou de qualidades negativas à vítima, com menosprezo, depreciação etc.
Dessa forma, qualquer imputação, opinião pessoal (insultos, xingamentos etc.) de uma pessoa em relação à outra, caracteriza o crime de Injúria.
“Injuriar alguém” significa, pois, imputar a este uma condição de inferioridade perante a si mesmo, pois ataca de forma direta seus próprios atributos pessoais. Importante ressaltar que, neste crime, a honra objetiva também pode ser afetada.
Na Injúria, não há a necessidade de que terceiros tomem ciência da imputação ofensiva, bastando, somente, que o sujeito passivo a tenha, independentemente de sentir-se ou não atingido em sua honra subjetiva. Se o ato estiver revestido de idoneidade ofensiva, o crime estará consumado.
No caso da violência obstétrica pode-se elencar como conduta delitiva a submissão da gestante à oitiva de frases como “na hora de fazer você não gritou” ou “não reclama que daqui há um ano você estará aqui de novo”. Este tipo de situações, em que a equipe obstétrica promove xingamentos e humilhações à mulher gestante, durante o trabalho de parto, pode caracterizar o delito de injúria.
O crime de maus tratos, por seu turno, está previsto no art. 136 do Código Penal:
Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:
Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa.
§ 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
§ 2º - Se resulta a morte:
Pena - reclusão, de quatro a doze anos.
§ 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. (Incluído pela Lei nº 8.069, de 1990)
Em se tratando de maus tratos a conduta é expor a perigo a vida ou a saúde da pessoa, mediante uma das formas descritas no tipo penal. Crime de ação vinculada, a conduta só será típica, em relação à violência obstétrica, se a exposição a perigo se der mediante uma das formas de execução: (i) privação de alimentos, (ii) privação de cuidados indispensáveis.
(i) Privação de alimentos: a privação pode ser absoluta, quando o autor não dá nenhuma comida à vítima, ou relativa, quando a vítima recebe comida insuficiente. Em qualquer hipótese, só haverá o crime se a vítima não puder, por seus próprios meios, obter alimentação, seja pela idade ou por sua condição física. No caso de privação absoluta de alimentos por um período considerável de tempo, o crime que se configura é o homicídio, tentando ou consumado. Muitas mulheres sofrem esse tipo de privação quando entram em trabalho de parto, principalmente no caso de parto cesária. A OMS não recomenda a restrição de alimentos nesses casos.
(ii) Privação de cuidados indispensáveis: trata-se da privação cuidados relacionados à saúde da vítima, que não tem condições de se cuidar sozinha. Como privar de higiene, de agasalho no frio, de banho de sol, quando necessário. Há situações em que a gestante é privada de cuidados indispensáveis, da negativa de medicação para dor como analgesia em qualquer momento do trabalho parto.
A ameaça está definida no art. 147 do Código Penal nos seguintes termos:
Art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.
O crime de ameaça é um crime formal, cuja consumação se opera com a ciência da vítima sobre as ameaças, que se sente intimidada/amedrontada com a promessa do mal injusto.
Esse crime encontra respaldo para condenação em condutas expressas por meio de frases do tipo “se gritar de novo, eu não vou mais te atender” ou “eu vou te dar motivo para gritar daqui a pouco”, são frases que ditas por médicos ou enfermeiros são consideradas violência obstétrica.
O Código Penal, em seu art. 146, descreve o crime de constrangimento ilegal:
Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
O constrangimento ilegal é delito ligado ao princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, CF/88), segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Nele o agente constrange a vítima, pelos meios previstos no tipo penal, a fazer algo que a lei não exige ou a deixar de fazer algo que ela permite.
Entre os meios que podem ser utilizados pela prática do crime, destaca-se a vis corporalis, ou seja, a violência, que se constitui naquela ação constrangedora dirigida ao corpo da vítima (PRADO, 2006, p. 293). Nela se amoldam as condutas dentro da violência obstétrica que externam a intimidade da vítima como, por exemplo, exposição de suas partes íntimas para exame de toque com a porta aberta ou mesmo a realização de procedimentos desnecessários ou os necessários sem o consentimento e informações à parturiente. O impedimento do acompanhante familiar ou de qualquer pessoa que seja da confiança da gestante durante o pré ao pós-parto também pode ser caracterizado como constrangimento ilegal.
Por fim, o crime de lesão corporal está tipificado no art. 129 do Código Penal:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
Pena - detenção, de três meses a um ano.
Lesão corporal de natureza grave
§ 1º Se resulta:
I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;
II - perigo de vida;
III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;
IV - aceleração de parto:
Pena - reclusão, de um a cinco anos.
§ 2º Se resulta:
I - Incapacidade permanente para o trabalho;
II - enfermidade incuravel;
III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;
IV - deformidade permanente;
V - aborto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
Nas palavras de Bitencourt:
Lesão corporal consiste em todo e qualquer dano produzido por alguém, sem animus necandi, à integridade física ou à saúde de outrem. Ela abrange qualquer ofensa à normalidade funcional do organismo humano tanto do ponto de vista anatômico quanto do fisiológico ou psíquico. Na verdade, é impossível uma perturbação mental sem um dano a saúde, ou um dano à saúde sem uma ofensa corpórea. O objeto da proteção legal é a integridade física e a saúde do ser humano. (BITENCOURT, 2012, p. 186).
A lesão corporal, na hora do parto, vai de um puxão de cabelo a uma manobra de Kristeller que consiste na famosa subidinha na barriga. Outra violência que pode causar lesão e que as mulheres mais temem é a episitomia, uma cirurgia, realizada na maioria das vezes sem anestesia, em que é feito um corte na entrada da vagina, afetando diversas estruturas do períneo, como músculos, vasos sanguíneos e tendões, que são responsáveis pela sustentação de alguns órgãos, pela continência urinária e fecal e ainda têm ligações importantes com o clitóris. Essa laceração se realizada sem necessidade pode caracterizar o crime de lesão corporal
Os crimes descritos anteriormente deixam muito mais marcas psicológicas do que físicas nas vítimas, mas nem por isso devem ser desconsiderados. A necessidade de punição na esfera penal é mais uma garantia que esses atos não sejam banalizados, e que os que praticam a violência obstétrica comecem a repensar suas condutas e costumes durante os atendimentos com as puérperas.
Ao falar sobre os direitos específicos das mulheres durante suas gestações, percebe-se a falta de leis pontuais, que sejam eficazes para proteger e garantir os direitos necessários de uma gestante: no Brasil não há uma lei federal que especifique o que é violência obstétrica.
No âmbito civil, sabe-se que a responsabilidade civil pode ser classificada em: responsabilidade civil objetiva e responsabilidade civil subjetiva.
É possível identificar, a partir do art. 186 do Código Civil, a presença dos requisitos para configurar a responsabilidade civil. Segundo o Código Civil, “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.
A responsabilidade civil subjetiva decorre de dano causado em função de um ato doloso ou culposo. A violência obstétrica pode ser perpetrada tanto pelos agentes de saúde no desempenho de atividade médico-hospitalar, quanto pelo estabelecimento de saúde.
Para apuração da responsabilidade civil dos médicos e enfermeiros deve haver verificação da culpa. Logo, só haverá responsabilização se comprovado que eles tenham agido com negligência, imprudência e imperícia, conforme o art. 14, § 4º do Código de Defesa do Consumidor: “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.
A concepção da responsabilidade civil subjetiva pelos danos causados na atividade médica lato sensu encontra guarida também no art. 951 do CC/2002, in verbis:
O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho.
No que se refere aos profissionais que não integram o quadro permanente do hospital ou da clínica, mas que eventualmente utilizam a estrutura física e logística para realizar uma cirurgia, que é no caso daqueles médicos que só vão até o hospital para realizar o parto de uma gestante que era sua paciente no consultório e não queria ter um parto com plantonista por exemplo, entende-se existir um liame jurídico entre o médico e a entidade hospitalar, de modo que há responsabilização objetiva da instituição, sem prejuízo de um eventual direito de regresso contra o médico. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015).
A responsabilidade civil objetiva prevista na legislação consumerista, não se estende aos profissionais liberais. Entretanto, no que se refere a relação entre o hospital ou clínica médica que presta serviços, a responsabilidade civil é objetiva, por força do art. 932, III, do CC/2002: “são também responsáveis pela reparação civil: III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele”.
Porém, partindo da idealização atual de que os casos de violência obstétrica não mais são caracterizados como erro médico, mas sim como violência de gênero, quando provado que houve a violência obstétrica, não é necessário a prova da culpa, mas sim o nexo causal, do fato e do dano, ou seja, o dano é presumido, devendo ser, então, indenizado.
Ao julgar a responsabilização do dano, o julgador deve analisar principalmente o ato, tendo em vista que podem ocorrer resultados que independem da vontade médica.
O crescimento considerável nos casos de violência obstétrica exige um novo posicionamento, agora jurídico-penal, buscando respaldo dos interesses da gestante. Como comprovado, sabemos que na atual conjuntura a violência obstétrica é umas das formas de violência contra mulher mais difícil de ser combatida, pois virou situação corriqueira do dia a dia, trazendo às vítimas o pensamento de que é absolutamente normal os procedimentos e tratamentos abusivos e humilhantes praticados por médicos, enfermeiros e profissionais de saúde atuantes dessa área, fazendo com que o Estado não se mova em relação as essas práticas. Acredita-se que a tipificação do crime de violência obstétrica pelo Código Penal Brasileiro daria mais segurança as mulheres para poder realizar a denúncia, trazendo o assunto à tona para a sociedade e deixando de ser relatado apenas em conversas de amigos e familiares, fazendo com que o conteúdo não seja mais um tema velado.
As penas e os crimes imputados aos que praticam tal ato podem parecer pequenas, entretanto se um considerável número de vítimas de um único agressor é grande, a soma das penas pode ser superior à de um crime grave como o homicídio. Para isso acontecer, é muito importante que haja denúncia dos fatos para que o Estado se sinta pressionado a criar políticas públicas para conscientizar as mulheres sobre o conhecimento acerca dos seus direitos, sobre o que é violência obstétrica, o que pode ser feito caso ela ocorra e para promover uma reeducação dos profissionais de saúde referente a essas práticas, a fim de tentar erradicar esse crime.
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PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. v. 2: parte especial – arts. 121 a 183. 5.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
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Bacharelanda no Curso de Direito do Centro Universitário Una Contagem
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Aline Karem. Violência Obstétrica: um estudo sobre a responsabilidade civil e penal de seus agentes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56041/violncia-obsttrica-um-estudo-sobre-a-responsabilidade-civil-e-penal-de-seus-agentes. Acesso em: 23 dez 2024.
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