RESUMO: A lei nº 13.964, de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, foi editada com o escopo de trazer normas mais rigorosas no combate à corrupção, ao crime organizado e aos crimes com violência contra a pessoa. Porém, no tocante ao crime de estelionato, a legislação perfilhou previsão mais branda, exigindo, como regra, para a sua persecução, a representação do ofendido, o que beneficia o acusado, pois, até então, a regra era a ação penal ligada a tal delito ser pública incondicionada. Dada a natureza material processual da novel norma, a ela deve ser aplicada a retroatividade benéfica (art. 5º, XL, da CF, e art. 2º, parágrafo único, do CP), sobre a qual se discute sua extensão – especificamente se ela retroage para alcançar os processos em curso. O presente estudo buscou comprovar, por meio de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, o acerto do entendimento do STF, da 5ª Turma do STJ e de Rogério Sanches, que enfatizam a irretroatividade do novo dispositivo quanto aos processos em curso, sob pena de se transformar uma condição de procedibilidade em uma condição de prosseguibilidade, sem que a lei assim tivesse exigido, como na Lei dos Juizados Especiais.
Palavras-chave: Pacote Anticrime. Estelionato. Ação Penal. Irretroatividade. Processos em curso.
ABSTRACT: Law No. 13.964, of 2019, known as the “Anti-Crime Package”, was enacted with the scope of bringing more stringent rules in the fight against corruption, organized crime and crimes with violence against the person. However, with regard to the crime of fraud, the legislation led to a more lenient provision, requiring, as a rule, for the prosecution, the representation of the victim, which benefits the accused, since, until then, the rule was the criminal action linked to such an offense must be public unconditional. Given the procedural material nature of the new norm, it should be applied to the beneficial retroactivity (art. 5, XL, of the CF, and art. 2, sole paragraph, of the CP), on which its extension is discussed - specifically if it retroage to reach ongoing processes. The present study sought to prove, by means of a bibliographic search, using the deductive method, the correct understanding of the STF, the 5th Panel of the STJ and Rogério Sanches, who emphasize the non-retroactivity of the new device regarding the ongoing processes, under penalty of transforming a condition of procedibility into a condition of continuity, without the law requiring it, as in the Law of Special Courts.
Keywords: Anti-Crime Package. Fraud. Criminal Action. Non-retroactivity. Ongoing processes.
1. INTRODUÇÃO
A alteração promovida pelo Pacote Anticrime na espécie de ação penal quanto ao crime de estelionato retroage para alcançar os processos em curso?
A lei nº 13.964, de 2019 entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020 e modificou diversas leis de direito sancionador, entre elas o Código Penal. Prevê, como uma de suas disposições, que a regra geral para o crime de estelionato, relativamente à espécie de ação penal, é a pública condicionada à representação, sendo incondicionada apenas se o delito tiver como vítima a Administração Pública (seja ela direta ou indireta), criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maior de 70 anos ou incapaz.
Isso configurou uma grande alteração, pois, até então, o crime de estelionato tinha como espécie de ação penal a pública incondicionada, em regra, para todos os sujeitos passivos.
Uma vez que normas voltadas ao estudo de ação penal possuem natureza híbrida, isto é, material (porque interferem nas causas de extinção da punibilidade) e processual, questionou-se sobre a retroatividade do que dispôs a novel legislação, especificamente quanto ao delito mencionado.
Os tribunais têm se esmiuçado em analisar a extensão dessa retroatividade.
Demonstrada a problemática a ser discutida e a relevância da questão, seguem-se ordens de considerações que se interligam. Em verdade, o estudo dividir-se-á em três momentos, um a tratar do crime de estelionato e a alteração promovida, e outro, sobre a visão geral da (ir)retroatividade da mesma, finalizando-se com a conclusão, onde se explanará o resultado a que se chegou.
O marco referencial teórico do presente estudo apoia-se, sobretudo, nas obras de Renato Brasileiro, Rogério Sanches, Noberto Avena e Rogério Greco. Através de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se o método dedutivo, com a ajuda das obras dos escritores supramencionados e as de outros diversos autores, restará completada a análise proposta.
2. O CRIME DE ESTELIONATO E A ALTERAÇÃO, PELO PACOTE ANTICRIME, NO TOCANTE À NATUREZA DE SUA AÇÃO PENAL
Para melhor desenvolvimento do tema, interessante se partir o que se pretende explanar.
2.1. Noção geral sobre ação penal e suas espécies
Dado o objeto e o limite do presente estudo, imprescindível que se faça um corte epistemológico, a fim de sintetizar o mais importante para a análise proposta.
O art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, assegura o direito de ação, nos seguintes termos: “XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A ação penal existe como meio de possibilitar, ao Estado-juiz a aplicação de sanções ao infrator do ordenamento penal brasileiro. Através dela, após uma sintetizada prévia etapa de verificação da existência de indícios robustos de materialidade e de autoria, o titular da ação penal provoca o Judiciário a atuar, quando, em seu agir, este proporcionará, ao acusado, a ampla defesa e o contraditório, corolários do Estado Democrático de Direito e também previstos no art. 5º, da Carta Magna, em seu inciso LV.
Encontra-se prevista no Código Penal, nos arts. 100 a 106, e no Código de Processo Penal, no art. 24 ao 62.
Nas palavras de Roberto Avena,
o crime é a conduta que lesa direitos individuais e sociais. Sendo assim, a sua prática gera ao Estado o poder-dever de punir. Como esta punição não pode ser arbitrária, nem ocorrer à revelia das garantias individuais do indivíduo, é necessária a existência de uma fase prévia de apuração, assegurando-se ao possível responsável o direito de defesa, o contraditório e a produção de provas. Aqui, então, surge a ação penal, como ato inicial desse procedimento cognitivo, alicerçando-se no direito de postular ao Estado a aplicação de uma sanção em face da ingerência a uma norma penal incriminadora (AVENA, 2018, p. 249).
Renato Brasileiro sistematiza as características da ação penal de maneira didática:
Considerada a ação penal um direito, suas principais características são:
a) direito público: a atividade jurisdicional que se pretende provocar é de natureza pública. Daí se dizer que a ação penal é um direito público. Mesmo nas hipóteses em que o Estado transfere ao ofendido a possibilidade de ingressar em juízo (v.g., em regra, nos crimes contra a honra), tal ação continua sendo um direito público, razão pela qual se utiliza a expressão ação penal de iniciativa privada – vide exemplo do art. 100, §§ 2o e 3o, do CP. Além disso, como o direito de ação é dirigido contra o Estado-Juiz, costuma-se usar, na peça acusatória, a expressão “vem oferecer denúncia em relação a Tício”, ao invés de se usar a expressão “vem oferecer denúncia contra Tício”.
b) direito subjetivo: o titular do direito de ação penal pode exigir do Estado-Juiz a prestação jurisdicional, relacionada a um caso concreto;
c) direito autônomo: o direito de ação penal não se confunde com o direito material que se pretende tutelar;
d) direito abstrato: o direito de ação existe e será exercido mesmo nas hipóteses em que o juiz julgar improcedente o pedido de condenação do acusado. Ou seja, o direito de ação independe da procedência ou improcedência da pretensão acusatória;
e) direito determinado: o direito de ação é instrumentalmente conexo a um fato concreto, já que pretende solucionar uma pretensão de direito material;
f) direito específico: o direito de ação penal apresenta um conteúdo, que é o objeto da imputação, ou seja, é o fato delituoso cuja prática é atribuída ao acusado (LIMA, 2020, p. 292).
Como condições da ação penal, a doutrina as divide em dois grupos: as gerais, quais sejam, legitimidade, interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido (que, no Processo Civil, segundo o entendimento majoritário dos estudiosos, teria deixado de ser condição da ação) e justa causa; as especiais, a depender do crime, como por exemplo a representação do ofendido, a requisição do Ministro da Justiça ou o laudo pericial nos crimes contra a propriedade imaterial.
No que toca às espécies de ação penal, tem-se a privada e a pública. Esta se subdivide em incondicionada e condicionada à representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça; já aquela, em subsidiária da pública, personalíssima e exclusivamente privada.
A ação penal pública incondicionada é a regra no Direito Penal brasileiro, de modo que, ausente disposição em contrário relativamente ao tipo penal incriminador, será esta a espécie da ação penal.
A condicionada à representação subordina a atuação do Ministério Público à uma condição, qual seja, a representação do ofendido ou a requisição do auxiliar do Executivo.
Em contraste, a ação penal privada liga-se aos delitos praticados contra interesses imensamente próprios da vítima, motivo pelo qual o ordenamento entendeu que melhor seria transferir à ela, ou ao seu representante legal, a legitimidade para provocar o Poder Judiciário. De acordo com Renato Brasileiro,
A outra espécie de ação penal condenatória é a ação penal de iniciativa privada. Certos crimes atentam contra interesses tão próprios da vítima que o próprio Estado transfere a ela ou ao seu representante legal a legitimidade para ingressar em juízo. Como será visto com mais detalhes ao tratarmos da legitimidade para o exercício da ação penal de iniciativa privada, em situações excepcionais, que serão oportunamente estudadas, a queixa-crime também pode ser oferecida não só pelo ofendido ou por seu representante legal, como também por curador especial (CPP, art. 33), pelos sucessores do ofendido, em caso de morte ou declaração de ausência (CPP, art. 31), ou até mesmo por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, assim como associações, especificamente destinadas à defesa dos interesses e direitos do consumidor (Lei no 8.078/90, art. 80, c/c art. 82, III e IV). (LIMA, 2020, p. 317).
A ação penal exclusivamente privada é a regra no tocante à ação penal privada, de forma que, não sendo esta especificada, aduza-se tratar desta espécie.
Na privada personalíssima, a queixa somente pode ser ajuizada pela vítima, inadmitindo a sucessão processual; é a do art. 236, do CP.
Por sua vez, a subsidiária da pública depende da inércia do Ministério Público nos crimes de ação penal pública, o que a configura, segundo Rogério Sanches, inclusive, quando o órgão ministerial promoveu diligências, mas estas ainda se encontram no âmbito interno da instituição.
Buscou-se, assim, perfilhar o básico do tema, a fim de auxiliar na compreensão objeto do estudo.
2.2. A regra geral e as exceções quanto à ação penal do delito de estelionato
O crime de estelionato é trazido pelo art. 171, do Código Penal, em suas modalidades simples, privilegiadas e majoradas, prevendo o dispositivo, em soma, condutas equiparadas.
De acordo com Rogério Greco,
Sendo a fraude o ponto central do delito de estelionato, podemos identificá-lo, outrossim, por meio dos seguintes elementos que integram a sua conduta típica: a) conduta do agente dirigida finalisticamente à obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio; b) a vantagem ilícita pode ser para o próprio agente ou para terceiro; c) a vítima é induzida ou mantida em erro; d) o agente se vale de um artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento para a consecução do seu fim (GRECO, 2010, p.485).
Ainda segundo o mencionado autor, a corrente doutrinária majoritária defende que dita vantagem ilícita pode ter, ou não, natureza econômica, do que ele discorda.
Até 23 de janeiro de 2020, a ação penal para se promover a persecução voltada a se punir o autor do fato delituoso estelionato era pública incondicionada, salvo se o crime fosse cometido contra o cônjuge desquitado ou judicialmente separado; irmão; tio ou sobrinho, com quem o agente coabita, hipóteses em que se fazia precisa a representação do ofendido.
Para Rogério Greco, a representação do ofendido
É o ato por meio do qual o ofendido ou o seu representante legal manifesta seu interesse no sentido de ser dado início à persecutio criminis. Ressalte-se que a representação do ofendido ou de seu representante legal não precisa conter grandes formalismos. Nela, o ofendido ou seu representante legal simplesmente declara, esclarece a sua vontade no sentido de possibilitar ao Ministério Público a apuração dos fatos narrados, a fim de formar a sua convicção pessoal para, se for o caso, dar início à ação penal pelo oferecimento de denúncia (GRECO, 2009, p. 212).
A jurisprudência é uníssona quanto à desnecessidade de formalismos para a representação do ofendido, como se explana no exemplo abaixo colacionado:
1. De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a representação nos crimes de ação penal pública condicionada à representação não exige maiores formalidades, bastando que haja a manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal, demonstrando a intenção de ver o autor do fato delituoso processado criminalmente. Precedentes. 2. Na espécie, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ressaltou que, na primeira oportunidade em que foi ouvida, a genitora da menor deixou expressamente consignado o desejo de representar contra o autor do fato criminoso. Além disso, ponderou que a lavratura do Boletim de Ocorrência e o atendimento médico prestado à vítima deveriam ser considerados com verdadeira representação, pois contêm todas as informações necessárias para que se procedesse à apuração da conduta supostamente delituosa. Diante disso, concluiu estar demonstrado o desejo de submeter o acusado à jurisdição criminal, em harmonia com a orientação desta Casa (STJ, AgRg no HC 233.479/MG, DJe 02/02/2017).
Com o advento da lei nº 13.964, de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, que entrou em vigor na data acima citada, a regra no tocante à ação penal do estelionato foi alterada, passando a ser, regra geral, pública condicionada à representação, restando a ser inserta na classificação de pública incondicionada unicamente se a vítima for a Administração Pública (seja ela direta ou indireta), criança ou adolescente, pessoa com deficiência mental, maior de 70 anos ou incapaz.
2. A (IR)RETROATIVIDADE DA ALTERAÇÃO DA NATUREZA DA AÇÃO PENAL DO CRIME DE ESTELIONATO PELO PACOTE ANTICRIME
O Pacote Anticrime teve como escopo primordial estabelecer medidas verdadeiramente eficazes em face da corrupção, do crime organizado e dos delitos praticados mediante violência contra a pessoa, de forma a apresentar uma ideia mais rigorosa no enfrentamento da criminalidade.
O projeto inicial foi encaminhado ao Congresso Nacional contendo exposição de motivos anotada pelo então Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, que, nesta, defendeu a interdependência entre a corrupção, o crime organizado e os crimes com violência, motivo pelo qual o novo arcabouço deveria enfrentar os três problemas conjuntamente, pois inócuo o tratamento isolado. Ele disse, com razão que, “é evidente que o Código de Processo Penal de 1941 e a legislação que a ele se seguiu não estão atendendo às necessidades atuais. Assim, as reformas que ora se propõem visam dar maior agilidade às ações penais e efetividade no cumprimento das penas, quando impostas” (MORO, 2019), e, detalhando sobre o crime organizado, afirmou que o Estado nunca esteve tão acuado diante da criminalidade diferenciada que assola o Brasil, sendo ela um atentado contra os direitos humanos, como bem afirma Guilherme de Souza Nucci, para o qual isso acarreta em impossibilidade de investimentos em saúde, educação e outros importantes interesses sociais (NUCCI, 2016).
Entretanto, especificamente no tocante ao crime de estelionato, a mudança introduzida pela lei nº 13.964, de 2019, restou benéfica ao acusado, uma vez que se precisará da representação do ofendido, em regra, para se promover a persecução penal de tal conduta.
Para se analisar a retroatividade do dispositivo, é imprescindível se perquirir sobre a natureza jurídica do seu conteúdo, o que se fará a partir de então.
As disposições de conteúdo material ou penal são, em regra, irretroativas, com exceção das que veicularem benefícios ao transgressor. É o que se extrai do inciso XL do artigo 5º, da Constituição Federal, e do parágrafo único do artigo 2º, do Código Penal: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”. O Supremo Tribunal Federal, em análise acerca de alteração introduzida na lei nº 9.099, de 1995, já assentou que essa aplicação retroativa, se favorável, efetiva-se ainda que a nova previsão a afaste, uma vez que se trata de direito subjetivo do acusado:
EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. artigo 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O artigo 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no artigo 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o artigo 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao artigo 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei (STF, ADI 1719, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 18 de junho de 2007).
Por sua vez, as disposições de conteúdo processual são irretroativas, valendo suas previsões desde quando elas entram em vigor. Isso se retira do art. 2º, do Código de Processo Penal: “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.
Existem, ainda, as disposições que preveem conteúdo misto ou híbrido, ou seja, material e processual, para as quais se aplica o que se aduziu acerca daquelas de conteúdo material.
As normas que dispõem sobre ação penal possuem natureza híbrida, isto é, material e processual. Material, porque se relacionam com as causas de extinção da punibilidade, as quais fulminam o desejo estatal de aplicar a sanção ao infrator do ordenamento pátrio. E processual, pois a ação penal se materializa através do processo, no qual respeitadas as garantias constitucionais.
Assentada a natureza híbrida das referidas normas, extrai-se, assim, que, dada à aplicação das regras de natureza penal às de caráter híbrido, que é caso em tela, há de se reconhecer a retroatividade do Pacote Anticrime no ponto que trouxe a nova regra da ação penal do crime de estelionato, uma vez que mais benéfico ao réu. Atente-se à explicação de Renato Brasileiro:
A constatação de sua natureza mista tem extrema importância quando nos deparamos com as recentes leis que introduziram modificações quanto às espécies de ação penal. Basta ver, nessa linha, o exemplo do Projeto Anticrime, que transformou os crimes de estelionato, pelo menos em regra, em crimes de ação penal pública condicionada à representação (CP, art. 171, §5o). Fosse o direito de ação considerado de natureza estritamente processual, aplicar-se-ia o art. 2o do CPP, com a regra do princípio da aplicação imediata. Porém, a partir do momento em que se constatam os reflexos que o exercício do direito de ação produz em relação ao ius puniendi, não se pode deixar de aplicar a regra da irretroatividade da lei mais gravosa, ou da retroatividade da lei mais benéfica.
Exemplificando, se determinado crime era de ação penal pública incondicionada e passa a ser de ação penal de iniciativa privada, forçoso é concluir que se trata de lex mitior. Afinal, a partir do momento em que determinado crime passa a ser de ação penal de iniciativa privada, maior será a possibilidade de incidência de causas extintivas da punibilidade, como a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção. Por outro lado, se determinado delito era de ação penal de iniciativa privada e uma lei nova o transforma em crime de ação penal pública condicionada à representa- ção – veja-se o exemplo da Lei no 12.033/09, que alterou a natureza da ação penal do crime de injúria racial, antes de ação penal de iniciativa privada, hoje de ação penal pública condicionada à representação – cuida-se de evidente novatio legis in pejus, não podendo retroagir. De fato, a partir do momento em que o crime passa a ser de ação penal pública condicionada à representação, não serão mais cabíveis a renúncia, o perdão e a perempção como causas extintivas da punibilidade, subsistindo apenas a possibilidade de decadência do direito de representação. Evidente, portanto, tratar-se de lei nova prejudicial ao acusado, logo, irretroativa (LIMA, 2020, p. 291 e 292).
E a de Márcio Cavalcante,
As leis híbridas, como possuem reflexos penais, recebem o mesmo tratamento que as normas penais no que tange à sua aplicação no tempo. Logo, as normas híbridas não retroagem, salvo se para beneficiar o réu. Desse modo, a norma que altera a espécie de ação penal de um crime não retroage, salvo se for para beneficiar o réu. Ex: antes da Lei nº 9.099/95, o crime de lesão corporal leve era de ação penal pública incondicionada; depois da Lei, esse delito passou a ser de ação penal pública condicionada. Isso é mais benéfico para o réu que responde ao processo? Sim, porque na ação penal pública condicionada existe a possibilidade de renúncia e de decadência, que não são permitidas na ação pública incondicionada. Logo, a lei foi retroativa nesse ponto. Ex2: o crime de injúria racial era de ação penal privada e, por força da Lei nº 12.033/2009, passou a ser de ação penal pública condicionada à representação. Essa Lei é mais benéfica para o réu? Não, porque limita as causas de extinção da punibilidade. Logo, para as pessoas que cometeram o delito antes da Lei nº 12.033/2009, a ação continua sendo privada, não retroagindo a lei. Isso significa que essa alteração irá retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência? SIM. O § 5º do art. 171 do CP apresenta caráter híbrido (norma mista) e, além disso, é mais favorável ao autor do fato. Logo, tem caráter retroativo (CAVALCANTE, 2020).
Observada, então, que haverá a retroatividade do dispositivo em estudo, em virtude de conter previsão favorável ao réu, diga-se que os Tribunais Superiores têm se esmiuçado em analisar a extensão e o momento até onde ela se operará.
Quanto ao tema, afirme-se que, no tocante aos processos penais ainda não iniciados, ou seja, naqueles em que a denúncia ainda não foi oferecida, é indiscutível que a nova redação do §5º do art. 171 do Código Penal exige, para tanto, que haja, previamente, a representação do ofendido. Isso é unânime na doutrina e jurisprudência pátria. Nas palavras de Renato Brasileiro,
Portanto, se a denúncia quanto ao crime de estelionato ainda não havia sido oferecida quando entrou em vigor o Pacote Anticrime, pensa-se que a atuação do MP passou a depender de representação, cujo termo decadencial inicial, para os fatos pretéritos, seria a data da ciência da vítima .quanto à necessidade de oferecer representação (LIMA, 2020, p. 71).
Contudo, quanto às ações penais em que a denúncia já restou oferecida, duas correntes se formaram nos Tribunais Superiores.
A 6ª Turma do STJ julga utilizando o pensamento de que há a retroatividade para todos os processos em curso, desde que ainda não transitados em julgado, aplicando-se, por analogia, o art. 91, da lei nº 9.099, de 1995. Assim, em processos que objetivam a punição pelo crime de estelionato, a vítima deve ser intimada para afirmar sua vontade de continuar com a persecução, sob pena de decadência. É a posição de Renato Brasileiro, para quem, porém, não deve ser aplicado o prazo de trinta dias previsto na Lei dos Juizados Especiais, mas o prazo previsto no próprio CPP ou no CP, com quem concorda Rodrigo Leite.
HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. PACOTE ANTICRIME. LEI N. 13.964/2019. § 5º DO ART. 171 DO CP. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO COMO REGRA. NOVA LEI MAIS BENÉFICA. RETROATIVIDADE. ART. 5º, XL, DA CF. APLICAÇÃO DO ART. 91 DA LEI N. 9.099/1995 POR ANALOGIA.
1. As normas que disciplinam a ação penal, mesmo aquelas constantes do Código de Processo Penal, são de natureza mista, regidas pelos cânones da retroatividade e da ultratividade benéficas, pois disciplinam o exercício da pretensão punitiva.
2. O processo penal tutela dois direitos de natureza pública: tanto os direitos fundamentais do acusado, voltados para a liberdade, quanto a pretensão punitiva. Não interessa ao Estado punir inocentes, tampouco absolver culpados, embora essa última solução se afigure menos danosa.
3. Não é possível conferir a essa norma, que inseriu condição de procedibilidade, um efeito de extinção de punibilidade, quando claramente o legislador não o pretendeu.
4. A retroação do § 5º do art. 171 do Código Penal alcança todos os processos em curso, ainda sem trânsito em julgado, sendo que essa não gera a extinção da punibilidade automática dos processos em curso, nos quais a vítima não tenha se manifestado favoravelmente à persecução penal. Aplicação do art. 91 da Lei n. 9.099/1995 por analogia.
5. O ato jurídico perfeito e a retroatividade da lei penal mais benéfica são direitos fundamentais de primeira geração, previstos nos incisos XXXVI e XL do art. 5º da Constituição Federal. Por se tratarem de direitos de origem liberal, concebidos no contexto das revoluções liberais, voltam-se ao Estado como limitadores de poder, impondo deveres de omissão, com o fim de garantir esferas de autonomia e de liberdade individual. Considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão.
6. Ordem parcialmente concedida, confirmando-se a liminar, para determinar a aplicação retroativa do § 5º do art. 171 do Código Penal, inserido pela Lei n. 13.964/2019, devendo ser a vítima intimada para manifestar interesse na continuação da persecução penal em 30 dias, sob pena de decadência, em aplicação analógica do art. 91 da Lei n. 9.099/1995. (HC 583.837/SC, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 04/08/2020, DJe 12/08/2020).
(...) O fato de o processo penal já estar em andamento não é empecilho algum à incidência desse novo regramento. Ao transformar o delito de estelionato em crime de ação penal pública condicionada à representação, pelo 1nenos em regra, o Pacote Anticrime assume nítida natureza penal, já que cria, em favor do acusado, nova causa extintiva da punibilidade: a decadência, pelo não exercício do direito de representação no prazo legal de 6 (seis) meses (CPP, art. 38, c/c art. 107, inciso IV, do CP). O fato de à Lei nº 13.964/19 não trazer dispositivo expresso acerca do assunto, como o fez, por exemplo, a Lei nº 9.099/95 (art. 91), não pode servir como impedimento para a incidência do novo regramento. Afinal, como o direito de representação está profundamente vinculado ao direito de punir, uma vez que ·Seu não exercício · acarreta a decadência, que é causa de extinção da punibilidade, e como tudo que impeça ou dificulte o ius puniendi se insere no âmbito da lei penal, há de se aplicar a regra constitucional do Direito Penal intertemporal, segundo ~ qual a lei penal. não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (CF, art. 5°, XL, c/c .art. 2°, parágrafo único, do CP). Quanto ao prazo para o oferecimento dessa, representação como condição de prosseguibilidade, certamente haverá .. quem entenda que. o prazo deverá ser aquele constante do art. 9.1 da Lei nº 9.099/9-5. (30 dias).65 Mais uma vez, ousamos discordar. Diante d9 silêncio da Lei nº 13.964/19, não se pode usar, por analogia, o art. 91 da Lei nº 9.0~9/95. Referida lei só poderia ser usada, subsidiariamente, se o Código Penal e O Código de Processo Penal nada· dispusessem acerca do assunto. Ora, como o Código Penal (art. 103) e o Código de Processo Penal (art. 38) : contêm dispositivos expressos acerca . elo . prazo· decadencial da representação - 6 -'(seis) · meses - pensamos que este é -o prazo que deve ser utilizado subsidiariamente, cujo termo inicial será o momento em que o ofendido ou seu representante legal forem intimados para oferecê-la, e não a data ·da entrada em ·vigor da Lei n .. 13.964/19, porquanto é somente a partir desse momento que se poderá falar em evidente inércia para fins de reconhecimento· da decadência. A despeito de toda essa controvérsia, considerando que não se exige maiores formalismos quanto à representação, se porventura já constar dos autos desses processos criminais algum tipo de requerimento para a instauração do inquérito policial, ~ de rigor a conclusão . Neste sentido, já há "representação" naquele feito, porquanto evidenciado, O interesse da vitima no sentido da persecução penal. Nesse caso, poder-se-á aproveitar essa representação como condição de prosseguibilidade para fins de se dar continuidade ao processo. (LIMA, 2020, p. 72).
Entendo correta a posição da Sexta Turma do STJ, pois a norma repercute no direito material e, nesse campo, vigora a regra segundo a qual a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88 e art. 2º, parágrafo único, do CP). Deve prevalecer a retroatividade benéfica, independente da fase em que se encontre a persecução penal. Todavia, apenas ressalvo que o prazo a ser aplicado, a meu ver, deveria ser o de 6 (seis) meses a contar da intimação da vítima (e não 30 dias a contar da intimação da vítima), pois o Código de Processo Penal e o Código Penal possuem prazo para oferecimento da representação – ver arts. 38 do CPP e 103 do CP, de modo que a aplicação do prazo de 30 (trinta) dias da Lei dos Juizados Especiais não nos parece a melhor solução, uma vez que havendo prazo no CP ou no CPP, não se deveria aplicar a Lei n. 9.099/1995 (LEITE, 2020).
Já a 5ª Turma do STJ e o STF entendem pela irretroatividade do dispositivo, limitando à aplicação para trás do mesmo unicamente à fase policial, porque, em interpretação diversa, transformar-se-ia uma condição de procedibilidade em uma condição de prosseguibilidade, afinal, quando editada a Lei dos Juizados Especiais, esta foi expressa em exigir a representação do ofendido como condição de prosseguibilidade para os processos em curso, o que inocorreu na alteração promovida pelo Pacote Anticrime. Quando se vai oferecer uma denúncia, observa-se todas as formalidades e condições exigidas, assim, se uma condição não existe no momento em que se oferece a denúncia, transforma-se uma condição de procedibilidade em uma condição de prosseguibilidade. É o que defende Rogério Sanches; para ele, “a representação do ofendido não é condição para o processo prosseguir, mas para ele existir” (SANCHES, 2020).
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CRIME DE ESTELIONATO. PRETENDIDA APLICAÇÃO RETROATIVA DA REGRA DO § 5º DO ART. 171 DO CÓDIGO PENAL, ACRESCENTADO PELA LEI N. 13.964/2019 (PACOTE ANTICRIME). INVIABILIDADE. ATO JURÍDICO PERFEITO. CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. DOUTRINA. DOSIMETRIA. PRETENSÃO DE CONVERSÃO DA PENA CORPORAL EM MULTA. ART. 44, §2º, DO CÓDIGO PENAL. DISCRICIONARIEDADE DO JULGADOR. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal e as Turmas que compõem a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. 2. A Lei n. 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, conhecida como "Pacote Anticrime", alterou substancialmente a natureza da ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º, do Código Penal), sendo, atualmente, processado mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido, salvo se a vítima for: a Administração Pública, direta ou indireta; criança ou adolescente; pessoa com deficiência mental; maior de 70 anos de idade ou incapaz. 3. Observa-se que o novo comando normativo apresenta caráter híbrido, pois, além de incluir a representação do ofendido como condição de procedibilidade para a persecução penal, apresenta potencial extintivo da punibilidade, sendo tal alteração passível de aplicação retroativa por ser mais benéfica ao réu. Contudo, além do silêncio do legislador sobre a aplicação do novo entendimento aos processos em curso, tem-se que seus efeitos não podem atingir o ato jurídico perfeito e acabado (oferecimento da denúncia), de modo que a retroatividade da representação no crime de estelionato deve se restringir à fase policial, não alcançando o processo. Do contrário, estar-se-ia conferindo efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condição de prosseguibilidade e não procedibilidade. Doutrina: Manual de Direito Penal: parte especial (arts. 121 ao 361) / Rogério Sanches Cunha - 12. ed. rev., atual. e ampl. - Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 413. 4. Ademais, na hipótese, há manifestação da vítima no sentido de ver o acusado processado, não se exigindo para tal efeito, consoante a jurisprudência desta Corte, formalidade para manifestação do ofendido. 5. Conforme pacífica jurisprudência desta Corte Superior, fixada a pena corporal nos patamares delineados no art. 44, § 2º, do Código Penal, compete ao julgador a escolha do modo de aplicação da benesse legal. Além disso, não é socialmente recomendável a aplicação da multa substitutiva em crimes cujo o tipo penal prevê multa cumulativa com a pena privativa de liberdade. 6. Habeas corpus não conhecido (STJ. 5ª Turma. HC 573.093-SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. em 09/06/2020 (Info 674). STF. 2ª Turma. ARE 1230095 AgR, Rel. Gilmar Mendes, julgado em 24/08/2020).
É o panorama atual.
3. CONCLUSÃO
Verificou-se, no estudo em testilha, que a nova redação do §5º do art. 171, do Código Penal, dada pela lei nº 13.964, de 2019, beneficia os acusados pelo delito de estelionato, motivo pelo qual incidem o art. 5º, XL, da CF, e o art. 2º, parágrafo único, da legislação penalista codificada brasileira; por esse motivo, retroage.
Contudo, discute-se, nos campos doutrinário e jurisprudencial, a extensão dessa retroatividade – se alcança os processos já em curso ou se ela se limita à fase policial.
Pelos argumentos expostos, enfatize-se a correção de se entender como o Supremo Tribunal Federal, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e o doutrinador Rogério Sanches, afinal as condições necessárias para a realização de um ato processual devem ser observadas e preenchidas no momento de sua ocorrência, o que não se confunde com o princípio constitucional da retroatividade benéfica.
REFERÊNCIAS
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Advogada. Pós-Graduada pela Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Pós-Graduada pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, MARCELLA VIEIRA DE QUEIROZ. O pacote anticrime e a irretroatividade da necessidade de representação no estelionato quanto aos processos em curso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jan 2021, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56044/o-pacote-anticrime-e-a-irretroatividade-da-necessidade-de-representao-no-estelionato-quanto-aos-processos-em-curso. Acesso em: 23 dez 2024.
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