RESUMO: Esta dissertação analisa os contornos da ação popular no direito brasileiro, discorrendo acerca dos requisitos para a propositura da ação, os efeitos da sentença condenatória, bem como as polêmicas mais relevantes acerca do tema. Ao adentrar no profundo dos elementos desta ação coletiva, faz-se uma análise histórica do direito nacional e da tutela dos direitos extrapatrimoniais, da revolução trazida pela Constituição Federal de 1988 e o atual microssistema de proteção dos direitos difusos e coletivos. Esta exordial enfatiza as hipóteses autorizadoras da ação popular, tema que causa reflexão doutrinária, moral e democrática. Por fim, conclui-se o trabalho propondo uma interpretação ampliativa do rol de possibilidades da ação popular, instrumento constitucional garantidor da democracia nacional.
Sumário:1. Introdução – 2. A Ação Popular Brasileira; 2.1 A Legitimidade; 2.2 A Tutela Jurisdicional; 2.3 Lesividade; 2.4 Interesses Tutelados – Os direitos difusos; 3 Taxatividade de Hipóteses – 4. Conclusão
1Introdução
A Ação Popular, espécie de ação coletiva prevista na Carta Magna de 1988 e na Lei 4.717/65, é espécie de controle jurisdicional e é instrumento de defesa dos interesses da coletividade, no qual todo e qualquer cidadão goza da atribuição de enfrentar o Poder Público com paridade de direitos e deveres dentro de um processo presidido por um juiz imparcial e competente.
A Ação Popular, pouco explorada e pouco conhecida dos brasileiros em geral, é instrumento de participação popular direta na administração pública, e por isso, arma contra abusos, fraudes, danos e ilegalidades.
Este trabalho visa não somente adentrar o cerne da lei, da doutrina e da jurisprudência acerca da Ação Popular, mas estruturar novas possibilidades de exploração deste recurso processual, defendendo, portanto, que a Ação Popular seja instrumento apto também a coagir o Poder Público a atender os anseios concretos da população.
Dessa forma, estrutura-se uma linha doutrinária sobre a possibilidade de ajuizamento da ação popular além das hipóteses legais, ampliando, pois, a utilização deste instrumento processual/constitucional.
A ampliação do rol de direitos tutelados pela ação popular torna-se interessante em um país onde os sistemas apresentam falhas, brechas e falta de poder de ação. Trata-se de empoderar os cidadãos a pleitearem e coagirem o poder público a atender seus anseios, sem a necessidade da intermediação do Ministério Público, por exemplo.
Por este motivo surge a indagação acerca da possibilidade de se ajuizar Ação Popular tendo como pedido mediato a tutela de outros interesses, exigindo do poder público a proteção da saúde, da segurança pública, da educação, bem como a efetivação de obra necessária à população, enfim, estender o rol dos direitos difusos passiveis de proteção.
2Ação Popular Brasileira
O instituto da ação popular pode ser conceituado da seguinte forma:
A ação popular é um instrumento de defesa dos interesses da coletividade, utilizável por qualquer de seus membros, no gozo de seus direitos cívicos e políticos. Por ela não se amparam direitos próprios, mas, sim, interesses da comunidade. O beneficiário direto e imediato da ação não é o autor popular; é o povo, titular do direito subjetivo ao Governo honesto. [1]
A Ação Popular está presente na história do direito nacional desde a Constituição Imperial de 1824, na qual estava restrita a atos ilícitos de juízes e oficiais de justiça no exercício do cargo, com natureza penal. Já a Constituição de 1891 não fez menção ao instituto.
Alguns anos depois, passou-se a discutir o projeto do Código Civil, sendo notória a decisão por não retratar o instituto no Código. Isto porque, à época não se sustentava a ideia de um indivíduo ir à Juízo defender interesses alheios, confundindo os conceitos de interesse de agir e legitimidade de parte.
As Constituições de 1934 e 1946 trouxeram o instituto da Ação Popular, enquanto a Constituição de 1937, neste lapso temporal, afastou a Ação Popular do cenário brasileiro.
Somente em 1965 veio a regulamentação da Ação Popular com a edição de Lei nº 4.717, em vigor até hoje.
As Cartas seguintes mantiveram a previsão do instituto, sendo que a Constituição de 1967 também trouxe a Ação Popular, o que foi mantido pela Emenda de 1969, preceituando que: “Qualquer cidadão será parte legitima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas”.
O Artigo 5º, LXXIII da Carta Magna de 1988 segue os ditames do texto legal da Constituição de 1967, ampliando, no entanto, a sua abrangência.
A técnica legislativa empregada foi meticulosa, afastando qualquer possibilidade de casuística das hipóteses, o que desde a vigência da Lei, incomodou alguns juristas: “A dinâmica jurídica não se prende em fórmulas definitivas e completas, sendo, pois, de esperar que a experiência descortine, nas relações concretas, hipóteses não figuradas”.[2]
Percebe-se que a Ação Popular tem seu objeto mais restrito que o da Ação Civil Pública, que é capaz de tutelar qualquer interesse difuso e coletivo, já que a Lei 7.347/85 oferece rol exemplificativo de bens e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem tutelados.
Embora esta exordial busque defender a casuística do rol de direitos tutelados pela Ação Popular, existem autores que defendem uma interpretação restritiva da Lei:
A Ação Popular é, sem dúvida, uma das espécies de ação coletiva e visa especificamente à proteção do patrimônio público. (...) tem se que o patrimônio público pode ser primário, isto é, de uso comum de todos, como o meio ambiente e os bens de valor artístico, estético, histórico ou turístico, ou secundário, assim entendidos aqueles direitos de valor econômico em especial o dinheiro público.[3]
A Lei 4.717/65 preceitua no artigo 1º, §1º: “Consideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico”.
Por fim, vale mencionar que o objetivo da Ação Popular é questionar a ilegalidade de atos administrativos, bem como atos normativos em sentido concreto, que no caso, são atos administrativos em sentido amplo. A Ação popular não tem o condão de invalidar qualquer conteúdo jurisdicional ou lei. É, portanto, uma ferramenta restrita aos atos do Poder Executivo.
2.1 A legitimidade
A Constituição Federal e a Lei optaram por reconhecer que “qualquer cidadão” é qualificado para ajuizar ação popular. Entende-se “cidadão” o brasileiro que esteja no gozo de seus direitos políticos, já que a própria Lei determina que para estar em juízo, é necessária a apresentação do título de eleitor (Artigo 9º).
Essa opção do constituinte foi sábia. Se, nos termos do art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, ‘’ todo poder emana do povo’’, então nada mais natural que a ele – isto é, a todos os cidadãos – seja dada a possibilidade de intervir na administração pública, como forma de legítimo exercício de direitos políticos diretamente pelos seus titulares e em clara manifestação da soberania popular. Trata-se assim, de direito cívico-político do cidadão. [4]
Por isso, pode-se dizer que “a participação político democrática do cidadão nos destinos da sociedade é a tônica central da ação popular”.[5]
O autor da ação popular é parte formal no processo, já que postula perante o Poder Judiciário. No entanto, age com legitimidade extraordinária, um substituto processual que defende interesses de toda a coletividade.
Relevante pontuar o que decidiu o Supremo Tribunal Federal em dezembro de 1963 no Enunciado nº 365 da Súmula: “Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular”. Diante deste Enunciado, e mesmo após a vigência da Lei em 1965, o entendimento prevaleceu, sendo parte legítima apenas o cidadão, como já mencionado.
A ação popular é instrumento interessantíssimo no que tange à legitimidade passiva, já que é capaz de alcançar: (art. 6º da Lei n. 4.717/65), i) as pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado; ii) as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissão, tiverem dado oportunidade à lesão; e iii) os beneficiários diretos do ato.
Ao trazer estas hipóteses, a Lei trata de um litisconsórcio passivo simples, já que ao decorrer da instrução processual, verificar-se-ão as responsabilidades de cada um dos envolvidos, podendo coexistir inúmeras condenações.
A Ação Popular é extremamente eficaz já que em caso de reconhecimento da prática de ato lesivo e ilegal no exercício da função, o agente público responderá com seu patrimônio pessoal.
2.2A tutela jurisdicional
Ao demandar do Estado-juiz uma prestação jurisdicional, formulamos o pedido, isto é, o objeto da ação. Deste partem inúmeros efeitos, sendo que o pedido é composto por dois subtipos, o pedido imediato (a tutela jurisdicional prestada pelo magistrado) e o pedido mediato, que elucida o bem pretendido.
Importante ressaltar que por muito tempo, fundamentando-se no artigo 11 da Lei, o pedido imediato da ação popular se restringia a uma sentença constitutiva negativa (portanto, desconstitutiva) e condenatória, anulando o ato lesivo, e em seguida, condenando ao ressarcimento os responsáveis.
Este entendimento foi evoluindo e com o advento da Carta Magna, estendeu-se um novo leque de possibilidades. A Lei da ação popular passou a ser interpretada à luz da Constituição.
Assim sendo, a partir da Carta de 1988 pensamentos modernos passaram a defender a adequação de outras prestações jurisdicionais à ação popular, abrangendo àquelas previstas no Código de Processo Civil, quais sejam: tutelas constitutiva, declaratórias, condenatórias, mandamentais e executivas.
Este ponto merece grande destaque e aprofundamento, pois, a partir deste entendimento, hoje já pacificado, é que se fundamenta a presente dissertação.
Em primeiro lugar, ponderam-se acerca dos textos legais referentes ao tema: Artigo. 1º da Lei prevê que a ação popular visa “pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público” e a Constituição Federal: “ação popular que vise a anular ato lesivo”. Ao fazer uma interpretação literal da Lei, podemos cair em erro e assumir que a Ação Popular somente tem o caráter de ação desconstitutiva.
No entanto, não parece sensato limitar a abrangência da ação popular após a efetivação do dano, já que todos os direitos defendidos (patrimônio público, moralidade pública, meio ambiente e patrimônio histórico-cultural) são sensíveis e após a ocorrência do dano, quase irreversíveis de se reparar.
Tornou-se evidente, em consonância com os preceitos constitucionais da Carta Magna de 88, com o microssistema das Ações Coletivas, e principalmente após o advento do Código de Defesa do Consumidor que a tutela efetiva não é aquela que condena, mas aquela capaz de prevenir a ocorrência do dano.
Por muito tempo no Brasil não se falava em tutelas preventivas, já que o conceito de responsabilidade do direito civil estava diretamente ligada à ocorrência de dano, e somente após este, o direito poderia “entrar em cena”. Neste sentindo também não se aceitava a ideia de um indivíduo postular em juízo um direito coletivo, isto é, agir desprovido de interesse próprio. Estes preceitos foram óbices na evolução do instituto da ação popular, conforme discorre Clóvis Beviláqua:
No livro referente aos factos juridicos, surgem as acções populares, que não tiveram entrada na codificação civil, após detido exame de sua desnecessidade. Qualquer cidadão, determina o art. 113, nº 38, da Constituição, será parte legitima para pleitear a declaração de nulidade ou annullação dos actos lesivos do patrimônio da União, dos Estados e dos Municipios. Sem negar o caracter democrático dessa ressureição, receio que nos venham dahiincovenientes, que a boa organização do Ministério Público evita. Para funcções dessa classe, a sociedade possui orgãoes adequados, que melhor a desempenham do que qualquer do povo.[6]
Conclui-se que se trata, portanto, de texto legal que deve ser interpretado em consonância com toda a legislação pátria moderna.
A Ação Popular é capaz de evitar a ocorrência de dano iminente, sem a necessidade de esperar pela ação de órgãos de defesa e até mesmo do Ministério Público. A legitimidade ativa da ação popular é extremamente coincidente com as características do Brasil, com a impossibilidade estatal de proteger todos os territórios, de garantir uma boa fiscalização e de proteger o patrimônio nacional em geral. O cidadão brasileiro tem o direito de gozar desta tutela de proteção, de usufruir deste instrumento processual apto a zelar pelos direitos sociais:
É talvez esta peculiaridade que torna ação popular mais interessante (com as ressalvas que a seu tempo virão) na perspectiva em que nos situamos aqui, sabido como é que os denominados "interesses difusos" não raro se mostram insuscetíveis de redução a valores monetariamente expressos - característica com a qual ·se relaciona de maneira direta a insuficiência, a seu respeito, da "tutela ressarcitória": é inconcebível que se compense mediante simples prestação em dinheiro o prejuízo consistente, v.g., na destruição da paisagem, na mutilação de monumentos históricos, na poluição do ambiente, etc.[7]
Por estas razões, embora a Constituição Federal e a Lei 4.717/65 delimitaram os objetos do instituto, parece sensato defender que um instituto constitucional com tamanha aplicabilidade não se restrinja a estas pouquíssimas hipóteses.
Trata-se de instrumento democrático capaz de repreender, anular, condenar individualmente, mas além, de prevenir danos.
2.3A lesividade
A Lei da ação popular apresenta as seguintes hipóteses de invalidação do ato administrativo, quando estes forem lesivos ao patrimônio público e incorram em (i) incompetência; (ii) vício de forma; (iii) ilegalidade do objeto; (iv) inexistência dos motivos e (v) desvio de finalidade.
É pacifico na doutrina que a Lei exige a averiguação do binômio ilegalidade ou ilegitimidade e lesividade. Na visão de Meirelles, conceituado doutrinador administrativista: “lesivo é todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário e prejudica a Administração, assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívica, cultural, ambiental ou histórica da comunidade”.[8]
Até a vigência da Carta Cidadã de 1988, a Lei 4717/65 se restringia a observar as lesões patrimoniais que atingissem o erário público. Com o advento da Constituição Federal, a moralidade assumiu posição equivalente à proteção do patrimônio público:
Com a vigência da Constituição, “a nova disciplina constitucional, contundo, ampliou a noção de lesão, que compreende além do patrimônio material, os valores espirituais e a moralidade. Assim, qualquer ato ilegítimo, ainda que não cause prejuízo ao erário e aos demais bens protegidos pela ação popular, será sempre lesivo à moralidade administrativa e, nos termos do disposto no art. 5º, LXXIII, da CF, dá ensejo à propositura da ação popular.[9]
A moralidade administrativa é um princípio constitucional do direito administrativo retratado no caput do art. 37, da Constituição Federal, e assim, “a moralidade administrativa, a partir da Constituição de 1988, torna-se pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública”.[10]
A questão que surgiu na doutrina foi mensurar se a imoralidade no âmbito administrativo seria passível de controle jurisdicional, mesmo que não houvesse ilegalidade ou dano ao patrimônio público.
Evidente que estas questões surgiriam, já que a Carta Magna revolucionou ao trazer um princípio subjetivo, sem muitos contornos doutrinários capaz de justificar a invalidação de atos do Poder Executivo. Neste sentindo, Meirelles amplia o significado de lesividade tendo em vista a inserção da proteção à moralidade como matéria constitucional: “A moralidade comum não se confunde com a moralidade administrativa, esta transcende a vaga indagação entre o Bem e o Mal, alcançando a ideia geral de administração, e especialmente, de boa administração”.[11]
A moralidade administrativa exige do administrador público uma postura cívica, ética, democrática. Exige-se da autoridade, do administrador, do funcionário ou do servidor que represente todo o povo, atuando em nome do coletivo e atendendo, exclusivamente, aos interesses da sociedade.
Portanto, não é demais configurar que o ato de imoralidade enseje a propositura da Ação Popular. O ato imoral fere o sistema administrativo e seus princípios basilares, o ato imoral é ato atentatório à Constituição Federal:
Todo ato lesivo ao patrimônio agride a moralidade administrativa. Mas o texto constitucional não se conteve nesse aspecto apenas da moralidade. Quer que a moralidade administrativa em si seja fundamento de nulidade do ato administrativo. Deve-se partir da ideia de que a moralidade administrativa em si seja fundamento de nulidade do ato.[12]
O Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que para o cabimento da ação popular, torna-se dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, uma vez que o texto constitucional também abrange os patrimônios moral, cultural e histórico.[13]
No entanto, vale mencionar a posição de Meirelles acerca da questão. Embora amplie o significado de lesividade, como já mencionado, o autor mostra-se intransigente à ideia de que a imoralidade administrativa dispense a prova de ilegalidade do ato, já que essa é “categoria vasta, fluida ou difusa e pautada em crenças pessoais, inclusive religiosas, que podem variar de pessoa para pessoa”.
Ainda segundo o administrativista, a moral não se confunde com o direito, pois ela é influenciável pela opinião pública e pelos rumores políticos. Neste sentindo, argumenta que:
Permitir que o juiz invalide um ato formalmente legal da Administração, sob o único argumento de que este ato seria imoral, implica em colocar o administrador público em permanente incerteza. O Judiciário poderia, sob o pretexto de defesa da moralidade, estabelecer uma ou outra prioridade para a Administração, e, desta forma, acabaria intervindo no âmbito da conveniência do ato, o que não deve ser admitido dentro do sistema de separação tripartite dos poderes.[14]
Esta posição, embora devidamente fundamentada e extremamente coerente, não é majoritária. Com o advento da Constituição de 1988, criou-se um microssistema de normas coletivas, trazendo novas diretrizes a serem seguidas. A Carta Magna revolucionou o instituto da ação popular, ampliando seu objeto e possibilidades.
Diante de todo o exposto, e tendo em vista que este trabalho busca a defesa da extensão do rol de possibilidades da ação popular, a imoralidade é fundamento capaz de ensejar a propositura da ação popular, já que é considerada, por si só, ato lesivo.
2.4 Interesses tutelados – os direitos difusos
A doutrina nacional demonstra a existência de certa confusão para tratar das expressões “direitos difusos e coletivos”, sendo que alguns autores nem se atreviam a diferenciar as duas expressões, unindo-as em um único grupo, como direitos da coletividade, que interessam a todos.
No entanto, com a evolução do direito nacional e com a valorização dos direitos não patrimoniais, surgiram novas possibilidades jurídicas para concretizar esses direitos. Como consequência direta, aprofundaram-se também no estudo das expressões.
Hoje é mais pacífico o entendimento de que os chamados direitos coletivos são aqueles pertencentes à grupos ou categorias de pessoas determináveis que compartilham uma mesma base jurídica, enquanto os direitos difusos são aqueles de interesse de um grupo indeterminado de pessoas unidas pelo mesmo fato.
A partir desta definição observamos que os interesses difusos são mais amplos, já que abrangem um número indeterminado de pessoas, podendo atingir toda a humanidade. É o direito pertencente ao homem simplesmente pela condição de ser humano. Já os direitos coletivos estão adstritos a uma relação entre indivíduos, um vínculo que une uma determinada quantidade de pessoas.
Esta brevíssima menção acerca dos direitos difusos e coletivos faz-se necessária para delimitarmos a seara de proteção de direitos da Ação Popular, já que as ações coletivas são os instrumentos processuais de tutela destes direitos chamados metaindividuais.
As Ações Coletivas são assim chamadas as ações que julgadas procedentes são capazes de tutelar direitos ou interesses sociais. Ao transitar em julgado, certo nível do universo coletivo será alvo dos efeitos da procedência, seja no âmbito de um grupo ou de um indeterminado número de pessoas.
Impede ter presente, nesse passo, que uma ação recebe a qualificação de “coletiva” quando através dela se pretende alcançar uma dimensão coletiva, e não pela mera circunstância de haver um cúmulo subjetivo em seu polo ativo ou passivo; caso contrário, teríamos que chamar de “coletiva” toda ação civil onde se registrasse um litisconsórcio integrado por um número importante de pessoas, como se dá no chamado “multitudinário”.[15]
As ações coletivas possuem, essencialmente, a função de tutelar os interesses da sociedade.
Em especial, a ação popular tutela interesse difuso à preservação da probidade, eficiência e moralidade na gestão da coisa pública, bem como o meio ambiente e o patrimônio público.
3 Taxatividade De Hipóteses?
Diante de todo o exposto, entende-se que a ação popular é instrumento processual constitucional valiosíssimo para a estabilidade da ordem pública e a manutenção de um Estado Democrático de Direito.
A particularidade deste instituto é possibilitar que qualquer brasileiro exija do poder público a proteção de determinado direito ou interesse, controlando os atos administrativos lesivos ao Estado.
Hoje a doutrina nacional reverencia a Constituição Federal de 1988 por estender a aplicabilidade da ação popular, já que incluiu um rol de novas possibilidades para ajuizar a ação: a proteção ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural e principalmente a moralidade administrativa.
Neste sentindo, a doutrina preocupa-se com a extensão, com os contornos e principalmente com o subjetivismo do termo “moralidade administrativa”, deixando de lado qualquer outra discussão que possa aflorar acerca do tema.
No entanto, diante da incrível faculdade de oportunizar qualquer brasileiro a propor uma ação judicial que exija explicações do “servidor” público e que pode até mesmo condenar individualmente os responsáveis, esta discussão não pode pautar-se somente neste quesito.
Por esta razão busca-se formar um pensamento reflexivo acerca dos direitos tutelados pela ação popular, arguindo principalmente que o rol de possibilidades não deve ser taxativo.
Talvez o grande argumento para a limitação do rol de objetos da ação popular seja a existência de outros instrumentos processuais constitucionais que suprimam esta falta. Menciona-se aqui a ação civil pública, capaz de tutelar todos os direitos difusos e coletivos.
No entanto, embora a ação civil pública tenha se mostrado demasiadamente eficiente, ela apresenta como óbice a questão da legitimidade. Estar restrito à ação do Ministério Público, da Defensoria Pública ou de outros órgão e entidades mencionados no art. 5º da Lei 7.347/85 é obstáculo para o sucesso do pedido pleiteado em um país onde faltam servidores, estrutura e estes órgãos estão limitados a poucos territórios.
Por esta razão, a ampliação do rol de possibilidades da ação popular é medida interessantíssima e tendente a novas discussões, tendo em vista o atual momento político no país e o crescente interesse do brasileiro na participação administrativa do Estado.
Rodolfo Mancuso, exímio doutrinador de ações coletivas e interesses difusos, cita a possibilidade de uma interpretação ampliativa da proteção ao meio ambiente:
(...) um exemplo da tendência ampliativa no manejo da ação popular está na sua aplicação no âmbito das relações de trabalho, até porque o citado inc. LXXIII do art. 5º da CF, ao mencionar o ‘’meio ambiente’’, não exclui, naturalmente, as afrontas ao meio ambiente do trabalho (CF, art. 200, VIII), sabido que a expressão meio ambiente não restringe ao sentido de biota (Lei 6.938/1981, art. 3º, I), mas inclui os planos cultural, artificial ( o que o homem agregou a natureza) e do trabalho, neste último caso induzindo a competência da Justiça do Trabalho (CF, art. 114, I).[16]
Por fim, a CF 88 revolucionou o sistema das ações coletivas ao ampliar o rol da ação popular, e em comunhão com o Código de Defesa do Consumidor, a legislação brasileira tornou-se referência na proteção de direitos extrapatrimoniais: “O Brasil conta com uma das mais avançadas legislações sobre ação coletiva do mundo (...)”. Assim sendo, diante da existência de uma legislação moderna, surge a questão: restam ainda quantos passos para a eficácia plena desse direito?
4 Conclusão
Diante de todo o exposto, conclui-se que a ação popular é ação constitucional capaz de atingir atos do executivo maculados pela lesividade e ilegalidade. É instrumento processual que foi ampliado pela Constituição de 1988 e em conjunto com os meios de proteção do Código de Defesa do Consumidor constitui sistema de tutela de direitos coletivos.
A ação popular, quando procedente, pode ter força condenatória desconstitutiva do ato maculado, mas também pode ser constitutiva, declaratória, mandamental ou executiva. Interessante pontuar a inovação de pensamento doutrinário e jurisprudencial que passou a aceitar uma tutela preventiva em sede de ação popular para evitar o acontecimento do dano.
Essencialmente, a ação popular tutela direitos difusos, aqueles atinentes à sociedade em um plano geral, a um número indeterminado de indivíduos. Surge a indagação, ao decorrer da exposição, se a ação popular poderia também abranger outros interesses difusos além dos expressos em lei, e até mesmo interesses coletivos, como faz a legislação portuguesa.
Isto posto, ponderou-se que o Brasil está em avançado patamar legislativo no que tange à proteção de direitos extrapatrimoniais. No entanto, diante das condições sociais ainda existentes na realidade do país, entende-se que a ação popular, se mais abrangente, seria capaz de tornar-se instrumento de eficácia protetiva de grande valia para o povo.
Referências Bibliográficas
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[3] COSTA, Susana Henriques Da. ‘’ Comentários à Ação Civil Pública e Lei da Ação Popular’’, pág. 32 – São Paulo: Quartier Latin, 2006
[4] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, “Um estudo sobre a legitimação para agir no direito processual civil – a legitimação ordinária do autor popular”, in Revista de Processo 618/43.
[5] DINAMARCO, Candido Rangel, “Sobre a justificação política da ação popular”, in Fundamentos do processo civil moderno, vol. I, 5º Ed., São Paulo, Malheiros Ed., 2002, m. 198, pp.
[6] BEVILÁQUA, Clóvis. “A Constituição e o Código Civil”. Conferencia pronunciada em Fortaleza. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 97, nº 424, set. 1935.
[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. “A Ação Popular do Direito Brasileiro como instrumento de Tutela Jurisdicional dos chamados “Interesses Difusos”. Revista dos Tribunais, vol. 28/1982, dez. 1982.
[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. P. 129.
[9] NOHARA, Irene Patrícia. Comentários à Lei de Ação Civil Pública e Lei de Ação Popular, São Paulo: QuartierLatin, 2006.
[10] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, p. 83.
[11] NOHARA, Irene Patrícia. Comentários à Lei de Ação Civil Pública e Lei de Ação Popular, São Paulo: QuartierLatin, 2006. p. 119.
[12] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros. 2000. p. 465.
[13] RE 170.768/SP. Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 13.08.1999.
[14]MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 132.
[15]DINAMARCO, Cândido Rangel – Litisconsórcio – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 269 e ss.
[16] MANCUSO, Rodolfo de Camargo: Interesses difusos: conceito e legitimação para agir – São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011.
Bacharelanda no curso de Direito. Parecerista na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VITALE, Marcela Mitiura. Considerações sobre a ação popular constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jan 2021, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56084/consideraes-sobre-a-ao-popular-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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