RESUMO: O objetivo do artigo é analisar a judicialização do acesso à saúde nos casos de portadores de doenças raras frente à inexistência de políticas públicas para tais pacientes. Analisa-se a judicialização do direito à saúde, e o ativismo judicial nesse contexto. Trata-se de uma pesquisa descritiva, cujo método empregado é o dedutivo. É dedutivo porque é um processo de análise da informação que utiliza a legislação e artigos científicos para obter uma conclusão a respeito do problema. O trabalho foi realizado por meio de pesquisas bibliográficas na área de Direito e na área de saúde.
Palavras-Chave: Judicialização. Saúde Pública. Doenças Raras.
ABSTRACT: The objective of the article is to analyze the judicialization of access to health in cases of rare disease patients in the absence of public policies for such patients. The judicialization of the right to health and judicial activism in this context are analyzed. This is a descriptive research whose method is the deductive method. It is deductive because it is a process of information analysis that uses legislation and scientific articles to draw a conclusion about the problem. The work was carried out through bibliographical research in the area of law and health.
Keywords: Judicialization. Public health. Rare deseases.
Sumário: 1. Introdução – 2. Conceito de Doenças Raras, Medicamentos órfãos e uso off label de medicamentos– 3. A Judicialização da saúde pública no Brasil pelos portadores de doenças raras pela ausência de políticas públicas de saúde direcionadas – 4. Do fornecimento de medicações para doenças raras que não possuem registro junto à ANVISA– 5. Considerações Finais.
INTRODUÇÃO
Somente com a atual Constituição Federal, de 1988, é que a saúde passou a ser reconhecida como um direito, sendo, ainda hoje, incipiente devido ao pouco tempo de positivação na Constituição. Desse modo, até antes de 1988, o Estado não tinha o dever de assistência que hoje é previsto no texto constitucional e na legislação infraconstitucional (Aith, 2014).
Tanto para os cidadãos com doenças comuns, quanto para os portadores de doenças raras, as políticas públicas de saúde, na prática, não reproduzem fielmente o que está positivado no texto constitucional. O sistema de saúde no que tange o acesso à medicamentos ainda é precário no Brasil, e a normatização específica voltada para pacientes portadores de doenças raras é simples e ineficaz.
Apenas em 2014 é que houve a criação da Portaria nº 199 do Ministério da Saúde, que Instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprovou as Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e instituiu incentivos financeiros de custeio.
Até o presente momento, da mesma forma, não existe qualquer lei que institua acesso a medicamentos órfãos (que integra o tratamento de portadores de doenças raras), mas tão só um Projeto de Lei do Senado (nº 530/2013) que visa instituir uma Política Nacional para Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde.
Dessa maneira, por causa da dificuldade que o Poder Executivo possui para cumprir seu dever institucional de implementação e execução de políticas públicas para essa classe de pacientes, o cidadão passa a buscar formas alternativas de acesso aos medicamentos órfãos e tratamentos congêneres, que se dá, principalmente, através dos processos judiciais. Este fenômeno é conhecido como "judicialização da saúde", e compreende a provocação e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação da assistência médica e/ou farmacêutica. O Executivo passa a ser demandado, nas vias judiciais, a prestar atendimento médico e assistência farmacêutica, provocando repercussões tanto na política de saúde como nos cofres públicos (Leitão et al, 2014).
O desafio da judicialização da saúde se torna especialmente complexo quando abordado frente ao o direito à saúde de um grupo específico de pessoas, que possui necessidades de saúde diferenciadas e especiais, como é o caso dos portadores de doenças raras (Aith, 2014).
Estes pacientes demandam judicialmente por medicamentos órfãos, que são de alto custo. Nota-se, nesse sentido, que existe um problema maior de saúde pública e também um problema de impacto econômico nos cofres públicos, diante da complexidade que exige o tratamento de pessoas nessa condição. Com efeito, o Poder Judiciário tem sido ativista no que tange à concessão de medicamentos para pessoas portadoras de doenças raras, uma vez que substitui a função que deveria ser governamental, através de concessão de políticas públicas específicas aos portadores.
CONCEITO DE DOENÇAS RARAS, MEDICAMENTOS ÓRFÃOS E USO OFF LABEL DE MEDICAMENTOS
As doenças raras caracterizam-se por possuírem as seguintes características: 1) não tem cura; 2) são degenerativas; 3) são incapacitantes; e 4) necessitam continuamente de tratamento e cuidados especiais (Boy e Schramm, 2009). Tais enfermidades afetam a qualidade de vida tanto dos portadores, quanto de seus familiares/cuidadores, que se tornam social, econômica e psicologicamente vulneráveis, principalmente por enfrentarem a falta de um tratamento adequado e preconceitos (Souza et al., 2007).
Além disso, as doenças raras detêm ampla diversidade de sintomas, variando não só de doença para doença, mas também de pessoa para pessoa na mesma condição. Além disso, as manifestações podem simular doenças comuns, o que torna difícil o diagnóstico, elevando o sofrimento do paciente (Interfarma, 2013).
Destaca-se que 95% das doenças raras são desprovidas de tratamento, e demandam serviços especializados que promovam a melhoria da qualidade de vida dos pacientes. É imperioso destacar que somente 2% das doenças raras possuem medicamentos órfãos capazes de interferir na evolução da doença; outros 3% possuem tratamentos “já conhecidos” para as doenças “comuns” ou prevalentes, atuando amenizando os sintomas (Interfarma, 2013).
No Brasil, após a publicação da Portaria Nº 199, considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos ou 6,5 pessoas para cada 10.000 habitantes: “Art. 3º Para efeito desta Portaria, considera-se doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100.000 indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos”.
Segundo o senso da Organização Mundial da Saúde – OMS, entre 6% e 8% aproximadamente da população mundial sofre com alguma doença rara. Isso equivale a aproximadamente 420 a 560 milhões de pessoas. No Brasil, 13 milhões de pessoas são estimadas com doença rara (Interfarma, 2013).
A EURORDIS (2014) conceitua os medicamentos órfãos como “produtos médicos destinados à prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças muito graves ou que constituem um risco para a vida e que são raras”. Estes medicamentos são designados como “órfãos” porque a indústria farmacêutica tem pouco interesse no desenvolvimento e comercialização de produtos dirigidos para o pequeno número de doentes afetados.
O significado do termo “Off-label”, é uma expressão em inglês que, literalmente traduzida denota “fora de indicação” (Cavalcante, 2020). Para fabricar ou comercializar um medicamento no Brasil, precisa-se de registro (autorização) na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Quando se solicita que se registre um medicamento, o fabricante ou responsável apresenta à ANVISA as indicações daquele remédio, determinando para que enfermidades a droga foi testada e aprovada. Essas indicações (e sua respectiva eficácia) baseiam-se em pesquisas que levam anos para serem concluídos (Cavalcante, 2020).
É comum acontecer de um medicamento que foi planejado para determinada finalidade, quando entra no organismo humano, acabar trazendo outros benefícios que não haviam sido previstos. Esse efeito não previsto é percebido pelos médicos, que passam a receitar aquele medicamento não apenas para aquela indicação inicialmente pensada, mas sim para essa outra finalidade que não havia sido prevista (Cavalcante, 2020).
Quando isso ocorre, dizemos que há a prescrição e o uso do medicamento off-label (fora da sua indicação). Portanto, o medicamento off-label é aquele cujo médico prescreve para uma determinada finalidade que não existe de forma expressa em sua bula (Cavalcante, 2020).
A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL PELOS PORTADORES DE DOENÇAS RARAS PELA AUSÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE DIRECIONADAS
Doenças raras são doenças pouco prevalentes no mundo (Simões, Lessa e Fagundes, 2014): afligem cerca de 6% da população mundial. Em números absolutos, aproximadamente 420 milhões de pessoas sofrem com essas enfermidades. Estima-se que no Brasil este número esteja em torno de 13 milhões de pessoas.
A classificação das doenças como raras pode variar de acordo com o percentual de pessoas atingidas. Dessa forma, enquanto na União Europeia considera-se doença rara toda aquela que atinge até 5 pessoas a cada 10.000, os Estados Unidos consideram como rara a doença que afeta até 75 pessoas em cada 100.000 (Chiavassa et al, 2014).
A gênese da implementação de políticas públicas para portadores de doenças raras, inicia-se nos EUA, a partir da forte pressão imposta por organizações de pacientes e familiares afetados por elas (Federhen et al, 2014). Assim, nos EUA, na década de 1970, a “National Organization for Rare Disorders (NORD)”, organização privada, pressionou o Governo a criar leis específicas para o desenvolvimento de medicamentos órfãos, o que culminou com o “Orphan Drug Act”, que instituía estímulos para a pesquisa em medicamentos órfãos, incluindo subsídios para estudos clínicos e maior proteção às patentes dos compostos (Federhen et al, 2014).
Com efeito, nas últimas duas décadas, o desenvolvimento de políticas específicas para doenças raras em diversos países do mundo ganhou força, buscando soluções para ampliar o acesso dos pacientes a tratamentos e assistência adequados.
No Brasil, a gênese para a discussão de tais políticas foi a criação, durante a década de 2000, foi uma proposta para Política Nacional de Atenção à Genética Clínica no SUS. No entanto, viu-se que essa abordagem focava apenas nas doenças de origem genética (Federhen et al, 2014). A partir da pressão da sociedade através de organizações não-governamentais e instituições de pesquisa, em 2014 o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial da União a Portaria que cria a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, abrangendo a realização de exames, para facilitação de um diagnóstico e credenciando instituições para atendimento e suporte de pacientes com estas condições (Federhen et al, 2014).
Destaca-se que não existe no mundo, tratamento efetivo e seguro para muitas das doenças raras em voga e para aquelas em que o tratamento é existente, diversas barreiras dificultam o acesso dos pacientes aos medicamentos órfãos, aqueles específicos para o tratamento da doença (Simões, Lessa e Fagundes, 2014). As barreiras não são apenas econômicas, devido aos caros remédios. Existem outras barreiras impostas aos pacientes, devido aos poucos especialistas no Brasil. A barreira também é geográfica, cognitiva e intelectual, pois são poucos os profissionais de saúde que sabem tratar uma doença rara. E, ser tratado por um especialista, traz significante melhoria de vida para um portador.
As enfermidades classificadas como raras trazem situações problemáticas às políticas de saúde, pois exigem que vultosos recursos alocados para o atendimento de muitas pessoas sejam destinados ao tratamento de um pequeno grupo de cidadãos.
Dada a particularidade e o custo elevado, é comum que o Sistema Único de Saúde (SUS) e os planos de assistência privada não incluam no rol dos tratamentos que oferecem/cobrem aqueles destinados às doenças raras, principalmente os tratamentos ditos em fase experimental e os off-label, aqueles cuja indicação do profissional assistente diverge do que consta na bula (Chiavassa et al, 2014).
Nesses casos, resta ainda uma via, que tem se desenvolvido no Brasil, sobretudo a partir da Constituição de 1988: o Poder Judiciário. É cada vez maior o volume de demandas judiciais propostas em face da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ou do plano de saúde, pleiteando atendimento adequado. Essas ações levam aos juízes uma realidade complexa e exigem grande responsabilidade nas decisões, que têm impacto sobre a vida de alguém e sobre os recursos alocados para políticas públicas de saúde.
Política pública é, simplesmente, o programa de ação governamental, resultado de um conjunto de processos juridicamente regulados, como o processo eleitoral, o processo de governo, o processo orçamentário, o processo legislativo, o processo administrativo, o processo judicial, objetivando coordenar os recursos do Estado e os recursos privados, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados (Bucci, 2006).
Nessas situações em que alguém vê seu direito social desamparado, o caráter jurídico da questão torna possível recorrer ao Poder Judiciário para exigir do Estado a prestação necessária à garantia do direito ao tratamento da doença rara. Com isso, o poder judiciário torna-se um “importante órgão de contestação de políticas públicas”, tendo em vista a transferência de temas políticos para dentro das instituições do sistema.
A Política Nacional Para Doenças Raras (Portaria 199/2014), configura, sem dúvida, um grande passo do Sistema Único de Saúde (SUS) em direção à igualdade de acesso, ao acolhimento de pessoas com doenças raras, à redução de morbimortalidade e das manifestações secundárias e à melhoria da qualidade de vida de pessoas portadoras de doenças raras, por meio de ações de prevenção, diagnóstico/detecção precoce e atendimento multiprofissional e organizado de forma transversal com as redes já existentes no sistema (Chiavassa et al, 2014).
Entretanto, o que realmente importa é o acesso dos pacientes aos medicamentos adequados. A oferta de medicamentos órfãos pelo SUS depende da sua incorporação em um protocolo clínico que, por sua vez, depende de uma avaliação técnica e econômica de viabilidade.
Os critérios empregados pelo Governo para avaliar a disponibilização de medicamentos órfãos pelo sistema público – baseados em custo-efetividade - têm, na maioria dos casos, excluído os pacientes da possibilidade de obter esse tipo de tratamento, sendo que, nesses casos, que hoje são a maioria no Brasil, o processo de judicialização, onde o paciente recorre ao Poder Judiciário para obter o tratamento, é o mais comum (Chiavassa et al, 2014).
É certo que, atualmente, apenas um protocolo, para tratamento de Doença de Gaucher, incorpora medicamento órfão. Todas as outras patologias consideradas raras[1] incluem somente medicamentos convencionais, que amenizam os sintomas das doenças, mas não interferem na sua evolução (Chiavassa et al, 2014).
Mais recentemente, na Consulta Pública nº 20, publicada em 09 de Setembro de 2014, foi informado o levantamento de 35 PCDT’s em doenças raras, sendo elas, de acordo com Simões, Lessa e Fagundes (2014):
· Acromegalia;
· Anemia Aplástica;
· Angioedema Hereditário;
· Aplasia Pura Adquirida Crônica da Série Vermelha;
· Artrite Reativa – Doença de Reiter;
· Artrite Reumatoide; Deficiência da Biotinidase;
· Deficiência de Hormônio do Crescimento – Hipopituitarismo; Dermatomiosite e Polimiosite;
· Diabete Insípido;
· Distonias Focais e Espasmo Hemifacial;
· Doença de Crohn;
· Doença de Gaucher;
· Doença de Paget – Osteíte deformante;
· Doença de Wilson;
· Doença Falciforme;
· Esclerose Lateral Amiotrófica;
· Espongilite Ancilosante;
· Fenilcetonúria;
· Fibrose Cística;
· Hiperplasia Adrenal Congênita;
· Hipoparatireoidismo;
· Hipotireoidismo Congênito;
· Ictioses Hereditárias;
· Imunodeficiências Primárias com Deficiência de Anticorpos;
· Insuficiência Adrenal Primária (Doença de Addison);
· Insuficiência Pancreática Exócrina;
· Lúpus Eritematoso Sistêmico;
· Miastenia Gravis; Mielodisplasia e Neutropenias Constitucionais – Uso de Fatores Estimulantes de Crescimento de Colônias de Neutrófilos;
· Osteogênese Imperfecta;
· Púrpura Trombocitopênica Idiopática;
· Síndrome de Guillain-Barré;
· Síndrome de Turner;
· Síndrome Nefrótica Primária em Crianças e Adolescentes.
Em de 26 de maio de 2015, editou-se a Portaria SCTIE-MS N.º 19, que torna pública a decisão de aprovar a priorização de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para doenças raras no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, Nº 142 Maio/2015. Mas, ainda assim, o acesso aos medicamentos órfãos pelos portadores, por meio de políticas públicas, continua não existindo.
Nos últimos anos, os gastos com judicialização para drogas contra doenças raras totalizaram 85% dos gastos totais com tratamentos judicializados. Especificamente, o tratamento de doenças genéticas é responsável pelos medicamentos mais solicitados por meio de processo judicial ao Governo Federal (Subcomissão Especial de Doenças Raras, 2019).
É imperioso ressaltar que, conforme levantamentos realizados pela INTERFARMA, um medicamento incorporado ao SUS tem uma diferença significativa em comparação às demandas judicializadas, que chegam a ser 300% mais caras, pois são realizadas compras em caráter de urgência. (Subcomissão Especial de Doenças Raras, 2019). É uma situação paradoxal: a falta de recursos gera parte da judicialização, que, por sua vez, reflete na falta de recursos financeiros à medida que o medicamento judicializado acaba sendo fornecido por valores superiores, que poderiam ser adquiridos por meio de compras públicas planejadas. Portanto, é preciso que Governo e setor privado transformem esse círculo vicioso em uma mesa aberta de negociação, buscando preços e condições que facilitem a atuação do Estado (Subcomissão Especial de Doenças Raras, 2019).
Segundo o STJ, a concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS precisam satisfazer os seguintes pontos: a) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; b) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; c) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência (STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018, recurso repetitivo).
Dessa forma, a principal causa para o aumento dos números de processos judiciais solicitando medicamentos é a falha do Sistema Público de Saúde, pois que a judicialização é resultado de má gestão e execução de Políticas Públicas.
DO FORNECIMENTO DE MEDICAÇÕES PARA DOENÇAS RARAS QUE NÃO POSSUEM REGISTRO JUNTO À ANVISA
É importante pontuar que a Agência Nacional de vigilância Sanitária - ANVISA é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde criada pela Lei nº 9.782/99 (Cavalcante, 2020). O seu principal objetivo é promover a proteção da saúde da população, porque ela é a responsável por exercer a vigilância sanitária de medicamentos (art. 8º, § 1º, I). Assim, para comercializar medicamentos no Brasil, eles precisam ser aprovados e registrados na ANVISA (Cavalcante, 2020).
Segundo decisão proferida no Recurso Extraordinário de número 657.718 pelo STF (RE 657.718/MG), a concessão de medicamentos para tratar pessoas portadoras de patologias raras devem ser fornecidas pelo Estado-Membro da Federação, mesmo que não possua registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, sobretudo porque as empresas responsáveis pela fabricação do medicamento nem sequer possuem o interesse em registrá-lo.
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União. STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).
Com relação ao ente que se deve pedir a concessão de medicamentos destacamos o trecho do julgamento do STF, proferido pelo Plenário no RE 855178 ED/SE, em que foi determinado que todos os entes da federação são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área de saúde. Entretanto, pode haver o ressarcimento do ente que suportou o ônus financeiro, pelos outros entes, através de decisão judicial, em decorrência de regras próprias de descentralização previstas no ordenamento jurídico, vejamos:
Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. STF. Plenário. RE 855178 ED/SE, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 23/5/2019 (Info 941).
Com base nas ultimas decisões do Tribunal Superior sobre o assunto “judicialização da saúde”, é certo que há um grande ativismo judicial nessa área, sobretudo diante da omissão da Administração Pública ao não promover políticas públicas nesse sentido. Como exemplo, tem-se o seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região em que se concede o medicamento órfão pleiteado (Firazyr), para a patologia angioedema hereditário (CID 10 - D84.1):
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. TRATAMENTO MÉDICO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA CAUSA MADURA, ART. 1.013, § 3º, DO CPC. IMPOSSIBILIDADE. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE DO TRIBUNAL. SENTENÇA ANULADA.
1. Apelação de sentença que julgou improcedente o pedido de fornecimento do medicamento FIRAZYR®(icatibanto) para tratamento de Angioedema Hereditário (AEH), doença genética rara. 2. A sentença recorrida incorreu em erro ao entender que não compete ao Poder Judiciário se imiscuir em situações como a do caso em tela – sendo inúmeras as hipóteses em que esta Corte soluciona lides dessa espécie: (AC 0030601-48.2010.4.01.3500/GO, Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, Quinta Turma, e-DJF1 de 10/1/2014; AC 0000387- 42.2013.4.01.3800/MG, Rel. Desembargador Federal Néviton Guedes, Rel. Conv. Juíza Federal Daniele Maranhão Costa, Quinta Turma, e-DJF1 de 13/10/2016). 3. "Consoante o entendimento desta Corte e do Colendo Superior Tribunal de Justiça, a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios, por integrarem o Sistema Único de Saúde, possuem legitimidade para figurar no polo passivo de demandas que objetivem assegurar à população desprovida de recursos financeiros acesso a medicamentos, tratamentos médicos e aos serviços da área da saúde, evidência que não autoriza, na espécie, o acolhimento de apontada ilegitimidade passiva da União." (TRF1, AC 0000385-11.2013.4.01.3400/DF, Rel. Desembargador Federal Kassio Nunes Marques, Sexta Turma, e-DJF1 de 23/6/2015). 4. Tendo em vista o reconhecimento da possibilidade de o Poder Judiciário se manifestar sobre pedidos de fornecimento de medicamentos excepcionais e de alto custo, bem como por considerar ser imprescindível a realização de perícia a fim de aferir a real necessidade e adequação do medicamento prescrito, deve a sentença ser anulada. 5. No caso, não é cabível a aplicação do art. 1.013, § 3º, do Código de Processo Civil, fundado na teoria da causa madura, pois a União, em sua contestação, formulou requerimento de realização de prova pericial, sob pena de cerceamento de defesa. 6. Sentença anulada, determinando o retorno dos autos à origem para que se realize perícia a fim de determinar a necessidade e adequação do medicamento prescrito. 7. Tendo em vista que a parte autora comprovou, por meio de relatório elaborado por médico especialista, ser portadora da doença denominada Angioedema Hereditário (CID: D84.1), demonstrou ser hipossuficiente, além da existência de precedente deste tribunal em que é deferido o fornecimento do fármaco, defiro, em antecipação de tutela, o pedido para determinar o fornecimento da medicação à autora, a ser realizado em unidade pública de saúde escolhida pelo SUS (art. 28, IV, do Decreto 7.508/2011), até a análise do pedido pelo juiz a quo. Precedente: AG 0044638-31.2015.4.01.0000/DF, Rel. Desembargador Federal Kassio Nunes Marques, Sexta Turma, e-DJF1 de 4/3/2016."
(APELAÇÃO CÍVEL N. 0041277-25.2014.4.01.3400/DF, TRF 1, Quinta Turma, relator o Desembargador Federal NÉVITON GUEDES)
Pelo exposto, podemos notar que já existe precedentes para a concessão de medicamentos órfãos aos portadores de doenças raras pelo Poder Judiciário, o que dá abertura a uma maior busca no Poder Judiciário por estes medicamentos; levando-se, inevitavelmente, a uma maior judicialização pela falta de políticas públicas que atendam aos portadores de doenças raras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Implementar uma Política Pública para pessoas com doenças raras é um grande desafio para o Estado brasileiro. Para que uma política pública seja eficiente e eficaz, e atenda de fato àqueles que dela necessitam, os pacientes precisam ter acesso aos medicamentos órfãos, concedidos atualmente, pelo Poder Judiciário, através de um processo judicial. É necessária a participação política. Não é papel do poder judiciário a implementação de políticas públicas de saúde. Os passos de implementação, pelo governo, precisam ser transparentes e debatidos com a sociedade civil organizada e especialistas no tema das doenças raras.
O que importa para um paciente é o acesso ao medicamento adequado, o que não acontece no Brasil por meio de políticas públicas. Por isso a demanda judicial para a concretização do direito à saúde pelos portadores de doenças raras é crescente. A judicialização da saúde está diretamente ligada às dificuldades de acesso, o que se justifica, no caso dos medicamentos para doenças raras, pelos obstáculos para incorporação ao SUS. Sem acesso pelas vias estabelecidas, o paciente recorre às vias judiciais.
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SUBCOMISSÃO ESPECIAL DE DOENÇAS RARAS. Relatório Final. Acessado em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/documentos-1/publicacoes/copy_of_Z_Subcomisso_SubEspdeDoenasRaras_RELATORIOFINAL_2RELATORIOFINALAprovadopelaSUBRARAS.pdf>. Acesso em: 19 de janeiro de 2020.
[1] Foi informado 35 Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT’s), como Angioedema Hereditário, Artrite Reumatoide, Diabete Insípido, Doença de Wilson, Esclerose Lateral Amiotrófica, Lúpus Eritematoso Sistêmico, entre outras, na Consulta Pública nº 20, publicada em 09 de Setembro de 2014 e que propõe a “Priorização de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras”, à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos e à Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.
MBA Executivo em Gestão Estratégica de Inovação Tecnológica e Propriedade Intelectual; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Cândido Mendes; Especialista em Direito Penal pela Damásio Educacional e Ibmec; Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Prominas; Especialista em Ciência Política pela UNIBF. Bacharela em Direito pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora de Direito Constitucional da Autarquia Educacional do Vale do São Francisco – AEVSF (FACAPE - Faculdade de Petrolina), Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Jéssica Cavalcanti Barros. A judicialização da saúde pública no brasil pela inexistência de políticas de acesso à medicamentos órfãos para os portadores de doenças raras. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2021, 04:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56130/a-judicializao-da-sade-pblica-no-brasil-pela-inexistncia-de-polticas-de-acesso-medicamentos-rfos-para-os-portadores-de-doenas-raras. Acesso em: 22 nov 2024.
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