ALEXANDRE AUGUSTO BATISTA LIMA[1]
(orientador)
RESUMO: O objetivo central desse trabalho é compreender como o Poder Judiciário Brasileiro trata as constantes violações de direitos fundamentais, especialmente o direito à moradia, e o impacto que determinadas decisões judiciais causam no ordenamento jurídico pátrio assim como na vida dos tutelados. A problemática do trabalho reside em examinar como a doutrina apresenta os litígios estruturais, que possuem como característica principal o alto grau de complexidade; analisando a importância do processo estrutural para a ampliação do acesso à justiça. A pesquisa objetiva evidenciar as possibilidades de flexibilização procedimental que o Código de Processo Civil Brasileiro traz, e a importância de adaptação aos processos estruturais; demonstrando que o Processo Clássico que obedece a lógica do Estado Liberal e é totalmente incompatível com as necessidades desse litígio. A metodologia utilizada é descritivo-analítica, desenvolvida por meio de pesquisa bibliográfica, documental, pura, qualitativa e exploratória, através de informações e documentos sobre o tema. Destarte, a pesquisa mostra que a atuação por meio do processo clássico não é adequada aos litígios estruturais, que o processo estrutural se apresenta como o meio adequado ao judiciário quando da sua atuação em estruturas sociais complexas com o intuito de garantir a efetividade do direito à moradia no Brasil.
Palavras-chave: Processo estrutural; problemas estruturais; direito à moradia; acesso à justiça; flexibilização processual.
ABSTRACT: The central objective of this work is to understand how the Brazilian Judicial Power addresses the constant violations of fundamental rights, especially housing, and the impact that certain judicial decisions have on the national legal system as upon the life of the protected ones. The problematic of this work consists in examining how doctrine presents structural disputes, which have as main characteristic a high complexity degree; analyzing the importance of the structural process to the expansion of access to justice. The research aims to highlight the possibilities of procedural flexibility that the Brazilian Code of Civil Procedure brings, and the importance of adaptation to the structural processes; demonstrating that the Classic Process which follows the logic of the liberal state and is totally inconsistent with this dispute requirements. The methodology used is analytical descriptive, developed by bibliographic, documentary, pure, qualitative and exploratory research through information and documents on the theme. Thus, the research shows that the performance by the classic process is inappropriate for structural disputes; the structural process presents itself as the appropriate way for judiciary action on complex social structures with the intent to guarantee the effectiveness of the right of housing in Brazil.
Keywords: Structural process; structural problems; right of housing; access to justice; procedural flexibility.
1 INTRODUÇÃO
A tutela jurisdicional de direitos humanos – especialmente os sociais – aparece constantemente no centro dos debates políticos, jurídicos e acadêmicos no Brasil, isso muito, pelas constantes violações e inaplicações de políticas públicas adequadas para atender a esses direitos.
As necessidades da sociedade atual impelem, cada vez mais, a judicialização de demandas complexas, demandas em que se busca interferir na estrutura de entes ou instituições e políticas públicas, com isso está-se projetando uma “nova” tipologia processual, mais adequada ao tratamento de litígios complexos e multipolares, que pode ser denominada de Processo Estrutural.
A busca para a concretização do direito à moradia – moradia digna – no Brasil e os meios judiciais que viabilizam essa tutela, é de extrema importância no contexto dos direitos sociais brasileiro.
O artigo visa analisar os aspectos legais e sociais do problema estrutural apresentado nos litígios que envolvem o direito à moradia no Brasil, levando-se em consideração a evolução histórica desse direito e sua efetivação, seja por meio ordinário das políticas públicas de gestão seja pela via do contencioso judicial.
A baixa quantidade de estudos jurídicos sobre esse direito social, além de ter motivado essa pesquisa, limita os exemplos de decisões judiciais aqui expostos.
A partir daí, e para melhor compreensão da questão proposta, foram estruturados 04 (quatro) tópicos para aprofundarmos a discussão sobre o tema, quais sejam: uma análise histórica, onde a proposta é vislumbrar uma pequena revisão da noção de processo estrutural e sua função “performativa”, com o intuito de se conhecer a evolução desse fenômeno na história recente do ordenamento jurídico brasileiro e apresentar suas principais características.
Na sequência, foi apresentado algumas medidas estruturantes no ordenamento jurídico brasileiro e a relevância dessas medidas para o desenvolvimento de uma nova ideia de trato para com os litígios complexos, fora apresentado também, um breve panorama do cenário de judicialização do direito à moradia no Brasil
Dando prosseguimento, foi feita uma abordagem legal do tema, levando-se em consideração precipuamente as bases constitucionais dos direitos sociais no Brasil e os institutos da legislação processual brasileira para atender tais medidas, considerando a eficácia das decisões estruturantes para a manutenção e implementação do direito à moradia.
O quarto tópico, por sua vez, aborda as técnicas de flexibilização do procedimento no processo estrutural, analisando os institutos jurídicos do Código de Processo Civil Brasileiro de 2015. Nesse tópico buscou-se compreender quais os critérios processuais dessa tutela.
Por fim, procurou-se compreender a importância das ondas renovatórias do acesso à justiça, especialmente a segunda onda, e o que “esse” acesso à justiça traz de garantia real na busca por efetivação dos direitos sociais no Brasil.
Na fase conclusiva observou-se que a onda do acesso à justiça e a existência de direitos coletivos permitiu expandir o terreno do judicializável, alcançando práticas que estariam fora do que previamente se entendia possível de consubstanciar em um debate judicial.
O estudo desdobrou-se com uma revisão da literatura científica, documentos legais e técnicos, com o intuito de organizar a discussão sobre o tema acima descrito. A pesquisa utiliza metodologia classificada como dedutiva, descritiva, exploratória, com abordagem monográfica de pesquisa bibliográfica.
2 GÊNESE DO PROCESSO ESTRUTURAL: ORIGEM E CARACTERÍSTICAS
A origem da concepção de processo estrutural (structural injunction), está intimamente ligada ao estudo da implementação das decisões da jurisdição constitucional (FACHIN, SCHINEMANN, 2018).
Os processos aqui denominados estruturais se originaram, especificamente, na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos, com o caso Brown x Board of Education, onde a Suprema Corte em 1954 impôs a transformação do sistema educacional americano, então dividido em dois (escola para negros e escolas para brancos), para apenas um, unitário, e não racial (US SUPREME COURT, 1955).
A referida corte decidiu ser inconstitucional a admissão de estudantes nas escolas públicas americanas tendo como critério um sistema de segregação racial. Dando início a um enorme processo de mudança do sistema público educacional americano, ao determinar que a aceitação dos alunos em escolas públicas não se daria mais pelo critério racial (DIDIER JT., ZANETI JR., 2020, p. 572).
Os detalhes do caso Brown deixam clara a característica do processo estrutural – notando uma função “performativa” -, que permite expandir o terreno do judicializável, alcançando práticas que estariam fora do que previamente se entendia possível de consubstanciar um debate judicial. A partir daí, as reformas estruturais foram alargadas para os outros campos dos direitos sociais, como as políticas públicas nas prisões, acesso à justiça, direito à medicamentos, direito à moradia e outros.
Os professores Diddier Jr. e Zaneti Jr. (2020, p. 572), anotam que situações pontuais como essa, passou-se a denominar decisão estrutural (structural injunctions) aquela que buscasse implementar uma reforma estrutural (structural reform) em um ente, organização ou instituição, com o fim de concretizar um direito fundamental, realizar uma determinada política pública ou resolver litígios complexos.
Todos os problemas que envolvem a tutela de direitos fundamentais evidenciam que a adoção de decisões estruturantes na jurisdição constitucional brasileira permitiria a reestruturação de institutos estatais, dando significado aos valores constitucionais, em especial a partir de sua utilização como instrumento que obsta e contínua e reiterada omissão do Estado na proteção e promoção de direitos (FACHIN; SCHINEMANN, 2018).
2.1 Características do processo estrutural
O subtópico pretende explanar sobre as principais características do processo estrutural, especialmente, diferindo o processo estrutural de problema estrutural e apresentando elementos que possam ser capazes de identificar e individualizar um processo estrutural
A noção de processo estrutural vai além das características típicas de questões complexas, a concepção de processo estrutural pressupõe a de problema estrutural. Nesse sentido é o entendimento da doutrina:
O problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada – uma situação de ilicitude contínua e permanente ou uma situação de desconformidade, ainda que não propriamente ilícita, no sentido de ser uma situação que não corresponde ao estado de coisas considerado ideal. Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou reestruturação) (DIDIER JR., ZANETI JR., 2020, p. 574).
Como já mencionado, estado de desconformidade é situação de desorganização estrutural, essa desorganização pode, ou não, ser produto de uma sequência de atos ou condutas ilícitas, na maioria das vezes por parte dos institutos e políticas públicas.
Importante anotar que, os problemas estruturais não se restringem àqueles vivenciados na esfera pública. Exemplos como as ações concursais, regida pela Lei n. 11.101/2005; a dissolução de uma sociedade ou o fechamento de uma fábrica; o sistema de defesa da concorrência, alterado pela Lei n. 12.529/2011, entre outros exemplos de ações reguladas pelo direito privado que são claramente associadas aos provimentos estruturais. (DIDIER JT., ZANETI JR., 2020, p. 574).
Em destaque, anota Arenhart (2013, p. 15-16), a Lei n. 12.529/2011 – lei que estrutura o sistema de defesa da concorrência – uma norma expressa que admite a criação de decisões microinstitucionais. A referida norma contém diversas ferramentas que, judicial ou extrajudicialmente, autorizam a aplicação de medidas que interferem em atos de dominação econômica e permitem a criação de mecanismos de acompanhamento do cumprimento dessas decisões.
Assim, por exemplo, o art. 38, inciso VII, dessa Lei (e, de modo idêntico, o faz o art. 61, § 2º, inciso VI), prevê como sanção à prática de atos que violam a ordem econômica a adoção de "qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica". O art. 52 da Lei, a seu turno, estabelece que "o cumprimento das decisões do Tribunal [administrativo] e de compromissos e acordos firmados nos termos desta Lei poderá, a critério do Tribunal, ser fiscalizado pela Superintendência-Geral, com o respectivo encaminhamento dos autos, após a decisão final do Tribunal.
Por final, prevê a Lei, dentre outras coisas, que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), efetive suas decisões mediante intervenção na empresa (art. 96), inclusive formulando pedido de autorização judicial para intervenção e administração total da empresa (art. 107, §2º).
A lei retromencionada é um exemplo claro de norma no âmbito privado, na qual contém figuras que possam ser assimiladas às decisões estruturais, prevendo uma situação de rompimentos com o estado de coisas tido como ideal, e prevê medidas com natureza estruturante (ARENHART, 2013, p. 16).
Imperioso dissertar no sentindo de esclarecer que existindo um estado de desconformidade, a solução do problema não pode dar-se com apenas um ato, como uma decisão que certifique um direito e imponha uma obrigação. Há necessidade de intervenção para possibilitar uma reorganização ou uma reestruturação da situação (DIDIER JT., ZANETI JR., 2020, p. 576).
O tema processo estrutural tem sido debatido no âmbito jurídico por expressar um novo caminho para os litígios complexos vivenciados na esfera pública, contudo, após a exposição acima, fica claro que tanto as sentenças que versam sobre direito público quanto as que versam sobre direito privado são capazes de utilizar tal medida. Sobretudo quando se trata de preceitos e garantias constitucionais que se efetivam através do processo (PINHO, CORTÊS, 2014).
A questão social que abarca o direito ao acesso à moradia no Brasil, é um problema estrutural. Não só por estar ligado aos direitos fundamentais ou às políticas públicas, mas por ser um uma situação – para muitos brasileiros – que se encontra em um estado de desconformidade, que exige ou demanda uma intervenção e/ou reestruturação.
Com isso, tem-se notado, cada vez mais, a judicialização desse direito social, surgindo como um litígio com características típicas desse fenômeno: multipolar, coletivo e complexo (DIDIER JT., ZANETI JR., 2020, p. 574). Dessa forma, as medidas estruturantes têm sido utilizadas como forma de solucionar o problema apresentado. Esta seria uma forma de alcançar uma efetividade real, com uma solução a longo prazo de problemas sociais, estruturando o modo como se deva alcançar tal resultado.
2.2 Medidas estruturantes no ordenamento jurídico brasileiro
Neste subtópico serão apresentadas algumas decisões já proferidas pelo nosso ordenamento jurídico, onde apresentam-se como medidas estruturantes, no intuito de separar e identificar o que de diferente surgem com essas medidas, analisando sua eficácia na solução de litígios complexos cujo interesse é social,
Como se pode observar, o direito pátrio nacional é campo fértil para a utilização de medidas estruturais como técnica adequada para a tutela de interesses socias, complexos e não complexos, e em certos casos de interesses regulado pelo direito privado, pois a característica principal desse instituto é a busca pela efetividade máxima do decisum (ARENHART, 2013, p.15).
As decisões estruturais possuem um conteúdo complexo. Didier Jr., e Zaneti Jr. (2020, p. 579), em seu curso de direito processual civil dividem essa decisão em duas partes, vejamos:
Primeiro, ela prescreve uma norma jurídica de conteúdo aberto; o seu preceito indica um resultado a ser alcançado – uma meta, um objetivo – assumindo, por isso, e nessa parte, a estrutura deôntica de uma norma-princípio. Segundo, ela estrutura o modo como se deva alcançar esse resultado, determinando condutas que precisam ser observadas ou evitadas para que o preceito seja atendido e o resultado, alcançando – assumindo, por isso, e nessa parte, a estrutura deôntica de uma norma-regra.
O Supremo Tribunal Federal já tem utilizado o processo estrutural em casos emblemáticos e ricos em elementos. A exemplo, a Ação Popular n° 3.388/RR ajuizada em face da União que ficou reconhecida como caso Raposa Serra do Sol (BRASIL, 2013).
No caso em tela, foram incorporadas ao acórdão da PET 3388 diversas condicionantes. O Ministro Luís Roberto Barroso, destacou, na época, que as incorporações dessas salvaguardas foram atípicas, mas, sem elas, seria impraticável pôr fim ao conflito existente. “As salvaguardas foram uma espécie de regime jurídico a ser seguido para a execução do decidido, explicando o sistema constitucional incidente na matéria.” (BRASIL, 2013).
Em síntese, o STF admitiu a demarcação de terras em favor de grupos indígenas, mas incorporou essas “salvaguardas” para o exercício, pelos índios, do usufruto da terra demarcada, dentre elas, a necessidade de o usufruto ficar condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional, já que a terra indígena está situada em zona de fronteira do país (DIDIER JR., ZANETI JR., 2020, p. 579).
Podem-se exemplificar, também, as decisões relacionadas ao direito à saúde; sentença que concede um dado medicamento a pessoa enferma, demandas de reintegração de posse, decisões acerca dos benefícios previdenciários pleiteados em massa, entre outros.
Em que pese a existência de inúmeras decisões judiciais brasileiras que poderiam servir de estudo para a compreensão da aplicação de medidas estruturantes, elegeu-se um importante exemplo para servir como representação dos principais aspectos desse fenômeno, máxime Direito à Moradia e a sua judicialização (art. 6° da CRFB/88).
3 A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À MORADIA NO BRASIL
Este tópico se volta a análise do direito à moradia no Brasil, desde a sua inserção na CRFB/1988 até a sua judicialização, quando ocorre a necessidade de revisão e cobrança de políticas públicas que garantam esse direito.
O tema judicialização do direto à moradia tem sido debatido na atualidade por expressar uma suposta tensão entre a gestão de políticas públicas a cargo do Poder Executivo e as decisões do Poder Judiciário que compelem o Estado a traçar planos de projetos habitacionais que garantam moradia digna.
No Brasil, o direito à moradia está posto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Emenda Constitucional n° 26 no ano de 2000, como um direito social (direito de segunda dimensão), e traz o seguinte texto: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 1988).
Sendo um direito fundamental de segunda dimensão/geração, o professor Díogenes Jr. (2012), ressalta as características primordiais dos direitos dessa geração, anota o seguinte:
O direito de segunda geração, ao invés de se negar ao Estado uma atuação, exige-se dele que preste políticas públicas, tratando-se, portanto de direitos positivos, impondo ao Estado uma obrigação de fazer, correspondendo aos direitos à saúde, educação, trabalho, habitação, previdência social, assistência social, entre outros.
Assim sendo, muito mais do que garantir o direito à moradia, é obrigação do Estado garantir uma moradia digna, com os serviços públicos adequados de água, saneamento, educação e saúde; igualmente, é necessário que seja garantido o direito à cidade, para as pessoas que estão marginalizadas socialmente.
A introdução do direito à moradia no rol dos direitos sociais expressos com a Emenda Constitucional n° 26, é tida como o maior avanço que o país fez nessa questão, além disso, o Brasil assumiu vários compromissos internacionais para garantir o direito à moradia digna (LOPES, 2014, p. 14).
Não obstante os conflitos coletivos fundiários no Brasil sejam constantes o número e a qualidade de decisões judiciais envolvendo o direito à moradia não são muito significativos quando comparamos com as decisões envolvendo a garantia do direto à saúde e educação (MELLO, 2012).
Importante ressaltar, que nesse cenário, os casos em que a garantia ao direito à moradia é levada para apreciação do poder judiciário, não muito raro, essa judicialização pode entrar em colisão com outros direitos também constitucionalmente assegurados como o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente (LOPES, 2014, p. 15).
A decisão do Recurso Extraordinário nº 685644/SP, por exemplo, é uma decisão onde o julgador reconhece a prevalência do direito social a propriedade e o direito à moradia sob a imissão do bem público dominical, reconhecendo a possibilidade do Poder Judiciário, por meio da regular prestação jurisdicional, que possa impedir a municipalidade de se imitir na posse do imóvel, enquanto não traçado um projeto de habitação popular para o local (BRASIL, 2012).
Outro exemplo é a Ação Civil Pública n° 1.0000.18.075578-7/001 do estado de Minas Gerais, sobre ocupação irregular de propriedade, onde o direito à moradia digna foi preservado e reconhecido como elemento essencial para a construção e uma sociedade mais justa; estabeleceu também a responsabilidade do Estado e da Companhia Habitacional Vale do Rio Doce para a realocação e reestruturação dos lares de cada família atingida pelo despejo, estabelecendo uma série de obrigação para os réus acima citados, afim de promover o acesso à moradia digna (BRASIL, 2019).
Como dito acima, poucas são as decisões judiciais que versam sobre esse direito. Contudo, a tutela jurisdicional mediante decisões condenatórias a obrigações positivas não é a única forma de assegurar a proteção do poder judiciário ao direito à moradia (MELLO, 2012).
As questões postas a exemplo, demostram a importância da tutela jurisdicional de direitos fundamentais, Galdino anota o seguinte (2019, p. 25):
Uma tutela não é concebida como compensação por uma atividade ocorrida no passado; pelo contrário, olha para frente, é projetada para o caso, de forma ampla e flexível e não é imposta, mas negociada, porque o objeto da ação não é uma disputa entre particulares, mas uma reivindicação sobre o funcionamento de políticas públicas.
O processo estrutural se mostra o meio mais adequado ao trato de litígios relacionado a direitos fundamentais – direito à moradia – por vários motivos, contudo, a característica de fiscalização e avaliação permanente nas decisões proferidas, é o que se mostra de mais relevante para o trato desses litígios.
Em suma, a complexidade desse tipo de litígio requer a aplicação de técnicas que melhor atendam a garantia do direito à moradia, mediante o acesso a um processo judicial que seja capaz de incorporar e promover adequadamente o debate jurídico e social sobre essa questão.
4 DA LÓGICA BIPLOAR AOS PROCESSOS ESTRUTURAIS: ALGUMAS TÉCNICAS DE FLEXIBILIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO
Este tópico terá como foco a exposição de institutos processuais importantes para a implementação de um processo estrutural. Serão analisadas algumas técnicas de flexibilização do procedimento em demandas que versam sobre direitos fundamentais.
A estrutura processual clássica foi tradicionalmente criada para lidar com uma determinada espécie de litígio, na qual existe uma pretensão de um sujeito ou um grupo, objeto de resistência ou insatisfação de outro sujeito ou grupo de sujeitos (ARENHART, 2013). Ocorrendo assim uma delimitação precisa dos interesses, das pretensões e dos sujeitos da relação jurídica, em que os interesses das partes convergem para determinado bem de vida.
Chiovenda descreve essa bipolarização, ao anotar que “o processo civil [...] se encaminha por demanda de uma parte (autor) em frente a outra (réu)” (FARRARO, 2015, p. 6 apud CHIOVENDA, 1969 p. 5); Na mesma linha, Rosenberg afirma que o processo “pressupõe duas partes, das quais uma solicita tutela jurídica contra a outra” (FARRARO, 2015, p. 6 apud ROSENBERG, 1955 p. 217).
Essas passagens da doutrina processual civil servem para ilustrar a noção de bipolarização das partes em um processo, bipolarização essa que é a configuração da grande parte dos litígios. No entanto ela não ampara todas as questões as quais o julgador se depara. Há de se levar em conta a potencialidade de que as decisões proferidas nesses litígios atinjam um número significativo de pessoas, que vai além de uma relação jurídica pré-estabelecida (DIDIER JR., ZANETI JR., 2020, p. 597).
Assim, pode-se afirmar que esse processo clássico de visão bipolar não se adequa aos litígios estruturais (LIMA, 2019). Um bom exemplo para que se enxerque isso é a judicialização da educação infantil e o acesso às creches e pré-escolas em muitas capitais; em casos em que se litiga vaga para crianças terem acesso à educação em escola pública. Algumas outras hipóteses de problemas estruturais envolvendo saúde, educação, moradia e outros, como reivindicação de diretos fundamentais face ao estado (FARARRO, 2015, p. 145).
Há quem possa argumentar que ainda se estaria diante de uma disputa que se enquadra na lógica bipolar, por exemplo, de um lado o cidadão que, querendo fazer valer seu direito fundamental à educação, provoca o judiciário com o intuito de que lhe seja garantido uma vaga na creche para seu filho(a), e do outro lado o Estado, que tem o dever constitucional de garantir esse direito.
A análise do processo estrutural demonstra que esses conflitos precisam ser analisados a partir de uma perspectiva macro, pois, os litígios que envolvem questões complexas como as garantias constitucionais e/ou violações de direitos, apontam uma situação de desconformidade estruturada que podem ser resultados de práticas dinâmicas de determinadas instituições na aplicação de políticas públicas
Nesse sentido Ferraro (2015, p.8) anota o seguinte:
Visualizar esse tipo de situação por lentes individuais e bipolarizantes é bastante problemático, seja porque se acaba não percebendo que não basta a adoção de uma medida particularizada (e muitas vezes paliativa), sendo necessário eliminar as próprias causas, seja porque a resposta que se dá no nível individual – ou mesmo coletivo – pode afetar os demais interesses em jogo, e não considerá-los pode trazer consequências ainda mais graves. Em outros termos, tutela jurisdicional realmente efetiva não será alcançada se essas situações forem conformadas judicialmente como casos bipolares.
Portanto, resta claro que a visão do modelo processual clássico – bipolarização, instituto abordado nesse tópico – mostra-se inadequada, na medida em que não respeita a complexidade, a multipolaridade e a flexibilidade dos litígios estruturais. Ademais, os casos estruturais, devem ser considerados a partir da flexibilidade para a adoção de técnicas processuais adequadas às características desses casos, o que será abordado a seguir.
4.1 Flexibilização do procedimento no processo estrutural
Os estudos acerca do processo estrutural revelam a necessidade de repensar sobre os procedimentos aplicados as questões aqui apresentadas, questionando a sua eficácia para atingir os resultados adequados para a tutela jurisdicional dessas questões, sendo a flexibilização e a adaptação de um procedimento comum, a forma mais adequada para se alcançar essa efetividade (GALDINO, 2019, p. 111).
A dinamicidade dos casos estruturais não combina com a rigidez processual clássica, além disso, considerar a possibilidade de outro processo perpassa por diferentes institutos processuais (FERRARO, 2015, p. 142). Nesse seguimento, a abordagem aqui feita ocupa-se especialmente com o princípio da congruência e da demanda (e problemas conexos), com a legitimidade e a necessidade de coletivização em demandas estruturais.
A reflexão sobre esses diferentes institutos processuais se faz necessária para a compreensão dos litígios estruturais e para que se considere adequadas as decisões que já nascem com a visão de estrutural.
Imperioso mencionar, que o eficaz desenvolvimento do processo estrutural está intimamente ligado as técnicas de flexibilização procedimental. Quanto à essa flexibilidade, Picoli (2018, p. 76) destaca:
flexibilização aqui proposta não significa ignorar valores processuais e sua relevância como normas protetivas. Representa, pelo contrário, a percepção de que o processo, enquanto ferramenta de tutela dos direitos, deve ser adequado às necessidades do valor que busca proteger.
Observa-se que no cenário de litigância complexa – casos estruturais – a lógica bipolar não se encaixa, tampouco no sentido da demanda compreendida de modo estático, necessitando certa atenuação da regra da congruência objetiva externa e propiciando meios democráticos para abertura do processo à participação de terceiros.
4.2 Atenuação do princípio da demanda
O princípio da demanda que também pode ser chamado de princípio da dependência da tutela à vontade do interessado, integrando o núcleo de elementos essenciais a jurisdição. Em linhas gerais, ele expõe a concepção de que o juiz decidirá o mérito da questão nos limites do que fora formulado pelas partes e delimita a atuação do juiz, fixando o objeto do processo; abrangendo as garantias do “nemo iudex sine actore” e do “ne eat ultra petita partium” (OLIVEIRA, 2017, p. 169).
Arenhart (2013) observa que a outorga do poder de iniciar e delimitar a ação do judiciário parte de duas premissas: (i) o processo civil trata predominantemente de direitos privados e disponíveis, atribuindo ao titular manifestar sua vontade sobre o direito a ser tutelado; (ii) e que a delimitação do poder judicial aos pedidos formulados, é garantia de imparcialidade do juiz.
Contudo, essas premissas sequer encontram pleno suporte nos processos voltados aos litígios individuais, sequer atendem às necessidades impostas pelos processos estruturais.
Ainda segundo Arenhart (2013, p. 9-10), “um ordenamento em que impera a necessária correspondência entre pedido e sentença dificilmente consegue operar com a espécie de decisão em análise, porque não tem a flexibilidade necessária para a adequação da decisão judicial às particularidades do caso concreto”
É presente a compreensão que a atenuação da regra da congruência objetiva externa (art. 141 c/c art. 492, CPC), que exige correlação entre a decisão e a demanda que ela envolve (DIDIER JR., ZANETI JR., 2020, p. 595). Contudo, para os litígios estruturais é imprescindível libertar o magistrado das amarras dos pedidos das partes, pois, conforme já demonstrado nesse estudo, a lógica que rege esses litígios não é a mesma que domina os litígios individuais.
Para a adoção de procedimentos estruturais é necessário um sistema permeável e atenuação do princípio da demanda, permitindo ao juiz alguma margem de liberdade na eleição da melhor forma de atuação do direito a ser tutelado (ARENHRAT, 2013, p. 9). A flexibilização dessa regra supõe que a interpretação do pedido (art. 322, §2°, CPC) leve em consideração a complexidade do litígio estrutural (DIDIER JR., ZANETI JR., 2020, p. 596).
4.3 Coletivização no processo estrutural
A multipolaridade, como já afirmado nesse trabalho, é uma das caraterísticas que marca o processo estrutural. Outra marca desse procedimento, é a potencialidade de que as decisões aí proferidas atinjam um número considerável de pessoas, instituições e políticas públicas.
As mudanças significativas da realidade tutelada juridicamente em relação ao direito à moradia, como reivindicação de direito fundamental em face ao Estado, já demonstram a inadequação da via individual. E, no direito constitucional defende-se que a ação coletiva é o mecanismo mais idôneo para tutela direitos sociais e econômicos (FARRARO, 2015, p. 145 apud SARMENTO, 2008 p. 596).
Didier Jr. e Zaneti Jr. (2020, p. 597) defendem que é necessário pensar em novas formas de participação dos interessados no processo, como, por exemplo, a admissão de amici curie e a designação de audiências públicas, pois, as formas de intervenção pensadas para os processos individuais não são suficientes para atender e proporcionar ampla participação nos litígios estruturais.
Nesse sentido, Farraro (2015, p. 146-147) diserta a respeito do tratamento processual dos direitos de titularidade coletiva:
A previsão de uma hipótese intermediária, entre o difuso e o individual, parece útil justamente para casos em que o direito é de titularidade individual, mas o tratamento precisa ser coletivo, e não somente por uma questão de isonomia ou economia processual. A isonomia também tem espaço, mas não na mesma extensão de quando se fala que pode ser alcançada com a tutela coletiva de “direitos individuais homogêneos.
Portanto, a ação coletiva é o meio apropriado para lidar com problemas complexos (no que nos interessa, problemas estruturais), dando enfoque coletivo a essas demandas, para que melhor se efetivem as proposituras do processo estrutural.
Para finalizar, este tópico trata da importância das ondas renovatórias de acesso à justiça para o processo estrutural. Mostrando as formas de impacto dos litígios estruturais na sociedade e na jurisdição brasileira.
O movimento das ondas renovatórias do acesso à justiça, aqui em destaque a segunda onda, que reconhece a representação dos direitos coletivos merecedores de tutela e promove uma reflexão sobre as noções tradicionais do processo civil, fazendo com que a visão individualista do processo judicial cedesse lugar para uma concepção social (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 48-49). É de suma importância para o desenvolvimento e eficácia do processo estrutural.
A Constituição Federal no seu artigo 5°, XXXV, abrange o acesso à justiça, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e a inafastabilidade da jurisdição. Diante do impacto das decisões estruturais é imprescindível que a ampla participação popular seja garantida (BRASIL, 1988).
Essa visão social do processo e de seus impactos nos indivíduos é um norte para a compreensão do processo estrutural, pois, o acesso efetivo à jurisdição, permite expandir o terreno do judicializável, sobretudo, para a garantia de direitos fundamentais.
Vitorelli (2015, p. 210), em sua tese de doutorado, defende que um Estado onde busca ampliar o acesso à justiça através do exercício de direitos processuais, deve demonstrar uma relação adequada entre o tipo de participação pretendido e o tipo de ganho dela decorrente, em uma análise de custo-benefício.
No tocante a coletivização em demandas complexas, como é o caso da judicialização do direito à moradia, tem que se observar a pertinência dessa ampla participação, verificar os interesses de quem participa do processo e se isso proporciona a melhoria dos julgamentos desses casos.
Ainda segundo Vitorelli (2015, p. 289):
A ampliação do acesso à justiça não pode ser defendida sob o pressuposto irrealista de que o caro serviço jurisdicional seja expandido indefinidamente. Há necessidade de, ao mesmo tempo em que o acesso se amplia, criar mecanismos de gerenciamento eficiente da demanda.
Esse estudo se filia a linha doutrinária que defende a flexibilização procedimental como característica marcante do Código de Processo Civil Brasileiro, linha essa defendida pelos professores Fedie Didier, Hermes Zaneti, Matheus Galdino e outros importantes processualistas brasileiros. Essa flexibilização pode garantir meios mais adequados a participação de interessados em processos já instaurados, promovendo assim, a ampliação do acesso à justiça.
Por fim, observa-se no cenário nacional, que a busca pela tutela jurisdicional do direito à moradia, assim como a realização de outros direitos fundamentais, é resultado da promoção do acesso à justiça. O processo Civil, portanto, “tem o dever de garantir instrumentos processuais aptos a tutela adequada das posições e situações jurídicas coletivas merecedoras de tutela [...]” (ZANETI JR. et al., 2015, p. 28).
Resta claro, portanto, que as decisões estruturais possuem a capacidade de garantir o acesso à justiça, não só como garantia formal, mas também como garantia real e efetiva.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo teve como preocupação central a atuação do judiciário em litígios complexos, no caso de violação sistemática de direitos fundamentais, especificamente o direito à moradia. Analisando o modo como o poder judiciário pode “intervir” em políticas públicas, na busca da garantia de direitos assegurados pela Constituição Federal.
A implementação do direito à moradia no rol dos direitos sociais expressos da CF, mostrou-se um marco para a proteção e acesso a esse direito. Contudo, quando ocorre a judicialização desse direito, é necessário repensar os procedimentos aplicados, pois, uma sentença proferida na lógica de “condenação ou absolvição”, uma participação restrita no processo e um processo de característica bipolar, mostram um modelo inadequado.
Nesse enfoque, um tratamento flexível e a forma de encarar os institutos do processo civil são basilares. A atenuação do princípio da demanda e a coletivização nesses processos, apresentam-se como importantes instrumentos auxiliares na instauração de um verdadeiro processo estrutural.
Chave para a compreensão desses litígios é o entendimento das principais características da violação sistêmica de direitos: (i) o litígio é pautado na discussão sobre um problema estrutural, um estado de desconformidade; (ii) a busca de uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal das coisas; (iii) desenvolver-se em um procedimento que inclua o reconhecimento e definição do problema e estabeleça um projeto de reestruturação; (iv) avançar num procedimento onde a flexibilidade é intrínseca, com a possibilidade de desenvolvimento e adequação das formas de intervenção permitida; (v) marcado pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC).
O ordenamento jurídico brasileiro mostra-se campo fértil para a implementação de medidas estruturantes, já existindo vários exemplos de processos estruturais. Processos esses que já nascem nas bases do que a doutrina pátria vem defendendo como um verdadeiro Processo Estrutural.
No contexto democrático em que vivemos e de ampla participação social concedida a diversos seguimento da sociedade civil nas instituições públicas é prudente que se formule estratégias políticas e sociais com mecanismos e instrumentos de garantia democrática, para que se aperfeiçoem as decisões proferidas relacionadas ao direito à moradia (as quais, normalmente causam um grande impacto social e econômico) com vistas a garantir um acesso à justiça efetivo.
Em síntese, este artigo, por meio do proposto, apresenta singela contribuição a uma tentativa de construir uma jurisdição constitucional razoável, complexa, flexível, protetiva e promotora de direitos humanos, especialmente, do Direito à Moradia como forma de proteger a Dignidade da Pessoa Humana.
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[1] [email protected] http://lattes.cnpq.br/7676759593266688 Advogado, Doutor em Direito, Mestre em Direito Constitucional, Professor no Centro Universitário Uninovafapi.
Estudante de Direito. Centro Universitário Uninovafapi.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Andreia Maria de Brito. O processo estrutural como instrumento adequado para a tutela jurisdicional do direito à moradia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 fev 2021, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56160/o-processo-estrutural-como-instrumento-adequado-para-a-tutela-jurisdicional-do-direito-moradia. Acesso em: 23 dez 2024.
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