RESUMO: O presente trabalho analisará a possibilidade de existência de sham litigation no direito jurídico brasileiro. Para tanto, primeiramente, será exposto que o direito de ação é direito fundamental que admite relativização, o que já é previsto em alguns institutos processuais, tal como a perempção. Após, será conceituado sham litigation como a prática ilícita de se ajuizar uma ação com a intenção de fraudar competição judicial. Será demonstrado que o STJ reconheceu, em caso concreto, a ocorrência de sham litigation em decorrência de intervenções judiciais fraudatórias em processo anterior. Analisar-se-á também a possibilidade de ocorrência de sham litigation ainda que não haja manifesta intenção fraudatória pelo agente, em decorrência de violação da boa-fé processual por abuso do direito de petição, com base no art. 187 do CC. Ao fim, será analisado julgado do STJ que reconheceu abuso do direito de ação em caso de impetração de habeas corpus a fim de impedir aborto judicialmente deferido. Ao fim, concluir-se-á que o último caso, embora não caracteriza sham litigation, é hipótese de abuso de direito de ação. Da mesma forma, será concluído que as hipóteses de relativização do direito de ação devem ser excepcionais, sob pena de esvaziamento das normas constitucionais.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de ação. Princípio da inafastabilidade da jurisdição. Abuso de direito. Sham Litigation.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Do dano moral por violação à honra. 2.1. Da violação à honra das pessoas jurídicas. 3. Dos Condomínios Edilícios. 3.1 Do direito à honra objetiva dos condomínios edilícios. 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar possibilidade de ocorrência de sham litigation no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, primeiramente, será demonstrado que, apesar de a Constituição Federal (CF) prever o direito de ação como direito fundamental, isso não significa que seja absoluto. Mencionar-se-á, inclusive, dispositivos infraconstitucionais que preveem a relativização do direito, tais como a boa-fé processual e o instituto da perempção.
Depois do esclarecimento acerca da sua relativização, será analisada a possibilidade de que, no ordenamento jurídico brasileiro, determinado exercício de direito de ação possa vir a ser considerado ato ilícito de maneira a caracterizar sham litigation. Para tanto, será feita a conceituação do termo.
Após, serão analisadas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nas quais foram reconhecidas as ilicitudes de determinadas intervenções judiciais, ora por terem ocorrido com fim exclusivo de praticar ato ilícito, ora por, embora sem intenção ilícita, tenham sido realizadas de forma abusiva e temerária. Analisar-se-á também se as referidas decisões reconhecem práticas de sham litigation ou não, segundo a conceituação clássica do termo.
Concluir-se-á pela possibilidade de ocorrência de sham litigation no ordenamento jurídico brasileiro, sendo as decisões citadas exemplos práticos disso. Não obstante, concluir-se-á pela excepcionalidade desse reconhecimento, sobre pena de esvaziamento da eficácia do princípio da inafastabilidade de jurisdição e do direito fundamental de ação.
2. DO DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê que toda e qualquer pessoa poderá acionar o Poder Judiciário para reparar ou fazer cessar lesão a direito. É o que prevê o princípio da Inafastabilidade da Jurisdição, previsto no inciso XXXV da CF:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
(Brasil, 2020).
A doutrina atenta para o fato de que o referido princípio não diz respeito ao direito de se obter uma manifestação judicial favorável ao interesse do proponente, fato que apenas ocorrerá se o pedido for julgado procedente, mas sim ao direito puro de alegar, de pleitear uma proteção, ainda que venha a se tornar improcedente. Nesse sentido, esclarece DIDIER (2015):
Desse enunciado decorre o chamado princípio da inafastabilidade da jurisdição.
O principal efeito desse princípio é o direito fundamental de ação, também designado como direito de acesso ao Poder Judiciário, direito de acesso à justiça ou direito à jurisdição.
(...)
Quando a Constituição se refere à impossibilidade de exclusão de lesão ou ameaça de lesão da apreciação jurisdicional quer referir-se, na verdade, à impossibilidade de exclusão de alegação de lesão ou ameaça, tendo em vista que o direito de ação (provocar a atividade jurisdicional) não se vincula à efetiva procedência quanto ao alegado; (DIDIER, 2015, p. 177, grifos nossos).
Em outras palavras, o que o ordenamento jurídico brasileiro protege é o direito de se buscar a proteção, ainda que, no fim do processo, a proteção se verifique indevida. A CF proíbe, portanto, que alguém seja, em regra, punido por ter buscado uma proteção judicial que entendia ser legítima. Isso não significa, contudo, que essa proibição seja absoluta.
Nesse sentido, a doutrina constitucional, de forma pacífica, admite que é característica intrínseca de todo e qualquer direito fundamental a sua relatividade. Ou seja, todo direito constitucional pode ser, em alguma medida, flexibilizado.
Sobre o tema, explica GONÇALVES (2015):
Relatividade: Para a maioria da doutrina (de viés axiológico), os direitos fundamentais se caracterizam pela relatividade (por serem "direitos relativos"), ou seja, eles não podem ser entendidos como absolutos (ilimitados). Nesses termos, é comum em vários estudos sobre o tema (não sem críticas!) a afirmação de que não podemos nos esconder sob o véu (ou atrás) de um direito fundamental para a prática de atividades ilícitas. Assim sendo, não haveria possibilidade de absolutização de um direito fundamental ("ilimitação" de seu manuseio) pois encontraria limites em outros direitos tão fundamentais quanto ele (GONÇALVES, 2017, p. 342, grifos nossos).
Em coerência com a CF, ordenamento jurídico brasileiro reforça a relatividade do direito de ação em outros dispositivos legais, infraconstitucionais. Nesse sentido, o art. 5º do Código de Processo Civil (CPC) estabelece, expressamente, que todos os agentes processuais devem atuar segundo o princípio da boa-fé:
Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. (Brasil, 2020)
Ademais, o § 3º do art. 486 do CPC, ao prever a existência do instituto da perempção, já estipula uma limitação do referido direito:
Art. 486. O pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação.
§ 1º No caso de extinção em razão de litispendência e nos casos dos incisos I, IV, VI e VII do art. 485 , a propositura da nova ação depende da correção do vício que levou à sentença sem resolução do mérito.
§ 2º A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de advogado.
§ 3º Se o autor der causa, por 3 (três) vezes, a sentença fundada em abandono da causa, não poderá propor nova ação contra o réu com o mesmo objeto, ficando-lhe ressalvada, entretanto, a possibilidade de alegar em defesa o seu direito. (Brasil, 2020)
O referido instituto processual se consiste na proibição de que alguém, após ter sua ação extinguida três vezes por abandono de causa, venha a propor a ação novamente, a qual deverá ser liminarmente indeferida pelo magistrado. Parece evidente que a intenção do dispositivo é impedir que se permita o acesso irresponsável ao Poder Judiciário, sancionando-se aquele que assim o fizer.
Sendo certa, portanto, a relatividade do direito de ação, resta observar se, em razão dessa, pode o exercício de referido direito ser considerado ato ilícito e, nesse ínterim, sham mitigation, esclarecendo-se, primeiramente, em que se consiste essa prática.
Destaca-se, contudo, que, ainda que se revele possível tal hipótese, evidentemente ocorrerá apenas excepcionalmente, sob pena de se anular o supracitado princípio da inafastabilidade de jurisdição, além do próprio direito fundamental de ação.
3. DA PRÁTICA DE SHAM LITIGATION.
Em síntese, a doutrina chama de sham litigation o acionamento do Poder Judiciário que não tem por base proteger qualquer direito, mas tão somente prejudicar alguém de uma forma indevida. Sendo um conceito aberto, essa prática poderia se dar de diversas maneiras, sendo a mais comum a petição de uma ou mais ações absolutamente desarrazoadas, desprovidas de qualquer fundamento.
Nesse sentido, segundo o Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Brasil (CADE), Dr. César Costa Alves Mattos, seria sham litigation:
(...) a conduta consubstanciada no exercício abusivo do direito de petição, com a finalidade de impor prejuízos ao ambiente concorrencial. Ou, em outras palavras, sham litigation é a litigância predatória ou fraudulenta, com efeitos anticompetitivos, ou seja, o uso impróprio das ações judiciárias e dos processos governamentais adjudicantes contra rivais para alcançar efeitos anticompetitivos (BRASIL, 2010, p. 3754).
Para Tavares, seria uma ação “promovida no âmbito do Poder Judiciário que careça de bases objetivas e fundamentadas e de expectativa plausível e razoável de sucesso, com a finalidade disfarçada de prejudicar concorrente direto” (TAVARES, 2011, p.1).
Após o exposto, resta saber se, tendo em vista que o ordenamento jurídico admite a relativização do acesso à justiça, seria possível que determinado ajuizamento de ação judicial fosse considerado ato ilícito apto a caracterizar sham litigation.
3.1. Do sham litigation por ajuizamento de ação que busque fim ilícito.
Analisando-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), encontra-se julgado em que foi reconhecida a ilicitude do ajuizamento de uma ação in concreto:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. OMISSÃO E OBSCURIDADE. INOCORRÊNCIA. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. QUESTÃO DECIDIDA. ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E DE DEFESA.
RECONHECIMENTO COMO ATO ILÍCITO. POSSIBILIDADE. PRÉVIA TIPIFICAÇÃO LEGAL DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. AJUIZAMENTO SUCESSIVO E REPETITIVO DE AÇÕES TEMERÁRIAS, DESPROVIDAS DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E INTENTADAS COM PROPÓSITO DOLOSO. MÁ UTILIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE AÇÃO E DEFESA. POSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE TERRAS AGRÍCOLAS PRODUTIVAS MEDIANTE PROCURAÇÃO FALSA POR QUASE 40 ANOS.
DESAPOSSAMENTO INDEVIDO DOS LEGÍTIMOS PROPRIETÁRIOS E HERDEIROS E MANUTENÇÃO DE POSSE INJUSTA SOBRE O BEM MEDIANTE USO DE QUASE 10 AÇÕES OU PROCEDIMENTOS SEM FUNDAMENTAÇÃO PLAUSÍVEL, SENDO 04 DELAS NO CURTO LAPSO TEMPORAL CORRESPONDENTE À ÉPOCA DA ORDEM JUDICIAL DE RESTITUIÇÃO DA ÁREA E IMISSÃO NA POSSE DOS HERDEIROS, OCORRIDA EM 2011. PROPRIEDADE DOS HERDEIROS QUE HAVIA SIDO DECLARADA EM 1ª FASE DE AÇÃO DIVISÓRIA EM 1995. ABUSO PROCESSUAL A PARTIR DO QUAL FOI POSSÍVEL USURPAR, COM EXPERIMENTO DE LUCRO, AMPLA ÁREA AGRÍCOLA.
DANOS MATERIAIS CONFIGURADOS, A SEREM LIQUIDADOS POR ARBITRAMENTO.
PRIVAÇÃO DA ÁREA DE PROPRIEDADE DA ENTIDADE FAMILIAR, FORMADA INCLUSIVE POR MENORES DE TENRA IDADE. LONGO E EXCESSIVO PERÍODO DE PRIVAÇÃO, PROTRAÍDO NO TEMPO POR ATOS DOLOSOS E ABUSIVOS DE QUEM SABIA NÃO SER PROPRIETÁRIO DA ÁREA. ABALO DE NATUREZA MORAL CONFIGURADO. MODIFICAÇÃO DO TERMO INICIAL DA PRESCRIÇÃO.
NECESSIDADE, NA HIPÓTESE, DE EXAME DE CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICO-PROBATÓRIAS NÃO DELINEADAS NO ACÓRDÃO. SÚMULA 7/STJ.
DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA.
1- Ação ajuizada em 08/11/2011. Recursos especiais interpostos em 15/08/2014 e 19/08/2014.
(...)
4- Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais.
5- O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde.
Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça.
6- Hipótese em que, nos quase 39 anos de litígio envolvendo as terras que haviam sido herdadas pelos autores e de cujo uso e fruição foram privados por intermédio de procuração falsa datada do ano de 1970, foram ajuizadas, a pretexto de defender uma propriedade sabidamente inexistente, quase 10 ações ou procedimentos administrativos desprovidos de fundamentação minimamente plausível, sendo que 04 destas ações foram ajuizadas em um ínfimo espaço de tempo - 03 meses, entre setembro e novembro de 2011 -, justamente à época da ordem judicial que determinou a restituição da área e a imissão na posse aos autores.
7- O uso exclusivo da área alheia para o cultivo agrícola pelos 14 anos subsequentes ao trânsito em julgado da sentença proferida na primeira fase da ação divisória não pode ser qualificado como lícito e de boa-fé nesse contexto, de modo que é correto afirmar que, a partir da coisa julgada formada na primeira fase, os usurpadores assumiram o risco de reparar os danos causados pela demora na efetivação da tutela específica de imissão na posse dos legítimos proprietários.
8- Dado que a área usurpada por quem se valeu do abuso processual para retardar a imissão na posse dos legítimos proprietários era de natureza agrícola e considerando que o plantio ocorrido na referida área evidentemente gerou lucros aos réus, deve ser reconhecido o dever de reparar os danos de natureza patrimonial, a serem liquidados por arbitramento, observado o período dos 03 últimos anos anteriores ao ajuizamento da presente ação, excluídas da condenação a pretensão de recomposição pela alegada retirada ilegal de madeira e pela recomposição de supostos danos ambientais, que não foram suficientemente comprovados.
9- Considerando a relação familiar existente entre os proprietários originários das terras usurpadas e os autores da ação, o longo período de que foram privados do bem que sempre lhes pertenceu, inclusive durante tenra idade, mediante o uso desenfreado de sucessivos estratagemas processuais fundados na má-fé, no dolo e na fraude, configura-se igualmente a existência do dever de reparar os danos de natureza extrapatrimonial que do ato ilícito de abuso processual decorrem, restabelecendo-se, quanto ao ponto, a sentença de procedência.
12- Recursos especiais conhecidos e parcialmente providos.
(REsp 1817845/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2019, DJe 17/10/2019) (STJ, REsp 1.256.912/AL, Rel Min. Humberto Martins, 2ª Turma, j. 07.02.2012, DJe 13.02.2012, grifos nossos).
Em síntese, consistia-se o caso concreto na disputa judicial de uma grande propriedade entre grupos distintos de pessoas. No decorrer da disputa judicial, um dos polos judiciais manteve, recorrentemente e repetidamente, a interposição de ações, recursos e intervenções judiciais manifestamente improcedentes e inadmissíveis, cujo fim exclusivo era o embaraço da posse do outro polo. Após o término da ação judicial, os prejudicados apresentaram ação de condenação por danos morais, na qual se buscava o reconhecimento da ilicitude do peticionamento exacerbado das partes contrários. Ao fim, a demanda foi julgada procedente pelo Superior Tribunal de Justiça.
Nota-se que a fundamentação do julgado se consistiu na identificação, pelo magistrado, de que os institutos processuais apresentados pela parte tinham como objetivo retardar uma imissão de posse que se revelaria inevitável. Essa manifesta intenção fraudulenta e exclusiva de prejudicar a outra parte foi o que levou a corte a definir o direito de ação, nos moldes do caso, como ato ilícito caracterizador de sham litigation.
Percebe-se, portanto, que é possível o reconhecimento de sham litigation quando a única intenção de uma ação judicial, manifestamente improcedente, é prejudicar a parte contrária. Resta, contudo, analisar se há outras hipóteses em que, em tese, o mesmo reconhecimento poderia ocorrer, não em razão da finalidade ilícita da ação judicial, mas da maneira abusiva pelo meio da qual ela é proposta.
3.2. Do sham litigation por abuso do direito de ação.
Segundo o art. 187 do CC, todo e qualquer direito que venha a ser utilizado de forma imponderada, prejudicando a terceiros, caracterizará ato ilícito:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (Brasil, 2020)
Segundo a doutrina, esse instituto é o chamado “abuso de direito”, e se consiste em modalidade objetiva de ato ilícito, ou seja, caracteriza-se independentemente de culpa ou dolo do agente. Nesse sentido, explica TARTUCE (2015):
Em continuidade, para que o abuso de direito esteja presente, nos termos do que está previsto na atual codificação privada, é importante que tal conduta seja praticada quando a pessoa exceda um direito que possui, atuando em exercício irregular de direito , conforme anotado por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery.6 Sendo assim, não há que se cogitar o elemento culpa na sua configuração, bastando que a conduta exceda os parâmetros que constam do art. 187 do CC.
Portanto, conforme o entendimento majoritário da doutrina nacional, presente o abuso de direito, a responsabilidade é objetiva, ou independentemente de culpa. (TARTUCE, 2015, p. 373, grifos nossos).
Seguindo o mesmo entendimento, é o enunciado nº 37 da I Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal (CJF):
Enunciado n. 37: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico (Brasil, 2020)
Sob essa perspectiva, seria ilícito o direito de ação que, mesmo sem a intenção dolosa do agente, violar a boa-fé ou exceder, manifestamente os fins sociais da ação judicial. Essa prática poderia, em tese, caracterizar sham litigation, na medida em que, embora o agente não tenha a intenção, seu comportamento venha exclusivamente a prejudicar direito do concorrente, obstaculizando a competição judicial.
Analisando-se a jurisprudência do STJ, encontra-se um caso em que a corte ratificou a condenação em danos morais de determinado autor em razão da impetração abusiva de habeas corpus em processo anterior:
Controvérsia: dizer se o manejo de habeas corpus, pelo recorrido, com o fito de impedir a interrupção da gestação da primeira recorrente, que tinha sido judicialmente deferida, caracteriza-se como abuso do direito de ação e/ou ação passível de gerar responsabilidade civil de sua parte, pelo manejo indevido de tutela de urgência.
Diploma legal aplicável à espécie: Código Civil - arts. 186, 187, 188 e 927.
Inconteste a existência de dano aos recorrentes, na espécie, porquanto a interrupção da gestação do feto com síndrome de Body Stalk, que era uma decisão pensada e avalizada por médicos e pelo Poder Judiciário, e ainda assim, de impactos emocionais incalculáveis, foi sustada pela atuação do recorrido.
Necessidade de perquirir sobre a ilicitude do ato praticado pelo recorrido, buscando, na existência ou não - de amparo legal ao procedimento de interrupção de gestação, na hipótese de ocorrência da síndrome de body stalk e na possibilidade de responsabilização, do recorrido, pelo exercício do direito de ação - dizer da existência do ilícito compensável; Reproduzidas, salvo pela patologia em si, todos efeitos deletérios da anencefalia, hipótese para qual o STF, no julgamento da ADPF 54, afastou a possibilidade de criminalização da interrupção da gestação, também na síndrome de body-stalk, impõe-se dizer que a interrupção da gravidez, nas circunstâncias que experimentou a recorrente, era direito próprio, do qual poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros, porquanto, ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio. (Onde existe a mesma razão, deve haver a mesma regra de Direito) Nessa linha, e sob a égide da laicidade do Estado, aquele que se arrosta contra o direito à liberdade, à intimidade e a disposição do próprio corpo por parte de gestante, que busca a interrupção da gravidez de feto sem viabilidade de vida extrauterina, brandindo a garantia constitucional ao próprio direito de ação e à defesa da vida humana, mesmo que ainda em estágio fetal e mesmo com um diagnóstico de síndrome incompatível com a vida extrauterina, exercita, abusivamente, seu direito de ação.
A sôfrega e imprudente busca por um direito, em tese, legítimo, que, no entanto, faz perecer no caminho, direito de outrem, ou mesmo uma toldada percepção do próprio direito, que impele alguém a avançar sobre direito alheio, são considerados abuso de direito, porque o exercício regular do direito, não pode se subverter, ele mesmo, em uma transgressão à lei, na modalidade abuso do direito, desvirtuando um interesse aparentemente legítimo, pelo excesso.
A base axiológica de quem defende uma tese comportamental qualquer, só tem terreno fértil, dentro de um Estado de Direito laico, no campo das próprias ideias ou nos Órgãos legislativos competentes, podendo neles defender todo e qualquer conceito que reproduza seus postulados de fé, ou do seu imo, havendo aí, não apenas liberdade, mas garantia estatal de que poderá propagar o que entende por correto, não possibilitando contudo, essa faculdade, o ingresso no círculo íntimo de terceiro para lhe ditar, ou tentar ditar, seus conceitos ou preconceitos.
Esse tipo de ação faz medrar, em seara imprópria, o corpo de valores que defende - e isso caracteriza o abuso de direito - pois a busca, mesmo que por via estatal, da imposição de particulares conceitos a terceiros, tem por escopo retirar de outrem, a mesma liberdade de ação que vigorosamente defende para si.
Dessa forma, assentado que foi, anteriormente, que a interrupção da gestação da recorrente, no cenário apresentado, era lídimo, sendo opção do casal - notadamente da gestante - assumir ou descontinuar a gestação de feto sem viabilidade de vida extrauterina, há uma vinculada remissão à proteção constitucional aos valores da intimidade, da vida privada, da honra e da própria imagem dos recorrentes (art. 5º, X, da CF), fato que impõe, para aquele que invade esse círculo íntimo e inviolável, responsabilidade pelos danos daí decorrentes.
Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 1467888/GO, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2016, DJe 25/10/2016).
Resumindo o caso concreto: determinada gestante, ao identificar que seu feto possuía síndrome de body stalk, cuja possibilidade de vida extrauterina é inexistente, ajuizou ação judicial a fim de ter seu aborto autorizado, o que lhe foi deferido, em primeira instância, com base na ratio decidendi da ADPF nº 54, que tornou possível o aborto no caso de fetos anencéfalos. Ao saber da decisão judicial, determinado padre impetrou habeas corpus em favor do feto, visando a impedir o aborto judicialmente autorizado. O Tribunal de Justiça de Goiás deferiu o habeas corpus, determinando que o aborto não se realizasse, e, no decorrer do trâmite processual, a gestante acabou dando luz ao bebê, que veio a morrer pouco tempo após o nascimento.
Em decorrência disso, o casal afetado pelo habeas corpus apresentou ação judicial na qual queriam o reconhecimento do abuso do direito de ação pelo padre, pleiteando sua condenação em danos morais. O STJ, ao analisar o caso, concordou com a fundamentação e considerou ilícita e abusiva a judicialização da questão na forma realizada.
Analisando-se o inteiro teor do acordão, nota-se que em nenhum momento foi imputada ao padre a intenção de atingir algum fim ilícito com seu mandado constitucional, cujo único interesse era resguardar, ao seu ver, o direito do feto. Extrai-se, então, que a ação judicial impetrada foi considerada ilícita não pelo seu fim, mas sim por ter se revelado abusiva e temerária, terminando por prejudicar mais do que garantir o direito que a legitimava, tratando-se, portanto, de abuso de direito.
Analisando o caso em tela, conclui-se que não se adequa, completamente, ao conceito clássico de sham litigation, uma vez que não houve intenção de fraudar a competição judicial ou de simular uma demanda processual. Entretanto, aproxima-se o suficiente dele, pelo menos, do ponto de vista da consequência do seu reconhecimento, que é a declaração da ilicitude da demanda judicial.
4. CONCLUSÃO.
O presente trabalho conclui que, embora seja garantido o direito de ação, ou direito de petição, em razão do princípio da inafastabilidade da jurisdição, sua efetividade não é absoluta. Nessa esteira, a legislação infraconstitucional já prevê sua relativização ao estipular o instituto da perempção (art. 463 do CPC) e o princípio da boa-fé processual (art. 5º do CPC).
Além das hipóteses legais supracitadas, também já houve o reconhecimento da ilicitude do direito de ação em casos concretos pelo Superior Tribunal de Justiça. Dentre esses casos, citou-se a ilicitude reconhecida em intervenções judiciais cujo fim era exclusivamente fraudar e retardar processo judicial e a ilicitude de caso concreto em que, embora não houvesse intenção ilícita do autor da ação judicial, foi reconhecido o abuso de direito da sua intervenção judicial (art. 187 do CC).
Tendo como base os conceitos de sham litigation propostos, concluiu-se que sua caracterização é possível tanto quando há a intenção fraudulenta anticompetitiva com fim de prejudicar direito (art. 186 do CC), tanto quando, embora não haja intenção fraudulenta, a maneira pela qual a ação é proposta termine por exclusivamente prejudicar direito alheio e violar a boa-fé, caracterizando abuso de direito (art. 187 do CC). No tocante aos casos judiciais citados, enquanto o primeiro caracteriza expressamente a sua prática, o segundo, embora se desvirtue do conceito clássico, implica, pelo menos nos efeitos, um mesmo resultado: que é o reconhecimento da ilicitude do ato processual.
Apesar disso, reiterou-se a excepcionalidade do reconhecimento de ilicitude decorrente do exercício de direito de ação, sob pena de se esvaziar a amplitude do princípio da inafastabilidade de jurisdição, além do direito fundamental de ação. Espera-se que o tema seja mais bem aprofundado em trabalhos posteriores, de maneira a se estabelecer para futuros julgados padrões mais precisos de práticas aptas a caracterizar sham litigation.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL, Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 20/08/2020.
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DIDIER, JR. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. – Bahia: Editora Juspodium, 2015.
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Jornadas de Direito Civil I, II, III, IV E V : enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. – Brasília : Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. 135 p. ISBN 978-85-85572-93-8
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito de direito civil: volume único. 05. ed. – São Paulo: Editora Método, 2015.
TAVARES, Felipe Mascarenhas. Sham Litigation: abuso do direito de ação. Atos de má-fé e sua vantagem indevida. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7573&revista_caderno=4> Acesso em 31/10/2020.
Pós-graduado em Ciências Criminais pela Faculdade Damásio, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Guilherme Francisco Souza. Da relativização do direito de ação pela prática de sham litigation Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 fev 2021, 04:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56171/da-relativizao-do-direito-de-ao-pela-prtica-de-sham-litigation. Acesso em: 23 dez 2024.
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