Resumo: Este trabalho tem como objetivo abordar e compreender alguns aspectos relevantes da justiça, de modo que possamos realizar um debate sobre a polarização no Brasil a nível de intolerância, e como isso vem afetando a democracia na atualidade, bem como, realizar uma análise sobre sua possível projeção a nível de futuro. As discrepâncias entre o corpo dos eleitos e o conjunto dos eleitores são o ponto de partida para a proposta de (re)conceitualizar a democracia tendo em mente as diferenças ideológicas. O texto analisa, ainda, o distanciamento entre representantes e representados, o descontentamento e perda de confiabilidade na política e na justiça. Visa discutir, também, sobre a crise dos regimes representativos e seus dois perigos: as alternativas autoritárias e a posição conservadora.
Palavras-chave: Ascensão; Democracia; Justiça; Futuro; Liberdade.
Abstract: This work aims to address and understand some relevant aspects of justice, so that we can have a debate about polarization in Brazil at the level of intolerance, and how it has been affecting democracy today, as well as conducting an analysis on its possible future level projection. The discrepancies between the body of the elect and the group of voters are the starting point for the proposal to (re) conceptualize democracy with ideological differences in mind. The text also analyzes the distance between representatives and represented, the discontent and loss of trust in politics and justice. It also aims to discuss the crisis of representative regimes and its two dangers: authoritarian alternatives and the conservative position.
Keywords: Ascension; Democracy; Justice; Future; Freedom.
Sumário: 1. Introdução – 2. A validade da democracia e o alcance da justiça – 3. Direito da política e política do direito – 4. O constante conflito entre liberalismo e sufrágio universal – 4.1 Constant e a restrição censitária – 4.2 Tocqueville e o duplo grau eleitoral – 5. A crise de representatividade como motor da autocracia – 6. Ascensão e sustentação da extrema-direita e a influência do resultado eleitoral norte-americano em face das demais democracias – 7. Considerações finais – 8 referências.
1. INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988, logo em seu artigo primeiro, estampa que a República Federativa do Brasil se constitui um Estado Democrático de Direito. Ainda, dispõe que todo o poder emana do povo, e será exercido por meio de representantes eleitos. Pode-se afirmar que, ao menos no plano normativo, o Brasil possui um regime democrático, cujo poder é exercido através de representantes eleitos. Em outras palavras, há uma democracia representativa vigente no país.
Entretanto, não se deve ignorar o crescente sentimento de insatisfação da população em face dos parlamentares, que culmina na propagação de uma suposta crise de representatividade, ou até mesmo crise das instituições representativas, como demonstra, por exemplo, levantamento realizado pelo instituto IPSOS, em junho de 2018[1].
A questão chave do processo democrático, contudo, é a obediência ao decidido através do sufrágio universal sob os contornos da legalidade constitucional e não aos valores dispostos pelo liberalismo a priori. E, mais, tal suposta identidade entre vontade da maioria e valores liberais não se sustenta historicamente, pois os liberais em sua origem foram antidemocratas, instituíram cláusulas de exclusão para limitar o envolvimento do povo na política, já que eram contra a participação popular nos processos decisórios (ANTUNES SCHRAMM; ALVES SOARES; SILVA, 2020, p. 25-26).
Fato é, que diariamente nos deparamos com notícias veiculadas nos mais diversos periódicos e assistimos nos telejornais, políticos, analistas, economistas, jornalistas e especialistas de toda espécie falarem sobre as conquistas e retrocessos de direitos (liberdade, igualdade, fraternidade, econômico, social, ambiental etc.), diante do avanço da extrema-direita radical, em nosso contexto político atual, com seus discursos populistas, e pautas antidemocráticas, etc. É justamente, sob a perspectiva desse novo cenário, que surge a problemática que ensejou este trabalho, qual seja, a democracia brasileira tem futuro?
Talvez o principal problema relacionado à falta de compreensão do tema esteja relacionado às origens do pensamento liberal, que de certa forma coincidem com o surgimento do Estado moderno e com os direitos humanos de primeira geração, atrelados ao valor “liberdade”. Inegavelmente os valores ligados ao conceito de “liberdade”, são indispensáveis ao exercício democrático e que em grande medida foram indevidamente apropriados como argumentos de um discurso que se presta à distorção e à confusão, e ao longo dos anos vêm sendo utilizados de forma recorrente pelos liberais, para atribuir-lhes identidade aos valores democráticos, o que não se verifica na prática, a depender do ponto de vista utilizado, se formal ou material.
Segundo Bobbio, a condição mínima necessária para que possamos qualificar um dado governo como democrático é a existência de um “conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” (1997, p. 13) ou “um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimento” (1997, p. 17).
Salienta-se por oportuno, que existe uma diferença entre estar insatisfeito com a democracia e estar insatisfeito com o funcionamento da democracia. Democracia requer acordo e negociação. Exige também, que os cidadãos e os políticos vejam a oposição como legítima. Ou seja, embora possam discordar deles, eles aceitam seu direito de participar da política e de disputar eleições, bem como, aceitam o resultado das eleições.
2. A VALIDADE DA DEMOCRACIA E O ALCANCE DA JUSTIÇA
Não nos apeguemos ao passado para entender a democracia quanto à palavra do cidadão e da sociedade, mas sim no seu momento presente diante do discurso prático e racional, uma vez que a proposta aqui apresentada é relacionar a justiça com a democracia, onde esta legitima aquela a partir da validade dada através do Estado.
Na complexidade da sociedade hoje pós-moderna, o caráter essencialmente real da participação popular quanto ao destino do sistema jurídico repousa no discurso de isonomia, igualdade e tratamento social entre e inter classes.
Denise Vitale e Rúrion Soares Melo assim se manifestam sobre esta representatividade a partir do discurso de Jürgen Habermas:
Em sociedades modernas cada vez mais plurais, nas quais se multiplicam os projetos individuais de vida, torna-se mais complexa a regulação comum dos diversos interesses e pontos de vista em jogo no processo político. Por um lado, os interesses particulares e as orientações por valores diferenciados exigem normas cada vez mais abstratas e que possam vir a ser fundamentadas por procedimentos imparciais, sensíveis a diferentes questões e capazes de incluir diferentes discursos. Por outro lado, as matérias a serem reguladas também se modificam amplamente, tornando mais difícil a regulação de âmbitos de ação pautados por interesses universalizáveis, como no caso dos discursos éticos. Sendo assim, Habermas entende que o sentido “cognitivos” dos discursos deve ser complementado lançando-se mão ainda de mais um passo, o qual visa a mostrar que os discursos produzem diferentes tipos de “acordo racional” (VITALE; MELO, 2008, p. 232).
O acordo tácito ou expresso da sociedade quanto ao alcance de democracia para legitimar o comportamento justo passa, pois, do discurso para o materialismo, este último entendido como cristalização dos procedimentos de escolha das normas e das formas procedimentais de se administrar uma sociedade. É a representação social capaz de fortalecer a validade da justiça enquanto fenômeno social de resultado das relações existentes.
Democracia deve ter, necessariamente, a ideia de liberdade com um princípio de autodeterminação. Por esta razão é que Hans Kelsen discorre a seu respeito como um a teoria do estado a ser implantada dentro de uma nação como elemento de valor. Vejamos:
A idéia de liberdade tem originalmente uma significação puramente negativa. Ela significa a ausência de qualquer compromisso, de qualquer autoridade obrigatória. Sociedade, no entanto, significa ordem, e ordem significa compromissos. O Estado é uma ordem social por meu da qual indivíduos são obrigados a certa conduta. No sentido original de liberdade, só é livre quem vive fora da sociedade e do Estado. A liberdade, no sentido original, só pode ser encontrada naquele “estado natural” que a teoria do Direito natural do século XVIII contrastava com o “estado social”. Tal liberdade é anarquia. Portanto, para fornecer o critério de acordo com o qual são distinguidos diferentes tipos de Estado, a idéia de liberdade natural transforma-se em liberdade política. Essa metamorfose da idéia de liberdade é da maior importância para todo o nosso pensamento político (KELSEN, 2000. p. 407).
Tal participação social define o rumo de uma sociedade. Manter a liberdade intacta dentro de um sistema é demasiadamente caro, o que enseja numa participação quanto ao melhor resultado, inclusive, e talvez primordialmente, quanto à justiça no sistema jurídico e político. É preciso uma autodeterminação individual e em sincronia com o coletivo, para que não haja pura e simplesmente a concepção de limitações individuais ou sociais. É preciso que a liberdade também seja política na construção do sistema, cujos reflexos serão sentidos em todos os segmentos de uma sociedade. E completa Kelsen, pois, ao referir-se à autodeterminação como elemento de liberdade política:
A liberdade possível dentro da sociedade, e especialmente dentro do Estado, não pode ser a liberdade de qualquer compromisso, pode ser apenas a de um tipo particular de compromisso. O problema da liberdade política é: como é possível estar sujeito a uma ordem social e permanecer livre? Assim, Rousseau formulou a questão cuja resposta é a democracia. Um sujeito é politicamente livre na medida em que a sua vontade individual esteja em harmonia da vontade “coletiva” (ou “geral”) expressa na ordem social. Tal harmonia da vontade “coletiva” com a individual é garantida apenas se a ordem social for criada pelo indivíduo cuja conduta ela regula. Ordem social significa determinação da vontade do indivíduo. A liberdade política, isto é, a liberdade sob a ordem social, é a autodeterminação de um indivíduo por meio da participação na criação da ordem social. A liberdade política é liberdade, e liberdade é autonomia (KELSEN, 2000, p. 408).
Diante do que fora dito até o momento, justiça e democracia são duas perspectivas próprias da sociedade, mas não devem ser equidistantes, eis que se misturam tanto no campo político quanto do direito. Enquanto a justiça não se mostra como uma simples técnica de igualdade, ou ainda de uma utilidade ou ordem social, mas sim essencialmente como uma virtude a ser alcançada pelo homem, a democracia, por sua vez, busca na participação popular uma forma de construção da estrutura jurídica e política.
Se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum. Ela não pode ser indiferente às atitudes e disposições, aos “hábitos do coração” que os cidadãos levam para a vida pública, mas precisa encontrar meios de se afastar das noções da boa vida puramente egoístas e cultivar a virtude cívica (SANDEL, 2015, p. 325).
Se nos voltarmos para as consequências cívicas da desigualdade e para as maneiras de revertê-las, podemos encontrar soluções políticas que as discussões sobre a distribuição de renda não encontram. Isso também ajudaria a enfatizar a relação entre justiça distributiva e o bem comum. Não se pode alcançar uma sociedade justa simplesmente maximizando a utilidade ou garantindo a liberdade de escolha. Para alcançar uma sociedade justa, precisamos raciocinar juntos sobre o significado da vida boa e criar uma cultura pública que aceite as divergências que inevitavelmente ocorrerão.
Os elementos subjetivos confortantes da justiça devem surgir diante da participação social na construção do real pensamento humano, uma vez que aquela é uma das primeiras verdades que nascem a partir do espírito humano. É consciência que afora.
3. DIREITO DA POLÍTICA E POLÍTICA DO DIREITO
As questões que envolvem direito e política nascem dos próprios conceitos que assinalam essas zonas de atividade humana, sendo possível, como propõe Dimitri Dimoulis, reconhecer a possibilidade de existência de feixes próprios de interação entre os dois sistemas a partir de um vínculo democrático: há, em um sentido, a política do Direito, calcada no substrato das decisões tomadas para a criação ou produção da estrutura normativa do Estado, assim entendidas como as razões fundantes de uma disciplina jurídica reflexiva da estrutura pública, ou seja, a arte legislativa, em que as escolhas públicas elegem diretrizes para o funcionamento das instituições (DIMOULIS, 2016, p. 73-76).
No caminho inverso, o direito da política, conjunto de decisões políticas fundamentais disciplinadas em normas jurídicas, em especial as que tipicamente povoam uma Constituição, porquanto documento político de conformação da atividade do Estado, bem assim, aquelas que tratam especificamente as questões da atividade política, como as normas constitucionais que definem o sistema eleitoral e o funcionamento das instituições democráticas, desde o voto até os mecanismos de controle da atividade pública (ação popular, investigação judicial eleitoral etc.) (DIMOULIS, 2016, p. 71-73).
Tanto em um sentido como no outro, há a preocupação em se dotar a estrutura do direito de possibilidades de controle da atividade política, assim como essa funciona como limite expresso dos conteúdos normativos adotados. É possível assentir que a dinâmica política das normas jurídicas e a dinâmica jurídica da vida política são, assim, interdependentes.
Não é possível perder de vista que uma concepção normativa de política radica nessa mesma premissa: o exercício inclusivo de todos os cidadãos, que a exercem, enquanto interessados na condição plena da cidadania, que é a satisfação digna necessidades humanas, por meio de políticas e estratégias (BALANDER, 1967, p. 30).
Nessa dimensão, o termo politics identifica-se, portanto, com essa acepção de estratégias dirigidas que resultam da competição entre diferentes grupos de pressão, que exercerão argumentos próprios e, naturalmente, antagônicos para defender sua própria concepção de dignidade política.
Quando as posições legítimas são usurpadas em nome de interesses paroquiais e que não interessam a um sentido global de cidadania, há o desvirtuamento do sentido normativo do mundo político, e o que deveria ser uma estrutura de conhecimento e prática social passa, então, a ser um limitado bojo de interesses internos e pessoais. Nessa pontuação em que o Direito e a Política convergem, tendo como elo de ligação o ideário do constitucionalismo, bem esclarecem Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti:
Os movimentos constitucionalistas e a ideia mesma de Constituição, no sentido moderno, pressupõem a diluição da unidade e da organicidade típicas das sociedades tradicionais, ou seja, a invenção do indivíduo, da sociedade civil, o pluralismo religioso, político e social, a tensão socialmente constitutiva entre o eu e o outro (BALANDER, 1967, p. 30).
Se faz necessário reconhecer que o papel de cada ator social na luta social incessante que, dia após dia, é ressignificada na medida em que os desafios são historicamente postos e o tempo presente lhes potencializa pela falta de referência absoluta. O resgate do sentido legítimo de política depende, inexoravelmente, de uma articulação permanente entre a cidadania e a democracia. É com a instituição de políticas legislativas, abertas ao debate público, e de estruturas normativas que permitam a participação dos cidadãos, que a luta social pode ser travada. Nesse ponto, o jurídico e o político devem convergir (LOPES, 2005, p. 9). A “prática da política (e do Direito)” “sempre se direcionaram à realização de valores, tentando melhorar a condição da comunidade (ou, pelo menos, assegurar que ela não piorasse)” (GROTH, 2006. p. 78).
4. O CONSTANTE CONFLITO ENTRE LIBERALISMO E SUFRÁGIO UNIVERSAL
A ideologia liberal foi por muito tempo defendida e contestada por diversos autores em épocas distintas; percebe-se contraposições internas entre eles, dos quais podemos aqui citar alguns, como John Stuart Mill, John Locke, Adam Smith, Montesquieu. Porém, o objeto de estudo deste tópico, será o pensamento de Tocqueville e Constant (ANTUNES SCHRAMM; ALVES SOARES; SILVA, 2020, p. 29-30).
A escolha por Benjamin Constant deve-se a ele ser um dos principais teóricos do pensamento liberal, que, opondo-se aos caminhos da Revolução Francesa, nega em absoluto a questão do sufrágio universal, manifestada durante esse período baseado nas ideias de Rousseau: “Com efeito, é no curso do processo de radicalização de tal revolução que emerge a reivindicação do sufrágio mais ou menos universal (limitado à população masculina) e direto” (LOSURDO, 2004, p. 15).
Já Tocqueville, um liberal pós-revolução, apesar de francês, tem como principal objeto de pesquisa a democracia na América; porém, ao analisar sua visão com relação ao sufrágio, é transparente sua tensão em relação à democracia. Portanto, ao analisar a gênese do liberalismo vinculado a suas principais revoluções (Francesa e Americana) será possível observar as distinções entre democracia e liberalismo, que outros autores apresentam como se estivessem instituídos por um vínculo indissociável, quando, na verdade, o contexto histórico do conflito de direitos demonstra o contrário (ANTUNES SCHRAMM; ALVES SOARES; SILVA, 2020, p. 30).
4.1 Constant e a restrição censitária
Um dos ícones do liberalismo in statu nascendi, Benjamin Constant afirmara que os Estados contemporâneos se fundamentam em duas exigências: a de limitar o poder e, igualmente, de distribuí-lo. Mas Constant compreendia que tais objetivos estavam em contradição, pois “a participação direta nas decisões coletivas termina por submeter o indivíduo à autoridade do todo e por torná-lo não livre no privado, quando é exatamente a liberdade do privado que o cidadão exige hoje do poder público” (LOSURDO, 2004, p. 138). Nesse sentido, a liberdade defendida por Constant não se referia a sua democratização na sociedade, mas sim a segurança nas fruições privadas, garantidas pelas instituições jurídico-políticas consubstanciadas através do voto censitário.
Percebe-se que durante o processo histórico do liberalismo, a relação dos proprietários com os escravos e indivíduos “considerados livres” na participação política, era limitada através da restrição censitária defendida por Constant, que “deve impedir que a representação política confira uma excessiva influência às massas populares.” (LOSURDO, 2004, p. 16). Sendo, portanto, os direitos políticos, direitos resguardados somente aos proprietários, que, ao contribuir através do pagamento de impostos12, têm em troca a garantia das relações de livre mercado, enquanto os miseráveis encontram-se em condições de servidão a estes indivíduos.
Nesse sentido, Constant compartilha a mesma ideia de Boissy d’Anglas, ambos defendem medidas de exclusão dos não-proprietários em relação aos direitos políticos ‘caso contrário, eles estabelecerão ou farão estabelecer taxas funestas’. Ele mantém esta posição, pois considera uma afronta a propriedade da burguesia liberal, uma vez que deveriam distribuir parte de suas propriedades para uma justa redistribuição de renda entre os não-proprietários. A não participação política destes indivíduos através da restrição censitária tem objetivo de manter intacto os direitos liberais, não permitindo que “a representação política confira uma excessiva influência às massas populares” (LOSURDO, 2004, p.16).
Segundo Constant (1989, p. 118), para a efetiva participação do indivíduo na democracia, “é preciso além do nascimento e da idade legal, um terceiro requisito: o tempo livre indispensável para informar-se e atingir a retidão de julgamento. Somente a propriedade assegura o ócio necessário à capacitação do homem para o exercício dos direitos políticos”. Desse modo, restringe a estes indivíduos, através do critério de propriedade, a sua participação na política, argumentando que:
O objetivo necessário dos não-proprietários é chegar à propriedade: todos os meios que lhes são dados são empregados para esse fim. [...] esses direitos nas mãos de um maior número servirão infalivelmente para invadir a propriedade. Eles tomarão este voto irregular em vez de seguir o voto natural, o trabalho: isto será para eles uma fonte de corrupção, para o Estado uma fonte de desordem (LOSURDO, 2004, p. 17).
Constant se justifica:
Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe trabalhadora. É tão patriota como qualquer outra e amiúde realiza os mais heroicos sacrifícios. Mas sua maior abnegação está mais no fato de admirar do que se sentir recompensada pela fortuna e pela glória. Porém uma coisa é, a meu ver, o patriotismo daquele que está prestes a morrer por seu país e outra é o patriotismo daqueles que cuidam dos próprios interesses (CONSTANT, 1989, p. 118).
Para a tradição liberal iniciada por Constant, portanto, ao contrário da afirmativa de Bobbio que identifica democracia e liberalismo, evidencia-se essa separação no tocante a questão do sufrágio universal, pois a participação cidadã se dá limitada pela questão censitária. Assim, a representação política vem com o objetivo, “exatamente, de neutralizar politicamente estas massas em condições de indigência ou literalmente famintas” e não inseri-las gradualmente no processo democrático (LOSURDO, 2004, p. 17).
4.2 Tocqueville e o duplo grau eleitoral
Por sua vez, Tocqueville, outro grande representante do pensamento liberal, considera que o sufrágio universal direto é desastroso e não coincide com a estabilidade política e social da época, e se apresenta contra a presença desses “elementos vulgares” na Câmara dos representantes:
O liberal francês está tão distante da ideia de sufrágio universal e de participação democrática das amplas massas na vida política que, em transparente polêmica contra a agitação dos banquetes declara: “não se deve cortejar o povo e não se deve conferir-lhe, pródiga e temerariamente, mais direitos políticos do que aqueles que é capaz de exercer” (LOSURDO, 2004, p. 20).
Porém, cabe aos órgãos legislativos demonstrar boa vontade e atender da melhor maneira possível as necessidades dessa classe inferior, com o objetivo de que o legislador seja visto com bons olhos pelo fato de pensar neles. Tocqueville defende um sistema eleitoral de vários graus, conhecido por ele nos Estados Unidos, assegurando que “apesar da ampla extensão do sufrágio, os Estados Unidos gozam de uma invejável estabilidade política e social pelo fato de que deixam amplo espaço ao sistema eleitoral de duplo grau” (LOSURDO, 2004, p.31).
O autor procede a uma comparação entre a Câmara dos Representantes e Senado, sendo o primeiro um misto de indivíduos considerados ignorantes, que não tinham capacidade intelectual para a participação política plena. Na Câmara, espaço considerado sem importância social, havia eleição direta. Já o Senado, seguindo o sistema de duplo grau, “contém uma grande parte das celebridades da América. Dificilmente aí se percebe um só homem que não evoque a ideia de uma pessoa ilustre”. Considera-se que “qualquer palavra que sai desta assembleia honraria os maiores debates parlamentares da Europa” (LOSURDO, 2004, p.18).
Então, nas palavras de Tocqueville:
De onde deriva este contraste bizarro? A assembleia reúne elementos tão vulgares enquanto a segunda parece ter o monopólio dos talentos e da cultura? [...] De onde provém, pois, uma diferença tão grande? Só vejo um fato capaz de explicar isto: a eleição da Câmara dos Representantes é direta; a do Senado procede através de dois graus [...]. É fácil entrever, no futuro, um momento em que as repúblicas americanas serão levadas a aumentar a aplicação do duplo grau no seu sistema eleitoral; de outro modo, perder-se-ão miseravelmente entre os escolhos da democracia (2005, p. 235).
Deste modo, Tocqueville prescinde da soberania popular vinculada ao sufrágio universal e apresenta uma forma de falsa representação política, modelo este conhecido como sistema eleitoral de segundo grau, que “sem necessidade de recorrer a discriminações patentes e muitas vezes percebidas como odiosas, consegue apesar disso, e de modo ainda mais eficaz, proteger os organismos representativos da influência, ou da excessiva influência das massas populares” (LOSURDO, 2004, p.18).
Percebe-se que Tocqueville “é nitidamente contrário a uma intervenção do poder político no campo econômico, a qualquer hipótese de redistribuição de renda e, consequentemente, a um sistema eleitoral capaz de favorecer tais desastradas eventualidades” (LOSURDO, 2004, p.17). Diante de tal fato é possível compreender que, para o liberalismo nascente do pensador francês, o sufrágio universal está longe de ser um de seus elementos fundamentais.
Uma redistribuição de renda é um desrespeito à liberdade de propriedade, sendo inadmissível que estes indivíduos tenham seus bens afetados para assegurar o necessário para a sobrevivência destes miseráveis. Em razão disso, o regime político deve “ao assegurar aos ricos o gozo dos seus bens”, proteger “ao mesmo tempo os pobres do excesso da sua miséria, exigindo dos primeiro uma parcela do supérfluo para conceder o necessário aos segundos” (LOSURDO, 2004, p.18).
Portanto:
se por liberalismo entende-se a igual fruição que cada indivíduo pode ter uma esfera privada de liberdade garantida pela lei – a “liberdade moderna” ou “‘negativa” – não é difícil se aperceber do caráter muito problemático do uso desta categoria. Mesmo não levando em consideração o problema da escravidão, conhecemos a condição de semiescravidão à qual são submetidos os negros em teoria livres (LOSURDO, 2006, p. 107).
Nesse sentido, é possível observar que, negavam-lhes os direitos civis, direitos políticos, em suma, a liberdade moderna. A liberdade pertencia, então, apenas aos proprietários, sendo o principal objetivo destes, manter, tais indivíduos sob condições características da escravidão, não oportunizando sequer liberdade econômica para que pudessem escolher em qual função gostariam de trabalhar e exercer sua cidadania (ANTUNES SCHRAMM; ALVES SOARES; SILVA, 2020, p. 34).
Ainda cabe salientar que “sob penas severas é proibido ensinar aos escravos a ler e escrever” (LOSURDO, 2006, p. 110). Percebe-se aqui uma forma de proteção da burguesia ao manter os indivíduos ignorantes, sendo esta uma forma de garantir o controle social.
O fato é que Tocqueville nunca pensa a democracia em termos realmente universais. Só assim se explica o paradoxo pelo qual, por uma parte, descreve com lucidez e sem indulgência o tratamento desumano imposto a peles-vermelhas e a negros e, por outra, insiste no fato de que os Estados Unidos constituem o único verdadeiro modelo de democracia.
Portanto, evidencia-se que o pensamento de Tocqueville não está vinculado geneticamente com um processo de democratização progressivo, não se relaciona com um ideal de expansão da participação política popular nas instituições de poder, pelo contrário, seu sistema de duplo grau eleitoral intenta a defesa das liberdades econômicas, mesmo que seja ao custo da não-participação efetiva, com repercussão real no processo decisório, na democracia de boa parte dos cidadãos. Uma negação, em suma, do sufrágio universal como um dos fatores constituintes do liberalismo.
5. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE COMO MOTOR DA AUTOCRACIA
Manuel Castells, em obra dedicada ao estudo da crise democrática, anuncia a existência de uma profunda ruptura entre governantes e governados. A desconfiança nas instituições se espalhou quase que epidemicamente, ao tempo em que extirpou de legitimidade a representação política. Ao que parece, assistimos ao colapso do modelo político de representação e governança, que, a duras penas, substituiu os Estados autoritários e o arbítrio institucional de outrora. O sistema político partidário vigente se tornou alvo de constantes críticas coletivas em lugares como o Brasil, os Estados Unidos e a Europa. As massas não se sentem representadas pelas elites políticas; por conseguinte, imergimos numa “crise de legitimidade política”, decorrente da dissolução do vínculo subjetivo entre o que pensam e querem os cidadãos e o comportamento daqueles a que elegeram (CASTELLS, 2018, p. 7-12)
Uma democracia representativa só o é quando os cidadãos se sentem verdadeiramente representados: “a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas” (CASTELLS, 2018, p. 12). O desajuste entre o sentimento popular e o governo eleito é, teoricamente, corrigível numa democracia liberal, onde eleições periódicas se sucedem para substituir o quadro político posto. Contudo, a prática demonstra que o ajuste não tem se operado com facilidade, uma vez que as opções para o governo são sempre aquelas de há muito enraizadas nas instituições; os partidos, embora divirjam em políticas, estão de acordo em manter o monopólio do poder dentro de “um quadro de possibilidades preestabelecidas por eles mesmos” (CASTELLS, 2018, p. 67)
Perigosamente, na esteira da crise de representatividade instaurada, ascenderam ao cume do cenário político partidos nacionalistas, xenófobos e críticos das figuras que tradicionalmente ocupam o espaço político. Em 2018, já se podia afirmar que Polônia, Hungria, Noruega e Finlândia governos com participação de partidos xenófobos, sozinhos ou em coalizão. Castells avalia que a crise da democracia liberal é produto da conjunção de vários processos que se reforçam mutuamente, a exemplo da globalização. A globalização da economia e da comunicação, não bastasse prejudicar as economias nacionais, limitou a capacidade do Estado de responder internamente a problemas que, na sua gênese, são globais (e.g. crises financeiras, violação aos direitos humanos) (CASTELLS, 2018, p. 9-18)
Os governos nacionais, que aderiram, quase que unanimemente, à globalização, criaram uma nova forma de Estado (o Estado-rede) para potencializar a sua capacidade competitiva a partir da articulação entre Estados-nação. Estes, a despeito de não se dissolverem, transformaram-se em componentes de uma estrutura supranacional, a quem transferiram a soberania em troca de participação na gestão da globalização. O Estado, conforme se integra à rede, distancia-se da nação a que representa, o que dá azo à crise de legitimidade que impregnou a mente de muitos cidadãos, alijados das decisões essenciais para a sua vida, que, por sua vez, são discutidas e tomadas para além das instituições de representação direta.
Está instaurada a crise de representação de interesses, a que se agrega uma crise identitária, igualmente resultante do processo de globalização:
Quanto menos controle as pessoas têm sobre o mercado e sobre seu Estado, mais se recolhem numa identidade própria que não possa ser dissolvida pela vertigem dos fluxos globais. Refugiam-se em sua nação, em seu território, em seu deus. Enquanto as elites triunfantes da globalização se proclamam cidadãs do mundo, amplos setores sociais se entrincheiram nos espaços culturais nos quais se reconhecem e nos quais seu valor depende de sua comunidade e não de sua conta bancária. À fratura social se une a fratura cultural. O desprezo das elites pelo medo das pessoas de saírem daquilo que é local sem garantias de proteção se transforma em humilhação. E aí se aninham os germes da xenofobia e da intolerância. Com a suspeita crescente de que os políticos se ocupam do mundo, mas não das pessoas (CASTELLS, 2018, p. 20).
Contribuem para o distanciamento entre representantes e representados a corrupção sistêmica da política, presente em quase todas as democracias. Quando o cidadão percebe que aqueles que devem aplicar as regras de convivência as violam rotineiramente em benefício próprio, perde a confiança no ato de delegação de poder, exercido mediante voto. A perda de confiabilidade é agravada em vista dos efeitos nefastos da política do escândalo, que inspira “o sentimento de desconfiança e reprovação moral sobre o conjunto dos políticos e da política, contribuindo assim para a crise de legitimidade” (CASTELLS, 2018, p. 28).
O indivíduo, que teme a globalização, busca refúgio na nação. Afrontado pela imigração e pelo multiculturalismo, fortemente consorciados à globalização, o cidadão atende ao chamamento identitário; descrente nas figuras políticas que “estão aí”, persegue um novo representante, no qual possa se fiar. Movidos pelo medo, a mais poderosa das emoções, os setores mais vulneráveis da sociedade se aglutinam em torno dos agentes que, despudoradamente, destilam discurso xenófobo e racista, recorrem à força estatal como método de resolução de todos os problemas, simplificam a crise mediante polarizações, e se levantam contra “a corrupção generalizada”, de que, não raro, tomam (ou tomaram) parte (CASTELLS, 2018, p. 37).
Destarte, os novos políticos se legitimam pela lógica da oposição (afinal, são a negação de “tudo o que está aí”):
A nova legitimidade funciona por oposição. E se constrói em torno de um discurso que projeta uma rejeição geral ao estado de coisas, prometendo a salvação por meio da ruptura com essa ordem incrustada nas instituições e com essa cultura das elites cosmopolitas, suspeitas de desmantelar as últimas defesas da tribo ante a invasão do desconhecido (CASTELLS, 2018, p. 38).
Em resumo, a crise de identidade abre caminho para o surgimento de candidatos antiestablishment, que se elevam por meio da negativa geral de tudo que está posto, o que implica, inclusive, a negação de valores outrora considerados positivos (inclusão social, solidariedade) e afirmação daquilo que anteriormente era explicitamente condenável (xenofobia, racismo, machismo, etc.). Na leitura de Manuel Castells, escolhemos profissionais apolíticos, virgens de corrupção, para investir em neoliberalismo econômico e autoritarismo político, a aparente fórmula de resistência da “pós-democracia liberal”.
6. ASCENSÃO E SUSTENTAÇÃO DA EXTREMA-DIREITA E A INFLUÊNCIA DO RESULTADO ELEITORAL NORTE-AMERICANO EM FACE DAS DEMAIS DEMOCRACIAS
A ascensão (e manutenção) da direita radical no poder dos sistemas democráticos contemporâneos é um defeito que decorre, paradoxalmente, do próprio sistema democrático após sua contaminação pela democracia liberal. A perda das identidades coletivas, a atuação da mídia hegemônica no sentido de ajustar o noticiário político com foco na corrupção e as pautas adotadas pelos partidos de oposição de um lado estimularam o antagonismo na política, a imaginação do nós contra eles em que os dois lados são inimigos que não possuem nenhum ponto em comum, um inimigo cujas exigências não são reconhecidas como legítimas e que tem de ser excluído do debate democrático (SILVA, 2020).
O surgimento de partidos populistas e demagogos de direita é observado sob a mesma prática, citando-se alguns casos estudados por Chantal Mouffe, na Áustria em que o Jörg Haider mobilizou temas relacionados à soberania popular, “austríacos de bem”, “trabalhadores dedicados e defensores dos valores nacionais” para construção de um “nós” contra o “eles” representados por “partidos no poder, sindicatos, burocratas, estrangeiros, intelectuais de esquerda e artistas”. Na Bélgica, a ascensão do partido Vlaams Blok contra as “elites corruptas”. Na França, Jean-Marie Le Pen se apresentava como “alternativa à ordem hegemônica existente” (MOUFFE, 2015, p. 66-67).
Os partidos políticos transformam-se em partidos decorativos, em máquinas profissionalizantes e hiperburocratizadas, cartelizadas, que perdem sua conexão ideológica, emocional e psicológica com o eleitor. O voto passou a ser mais um momento cartorial da vida do indivíduo, que não se sente representado por estas estruturas cada vez mais autocentradas, reféns da lógica das elites empresariais e absolutamente distantes da população. Crise de representação partidária que incide mais ainda nos partidos da esquerda tradicional, incapazes, muitas vezes, de cumprir suas promessas de mais inclusão social e igualdade, amalgamando-se num “centro” político junto com a direita mais moderada, que descaracteriza as múltiplas diferenças partidárias entre eles, provocando reações nos extremos (SOLANO, 2018).
O voto em Donald Trump, em Jair Bolsonaro, em Marine Le Pen é consequência desta vulnerabilidade existencial, na qual a pós-democracia nos joga. Os autoritarismos populistas e de extrema-direita oferecem respostas (simplórias e enganosas, mas respostas) a este desespero ontológico, a esta sensação de risco e medo global permanente e ao saudosismo conservador. As narrativas do muro, da islamofobia, do “bandido bom é bandido morto”, ganham força e expressividade numa realidade em que a pós-democracia oferece respostas existenciais insuficientes aos milhões de sujeitos descartáveis, pauperizados e fadados a um não-lugar, a um não-pertencimento sociopolítico (SOLANO, 2018).
Este contexto, no qual crises econômicas e políticas se misturam e retroalimentam, possibilita a reorganização de um campo neoconservador, que utiliza a retórica do medo e do inimigo como instrumento mobilizador, retoma os valores da família tradicional: ordem, hierarquia, autoridade, moral, frente à suposta libertinagem do campo progressista. Todos estes demagogos da direita, incluindo Jair Messias Bolsonaro, aproveitam o fim do modelo adversarial e da representatividade na política e, de forma sedutora, apresentam-se como ‘os únicos canais de expressão das paixões políticas’.
Ou seja, o que se nota no Brasil de hoje, é um constante embate, entre aqueles que são a favor ou não ao uso de determinados medicamentos; entre o governo federal e os governadores; entre a economia e o isolamento social; entre os cidadãos de bem contra a corrupção e os políticos desonestos; entre a liberdade de expressão e politicamente correto etc.
Evidente que não se trata de aceitar aqueles que questionam as “instituições fundamentais básicas da associação política democrática” (MOUFFE, 2015, p. 121) e que advogam, por exemplo, contra a existência de algum dos três Poderes, pelo fim dos adversários ou pela intervenção militar, mas, de considerar válidas e legítimas as reivindicações que respeitem o próprio sistema, viabilizando-se a “oferta de políticas claramente diferenciadas, permitindo que os cidadãos decidam entre formas diferentes de organizar a sociedade” (LUHMANN, apud MOUFFE, 2015, p. 120).
Pois bem, dando seguimento ao estudo, a década de 2020 de fato teve o seu início com a posse de John Biden, como novo presidente norte-americano. Não se trata de condicionar o futuro da democracia à eleição de um ou de outro candidato (republicano ou democrata; à direita ou à esquerda), mas de reconhecer que, assim como ocorreu em 2016, o resultado eleitoral certamente influenciará os acontecimentos políticos dos próximos anos em diversos países, com diretas repercussões sobre os possíveis caminhos a serem trilhados pelas democracias constitucionais ao longo da nova década. Essa tensão entre distopia e utopia permeará o processo de reflexão e de (re)construção das instituições políticas nas democracias constitucionais. O ano de 2021 deu início a uma nova época, em que a preservação dos valores essenciais ao constitucionalismo e à democracia será crucial para o futuro da humanidade (VALE, 2020).
Desse modo, liberalismo e democracia encontram-se em uma encruzilhada no limiar dessa nova década, pois como bem afirmou o sociólogo Manuel Castells, a crise da democracia liberal é a “mãe de todas as crises” (CASTELLS, 2018, p. 10). Assim sendo, os desafios que se impõem aos politólogos e juristas da década, portanto, são ainda mais profundos, na perspectiva da essencial redefinição dos modelos e das instituições da democracia constitucional.
O século XXI exigirá das Constituições que tenham a eficácia necessária para poder implementar seus preceitos. O problema da eficácia da Constituição é muito sério, uma vez que é sempre muito difícil encontrar instrumentos que possam compelir o Estado a realizar aquele desiderato. Em síntese, as Constituições estiveram longe de serem textos totalmente íntegros e verazes. Mentiu-se muito para esconder as mazelas do autoritarismo e para fazer demagogia com a miséria do povo.
“A Constituição não deve ser um documento de promessas impossíveis de cumprir, nem de enunciados abstratos. Tem que haver harmonia e compatibilidade, entre o que realmente se necessita, se requer e se pode” (DROMI, 1997, p. 107). Parece claro, então que a Constituição do “porvir” deverá ter eficácia, conveniência, oportunidade e, principalmente, uma identidade entre o que se escreve e o que se faz.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossa política não se modernizou. Continuamos o coronelismo, em um modelo patriarcal de submissão total aos donos do poder. Modernizamos o processo eleitoral, em um avanço tecnológico invejado por muitos países, mas continuamos no modelo anterior no qual o patrão decide o voto do empregado que lhe está subordinado. Nosso processo civilizatório, baseado em uma educação bancária modeladora de comportamentos de forma acrítica, agora agravada pelo neoconservadorismo, ainda mais violento na exclusão dos divergentes e que ousam contestar, sustentado em um modelo religioso de matriz negacionista e explorador da fé, não nos permitirá recuperar a esperança na democracia, a não ser que nos coloquemos de forma potente e comprometida a abrir o diálogo e aproximarmos de todos os que conosco vivenciam esse momento da existência.
Numa ordem constitucional democrática o controle jurídico não é tudo. Defensores da constituição são todos os órgãos constitucionais e todos os cidadãos com compromisso democrático. Fato é, que no Brasil, a democracia representativa deu lugar à plutocracia da elite do atraso integrada pelo judiciário. Democracia sem povo, judiciário sem justiça, um “direito mercadoria” negociado pelos endinheirados. A encenação da democracia é consumada no teatro das eleições. A representação separa aqueles que têm influência daqueles que, mesmo que gritem, nunca são ouvidos. Eleitores e elegidos vivem em mundos separados.
No Brasil, a democracia se limita ao “vem pra urna”. Sua restauração não se reduz ao direito de fulano ou sicrano concorrer à presidência. Isso esconde as mazelas de um sistema apodrecido que não pode ser restaurado por salvadores da pátria. A quem interessa manter um sistema que não representa ninguém, senão o poder financeiro, ou o Deus convertido em Dinheiro. A restauração da democracia exige a reforma do Poder Judiciário para que este volte a cumprir seu papel de defensor da Constituição Federal. A recuperação da credibilidade de um Judiciário desmoralizado é fundamental.
Uma sociedade polarizada é uma sociedade descrente na solução negociada da política. Por consequência, ela está a mercê dos demagogos de plantão que apresentam discurso autocrático, populista e demonizador da política, que se impõe como a solução pronta e simples para as diversas agruras sociais. Ocorre que esse demagogo raramente consegue solucionar os problemas. A alternativa para seu fracasso é radicalizar ainda mais o discurso e escolher alvos para responsabilizar por sua inépcia. Esse alvo pode ser uma minoria, a oposição política, mídia crítica ou até mesmo instituições da democracia como o Legislativo ou Judiciário.
Democracias, sejam liberais, sejam sociais, fundam-se na dignidade humana, que, num dado aspecto, é notadamente individualista: a cada um de nós, individualmente considerados, é inerente a dignidade na dúplice dimensão acima explorada. Ou seja, cada indivíduo é, em si mesmo, um centro indevassável de valor intrínseco e responsabilidade pessoal. Por isso não causa espécie que alguns teóricos defendam que a democracia só é possível num modelo individualista de sociedade e apenas sobreviva enquanto reconhecidas, constitucionalmente, as liberdades individuais (BOBBIO, 1997, p. 13).
Portanto, deve-se avaliar a democracia diante de uma análise interna que compreenda seu significado e seus efeitos na sociedade. Sua cultura (democracia) segue a recusa de um único mito originário de nosso ser e de nosso pensar jurídico para alcançarmos justiça, mas diluindo o excesso do mito. A cultura jurídica, portanto, é aquilo que circula, funciona e produz efeitos dentro de um determinado contexto histórico social. Olhar o passado é entender o momento presente e, acima de tudo, antever as linhas do futuro.
Os pensadores sempre se preocuparam em conceituar justiça, assim como a democracia. Na realidade, não devemos apenas conceituar, mas sentir os seus elementos de formação. O conceito pode muitas vezes ser estático, a justiça e a democracia não. São situações de vida que emergem e evoluem diante das relações e ingerências humanas, estas tão fluídas pela imensidão do pensar do cidadão.
Apesar do momento conturbado vivido pela humanidade, quando instituições e lideranças são postas à prova e parcela expressiva da população mundial questiona as virtudes da democracia, o legado do iluminismo da “liberdade, igualdade e fraternidade”, precisa seguir sendo uma aspiração diária. A democracia tem muitas imperfeições, é verdade, no entanto, tem-se provado um sistema menos desumano se comparado aos demais. A missão deve ser aperfeiçoá-la. Dito isso, em resposta à problemática que ensejou este trabalho, podemos afirmar que sim, a democracia brasileira tem futuro!
Porém, não basta proclamar o princípio democrático e procurar a coincidência entre a vontade política manifestada pelos órgãos de soberania e a vontade popular manifestada por eleições. É necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade se forme em liberdade e em que cada pessoa tenha a segurança da previsibilidade do futuro. É necessário que não sejam incompatíveis o elemento objetivo e o elemento subjetivo da Constituição e que, pelo contrário, eles se desenvolvam simultaneamente.
Portanto, resistir, ressignificar e nos envolvermos, de fato, com os problemas reais da existência sofrida de tantos que estão à margem do processo democrático e dos bens da vida aos quais tem direito, poderá nos ajudar a pensar um modelo mais adequado aos nossos tempos e às nossas necessidades. Ter esperança e resistir é mais do que suportar os momentos difíceis, nos lamuriando com as escolhas daqueles que entendemos equivocados ou omisso. Resistência é movimento, é potência transformadora, revolucionária, profunda de nossos comportamentos.
Ter esperança e resistir é, fundamentalmente, acolher o divergente ou aquele que se omite, convidando-o a um novo modo de olhar a existência. É envolver-se visceralmente na luta pela democracia e não apenas manifestá-la discursivamente. Que politólogos e juristas estejam atentos aos novos desafios da década de 2020, tendo sempre em mente que da democracia nasce a justiça e desta nascem os elementos para o avanço e democrático.
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Graduado em Direito pelo ILES/ULBRA Itumbiara-GO. Ex-estagiário concursado pelo Ministério Público do Estado de Goiás entre 03/2019 e 12/2020. Aprovado no IV Processo Seletivo de estudantes para estágio na área de Direito - Justiça Federal em Goiás/Subseção Judiciária de Itumbiara, no ano de 2019. Aprovado no processo de seleção pública de estagiários do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região-Itumbiara/Goiás, no ano de 2019. Aprovado no VII Concurso Público – TRF 1ª Região, no ano de 2017, para provimento de cargos e formação de cadastro de reserva para o cargo de técnico judiciário-área administrativa do quadro de pessoal da Justiça Federal de 1º e 2º graus. Premiado com Certificado de Reconhecimento ao Mérito em 2020, pelo Comitê Científico do XXI Simpósio de Pesquisa, tecnologia e Inovação realizado pelo ILES/ULBRA. E-MAIL: [email protected]. ORCID ID: https://orcid.org/0000-0001-8054-761X. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5389487250090217
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Márcio Barsanulfo da. Perspectivas e desafios sobre o futuro da democracia brasileira Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 mar 2021, 04:41. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56230/perspectivas-e-desafios-sobre-o-futuro-da-democracia-brasileira. Acesso em: 23 dez 2024.
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